Ela que me sabe azul

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Às 7h ela abre a janela. Seu apartamento, no prédio em frente, fica no mesmo nível que o meu. Eu paro de escrever para vê-la abrir a janela. Estou no meu sofá, com o computador no colo. Ela apenas olha sem arriscar o pescoço. Seu limite é a moldura da janela. Parece fazer questão de manter o teto sobre si. Arrisque-se, às vezes eu torço, mas ela nunca avança um centímetro além. Tem um rosto redondo e lembra uma daquelas bolachas brancas de tia do interior. Permanece ali, imóvel, durante longos minutos, olhando só para frente. Nem para cima, nem para baixo. Nem para a esquerda, nem para a direita. Só para frente. Depois, fecha a janela, cerra a cortina e só volta no dia seguinte. A velha na janela é meu original de Edward Hopper que se pinta todo dia no mesmo horário.

Nunca apareceu ninguém atrás dela, nenhum outro rosto além do seu. Já ensaiei algumas vezes o gesto de me dirigir à minha janela e fazer um sinal qualquer. Como num filme de alienígenas do Spielberg. Eu estenderia o meu dedo, ela estenderia o dela, e um raio de luz nos ligaria. Subiria uma música instrumental, e a humanidade estaria salva.

Temia assustá-la, porém. Ou intrometer-me num ritual vital cujo alcance eu não poderia compreender por inteiro. Não sabia o que ela via de mim, já que meu sofá fica de frente para a janela. Possivelmente, ela só enxergava um borrão azul em outro borrão azul. Eu quase sempre sou azul.

O que ela via? O que ela olhava além do meu azul, já que diante dela há apenas um edifício bege e sem imaginação, o meu? Para o quê? Para onde? Por quê? O que ela via quando não estava vendo?

Depois de cada uma de minhas viagens, eu só tinha certeza de ter voltado para casa e que o mundo ainda era o meu quando ela abria a janela. Será que ela tinha notado que o azul sumira por uns dias? Sentira falta? Sofrera?

Com o tempo, percebi que as manhãs só eram reais se ela estivesse ali naquele instante preciso. No momento em que as cortinas se abriam e seu rosto assomava à janela, a vida ganhava materialidade, e eu deixava de vagar a esmo em passos de astronauta. A velha na janela me dava gravidade, e eu desabava do teto para o sofá. Tornamo-nos estranhas íntimas, mas esta era só a minha opinião.

Hoje, as cortinas não se abriram. Ela não veio. Restei eu ali, no sofá, esperando-a, mas o seu mundo permaneceu fechado. Compreendi de repente a sirene da ambulância que havia soado no que eu pensava ser um sonho ruim. E quando entendi, vomitei. Eu não sabia até então como é que o mundo da gente morre. Agora ninguém mais sabe que de manhã sou azul. Então não sou. Em azul não há mais eu.

De passagem

Um pé preso na escada rolante, uma mulher que chora, um aeroporto em que os aviões não conseguem voar

Durou menos de um minuto. Um homem velho prende o pé na escada rolante do aeroporto. Sua filha, um degrau acima, impede que caia, abraçando o corpo do pai. Mas a escada continua seu movimento de máquina, e ela sente que não conseguirá aguentar o peso do pai por muito mais tempo naquela posição. “Alguém me ajude”, ela pede. Neste instante, é como se a cena congelasse numa tela. O velho quase na horizontal, o rosto contorcido pelo pânico, mas além da possibilidade de gritar. A filha prestes a soltá-lo por absoluta falta de forças para continuar a sustentá-lo. Então, a cena descongela. Um homem mais jovem corre até eles, galgando degraus, e segura o velho. O pé é destravado, e os três sobem. Logo atrás, a mulher do velho homem, que até então estivera fora da cena, sente as pernas falharem. Ela começa a cair, mas alguém atrás dela a segura. Agarrada a um estranho, ela sobe a escada rolante e desaparece no andar de cima.

Embaixo, uma mulher ainda jovem começa a chorar. Ela está na fila para fazer o check-in nas máquinas. É sexta-feira, 24 de agosto, e o aeroporto está fechado pela neblina. Como de hábito, a Infraero e as companhias aéreas comportam-se como se esta fosse uma novidade para a qual elas não precisassem estar preparadas. Os passageiros tropeçam em raiva e irritação a cada passo. Foram interrompidos – e estão acuados.

