Três histórias reais e uma despedida
Depois de 233 segundas-feiras, minha última coluna
Ele subia a rua em passos descalços, a sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, a camisa a braços mais curtos. A barba e o cabelo eram seus e eram livres. Ele subia a rua, mas seu rosto me dizia que poderia estar descendo. Não parecia importante para onde estava indo. O importante era o que segurava com firmeza entre as mãos encardidas: uma embalagem amassada de alumínio com arroz. Talvez tivesse mais do que arroz, mas no ângulo de onde eu o observava não podia ter certeza. Eu me perguntava se ele procurava um lugar para comer seu almoço tardio quando, de repente, ele freou os pés. Vi seu olhar se habitar em uma face que se tornava outra. Era um homem, agora, parado no meio da calçada, subitamente presente. Perplexa com a repentina mudança, segui o seu olhar.
Diante dele, uma moça bonita saía de uma agência bancária com uma amiga. Era para ela que ele olhava. A beleza dela o havia despertado. Estacionado no meio da calçada, ele não era apenas um homem, mas um homem tocado por um encantamento. E talvez não tantas mulheres assim tenham recebido alguma vez um olhar como aquele. Seu corpo fez então pequenos movimentos hesitantes, o que ele iria fazer?
Só existia o tempo de uma respiração antes de ela passar por ele sem vê-lo. Ele estendeu os braços e ofereceu sua pobre marmita.
Nenhum traço de vulgaridade, nada no seu gesto era barato. Era apenas tudo o que ele tinha. Pude ouvir a sua voz: “Você quer?”.
Meio assustada, meio constrangida, ela disse que não, obrigada, e saiu dando risadinhas com a amiga.
Ele apagou o olhar e começou a descer a rua, sem lembrar que antes estava subindo.
Tudo isso aconteceu em um minuto. Um minuto de São Paulo. Era início da tarde da quinta-feira passada, na rua Teodoro Sampaio, entre a Lisboa e a João Moura. Ao espiar seus passos pensei que alguém que cruzasse com ele, se o visse, veria apenas o que não era dele. As calças, a camisa, a sujeira. Sem saber que um minuto atrás ele havia empreendido um gesto desmedido: tinha oferecido tudo o que possuía e sido recusado.
Quis compartilhar esse minuto, transformá-lo em palavra, mesmo que a palavra jamais dê conta do movimento da vida. E com essa pequena história real me despedir desta coluna. Tem sido dias de muitos acontecimentos, às vezes de grandes tragédias, para onde se olha tudo parece grandioso. São tempos em que os fatos reivindicam o adjetivo de “histórico” antes de o dia acabar. Quis encerrar minha trajetória de mais de quatro anos neste espaço com um desacontecimento, a delicadeza mesmo nas horas brutas.
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Na semana de 30 de setembro a 5 de outubro, indígenas de diferentes povos e regiões do país planejam se reunir em Brasília para uma mobilização em defesa da Constituição. Escutar ou não o que têm a dizer definirá uma ideia de Brasil. Hoje, a bancada ruralista é a mais influente do Congresso Nacional. Suprapartidária, representa não a massa de agricultores, mas os grandes latifundiários. Se corresponde a uma minoria no conjunto da população, seu poder no Congresso é enorme. Um dos principais focos de sua atuação é avançar sobre as terras públicas, fazendo com que se tornem disponíveis para ganhos privados. Para isso, mira nas terras públicas destinadas aos povos indígenas, cujo direito originário a essas terras é reconhecido e assegurado pela Constituição de 1988. E trabalha para difundir entre a população três máximas: 1) a de que é necessário disponibilizar mais terras para a agricultura se o Brasil quiser se desenvolver; 2) a de que os índios têm terra demais e são um entrave ao desenvolvimento; 3) a de que só é um bom brasileiro aquele que “produz” – e produz em um modelo determinado, que limita a terra à condição de mercadoria.
Nenhuma dessas máximas se sustenta, mas seus defensores contam com a desconfiança de parte da população com os indígenas para transformá-las em “verdades” repetidas sem questionamento (leia aqui). Desconfiança que permitiu os genocídios que mancharam de sangue os últimos séculos e chegam aos nossos dias (leia aqui). Uma pesquisa da Embrapa já mostrou, para citar apenas um exemplo, que há 58,6 milhões de hectares só de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. Hoje há tecnologia para aumentar a produtividade dessas áreas – e a melhoria da produtividade é o que separa os setores competentes do agronegócio dos incompetentes, já que a terra não é ilimitada. Acreditar que há muita terra nas mãos dos índios, que têm sido os grandes protetores da biodiversidade, é quase uma afronta à inteligência da população. Basta verificar a quantidade de terras nas mãos privadas de alguns membros da bancada ruralista e fazer as contas.
