A bota

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eram 21h quando ela dormiu pela primeira vez. Lia Uma casa no fim do mundo, de Michael Cunningham, mas a aridez escorria das páginas do livro para dentro dela, como se houvesse um funil invisível derramando letras dentro do seu peito. Doía tanto ali fora como dentro, doía dentro e dentro. Algo esburacava a carne dela, como se formigas fizessem túneis pelo seu interior. Ou cupins. Sim, eram cupins. Em pouco tempo ela seria pó. Ela e o livro.

Sabia o que a esburacava, mas não queria lembrar. A não lembrança, porém, se lembrava dentro dela. Adormeceu cedo demais. Antes da novela, antes de a filha ligar, antes de ele chegar da universidade. Adormeceu em fuga. E a verdade continuou se relembrando dentro, enquanto ela fingia esquecer. Acordou de repente, com uma sensação de peso no estômago. Alguém no sono tinha enfiado um coturno na sua barriga, mas continuava doendo na vigília.

— Ele está com câncer — agora ela lembrava.

E repetiu baixinho.

— Ele está com câncer.

E dormiu de novo, antes das 22h. E de novo o pontapé no estômago.

— Ele está com câncer.

E repetia, sem que as letras fizessem sentido. Poderia estar dizendo xkdguhdytplnm. E seria a mesma coisa.

E dormiu de novo, antes das 22h30.

E de novo a bota enfiada no estômago.

— Ele está com câncer.

Enquanto repetia a frase proibida no escuro, ele chegou da universidade. Ouviu-o urinando no banheiro. Ouviu-o batendo a porta da geladeira, como ele sempre fazia, e ela implicava. (Será que a porta fechou? Se amanhã estiver aberta, degelando… )

Se amanhã, o quê? A bota cutucou mais fundo.

Ouviu-o lavando o rosto e as mãos. Ouviu-o procurando o pijama no escuro. (Por que ele sempre esquecia de que ela o guardava embaixo do travesseiro?) Ouviu-o quando acertou o despertador. E sabia que ele o programara para as seis e quinze (porque queria ter quinze minutos de preguiça antes de se levantar às seis e meia e começar a fazer a barba diante do espelho do banheiro, embaçando tudo com o vapor da água quente da pia). Ouviu-o tentando acordá-la com pequenos ruídos propositais e dissimulados. E fingiu que não tinha uma bota enfiada no estômago.

Quando ele finalmente se deitou, aninhou-se a ele, tentando não pensar que havia um bicho acordado dentro dele, roendo-o. Não podia pensar, não podia olhar pra trás, não podia olhar pra frente. Ao redor deles, ela sentia o apartamento se mexer. Estamos afundando, ela pensou. Então lembrou que não estavam no mar, mas assentados na cidade, onde não havia terremotos. Está tudo bem, ela balbuciou. Está tudo bem.

Agarrou-se às costas dele, tentando abarcar o corpo muito maior dele com seus braços e pernas, com sua barriga e seus seios, com toda ela. E dormiu até o amanhecer de algo que não mais existia.

Dançando com fantasmas

Netos de sobreviventes do Holocausto ampliam a verdade ao investigar o passado com a coragem que seus pais não puderam ter

Arnon Goldfinger vai limpar o apartamento de sua avó, Gerda, que morrera dias antes em Tel Aviv, e descobre que ela e seu avô, Kurt, mantiveram antes e depois da II Guerra, antes e depois do Holocausto, uma amizade calorosa com um casal de alemães. Não um casal qualquer, mas um encabeçado por um eminente oficial nazista. Claudia Ehrlich Sobral viaja para tirar dois dias de folga e assistir ao jogo do Brasil na Copa de 2006, na Alemanha, mas não consegue permanecer depois da partida. Ela antecipa o retorno a Roma por não suportar conviver com a ideia de que os pais e avós daquelas pessoas nas ruas mataram 6 milhões de judeus. Para Ben Peter, só restou Miriam, a avó de 96 anos. E com ela 1 milhão de negativos de fotografias feitas pelo avô, Rudi, que documentam em imagens a história do Estado de Israel. Agora, a loja de fotografias que guarda essa memória será demolida em Tel Aviv.

Como lidar com a memória que você não viveu – mas viveu? Essa questão tem sido respondida de forma fascinante pelos netos dos sobreviventes do Holocausto, através do cinema de documentário. Às vezes também pelos filhos, como no excelente “Seis milhões e um”, sucesso de público no Festival de Amsterdã do ano passado, sobre o qual já escrevi aqui. Mas, em geral, os filhos se descobrem paralisados pelo impacto da memória que não se fez memória, mas é carne aberta em uma vida cotidiana na qual o horror é também sobreviver ao horror. Ou se veem paralisados pela negação da memória, como a mãe de Arnon, que conheceremos mais adiante. Os netos, pelas razões óbvias, parecem mais inteiros para remexer pedaços.

As histórias do início deste texto são contadas em três documentários, que acabaram de ser exibidos no 16 Festival de Cinema Judaico, em São Paulo. Como lidar com a memória é uma questão de todos nós. O que torna esses documentários – ou esse modo de lidar com a memória – dignos de serem vistos é a coragem dessa geração, desses netos, de não fugir das contradições. Assim como sua capacidade de ampliar as nuances tanto quanto possível.

É muito claro que os judeus são as vítimas do Holocausto – e os nazistas, os algozes. Mas há um universo de questões para além desse fato incontestável. E são elas que os netos dos sobreviventes têm nos proposto, numa colaboração inestimável à compreensão do processo histórico – e da delicadeza da alma humana, mesmo quando varada pelo horror. É essa geração que, pelo menos no cinema, está adicionando camadas de complexidade a um dos acontecimentos mais brutais da História da humanidade.

