Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.

Leia mais na minha coluna no El País.


Momento cabotino: neste final de ano, fui apontada como “a terceira jornalista mais admirada do país“, o que me deixou faceira por várias razões, em especial porque sou alguém que escreve textos longos na internet a cada 15 dias. Viva os textos longos na internet!


Quero agradecer pela companhia. Sem vocês, não teria graça. O que de melhor posso desejar, já que o desejo é livre também para ser impossível, é que 2015 acabe!

Beijos (e até 2015 🙂 )

Eliane

Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.

1. A falsa polarização

O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.

O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.

Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voava pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT“, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.

Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.

Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.

Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.

Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.

A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.

2. Restou governo para ser defendido?

A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?

A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.

Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?

Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.

Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.

Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.

No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.

A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.

Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.

Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?

3) Quando havia um governo, ele era defensável?

Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.

Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.

Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.

A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.

A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.

É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.

Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?

O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.

Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.

Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.

4) Há fundo no poço sem fundo?

Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.

O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.

Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.

Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.

O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.

Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?

Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.

Mas como?

Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.

5) A desesperança como imperativo ético

Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.

Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.

A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.

Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.

Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.

(Publicado no El País em 21 de dezembro de 2015)

É política sim, Geraldo

Escola Fernão Duas Paes (Foto de Facebook)

Escola Estadual Fernão Duas Paes (Foto da Página da Escola no Facebook): a primeira ocupada na capital paulista

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

 

Minha coluna no El País:

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção são o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A de que a voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Leia mais na minha coluna no El País.

PMs prendem manifestante durante ato na Avenida Faria Lima, em São Paulo, na quinta-feira 3 (Rovena Rosa / Agência Brasil)

PMs detêm manifestante durante ato na Avenida Faria Lima, em São Paulo, na quinta-feira 3 (Rovena Rosa / Agência Brasil)

É política sim, Geraldo

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção é o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Como afirmou Fernando Padula Novaes, chefe de gabinete da Secretaria de Educação, é “guerra”. A palavra reveladora de como o governo se relaciona com aqueles que discordam, neste caso os estudantes, foi usada mais de uma vez numa reunião cujo áudio foi divulgado pela repórter Laura Capriglione, do coletivo Jornalistas Livres. O encontro com cerca de 40 dirigentes de ensino contou também com a anunciada presença de um militante da Ação Popular, movimento de jovens do PSDB. Na reunião, Padula demonstrou a necessidade de “desqualificar” o movimento de resistência e mostrar que a “radicalização” estava “do lado de lá”.

E, assim, na lógica de “guerra”, Geraldo Alckmin respondeu ao exercício da política com bombas de gás, com golpes de cassetete e agressões físicas e psicológicas, como humilhar e carregar à força um garoto de 18 anos pendurado de cabeça para baixo. Respondeu com repressão, como já tinha feito nas manifestações de 2013. Respondeu como um general alinhado ao golpe de 1964 responderia durante os anos de chumbo. A Polícia Militar é o que sobrou de lá, aqui. E, se como analistas de segurança pública têm dito, a polícia está descontrolada, está descontrolada porque governantes precisam controlar. E impor: passar sem escutar. Passar sobre a política. “Limpar” as ruas dos pretos e dos pobres e também dos que fazem política.

Enquanto as imagens nas ruas expunham a violência da Polícia Militar contra os estudantes, a maioria deles adolescentes, este era o discurso do governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso. A polícia faz todo o trabalho, ela é capacitada, é treinada, tem paciência…”. O governador, e esta não é uma constatação banal, está satisfeito com a ação da PM. A desconexão entre o discurso da autoridade máxima do estado de São Paulo e a realidade documentada por vídeos e fotografias nas ruas de São Paulo é um fato a ser levado a sério.

É uma enormidade o que os estudantes paulistas deram ao país neste mês de resistência. Enquanto a política em Brasília, aquela feita por profissionais do ramo, era rebaixada a chantagens e tomaladacá, adolescentes deram ao país uma lição de política em sua expressão mais completa. Organizaram-se, ocuparam 196 escolas, responsabilizaram-se por elas – consertando, limpando e cuidando – e impediram que, num país e num estado em que a péssima educação pública escava um abismo, mais de 90 escolas fossem fechadas por decreto. Foram reprimidos violentamente por isso. Muitos apanharam, dezenas foram detidos, centenas sofreram as consequências das bombas de gás. Mas resistiram. E venceram. E, como o que venceu foi a política contra o autoritarismo da verdade única e da força bruta da PM, vencemos todos.

Em 4 de dezembro, o governador foi obrigado a recuar: suspendeu a “reorganização escolar”. O secretário de Educação, Herman Voorwald, deixou o cargo. Geraldo Alckmin recebeu uma lição de política dada por crianças e adolescentes. Ao ver sua popularidade despencar, conforme pesquisa do Datafolha publicada no mesmo dia em que anunciou o adiamento das mudanças até 2017, o político que iguala a política à obscenidade descobriu que não era mais possível mandar a Polícia Militar passar por cima do povo para sua verdade única passar.

Geraldo Alckmin recuou com uma frase do Papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo”. Ainda que óbvio, é uma questão de respeito restabelecer os fatos para não perverter as palavras. “Indiferença egoísta”: pode ser relacionada ao governo, que tentou impor sem debate um projeto controverso, criticado por educadores, que fechava quase uma centena de escolas e atingia centenas de milhares de alunos. “Protesto violento”: fotografias e imagens documentam a violência da PM contra os estudantes. “Diálogo”: é o que os alunos reivindicavam, enquanto no interior do governo se anunciava “guerra”. Diálogo é justamente política. Como aquilo que se faz é mais revelador do que aquilo que se fala, o governador fez seu anúncio e deixou a sala sem falar com a imprensa.