É bastante interessante que o direito à terra seja tão vorazmente defendido quando se trata da posse privada, mas, no caso dos povos indígenas, esse mesmo direito seja constantemente contestado, ainda que eles estivessem aqui muito antes da chegada do primeiro europeu. O ponto é que os povos indígenas têm direito ao usufruto dos recursos de terras públicas – e o que os ruralistas querem garantir é a posse privada dessas mesmas terras e recursos. Assim, elas deixariam de ser públicas, destinadas à posse permanente dos indígenas, para a reprodução do seu modo de vida – ou, as muitas ainda não demarcadas, jamais voltariam a ser públicas para o usufruto coletivo dos indígenas.
Para alcançar esse objetivo, é preciso esvaziar o artigo 231 da Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas suas terras originárias. No parágrafo sexto desse artigo, está previsto que apenas em condições excepcionais, “ressalvado relevante interesse público da União”, esse direito pode ser afetado. Cabe a uma lei complementar definir em quais casos excepcionais isso pode acontecer – ou o que é “relevante interesse público da União”. A proposta que tramita no Congresso é o Projeto de Lei Complementar 227/2012. Nele, os casos em que o interesse “público” se sobrepõe aos direitos dos povos indígenas são tantos (mineração, assentamentos agrários, faixas de fronteiras com núcleos populacionais, posses anteriores à Constituição de 1988, entre outros), que, na prática, as Terras Indígenas não seriam mais dos povos indígenas. E o que era regra vira exceção, violando a carta constitucional.
Para complementar o golpe contra os direitos dos povos indígenas, está em curso, entre outros projetos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000. Ela retira do Executivo a prerrogativa de demarcar as Terras Indígenas e a transfere para o Congresso. A comissão que vai analisá-la já é dominada pela bancada ruralista. Somados, o PLP 227 e a PEC 215 vão, na prática, tornar remota a possibilidade de demarcar e homologar Terras Indígenas ainda não amparadas pelo Estado e, ao mesmo tempo, desamparar as já asseguradas. Completa-se o esquema perfeito para que as terras públicas de usufruto dos povos indígenas tornem-se disponíveis para ganhos privados.
É para barrar essa versão mais sofisticada de genocídio que lideranças de diferentes povos indígenas estarão em Brasília no aniversário de 25 anos da Constituição de 1988. Cada povo representa uma visão de mundo, uma cosmogonia particular, uma forma de se relacionar com a terra e com os recursos naturais. Um jeito diverso de ser brasileiro que, junto com o jeito de ser brasileiro dos ribeirinhos e dos quilombolas, permitiu a preservação do que ainda existe de floresta em pé. Se uma parte significativa da população brasileira continuar acreditando que nada disso lhe diz respeito e que a bancada ruralista a representa, os povos indígenas estarão sozinhos.
É uma escolha. Mas é importante que essa escolha seja consciente, porque é um projeto de nação e de futuro que está em jogo.
É também com esse questionamento que encerro esta coluna. Busquei ocupar este espaço com o sentido de iluminar os cantos escuros dos acontecimentos e, principalmente, para acrescentar dúvidas novas ao cotidiano de quem me lê. Acredito que mais importante do que concordar ou discordar é estar aberto para qualificar as questões de nosso tempo histórico e, com elas, alargar o mundo de dentro e o de fora.
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Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba.
Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.
Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.
(Publicado na Revista Época em 23/09/2013)
Vizinho indiscreto
Um fotógrafo tem o direito de se posicionar diante da janela, com uma lente potente, para registrar cenas privadas e depois exibi-las?