A mulher chora na fila. Deslocada. Está sozinha e puxa uma mala de rodinhas da Disney. A cena da escada rolante terminou, mas ela não a esquece. O que ela viu que não pode esquecer? A compreensão do velho de que as pernas já não o sustentam. O pavor ao perceber que desta vez fora salvo, mas que a queda continua esperando-o logo ali. A mulher que viu seu homem falhar, a fragilidade exposta justo agora que ela tanto precisa dele. A certeza de que ele já não pode mais protegê-la. A percepção de que ela o segue em mais de um sentido – e não apenas na escada rolante. A filha que não tem forças para impedir a queda do pai e não sabe como viver com essa descoberta.

A mulher na fila agora soluça. Ela vasculha a bolsa com mãos nervosas. Depois de algum tempo tira de lá os óculos escuros. Enfia os óculos no rosto, mas é tarde demais. Ao seu redor, já a descobriram. E por um momento os passageiros esquecem-se de que perderam o controle sobre os voos e sobre as horas, que gostariam de bater no primeiro funcionário da companhia aérea que passasse porque compromissos teriam de ser adiados, telefonemas precisariam ser completados, a cuidadosa programação do dia arruinara-se.

Esquecem-se de tudo isso por um instante. A mulher que chora por causa da cena da escada rolante, por causa de seus velhos, talvez por causa dela mesma, dá a eles algo ao qual se agarram com as unhas: devolve a eles a ilusão de que ainda estão no controle. Eles movem-se ao redor dela como um bando de hienas em um documentário da National Geographic. “Você quer um copo d’água?”, pergunta uma mulher de nariz comprido. A boca é preocupada, mas os olhos a desmentem. É curiosidade o que há neles, ela quer saber mais. A mulher que chora apenas nega com a cabeça. “Essa aí está despreparada para a vida”, comenta um casal de velhos um pouco alto demais. Velhos que ainda não caíram na escada rolante. “Deve estar na TPM”, ironiza um homem de uns 30 anos, camiseta apertada para mostrar os bíceps e tríceps. Seu amigo, marombado também, ri. “Mulher intensa demais não dá pra aguentar nem na cama.” Há uma beleza subjetiva em um corpo malhado, na tentativa pungente de criar uma armadura de músculos para se proteger daquilo para o qual não existe proteção. Os velhos da escada rolante sabem que não há armadura capaz de salvá-los, os jovens musculosos não. Não ainda.

A mulher continua chorando, mas agora menos. Logo será preciso recomeçar a falar sobre o “caos aéreo”. E as frases-boia voltarão: “Imagina como será na Copa do Mundo”… Por enquanto, há alguns segundos a mais nos quais se sentirão seguros. A mulher que chora lhes deu a satisfação da superioridade. Diante dela, sentem-se fortes por serem mais capazes que ela de esconder seu medo. É para isso que servem as pessoas que choram diante de cenas como as de um velho com o pé preso na escada rolante, as pessoas que andam por aí em carne viva. Para acalmar todas as outras.

Então acaba. A mulher consegue fazer o seu check-in e parte arrastando sua mala da Disney, com os óculos escuros que não a protegeram. O momento se desfaz. Cinco minutos depois vozes alteradas são ouvidas em outro ponto do saguão. Mais um espasmo. Um passageiro berra com o funcionário de uma companhia aérea que tenta convencê-lo a aceitar o atraso do voo. Ele quase encosta seu rosto para onde o sangue afluiu no rosto do homem protegido por um crachá. Ele não é intenso demais. Pelo menos ninguém comenta algo assim. Ele está certo, dizem, está reivindicando seus direitos. O direito do passageiro de passar. De não ser interrompido, de não ser parado. De não se lembrar, talvez, de que não controla nem mesmo sua agenda.

Em algum momento, mais tarde do que cedo, todos eles embarcam. Seguem andando. Voando. Alguns agarrados a amuletos porque temem cair lá de cima. Os velhos da escada rolante carregando em passos trôpegos o peso da sua fragilidade, da vida que jamais voltará a ser a mesma depois da quase queda. A mulher arrastando a mala de rodinhas da Disney com seus óculos escuros descobrindo o rosto, quando tentava encobri-lo. Os jovens malhados com sua armadura quase terna, mais desprotegidos do que todos os outros. O homem que ameaçou machucar o funcionário com crachá com uma história de potência para contar em casa. Embarcam. Seguem. Passam.