A seguir, uma reflexão sobre esses três olhares novos, para pensarmos juntos sobre como ecoam em nós, judeus e não judeus.

O Apartamento

Este extraordinário documentário começa com filhos e netos entrando alegremente pelo apartamento deixado por Gerda Tuchler para “limpá-lo”. “Estes persas não têm valor nenhum”, é uma das primeiras frases da mãe de Arnon, ao examinar os tapetes. Logo percebemos que nada ali parece ter valor nem para ela, nem para nenhum dos outros. Objetos são jogados em sacos de plástico e móveis inteiros são atirados pela janela, estatelando-se vários andares abaixo. Aquela memória não tem valor algum – é lixo. Por quê? Talvez os descendentes pressintam que há algo de incongruente naquela aparência, ou veem só aquilo que lhes fora dado para ver: um passado sem história.

Gerda havia emigrado com o marido para a Palestina, em 1936, pouco antes da II Guerra (1939-1945), quando Hitler aumentava cada vez mais as restrições aos judeus. Desde então, vivera em Israel como se ainda estivesse em Berlim, transformando aquele apartamento em seu pedaço particular da Alemanha. Ao morrer, com 98 anos, praticamente não falava hebraico, só alemão. Conversava em inglês com Arnon, seu neto que gostava de livros. Conversava em uma língua neutra. Mais tarde, no curso da filmagem, Arnon lembraria que nunca haviam falado nada “realmente importante”. Ao começarem a examinar os documentos de Gerda, Arnon e a mãe descobriram que seria mais difícil “limpar” a memória do que parecia a princípio.

Arnon descobriria que seus avós, judeus cultos e de boa posição social (Kurt havia sido juiz na Alemanha), tinham viajado pela Palestina, nos anos 30, com um casal de alemães. Arnon ficou curioso, porque nunca ouvira falar desse assunto nos jantares de família. Logo, ele descobriria fotos e cartas mostrando que a amizade entre os dois casais havia continuado por muito tempo depois do fim da guerra, com visitas periódicas de seus avós à Alemanha e viagens conjuntas de férias.

Mas quem eram os Mildenstein? Arnon acha uma pista. Liga para um telefone e, do outro lado da linha, encontra a calorosa filha do casal alemão. Ao contrário dele e de sua mãe, ela conhece muito bem os Tuchler, sobrenome dos avós de Arnon. Conviveu bastante com eles, têm recordações e presentes para comprovar. Está feliz de ter contato com a família dos grandes amigos de seus pais.

Arnon cruza o oceano e é recebido pela filha dos Mildenstein. É ela quem começa a lhe contar a história. Mas é só um pedaço da história, o quebra-cabeça está longe de ser completado. Arnon sabe disso. Para a filha, o pai era um homem que gostava de judeus, que havia se recusado a colaborar com o nazismo – e a prova disso era a sólida amizade com os Tuchler. Mas onde estaria o resto da verdade?

Arnon começa a investigar – voltar atrás já não é possível. Pessoas, documentos, arquivos. Sua mãe é levada a reboque, hesitante, quase a contragosto. Ao final, Arnon prova que o barão Leopold Von Mildenstein, que teve uma carreira como executivo da Coca-Cola no pós-guerra, trabalhara no famigerado Departamento de Propaganda de Goebbels. E fora um dos mentores da política que levou os judeus aos campos de concentração. Morreu sem ter respondido por seus crimes, como tantos que conseguiram se ocultar nas franjas dos interesses da Guerra Fria, alguns deles protegidos pela CIA. Arnon descobriu também que sua bisavó, a mãe de Gerda, uma mulher chamada Susanne Lehmann, fora enviada para um campo de concentração, onde morrera. Como tantos judeus alemães, ela se recusara a emigrar com a filha, por não acreditar que “o seu país” pudesse lhe causar mal. “Acho que eu nem a conheci”, diz a mãe de Arnon no início do filme. Antes de descobrir fotos com Susanne – e cartas jamais entregues onde ela contava da saudades que sentia da neta.

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Por quê? Esta é a pergunta com que Arnon tem de lidar. Por que Gerda e Kurt apagaram a memória da mãe assassinada em um campo de concentração e continuaram a ser amigos íntimos de um nazista? “Um nazista podia odiar os judeus, como política de Estado, sem que isso o impedisse de ter relações com um judeu culto, de seu nível social. Assim como para um judeu, podia ser importante, para ser capaz de seguir vivendo depois do que aconteceu, saber que existiam alemães que não queriam tê-los expulsado de seu próprio país, que não os odiavam” – disse a Arnon um acadêmico especializado em estudos do Holocausto.

É uma explicação possível – mas é também uma verdade capenga ou uma mentira com a qual é possível conviver como verdade. Arnon sabe disso. Sabe também que jamais saberá. Mas chegou à encruzilhada: como lidar com a memória? No caso dele menos óbvia, mais espinhosa. Ele diz algo mais ou menos assim (no escuro, não dá pra anotar as palavras exatas): “Talvez eu nunca saiba o porquê de meus avós manterem uma amizade com nazistas. Mas agora preciso decidir o que eu vou fazer com essas informações”.

Arnon volta à casa bucólica da calorosa filha dos Mildenstein, em uma cidadezinha de contos de fadas onde parece que o mal jamais terá permissão de entrar. Ele volta para fazer o que considera certo, “em nome da amizade”, mas o fato é que volta como um anjo vingador. Devolve à mulher um horror que lhe pertence, mas que ela fingiu desconhecer ou não pôde ver. Seu pai foi um nazista, é o que Arnon diz a ela. Seu pai foi um criminoso. Como eu, você vai ter de lidar com isso. A amizade que nunca poderia ter acontecido é encerrada pelos descendentes. E a contradição é exposta às milhares de pessoas que assistirão ao documentário. Agora, todos têm suas marcas expostas – também a filha do nazista.