Desde que, anos atrás, ouvi as primeiras notícias de uma nova tendência no mundo da fotografia, a de registrar a vida privada dos vizinhos, mudei meus hábitos dentro de casa. Passo bastante tempo entre paredes íntimas, porque trabalho em casa, e sempre gostei das cortinas abertas, a luz entrando, o máximo bem mínimo de amplitude numa cidade como São Paulo, com prédios, janelas e outros mundos dentro delas por todos os lados. Mas, com medo de uma lente indiscreta, passei a fechar as cortinas de forma que nenhum olhar desconhecido, ninguém que não tenha batido na minha porta pedindo licença para entrar, possa me alcançar. A possibilidade de me descobrir numa exposição de fotos ou num site da internet, mesmo que meu rosto não possa ser reconhecido, alterou a minha vida mesmo antes de se concretizar.
Em agosto, a justiça americana deu uma decisão favorável ao fotógrafo Arne Svenson, que havia sido processado por dois de seus vizinhos depois de expor retratos feitos de sua janela. Com uma lente de grande alcance, o olhar de Svenson penetrou para além dos vidros de um prédio no bairro de Tribeca, em Nova York. A série de retratos foi exibida na exposição intitulada The Neighbors (Os Vizinhos). Svenson teve o cuidado de não mostrar o rosto dos fotografados, mas as pessoas se reconheceram. Uma delas sentiu-se desconfortável ao identificar objetos do quarto da filha. A simples ideia de que havia alguém espionando a sua vida privada provocou mal-estar. As fotos foram oferecidas pela galeria por valores que variavam de US$ 6.200 a US$ 8.400.
A exposição provocou muita discussão e rendeu vários artigos na imprensa americana: o que fazer quando a liberdade de expressão de um invade a privacidade de outro? Na sentença favorável ao fotógrafo, a juíza diz: “Arte é liberdade de expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda (da Constituição)”. Mas será que a questão se resume a saber qual dos conceitos – liberdade de expressão ou privacidade – se impõe sobre o outro?
Arne Svenson afirmou que o veredicto foi “uma grande vitória para os direitos de todos os artistas”. E reafirmou sua intenção ao fotografar os vizinhos: “Eu acredito que aspectos inconscientes, não ensaiados da vida, são mais bonitos para fotografar, por serem mais abertos à interpretação, à narrativa”, disse ao jornal britânico The Guardian. “Um momento dramático tem o poder único da ação, mas os pequenos e conectados momentos são como marcamos nosso tempo na Terra.” E concluiu, lindamente: “Estou muito mais interessado em registrar a respiração entre as palavras do que as próprias palavras em si mesmas”.
No Brasil, Felipe Morozini fez 180 mil fotos de sua vizinhança nos últimos dez anos, da sacada de seu apartamento, localizado no 13o andar de um prédio do centro de São Paulo. Algumas fotos mostram pessoas nuas ou com roupas íntimas, em suas tarefas rotineiras. Morozini disse à Folha de S. Paulo: “Não me sinto desconfortável por mostrar essas pessoas. Não busco a falha do outro, mas a poesia”. No texto de apresentação da sua obra numa galeria, esse olhar que atravessa a janela dos vizinhos é apresentado de forma poética:
“É tudo verdade. Num prédio da Avenida São João, em São Paulo, um homem de corpo dourado e cabelos grisalhos todos os dias senta-se na varanda para olhar uma coleção de relógios. No outro prédio, todas as manhãs uma mulher bate bifes com um martelo de carne, no mesmo ritmo do sexo bruto que vive todas as noites. Um cachorro toma sol numa varanda cujo piso é trocado frequentemente: de ardósia para lajota para cimento. Um homem jovem numa janela segura uma câmera e diariamente invade em zoom a vida dos vizinhos, registrando esses hábitos e mazelas. Depois, analisa as imagens e acha pedaços de poesia inintencionais. Amplia então a fotografia de uma mulher nua, numa área de serviço cujas paredes são deliciosamente gastas pelo tempo. Ela segura um espelho, que reflete seu bico do seio. O acaso tem uma face erótica, revela a fotografia de Felipe Morozini. Que o artista tenha escolhido a luz, o dia em que roupas coloridas formavam uma curva na parede cinza, e tenha esperado o corpo da mulher repetir a linha escura vertical que centraliza a composição. Aceito. Mas não foi ele quem mirou o espelho para o mamilo no instante certo. Foi o acaso. Extrativismo estético autossustentável: o fotógrafo colhe migalhas do belo que existem naturalmente no mundo real”.