Alcançaram seu destino ainda na sexta-feira. Preencherão muitas vezes o formulário do bilhete aéreo, esquecendo-se do quanto é enganadora a pergunta sobre a escolha do destino. No dia seguinte, sábado, a maioria deve ter lido na internet ou visto na TV que Neil Armstrong morreu. Ele havia voado também. A distâncias mais largas do que a maioria sonhou. Um dos primeiros a ver-se de fora, a contemplar a insignificância do planeta de sua espécie em meio à vastidão do universo. “É um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”, anunciou. Neil Armstrong alcançou a Lua e descobriu, no sábado, que o mais sobre-humano entre todos os homens era impotente para escapar da condição humana. Que não havia mais como saltar, não havia nem mesmo passos pequenos. Um dia antes, o velho homem da escada rolante – quem será ele? – libertara o pé e superara o homem da Lua.

(Publicado na Revista Época em 27/08/2012)

A mulher que restou

Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal

Eliane Brum 

A VIDA NO VAZIO Joan Didion em seu apartamento em Nova York. A velhice chegou logo depois das perdas (Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

A VIDA NO VAZIO
Joan Didion em seu apartamento em Nova York.
A velhice chegou logo depois das perdas
(Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

Quando Quintana se casou, ela usava flores de jasmim entrelaçadas na grossa trança que lhe pendia nas costas. Seus pais, os escritores Joan Didion e John Gregory Dunne, brindaram a ela, sua única filha, e a Gerry, agora seu genro. Duas vezes. Uma na catedral, a outra mais tarde, num restaurante chinês de Nova York. Desejaram a eles felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos. Naquele dia, 26 de julho de 2003, eles ainda chamavam a isso de “bênçãos triviais”, aquilo que se deseja com sinceridade para quem amamos, mas quase sem pensar. Cinco meses depois, John estava morto. Um ano e oito meses depois dele, Quintana estava morta. Restou Joan, perplexa, pensando que houve um dia, houve uma vida, houve alguém com seu nome que acreditara que felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos pudessem ser bênçãos triviais.

Noites azuis (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,90, tradução de Celina Portocarrero), o último livro da jornalista, roteirista e escritora americana Joan Didion, é a narrativa de uma mulher que se descobre sozinha para testemunhar o próprio fim. Antes dele, Joan escrevera O ano do pensamento mágico, sobre o período que se seguiu à morte do homem com quem vivera por quase 40 anos, com quem escrevera roteiros para Hollywood, com quem sonhara com uma filha que se chamaria Quintana Roo. Um homem que caiu de repente sobre a mesa do jantar porque o coração parou, deixando-a só e perplexa.

Ao escrever sobre a vida sem John, ela alcançou uma síntese perfeita da catástrofe humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Era essa a tragédia inescapável, a emergência para a qual não há equipes de salvamento. O ano do pensamento mágico tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e vendeu 100 mil exemplares no Brasil. Quintana morreria pouco antes do lançamento, depois de meses com complicações de saúde cujos detalhes Joan escolhe não explicar. Tinha 39 anos.

Noites azuis é a continuação que Joan jamais esperaria escrever. É a história de uma mulher que restou. E talvez se possa dividir a condição humana em três destinos: ou morremos jovens, de doença, tiro, terremoto, acidente de trânsito, como aconteceu com Quintana; ou vivemos até uma idade madura, mas um câncer, um infarto ou um derrame nos leva um pouco antes de todos os outros, como John; ou restamos. No território de seus afetos, Joan foi a que restou. Tinha 70 anos quando se descobriu só.
O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, agarra-se para não afundar. Agarra-se porque é preciso enfrentar as lembranças, sempre fragmentadas, e com elas construir uma memória que faça algum sentido na paisagem devastada que agora é você. Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano. Como ao perceber que, por muito tempo, escrevera vendo as roupas de Quintana secar ao sol.

As lembranças espreitam Joan atrás de cada porta, dentro de cada gaveta. Ela levanta a tampa da caixa de joias forrada de cetim e encontra lá dentes de leite. Abre a porta do guarda-roupa e vê três velhas capas de chuva de John, uma jaqueta de camurça dada a Quintana pela mãe de seu primeiro namorado e um bolero de angorá, há muito comido pelas traças, que sua mãe ganhara de seu pai depois da Segunda Guerra Mundial. Ela abre caixas e acha convites para casamentos de gente que há muito se separou, cartões de agradecimento de funerais de pessoas cujo rosto esqueceu. “Em teoria, essas lembranças servem para trazer de volta o momento”, escreve. “Na prática, servem apenas para demonstrar quão inadequadamente apreciei o momento quando ele aconteceu.”