Há duas figuras trágicas na história real contada por Arnon com indiscutível coragem: as filhas, seja dos sobreviventes, seja do algoz. Uma é a filha do barão Mildenstein, que agora terá de lidar com o estigma de ser filha de um nazista, sem ter sido culpada pelos crimes do pai. A outra é a mãe de Arnon, durante todo o filme apatetada com uma memória que não foi buscar, mas que seu próprio filho a obrigou a encontrar. Vítima tanto da mãe quanto do filho. Mas o filho, pelo menos, ao restituir a complexidade da verdade, dá a ela a chance de deixar de ser apenas vítima. Essa mulher vive em Tel Aviv, em um apartamento no qual tudo é novo e impessoal, dos móveis à decoração, sem vãos onde coisas possam ser ocultadas. Como a memória lhe foi negada pela mãe, ela é uma página vazia. Sem passado, vaga a esmo. O que farão agora essas mulheres quebradas? O que farão agora que o frágil alicerce sobre o qual estruturaram suas vidas foi ao chão?

O que Arnon faz, com o ímpeto da geração que veio bem depois do cataclisma, é mostrar que não há como limpar a memória. Em algum canto do apartamento atulhado que é a nossa vida, verdades incômodas nos espreitam. E há esqueletos mesmo em armários supostamente insuspeitos. Não há como limpar a memória, mesmo quando ela foi empilhada em blocos bem arrumadinhos – seja por um indivíduo ou um grupo, ou mesmo pelo Estado. Há que se encontrar um jeito de lidar. E, em geral, ele passa por desarranjar o prédio inteiro para descobrir as partes que faltam. Ou apenas para constatar a falta. E viver com ela.

Os Fantasmas do Terceiro Reich

A forma que Claudia Ehrlich Sobral encontrou para lidar com o mal-estar que sentiu na Alemanha foi escutar não a dor dos judeus – mas a dos alemães. Não a dor dos descendentes de sobreviventes do Holocausto, como ela, mas a dos descendentes dos nazistas. Seu documentário, feito para a televisão no formato padrão, revela que há dor – e muita – do outro lado. Diferentemente da filha de Mildenstein, que conseguira dar um jeito de desconhecer os demônios do passado, os personagens reais encontrados por Claudia convivem com a dor há muito – e dois deles deram soluções radicais à descoberta de que o pai ou o avô era a versão mais aproximada de um monstro. Seus personagens são o que talvez a filha de Mildenstein tenha se tornado depois do encontro com Arnon Goldfinger.

Ursula Boger voltou um dia da escola contando em casa que a professora falara do que acontecera com os judeus em Auschwitz. “Seu avô esteve em Auschwitz”, foi tudo o que lhe disse a mãe. Ela então inicia um profundo mergulho na escuridão para descobrir que seu avô tinha sido o inventor de um dos piores métodos de tortura aplicado nos campos de concentração – aquele em que um judeu era pendurado, com pés e mãos amarrados, e espancado. O rosto devastado de Ursula é mais contundente do que qualquer uma de suas palavras. Quando você descobre que seu avô foi um dos piores criminosos da História, com quem você compartilha vergonha e dor? Ursula repete várias vezes o quanto é brutal a sua solidão.

Bernd Wollschlaeger, filho de um tenente-coronel nazista que viveu sem responder publicamente por seus atos, lidou com a culpa pelos crimes do pai rompendo com todos os vínculos concretos e simbólicos que o ligavam a ele. Bernd, que vinha de uma longa linhagem de oficiais condecorados do exército alemão, converteu-se ao judaísmo, emigrou para Israel e tornou-se um oficial-médico do exército israelense. Tornou-se em tudo o avesso do pai, encarnou o pior “inimigo” do pai – e nunca mais o viu. O que possivelmente tenha significado uma pena pior do que a morte para o ex-oficial da SS que nunca demonstrara qualquer arrependimento.

Bettina Göring foi talvez ainda mais além. Ela é sobrinha-neta de Hermann Göring, o segundo homem na linha de comando do Terceiro Reich, o que significa carregar um dos mais terríveis sobrenomes do nazismo. Até se matar com uma cápsula de cianureto no dia anterior ao seu enforcamento, em 1946, Göring fora um orador eloquente, que apreciava frases de efeito. Tanto que disse ao seu carcereiro que morreria, mas permaneceria na História. O que de fato aconteceu, mas possivelmente jamais como imaginara. Mas a frase do tio-avô que ecoaria em Bettina seria outra: “Os cromossomos são coisas engraçadas. Hereditariedade é mais importante do que ambiente. O gene pode saltar uma geração, e a criança nascer mais parecida com o avô do que com o pai”.

Temerosa de legar o monstro que poderia carregar dentro de si, Bettina se submeteu à esterilização. E cortou a linha de descendência. À custa de uma parte de si, “matou” o tio-avô muito além de uma vida. Para lembrar o que jamais será esquecido, Bettina Göring eliminou a memória que para ela era a mais ameaçadora – a genética.

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Depois de alcançar a humanidade daqueles que antes lhe causavam náusea, Claudia pôde passear em paz pelas ruas da Alemanha. Em seu documentário, ela emprestou carne à frase famosa de Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz: “Os culpados são os culpados. Os filhos dos culpados não são culpados”.

