A mancha no travesseiro

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ela tingira o cabelo na tarde do dia anterior. Um mix de vermelho com castanho acobreado. Por isso, apenas se irritou ao encontrar a mancha no travesseiro assim que despertou. Atribuiu à incompetência da moça do salão, de quem ela nem gostava. E que, tinha certeza, não gostava dela. Pequenas tensões que movimentam a vida de uma mulher, o pequeno poder de destruir o seu cabelo e, portanto a sua vida na mão de uma outra. Um assunto, um nada. Alguma coisa. “Mocreia!”, gritou para ninguém. “Ela fez de propósito, deixou tinta pro meu cabelo cair.” E correu a enfiar a cabeça debaixo do chuveiro, com três passadas de xampu bem enxaguado. Apalpou a nuca e constatou que os fios pareciam estar todos lá. E esqueceu o assunto.

Tanto que, na manhã seguinte, nem lembrou de verificar a fronha limpa que tinha colocado. Quando foi arrumar a cama, lá pelo meio do dia, levou um susto. Tinha uma mancha vermelha ainda maior. Apalpou a cabeça, parecia mesmo que estava tudo bem. De novo, correu para o chuveiro e saiu de lá só uma hora e cinco xampus depois. Desta vez, não esqueceu. Uma sensação de incômodo e a cabeça meio enevoada lhe acompanharam pelo dia inteiro. Sentia-se suja, invadida. De repente, tudo parecia fora do controle, as horas escorriam entre os dedos. Olhou-se no espelho e se achou horrorosa. Mas, não, decididamente não estava careca. O cabelo parecia meio seco, maltratado, mas não mais do que isso. “Vou dar um banho de creme amanhã”, prometeu-se.

A sensação de deslocamento, porém, continuou colocada nela pelo restante do dia. À noite, estava tão chateada que fez um longo post no Facebook, desancando o salão e a moça do salão. Desta vez, antes de dormir, botou uma velha toalha branca sobre o travesseiro. Não perderia mais uma fronha de algodão egípcio do enxoval feito para um noivado que não virou casamento. Mandaria a conta da lavanderia para a mocreia, que a dona do salão descontasse do seu salário.

Dormiu um sono agitado. Acordou várias vezes durante a noite apalpando a cabeça. Conferiu o relógio umas outras tantas e, quando finalmente amanheceu, estava um pano de chão. Mas um vermelho, porque desta vez até o pijama tinha sido atingido. “Não pode ser”, começou a repetir. Primeiro baixinho, depois aos gritos que ninguém ouviu, porque as paredes do apartamento herdado dos pais eram sólidas. Puxou várias vezes o cabelo, que parecia estar todo ali, ainda que empapado. Mas, no momento em que tentou amarrá-lo num rabo de cavalo, sentiu uma dorzinha bem na base do crânio, na fronteira da nuca com o pescoço. Apalpou e percebeu dois buracos bem pequenos. Correu ao banheiro para buscar o espelho de aumento que usava para espremer espinhas. Usou o espelho sobre a pia de contraponto. Não enxergou nada.

Entrou no chuveiro mais uma vez. Lavar era a única coisa que parecia fazer sentido. Ligou para todas as amigas, mas ninguém a escutou. “Você está estressada, deve ser só tinta ruim”, disse uma. “Nunca mais vai naquele salão e pronto”, aconselhou outra. “Usa henna”, disse uma terceira. “Você é louca”, disse o único amigo homem. “E não é de hoje.”

Ninguém compreendia o quanto de inexplicável parecia existir agora na sua vida. Nem ela. Pensou em ir ao pronto-socorro, mas o que diria? “Doutor, a tinta está escorrendo do meu cabelo, e eu acho que vou enlouquecer…” Melhor não. Pegou dois comprimidos de Lorax e engoliu sem água. Dormiu em poucos minutos. Se tivesse esperado mais, teria visto os dentes do travesseiro.