Em que momento surgiu Quintana Roo? Antes de se tornar criança, ela havia sido uma paisagem. Um nome visto por Joan e John num mapa do México, um nome que falava de uma geografia que ainda era terra de ninguém – ainda era, como Joan definiria, “terra incógnita”. Como todos os filhos, seus contornos foram se desenhando primeiro no território do desejo. Até que o telefone tocou.

“Tenho uma linda menina no St. John”, disse o médico aos pais que esperavam uma chance de adoção. E lá estava não um bebê entre tantos, mas o seu bebê, a sua Quintana Roo, com uma fita rosa no cabelo preto e uma pulseira no braço com as iniciais “N.I.” – nenhuma informação. Quintana sempre pediria para repetirem a história não de seu nascimento concreto, mas de seu nascimento para aqueles pais. “E se vocês não estivessem em casa para atender o telefone? E se tivessem sofrido um acidente na estrada, o que teria acontecido comigo?”, perguntava.

Joan nunca teve respostas para as perguntas da filha. Como a maioria dos pais, ela se iludira que seu bebê era uma página vazia, à espera de uma história. Mas todo recém-nascido é uma página que já começou a ser preenchida pelo desejo, ou pela neurose, ou pelo desespero, ou pelos genes, ou por tudo isso junto. No caso de Quintana Roo, também pelo abandono que assombra os filhos que um dia restaram, antes de ser escolhidos por um triz. Durante a maior parte da vida, Joan não conseguia compreender: “Como ela pôde pensar que eu não cuidaria dela?”.

Leia um trecho do livro (Foto: divulgação)

Leia um trecho do livro
(Foto: divulgação)

Mas isso foi antes, quando Joan ainda não tinha ouvido do médico da UTI: “Ela não consegue obter oxigênio do ventilador há pelo menos uma hora”. O que aconteceu? “Se ontem mesmo eu a segurei em meus braços. Ontem mesmo eu prometi a ela que estaria segura conosco.” Enquanto escreve, Joan sabe que homens e mulheres só descobrem a mortalidade quando têm um filho. Quando você jura proteger sua criança para sempre, mas acorda sem ar no meio da noite porque sabe que está mentindo. Você mente porque algumas mentiras são necessárias para seguir vivendo, mas você sabe – e seu filho também sabe. Com a terrível lucidez de ser aquela que restou, Joan agora é capaz de inverter a pergunta, perigosamente perto da verdade que sempre esteve lá: “Como ela poderia sequer imaginar que eu tomaria conta dela?”.

Joan descobre, enquanto amarra lembranças, que um filho será sempre, em alguma medida, uma terra incógnita. O nome, afinal, não estava deslocado. Possivelmente ela nunca precisaria pensar nisso se a ordem da vida – e da morte – não tivesse sido rompida. Agora, aqui está ela, perplexa, apavorada. É a esta altura que Joan acorda um dia e percebe que se tornou uma velha. Ela sabe o momento exato.

Era manhã de quinta-feira, 2 de agosto de 2007. Joan acordou com manchas avermelhadas no rosto e algo parecido com dor de ouvido. Desde então, seu corpo tem falhado de várias maneiras. A ponto de uma noite ela ter se surpreendido com medo de não conseguir se levantar de uma cadeira dobrável num evento público. Como foi ela que restou, agora gasta horas a fio na sala de espera de hospitais, às voltas com o preenchimento de formulários nos quais lhe pedem algo nebuloso: indicar quem chamaria em caso de emergência.

Joan descobre que não tem mais medo de morrer. Tem agora medo de não morrer – de restar sem consciência ou movimento. Restar sem poder contar nem consigo mesma. Percebe então que as noites azuis não voltarão. Aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar. “Será que eu pensava que as noites azuis durariam para sempre?”, indaga-se, para sempre perplexa.