Mas é o filho de um sobrevivente judeu que diz a frase mais redentora do filme. Samson Munn promove encontros na Áustria entre descendentes de nazistas e descendentes de vítimas do Holocausto – “porque nossas raízes foram cortadas com nossos pais e avós, e eles temem que suas raízes estejam envenenadas”. O que Samson diz de muito especial é: “Não me interessa alinhar-me com os judeus. Me interessa alinhar-me com a humanidade inteira.”

A Vida Através das Fotos

– Quanto tempo faz, Ben?

– Muito tempo.

A pergunta é feita por Miriam Weissenstein, a avó. Ben é o neto. Ambos testemunham a retirada de uma gigantesca foto na qual uma mulher jovem, sorridente, de coxas bonitas, é imortalizada num passo de dança sem passo. O chão não é tocado, o corpo inteiro da mulher está no ar, desafiando a lei da gravidade, mas também o tempo. É Miriam esta mulher. Ou já foi Miriam. Ela agora tem 96 anos, e a loja de fotografias está sendo demolida, desalojando 1 milhão de negativos que documentam a história do Estado de Israel. O velho prédio dará lugar a um novo na cidade de Tel Aviv. Ben e Miriam perderam a batalha pela geografia de suas lembranças. E estão ali, assistindo ao desmonte da memória.

A tragédia dessa cena está toda no olhar de Miriam. Ela vê arrancarem da vitrine a si mesma em movimento. Esta outra de si que só sobrevive ali naquela foto. A Miriam que vê arrancarem sua versão mais jovem e potente está numa cadeira de rodas. Mas é esta Miriam gasta pelos anos que ainda faz a roda da vida girar. A jovem morreu, restou na foto. A velha a acolhe.

Toda a vida de Miriam e de seu marido, o fotógrafo Rudi Weissenstein, foi documentar em imagens a construção do Estado de Israel. O que significa que toda a vida deles foi se assegurar – e assegurar aos outros – que Israel existia. De repente, ao fim desse caminho, esta história, que era presente, passa a ser passado. Merece exposições e homenagens pela Europa, mas não merece mais o seu lugar concreto naquela rua de Tel Aviv. Apesar de toda a luta de Miriam e do aliado que lhe restou, o neto Ben, é preciso dar lugar a um novo prédio de gosto duvidoso.

Qual é a velha Israel colocada abaixo? E qual é a nova que surge sobre seus escombros? Falta-me conhecimento para responder, mas acho a pergunta das mais interessantes.

Talvez, apesar de todas as dificuldades e contradições que acompanhamos pelo noticiário, já exista ali uma crença na continuidade da vida que permita destruir para construir outra coisa – algo que, para a geração de Miriam, aquela que precisou construir um país, seja impossível compreender. Ben, ao contrário, pode mudar todo o acervo para bem perto dali, no novo espaço reservado, sem ter a sensação de que algo de essencial se perdeu na troca de endereço.

Para Miriam, só há um endereço. A vida toda se justifica pela construção deste endereço. Para Ben, graças ao que a geração de Miriam construiu, as possibilidades são múltiplas. Afinal, quando a geração de Ben faz seus documentários, o que está fazendo é dar um novo endereçamento à memória. A reconstrução ou recriação pode partir da destruição ou da desconstrução, dependendo do sentido que cada um dá. O certo é que a construção não pode ser monopólio da primeira geração – nem das que virão depois, com suas diferentes atribuições de sentido. Um sentido único, permanente e inquestionável é um tipo de morte.

Entre os três documentários, este, dirigido por Tamar Tal, é o mais delicado. Porque se propõe a algo que para alguns é menor, mas que de forma nenhuma é. Se Miriam contém em seu corpo consumido toda a história de Israel e de sua geração, o neto resgata a necessidade da continuidade da vida em seus pequenos atos. Em nenhum momento do filme há menção ao que fez Miriam migrar da Tchecoslováquia para Israel. A tragédia que une avó e neto não é a do Holocausto, mas uma mais prosaica, ainda que pavorosa. A filha de Miriam, a mãe de Ben, foi assassinada pelo marido, que depois se suicidou. De certo modo, avó e neto lidam com o drama humano universal enquanto tentam dar um novo lugar ao legado histórico de uma nação construída a partir do sangue, sobre sangue – ainda hoje. E é a geração de Ben que decidirá os próximos capítulos.

É verdade que, ao testemunhar a demolição de sua loja de fotografias, Miriam testemunha a mudança do país que ajudou a construir. Mas é também verdade que ao ver a jovem que ela foi ser retirada como fotografia da vitrine que não mais existirá, ela também está às voltas com a velhice do próprio corpo. Neste caso, as ruínas da loja já estão dentro dela há muito, em seu corpo destruído pelo tempo.

São muitos os simbolismos desse filme. Mas talvez o mais importante deles seja o de que a vida só vence, de fato, se for capaz de tecer uma teia de pequenos afetos cotidianos.

Prosaicos, talvez, mas fundamentais. É nos vãos amorosos das discussões travadas, das constantes implicâncias e dos olhares que escapam entre Miriam e Ben que sabemos que a vida se impôs.

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Como lidar com a memória do horror, afinal? Se na História é fundamental mantê-la viva, para que o horror jamais seja esquecido e repetido, na existência individual, íntima e cotidiana, na vida que segue, é preciso encontrar aquilo que faz viver. Ou então só há um estado de morte no qual restamos congelados, que é um outro tipo de campo de concentração. Para vencer é preciso amar –apesar de todas as peças que faltam. E amar, muitas vezes, significa remexer nos cacos para criar um novo sentido com a verdade possível. Tanto a verdade quanto o sentido sempre aquém, sempre incompletos. Sempre fascinantes.