As fotos são de fato belas e emocionam. Dão transcendência à nossa rotina de minoridades. Nos enxergamos no pequeno gesto do outro, nos descobrimos próximos daquele que pensávamos desconhecer. Nossos passos claudicantes pela casa e pelos dias se revelam um balé poético. Tanto os retratos de Svenson quanto os de Morozini evocam as pinturas do artista americano Edward Hopper (1882-1967), com sua solidão pungente. Como alguém que gosta de fotografia e gosta de arte, o trabalho desses fotógrafos me dá muito prazer. Mas, como alguém que poderia estar no lugar do fotografado, me causa mal-estar. Como superar esse impasse?
Quando alguém confronta Svenson com a questão da moralidade na obra sobre seus vizinhos, ele costuma defender-se dizendo: “Eu não fotografo nada lascivo ou degradante. Não estou fotografando os moradores como indivíduos específicos, identificáveis, mas como representações da humanidade”. Acredito que ele acredita nisso. Porque é uma das verdades possíveis. Mas há outras.
Não é surpreendente que alguém que se reconheça nas fotos ou reconheça partes do seu corpo ou da sua casa seja incapaz de se ver como “uma representação da humanidade”. O complicador é que aquele que se reconhece só pode se reconhecer como um “indivíduo específico”. Nós, que nos reconhecemos nele, enxergamos apenas a “representação da humanidade”, mas ele, o humano singular, se vê primeiro como indivíduo. O complicador é que aqueles que ali representam a humanidade são também aqueles que vivem a sua vida singular. Essa é a força artística do retrato e também o seu dilema ético.
Quando Svenson diz que não fotografa nada lascivo ou degradante, ele também está assumindo, nas entrelinhas, que viu atos que interpretou como lascivos e degradantes e escolheu não fotografá-los ou, pelo menos, não exibi-los. Não é um enorme poder, o de escolher qual parte da vida íntima de um outro pode ser mostrada, e isso sem que este outro saiba sequer que teve seu cotidiano documentado? Ou o enorme poder de espionar a vida dos outros, alcançando aquilo que o outro pensava proteger atrás da sua janela? Raramente um crime, com frequência um ridículo ou mesmo um desespero?
As fotografias dos vizinhos evocam questões fascinantes deste mundo novo, no qual já se anunciou o fim da privacidade. Ainda que com objetivos e sentidos bem diversos, os retratos da vida íntima de homens e mulheres anônimos estão ligados tanto à espionagem que Obama fez de Dilma quanto às gravações e fotografias que pessoas comuns fazem o tempo todo dos flagrantes de outros, para postar em seguida no YouTube e no Instagram – fronteiras e pudores dissolvidos pela tecnologia. Estariam ligados também ao exibicionismo corrente, expressado pelo ato já corriqueiro de postar as melhores imagens de si mesmo, hábito pelo qual pessoas comuns se forjam celebridades na janela do Facebook?
Talvez a resistência a fotos como as de Svenson, Morozini e outros possa também ser compreendida pelo fato de constituírem uma traição à imagem controlada que tentamos desesperadamente difundir nas redes sociais como a nossa imagem “verdadeira”. Essas fotos roubadas, feitas à revelia, escapam do que se poderia chamar de “controle de qualidade da vida exibida”. Revelam às vezes o tédio e não a felicidade, o ridículo e não a glória, as olheiras e não os olhos maquiados, nosso cotidiano sem Photoshop. A solidão de quem tem centenas, milhares de amigos no Facebook.
Há aqui algo interessante, que aparece tanto na escolha dos fotógrafos quanto na resistência de alguns fotografados: a ideia, bem contemporânea, de uma “verdade” na vida privada. Como se nossas evoluções na esfera pública fossem meras “máscaras sociais” – e estas máscaras sociais fossem decodificadas como “mentiras”. Como se existisse um “eu verdadeiro”, despido de máscaras, que se revela em nosso último ou até mesmo único reduto: entre as paredes da casa. Mas não existe um “verdadeiro eu”, não existe um lugar “em que somos nós mesmos”. Somos todas as nossas máscaras e nossas verdades estão espalhadas. O fato de estarmos com remela nos olhos e com um pijama rasgado na bunda não nos torna mais “verdadeiros” do que de salto alto ou de terno, assim como a melancolia que escapa pelos nossos olhos ao mirarmos o vazio no sofá da sala não é mais ou menos verdadeira do que nossos gestos numa reunião de trabalho.