Não foi apenas Geraldo Alckmin que aprendeu algo importante com os alunos da escola pública –ou deveria ter aprendido. Há dois pontos aos quais é preciso prestar bastante atenção. Um deles, que já havia se tornado claro nas manifestações de 2013, é o de como uma parcela da imprensa da redemocratização ainda está intoxicada pelos tempos da ditadura e da censura, entre outras hipóteses para a escolha dos termos usados na cobertura. Adolescentes levam bombas e borrachadas das forças de segurança do Estado e parte da imprensa chama de “confronto”. A cada protesto nas ruas, várias reportagens começavam pelas agruras causadas pela interrupção do trânsito, como se o trânsito fosse a entidade mais importante desse acontecimento político, relacionado à grande tragédia nacional, a educação, numa hierarquia de valores bastante iluminadora. Adolescentes eram encurralados e agredidos pela PM e parte da imprensa definia como “confusão”. A PM reprimia violentamente os alunos que protestavam e uma parcela da mídia descrevia o fato como um ato de “dispersão”. Nomear os fatos com precisão é tarefa obrigatória do jornalismo.

Ao pensar nas manifestações contra o aumento das passagens do transporte público, em 2013, desponta outro ponto crucial: qual é o limite da opinião pública? Ou, de forma mais explícita: em quem a polícia pode bater sem causar assombro e reação, ou sem que isso provoque a queda de popularidade do governador? O que os protestos contra o fechamento das escolas mostraram é que usar violência contra alunos adolescentes é um limite para os cidadãos. Desta vez, não foi possível transformar os estudantes em “vândalos” e ganhar a opinião pública, como ocorreu em 2013, usando como justificativa a ação violenta dos black-blocs. Geraldo Alckmin apostou que conseguiria repetir 2013, quando num primeiro momento houve uma reação massiva contra a violência da polícia e, em seguida, com a conversão de manifestantes em “vândalos”, na narrativa de parte da imprensa, a opinião pública passou a apoiar a repressão policial, por ação ou omissão.

É importante pensar sobre isso, porque enquanto a violação da lei pela polícia não for rechaçada, independentemente de contra quem for, seguiremos muito mal. Se pode bater neste, mas não naquele (ou matar, como acontece nas periferias e favelas), continuaremos involuindo no pacto civilizatório. E os governantes autoritários seguirão com chance de passar sua verdade única sobre a política, calando a democracia com bombas de gás e golpes de cassetete.

O fracasso na conversão de estudantes em “vândalos” para a opinião pública, apesar de todos os esforços, revela que a escola ainda têm um lugar forte no imaginário coletivo. A educação pública, tão abandonada, tão desrespeitada, tão desinvestida nestas últimas décadas, ainda ecoa na população como um valor. Ainda ressoa a consciência de que uma escola, neste país, não pode ser fechada. Muito menos dessa maneira. A escola, tão maltratada, ainda é um símbolo positivo.

Há aqui uma lição profunda que os estudantes das escolas públicas deram não apenas ao governador, mas ao conjunto da sociedade que acredita em saídas individuais, em geral na de matricular o filho na escola privada para pelo menos salvar o seu da tragédia educacional brasileira. Quando já se tornava difícil acreditar que houvesse uma saída, os estudantes se apropriaram das escolas e, com a ajuda de parte dos pais, passaram a cuidar dela. Coletivamente, como comunidade, como cidadãos. Cuidam do que ninguém mais de fato cuidava.

Acho que ainda não chegamos perto de alcançar o tamanho desse gesto, que nestas últimas semanas levou gente que nunca tinha pisado numa escola pública a oferecer de comida a serviços. Pessoas de todas as áreas têm se apresentado para dar aulas nas escolas ocupadas. Alunos de universidades prestigiadas, aquelas em que os estudantes da escola pública foram ensinados a acreditar que nunca entrariam, pediram para os secundaristas irem até a faculdade explicar o movimento. Os estudantes conseguiram derrubar muros que quase ninguém acreditava que ainda poderiam cair. E uma estudante ouviu de uma visitante no domingo, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, a primeira ocupada na capital paulista, uma frase simbólica: “Tenho orgulho de viver numa cidade em que você existe”. Como escreveram os repórteres Felipe Resk e Rafael Italiani, do Estadão, a escola que tem o nome de um bandeirante “se tornaria símbolo da resistência ao Palácio dos Bandeirantes”. Recusando tal pai-fundador, os alunos cobriram a estátua do “matador de índios”, na frente da escola, com um saco preto.

Os estudantes que ocuparam escolas e ruas estavam até então na posição de restos. Eram os estudantes que o Estado fingia educar, em escolas abandonadas, caindo aos pedaços, em aulas com professores muito mal pagos, desmotivados e despreparados. Eram os alunos que nunca teriam muita chance na vida porque recebem uma péssima educação. Eram os estudantes “violentos” e “perdidos” da escola pública, eram também os pretos e os pobres da escola pública. Eram aqueles que restavam na condição de objetos, também de discursos eleitoreiros e de slogans indecentes. Os herdeiros do processo de redemocratização lento, frágil e precário que vivemos há 30 anos, das ações imperfeitas de inclusão social, provaram que, se a moldura do espaço público for a democracia, há lugar para as diferenças, há lugar para o outro. Aqueles que muitos acreditavam “sem futuro”, porque sem presente, ensinaram aos adultos que a política é o exercício de estar com o outro no espaço público.

De onde veio a boa notícia no rio de lama e de obscenidades que se transformou o país, no concreto e no simbólico? Dos meninos e meninas das escolas públicas. Educaram o governador, educaram a sociedade. E fizeram o que parecia impossível no atual momento do Brasil: resgataram a política.

(Publicado no El País em 7 de dezembro de 2015)