Ela escreve, porém. As palavras também começam a lhe escapar, ela sente que seus verbos e substantivos “não dizem o que deviam dizer ou não querem”. Mas Joan vive enquanto escreve – e escreve para saber que ainda vive. Enquanto escreve, mantém todos vivos. Um truque desesperado do ilusionista que é todo escritor, mas também um milagre humano. No livro, Quintana, John e tantos outros que povoaram o mundo de Joan Didion ainda vivem. E as noites azuis continuam lá.

MEMÓRIAS DOLORIDAS Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

MEMÓRIAS DOLORIDAS
Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

(Publicado na Revista Época em 26/08/2012)

A mancha no travesseiro

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ela tingira o cabelo na tarde do dia anterior. Um mix de vermelho com castanho acobreado. Por isso, apenas se irritou ao encontrar a mancha no travesseiro assim que despertou. Atribuiu à incompetência da moça do salão, de quem ela nem gostava. E que, tinha certeza, não gostava dela. Pequenas tensões que movimentam a vida de uma mulher, o pequeno poder de destruir o seu cabelo e, portanto a sua vida na mão de uma outra. Um assunto, um nada. Alguma coisa. “Mocreia!”, gritou para ninguém. “Ela fez de propósito, deixou tinta pro meu cabelo cair.” E correu a enfiar a cabeça debaixo do chuveiro, com três passadas de xampu bem enxaguado. Apalpou a nuca e constatou que os fios pareciam estar todos lá. E esqueceu o assunto.

Tanto que, na manhã seguinte, nem lembrou de verificar a fronha limpa que tinha colocado. Quando foi arrumar a cama, lá pelo meio do dia, levou um susto. Tinha uma mancha vermelha ainda maior. Apalpou a cabeça, parecia mesmo que estava tudo bem. De novo, correu para o chuveiro e saiu de lá só uma hora e cinco xampus depois. Desta vez, não esqueceu. Uma sensação de incômodo e a cabeça meio enevoada lhe acompanharam pelo dia inteiro. Sentia-se suja, invadida. De repente, tudo parecia fora do controle, as horas escorriam entre os dedos. Olhou-se no espelho e se achou horrorosa. Mas, não, decididamente não estava careca. O cabelo parecia meio seco, maltratado, mas não mais do que isso. “Vou dar um banho de creme amanhã”, prometeu-se.

A sensação de deslocamento, porém, continuou colocada nela pelo restante do dia. À noite, estava tão chateada que fez um longo post no Facebook, desancando o salão e a moça do salão. Desta vez, antes de dormir, botou uma velha toalha branca sobre o travesseiro. Não perderia mais uma fronha de algodão egípcio do enxoval feito para um noivado que não virou casamento. Mandaria a conta da lavanderia para a mocreia, que a dona do salão descontasse do seu salário.

Dormiu um sono agitado. Acordou várias vezes durante a noite apalpando a cabeça. Conferiu o relógio umas outras tantas e, quando finalmente amanheceu, estava um pano de chão. Mas um vermelho, porque desta vez até o pijama tinha sido atingido. “Não pode ser”, começou a repetir. Primeiro baixinho, depois aos gritos que ninguém ouviu, porque as paredes do apartamento herdado dos pais eram sólidas. Puxou várias vezes o cabelo, que parecia estar todo ali, ainda que empapado. Mas, no momento em que tentou amarrá-lo num rabo de cavalo, sentiu uma dorzinha bem na base do crânio, na fronteira da nuca com o pescoço. Apalpou e percebeu dois buracos bem pequenos. Correu ao banheiro para buscar o espelho de aumento que usava para espremer espinhas. Usou o espelho sobre a pia de contraponto. Não enxergou nada.

Entrou no chuveiro mais uma vez. Lavar era a única coisa que parecia fazer sentido. Ligou para todas as amigas, mas ninguém a escutou. “Você está estressada, deve ser só tinta ruim”, disse uma. “Nunca mais vai naquele salão e pronto”, aconselhou outra. “Usa henna”, disse uma terceira. “Você é louca”, disse o único amigo homem. “E não é de hoje.”

Ninguém compreendia o quanto de inexplicável parecia existir agora na sua vida. Nem ela. Pensou em ir ao pronto-socorro, mas o que diria? “Doutor, a tinta está escorrendo do meu cabelo, e eu acho que vou enlouquecer…” Melhor não. Pegou dois comprimidos de Lorax e engoliu sem água. Dormiu em poucos minutos. Se tivesse esperado mais, teria visto os dentes do travesseiro.

Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

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