(Publicado na Revista Época em 13/08/2012)

O homem dos Crocs vermelhos

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Era um homem mignon. Entrava pela porta do apartamento junto com outros dois companheiros, com a missão de destruir o meu banheiro. Uma semana antes, a vizinha anunciara pelo interfone que um vazamento transformara o teto do seu numa versão em miniatura das Sete Quedas. Quando me avisam que algo vaza do meu apartamento é como se vazasse de mim. Apressei-me a descobrir a fonte dos sete furos, ansiosa por estancar qualquer ligação da minha privada com a vida privada da vizinha de baixo.

Ao vê-los entrando pela porta, sabia que seriam ao mesmo tempo algozes e salvadores, responsáveis por matar meu silêncio com um réquiem para violinos e marretas. Mas, mal assomaram a porta, foi ele que me chamou a atenção. Destacava-se não pela liderança ou pela timidez, mas por um olhar de poeta tuberculoso do século 19. Mal me olhou sem curiosidade antes de voltar a esconder-se sob pálpebras anêmicas, espanando sua desolação e um resto de remela com cílios tão longos que pareciam femininos.

Entrou calado, com calças largas demais, um moletom de uma universidade americana do tipo que se vende na 25 de março e… nesse ponto meu espanto atingiu picos bíblicos. O homenzinho melancólico, em tudo o mais apagado e meio morto, usava um par de vistosos Crocs vermelhos. Sim, aquela sandália de plástico que se tornou moda em anos passados, em formato de pata de elefante — e que é preciso ser um homem muito desassombrado para usar. Coisa que em nenhuma vida ele parecia ser.

Fiquei estaqueada na porta, sem poder despregar os olhos dos Crocs. A sensação era mais ou menos como chegar a Nova York e encontrar o chapéu de frutas da Carmen Miranda na cabeça da Estátua da Liberdade. Ele, porém, não gastou um segundo em mim, antes de arrastar seus Crocs para o banheiro. Passei boa parte do dia distraída do trabalho, tentando decifrar aquele teorema de Fermat em plena quinta-feira, dentro da minha casa. Uma marreta na mão e… um Croc em cada pé.

Quando finalmente eles partiram, depois de demolir meu mundo como eu o tinha conhecido, fui quase na ponta dos pés espiar o que havia restado do meu banheiro, ainda submersa na sensação de algo fora do lugar. Ao apertar o interruptor, deparei-me com uma mulher enorme. Muita carne e nenhum osso, contida em uma pequena fotografia grudada com fita adesiva no azulejo bege da única parede inteira, onde antes havia o espelho onde eu verificava o andamento das minhas rugas enquanto escovava os dentes pela manhã.

Apertada num decote vermelho, a mulherona sorria um riso de dentes grandes, cabelos plissados de loiro, olhar de quem faria bolinho de chuva só de avental na cozinha se eu pedisse. Quem é essa?

Naquela noite, não dormi. Por várias vezes, dei a desculpa de que ia tomar água na cozinha e fui lá verificar se a assombração continuava no mesmo lugar. Continuava.

Na manhã seguinte, já esperei o trio de porta aberta. E lá chegou o homenzinho a bordo dos Crocs, ainda mais pálido do que no dia anterior. Quando eles marcharam corredor adentro, eu fui atrás. Perguntei de uma vez só, sem fazer separação de sílabas: “Queméssa????!”. Silêncio. Dava para ouvir o vizinho de baixo piscando. Olhei para um, olhei para outro, fui capturada pelo não olhar do homenzinho dos Crocs, agora com os olhos cravados nos próprios e chamativos pés. O mestre de obras pigarreou, fingiu ser possível limpar algo nas calças imundas de trabalho, antes de dizer: “É a falecida mulher dele”. E olhou para o homenzinho dos Crocs, que não olhou para ninguém.

Ah, balbuciei eu, enfiando a roupa de megera num só gesto. “Ele não faz obra sem que ela esteja olhando”, explicou o colega que não era ele. “E sabe que dá sorte? A gente até gosta dela ali.” Ah, fiz eu de novo, como se não tivesse aprendido outras letras.

Quando preparava o suicídio jogando-me no ralo, ouvi uma voz grave, profunda, mais solene que a do Cid Moreira lendo a Bíblia. Era dele a voz muito maior do que ele. “Ela me deu esses Crocs…” Olhei para ele, ele olhava para mim. Olhei para os Crocs, ele olhava para mim. Eu fiz mais um “ah” apatetado. E o homenzinho desandou a chorar.

Desculpe-me por ter perguntado, eu disse. Ela é uma mulher muito bonita. E estes Crocs são lindos.

Virei as costas envergonhada, deixando atrás uma ruína muito maior que a do banheiro, uma que era irreparável. Naquela noite não dormi mais uma vez, pensando que não havia como abrir a porta da casa sem ser abalroada pela vida do outro que entrava por ela. Sabia agora que, ao contrário do buraco no meu banheiro, o do peito do homenzinho jamais poderia ser fechado. E quase o invejei não pelo que tinha, mas pelo que teve. Eu agora sabia que a mulher havia visto nele mais do que qualquer outra pessoa no mundo jamais veria. Havia visto nele um homem em cujos pés caberiam um par de Crocs vermelhos.

Com a vênia, Seu Manoelzinho

O dia em que matei o Mensalão e fui ao cinema

Ao contrário de Lula, eu concluí que não tinha nada melhor para fazer do que assistir ao julgamento do Mensalão. Parei tudo e me postei diante do aparelho, ligado na TV Justiça. Na sexta-feira, segundo dia de julgamento, depois de mais de duas horas de explanação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, interrompeu-o para sugerir que se fizesse um intervalo. Gurgel retrucou que ainda não havia chegado à metade e precisaria de pelo menos mais uns 15 minutos. O procurador se preparava para continuar, quando se ouviu no plenário a voz inconfundível do ministro Marco Aurélio Mello. “Talvez não tenhamos fôlego fisiológico…” O argumento mostrou-se de pronto incontestável. O presidente anunciou o intervalo, “com a devida vênia”.

Do meu sofá azul, eu quase aplaudi. Jamais tinha visto alguém avisar que precisava urinar com tanta finesse. Aqui em casa agora não se usa outra coisa. Só mesmo um ministro do Supremo seria capaz de botar toga no xixi. Ouso especular que nem Elizabeth II, das altitudes do seu jubileu, seria capaz de ser tão majestosa. E lá se foi Marco Aurélio para o reservado – ou pelo menos espero que tenha ido, já que eu não estava lá para comprovar o lícito.

O fato é que, desde aquele momento, não fui mais capaz de concentrar-me no julgamento. De repente, me senti asfixiada por tantas vênias. Fui tomada por uma vontade irrevogável de ir às ruas. Eu precisava da vida como ela é para a maior parte das pessoas. E aqui não há nenhum desmerecimento ao Supremo, porque acho que a vida também é como é por lá, à sua própria maneira – e tão, às vezes até mais, como no caso em questão, fervilhante de paixões quanto. Mas eu precisava com uma urgência quase química me misturar à gente que fazia xixi.

Ainda sem entender bem essa necessidade meio tresloucada, mas obedecendo aos instintos, um par de horas mais tarde eu estava enfiada em uma sala escura. Havia passado horas assistindo ao espetáculo que ocupa o palco central do país – e intuí que precisava correr para as margens para resgatar eu não sabia bem o quê. Por razões que nem é preciso de Freud para explicar, acabei escolhendo, entre as tantas possibilidades da programação, um evento gratuito chamado “Cinema de Bordas”, promovido pelo Itaú Cultural. De bordas porque reúne aqueles cineastas que estão fora do centro. Aqueles que, sem recursos financeiros e técnicos, bem longe dos circuitos comerciais, fazem cinema improvisando o que falta – porque não concebem uma vida em que falte o cinema.

Sentei-me ao acaso. Mas não era um dia de acasos. De repente passou por mim um homem de metro e meio de altura, no máximo, bem magrinho, vestindo uma camiseta listrada de branco e verde que parecia nova, calça jeans e uma sandália preta. Pelo jeito que andava e mais ainda pelo que olhava, tentando não olhar, mas espiando se estava sendo olhado, dava para ver que o sujeito era tímido. Foi sentar-se à minha esquerda, um corredor entre nós. Percebi que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Alguém chamou: “Seu Manoelzinho”!

Tive um sobressalto. Era ele, o cineasta que eu já vira uma vez na TV, mas nunca antes em carne e lenda. Um homem que havia feito quase meia centena de filmes na pequena cidade de Mantenópolis, perto da divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, sem cruzeiro, cruzado, cruzado novo, real, já que ele fazia cinema há tempo suficiente para ter vivido a carência de todas as moedas da República pós-ditadura. Seu Manoelzinho tinha feito toda uma obra cinematográfica apenas com uma câmera velha e um gravador ainda mais alquebrado, tendo por atores homens, mulheres e crianças da roça, ou vizinhos da periferia da cidade.

A partir daquele instante, a vida para mim estava tanto na tela quanto fora dela. Logo na exibição do primeiro da sequência de quatro filmes, ouvi uma risada como há muito tempo eu não ouvia. Era uma risada que eu dava quando criança – e que fui perdendo com as contenções do protocolo adulto. As tais das vênias. Era uma risada desassombrada, que dava vontade de rir com ela. Era a risada do Seu Manoelzinho, que se divertia com os zumbis que claudicavam na tela. Conheci o encantamento de Seu Manoelzinho pelo cinema antes de conhecer o cinema do Seu Manoelzinho. E soltei eu uma risada de criança, porque é também um encantamento com o mundo que o cinema resgata no coração da gente. A vida humana é um absurdo a maior parte do tempo, e os zumbis estavam ali para nos lembrar disso.

O filme do Seu Manoelzinho era o último dos quatro. Chamava-se “A Maudição da Casa de Vanirim” – e “maldição” estava escrito para além da norma culta, com “u” em vez de “l”. Mas, ali, o que seria um erro deixava de ser para se transformar em uma informação a mais. Seu Manoelzinho vinha de “Uóshinton” para alugar uma casa em “Maiamis” – e aqui, de novo, não era a língua de Muçum, o comediante dos Trapalhões, mas a língua mesmo, fiel à verdade dali. E Maiamis era a zona rural de Mantenópolis, com estradas de terra, morros e uma vegetação de roça, onde ele alugara uma casinha caiada de branco onde o maior luxo era um telefone visivelmente deslocado.

Acompanhado por uma família numerosa, Seu Manoelzinho logo via-se às voltas com uma assombração mascarada, que depois de matar uns quantos filhos e turistas durante uma noite que era sempre dia, porque para gravar à noite é preciso mais recursos, era despachada para o além a tiros. Por Seu Manoelzinho, que, como eu descobriria mais tarde, é sempre o herói e ator principal de todos os seus filmes.

Fui tomada pelo filme, mas também por um dilema. Era uma história de assombração, e eu imaginava que Seu Manoelzinho, logo ali ao meu lado, tinha planejado medo e susto, mas o filme era uma das obras mais engraçadas que eu vira em toda a minha vida. Se eu risse, como toda a plateia fazia, estaria ofendendo Seu Manoelzinho? Percebi então que Seu Manoelzinho era um dos que mais ria. E que eu não estaria rindo dele, mas com ele, o que fazia toda a diferença. No dia seguinte ele me contaria que sabia se o filme era bom pelo riso da plateia. Porque, como cineasta, para Seu Manoelzinho o importante era divertir as pessoas. E aí não importava se era arrepio ou gargalhada, mas sim provocar algo que não havia antes. Alterar a vida pelo momento de um filme, o enorme poder da arte que Seu Manoelzinho havia intuído com uma liberdade que eu só alcançava agora, a partir do olhar dele.

Seu Manoelzinho dava no cinema o que o cinema sempre dera a ele – e por isso também parecia se divertir tanto quanto diretor-roteirista-produtor-e-ator principal quanto como plateia. Ele tinha 2 anos quando a família foi abandonada pelo pai, e a mãe, dona Fernandina, teve de se virar para criar três meninos, com uma vida de roçar a roça dos outros. Manoelzinho até foi para escola, como ele me contaria no dia seguinte, em uma conversa prolongada, na qual se sentou de lado, e não de frente para mim, envergonhado de falar com uma desconhecida. “A gente só ia pra escola pra comer, com tanta fome que ficava louco pra ouvir a sineta da merenda”, explicou. Por causa do tamanho da fome, não conseguia se concentrar no “quadro-verde” e, assim, não pôde aprender a ler nem escrever. Passava os dias oferecendo o pão que compravam numa padaria para revender ao povo da roça, precisado de sustância para aguentar o peso da enxada.

Até que, aos 8 anos, descobriu o cinema no salão paroquial da cidade, ao assistir a um filme marcado na sua memória como “O roubo do trem-correio”. O apaixonamento ganhou eternidades com “Django”, “Sabata”, “Keoma” – e com todos os Mazzaropis. Para ganhar a entrada do cinema, já que só comia pão porque também vendia, passou a fazer a propaganda dos filmes desfilando com cartaz pela cidade. E, mais tarde, quando abriu um outro cinema, com o luxo de um alto-falante, Manoelzinho também anunciava os filmes pelas ruas: “Atenção, senhor e senhora, hoje não perca o sensacional filme que tem por título Portada do Inferno…”

Eram filmes de faroeste, ou pelo menos foram estes que capturaram o menino Manoelzinho. E até hoje ele se espanta: “Era como nos antigamentes lá em Mantenópolis, em que havia muito homem valentão na cidade, que andava armado e botava bronca no lugar. Esses homens nunca tinham visto um filme de faroeste, mas mesmo assim já viviam no estilo do faroeste.” Como era possível?

Para Seu Manoelzinho, era portanto a vida que imitava a arte, o faroeste da realidade copiando o bangue-bangue do cinema. Fiquei especulando se era por essa percepção às avessas que ele quis tanto não só assistir à cinema, mas fazer cinema, algo que deveria soar bastante estapafúrdio na roça de Mantenópolis, ainda mais vindo da boca de um analfabeto. Se a vida imitava o cinema, então bastava fazer cinema para mudar a vida, ele pode ter intuído. De fato, o que aconteceu é que, no final dos anos 80, um conhecido do então jovem Manoelzinho voltou dos Estados Unidos com uma velha câmera VHS. E ouviu possivelmente a proposta mais inusitada da sua vida: “Rapaz, tô doido pra fazer um faroeste. Você filma pra mim”?

E assim surgiu “A Vingança de Loreno”. E descobrimos aqui que Manoel Loreno é o nome do Seu Manoelzinho. Para fazer o filme, veio homem a cavalo de tudo quanto é canto da região, até de 90 quilômetros de lonjura veio um a galope. Ele chama e não importa quantos aparecem, dá um jeito “de arrumar cena pra todo mundo”. E assim Seu Manoelzinho sentou-se pela primeira vez embaixo de uma árvore para fazer o que faria em todos os seus filmes dali em diante: desenhar cena por cena. Em dois dias o filme estava pronto. O povo da roça tinha virado ator de faroeste, e Seu Manoelzinho cineasta. Agora era seu o filme que um menino gritava pelas ruas, montado numa bicicleta: “Não percam logo mais um sensacional filme de Manoel Loreno”!

“A Vingança de Loreno” foi exibido pela primeira vez numa quadra de esportes de Mantenópolis para umas 2 mil pessoas, calcula ele. Sem telão, passaram em duas televisões de 20 polegadas, postadas uma de cada lado. “E o povo se apaixonou tanto pelo meu filme que pediu pra repetir”, conta. A estreia foi tão estrepidosa que acabou virando uma sessão dupla do mesmo filme. Mais tarde, Seu Manoelzinho se tomaria de amores pela mulher, “que era muito bonitinha”, ao vê-la morrer dentro de um córrego pelas mãos do “Espantalho assassino”. Os dois filhos que fizeram no casamento seriam seus filhos também no cinema dali em diante. E a praça da cidade viraria um cinema a céu aberto só para exibir os filmes de Seu Manoelzinho.

Só gosta de faroeste, de causos de trapaça e de assombração, Seu Manoelzinho? Não é bem assim, explica. Ele mesmo já abriu uma exceção para colocar entre suas preferências a adaptação para o cinema de “Romeu e Julieta”. O fato é que, quando Seu Manoelzinho enveredou para o romance, o povo desgostou do seu cinema. Ele mesmo esclarece: “Amor o pessoal não gosta muito. O povo gosta mais de dar risada. Romance é muita conversa”.

Alguém pode pensar que o cinema do Seu Manoelzinho só tem valor por causa da vida do Seu Manoelzinho. Engana-se. Filmados em sequência, seus filmes de ficção expõe o absurdo da realidade com uma verdade que jamais vi em qualquer documentário. Nos filmes de Seu Manoelzinho a ilusão do cinema é desfeita o tempo todo, já que ele não esconde os artifícios usados para criar a história. E o que se conta, para além do enredo em primeiro plano, é o improviso que a vida nos exige, obrigando-nos a uma constante reinvenção do roteiro previsto e sempre fadado ao fracasso.

O telefone que toca na casa de Maiamis só toca porque ao lado dele foi colocado um despertador. A música de fundo só existe porque há um gravador esbodegado tocando a fita no momento da filmagem – e a fita se enrola a certa altura. O sangue é “quissuqui de groselha”, e os tiros são bombinhas que os atores acendem com o cigarro, “porque todo mundo fuma por lá”. Os atores passam na frente da câmera mesmo quando não deveriam estar ali, e houve uma personagem que voltou na pele de outra atriz, sem nenhuma explicação. Já aconteceu até de se ouvir a voz do Seu Manoelzinho, saindo do papel de ator principal para assumir o de diretor, ao gritar: “Fala mais alto”!

Em um texto sobre o cinema do Seu Manoelzinho, a professora Bernadette Lyra, uma das curadoras da mostra, diz: “Neles (os filmes), tudo se passa sem truques e sem outra mediação que aquela da câmera mesma confrontada com os percalços da realidade do tempo/espaço e das necessidades alternativas em que as filmagens se produzem e se realizam”. E, em outro ponto: “É lembrete e testemunha de que no cinema tudo não passa de um grande artifício, mesmo quando um filme quer se fazer passar por documentário fiel da realidade”. E ainda: “A reação dos espectadores (…) é imediata, corporal e participativa. O público ri. Ri diante do desmascaramento daquele artifício com que o cinema de origem realista costuma fazer passar a ficção pela realidade. Ainda que o fenômeno seja involuntário por parte de um realizador como Seu Manoelzinho”. E conclui, lindamente: “Acontece que não é o movimento coerente da história que interessa a Seu Manoelzinho, mas sim o movimento da vida”.

É em um momento no qual a vida toma, mais uma vez, rumos inesperados por causa da arte, que me encontro com Seu Manoelzinho. Desde que apareceu pela primeira vez na TV, ele se vê às voltas com os atrapalhos da fama. “Tô muito famoso demais, mais conhecido que prato de 10 centavos”, diz. Não é que não goste da fama, como me explica, o problema é que a fama veio desacompanhada do dinheiro. Ao verem Seu Manoelzinho na televisão, o povo de Mantenópolis, que sempre atuou de graça nos filmes – ou só pela graça de virar ator –, agora exige cachê. Quem antes lhe dava trabalho como servente de pedreiro, já não lhe oferece mais porque pensa que enricou. Fora aqueles que carregam Seu Manoelzinho para cursos de produção, roteiro e direção, de onde ele volta dizendo: “Eles não entendem o meu cinema”.

Aos 53 anos de uma vida de cinema, Seu Manoelzinho descobre que não tem dinheiro nem para os filmes, que antes nunca precisaram de dinheiro para serem feitos – nem para a vida, já que hoje sobrevive de pequenos cachês em eventos, como este último, e da venda de cópias de seus filmes nas feiras de Mantenópolis e da região. Sobrevive também de Bolsa Família.

Resvalar das bordas ao centro, em efêmeros instantes, colocou Seu Manoelzinho numa encruzilhada. Preocupado com o dinheiro que não tem, ele teme ser obrigado a encerrar a carreira, justamente agora, quando sonha filmar “A Vingança de Loreno 2”. Precisa de quanto, Seu Manoelzinho? “Uns 20 mil.” E acrescenta, todo expectante: “Será que a TV Cultura não me ajuda a fazer o filme”? Não tenho resposta.

Despeço-me de Seu Manoelzinho, que se prepara para enfrentar quase um dia e uma noite inteiras de ônibus, na viagem de São Paulo a Mantenópolis. (Ele já experimentou voar, mas me garante que nem as aeromoças têm confiança “naquele trem”.) E retorno hoje ao julgamento, pensando em como se ligam os milhões de dinheiro público, supostamente usados para pagar deputados, com os 20 mil de que precisa Seu Manoelzinho, para levar cinema ao seu povo. A realidade só ganha sentido quando conseguimos fazer as conexões.

Antes de partir, Seu Manoelzinho explica por que se recusa a fazer papel de vilão no cinema. “Os vilões eu mato tudo. Só o herói faz a fita inteira. Eu não ia pelejar tanto pra fazer um filme pra morrer antes do fim.” São frases precisas para o momento. De certo modo, o que todos tentam enquanto se desenrola o espetáculo, também ali, no plenário do Supremo, é não morrer antes do fim. Alguns agarrados ao personagem, outros tentando um twist (virada) no roteiro para redefinir o papel.

“Nos filmes, eu sou herói”, diz Seu Manoelzinho. E na vida? “Na vida tô sendo também.” Seu Manoelzinho é, porém, algo muito maior do que um herói. Como seu cinema nos mostra, a vida dá um jeito de desarranjar o artifício. Para além da tela, seja a do cinema ou a da TV Justiça, sempre podemos contar com Seu Manoelzinho para nos lembrar que nosso desejo sobrevive tanto aos heróis quantos aos vilões. A vida será sempre nosso melhor espetáculo.

(Publicado na Revista Época em 06/08/2012)

 

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