A vida privada tem sido confundida com “vida real”, o que explica a obsessão das pessoas ditas comuns com a privacidade das ditas celebridades. Assim como a obsessão dos fotógrafos pela vida privada das celebridades – e mais recentemente pela vida privada dos anônimos. Poucos parecem se importar com o fato de a vida privada das celebridades ser constantemente invadida por paparazzi, exceto algumas celebridades. Como se, pelo fato de serem pessoas “públicas”, que ganham a vida por serem públicas, não pudessem ter uma vida privada, longe dos olhos de todos os outros. Mais do que isso: o público que as torna celebridades teria direito de acesso ao “verdadeiro eu” das pessoas que venera, àquela que seria a sua “verdade verdadeira” e que só poderia ser descoberta com flagrantes à sua intimidade.
Quando aparece um outro tipo de paparazzo, o que espiona a vida das pessoas comuns, para muitos é uma violência bem mais óbvia. Por quê? Ou qual é a diferença para as fotos íntimas de celebridades? A suposta verdade dos comuns não interessa a ninguém? Não é o que os preços dessas fotos nas galerias têm mostrado. Ou por que seriam imagens de ninguém em particular ou “representações da humanidade”, como disse o fotógrafo Arne Svenson? Mas se o problema está no fato de as pessoas se reconhecerem na sua singularidade, como alguém com nome, sobrenome, rosto e vida? Se o problema começa na singularização daquele que é, ao mesmo tempo, “representação da humanidade” e algo que ele chama de “si mesmo”? E, nesta singularização, preferia não ser fotografado secretamente de cueca na frente do espelho?
É mais complicado do que parece. O ato de fotografar pode ser julgado em si ou apenas no sentido atribuído a essa fotografia? A mesma fotografia que muitos consideram poética numa galeria de arte poderia ser decodificada como ridícula e virar motivo de escracho se jogada em determinados sites da internet. Ou, usando um exemplo mais explícito, a foto do bebê no banho, que enternece os pais no álbum de família, pode ser erótica para um pedófilo. Se o sentido só pode ser dado depois, a fotografia dos vizinhos nos aproxima e nos conecta na solidão das metrópoles, ao dizer de todos e não apenas de um. Já as fotos das celebridades, mesmo – e talvez principalmente – quando são anunciadas como flagrantes de cenas que as aproximam das pessoas comuns, o que fazem é marcar a diferença. Ambos estão fotografando cenas privadas sem autorização, mas a oposição de sentidos tornaria aquele que expõe a intimidade de celebridades para o gozo do público um invasor e o que expõe anônimos não?
As perdas e ganhos se embaralham. Quem ganha com os retratos da vida privada? O fotógrafo, ao transformar cenas íntimas em arte que fala dessa época histórica. Nós, coletivamente, ao ganharmos um retrato de nossa humanidade, que nos faz transcender – e que transcenderá nossa vida ao alcançar as gerações futuras. Quem perde? Nós, também, individualmente, porque aquele que virou representação é também aquele que vive e que talvez não quisesse ser exposto abrindo a geladeira descabelado para pegar o leite pela manhã. E nós, coletivamente, na medida em que a única alternativa para não ter a intimidade exposta seja cobrir com cortinas nossas escassas janelas, por onde já entra muito menos luz do que gostaríamos.
De novo, como superar esse impasse? Ou o que é mais importante? E quem decide?
Quem observa com atenção a cidade, percebe que mesmo moradores de rua constroem paredes e portas invisíveis embaixo de viadutos ou mesmo nas esquinas. Lá dentro, evolucionam por peças sem paredes como se não fossem vistos por todos. Muitas vezes, diante dessas cenas, tão profundamente humanas, desviei os olhos, em sinal de respeito. Acho que nos humanizamos quando conseguimos enxergar – e respeitar – mesmo as paredes invisíveis. Me parece importante bater, mesmo em portas subjetivas, para que o outro tenha a chance de dar ou não sua permissão. Não é porque não enxergamos, que as portas e as paredes não existem. E não é porque a tecnologia permite, que podemos entrar na casa das pessoas, ainda que em nome da arte – ou do jornalismo – sem antes pedir licença. Mesmo que essa casa seja um amontoado de trapos embaixo de uma ponte.
Poder fazer/alcançar/fotografar/expor, graças à tecnologia, significa auto-autorização para fazer/alcançar/fotografar/expor?
Meu sentimento pessoal com relação à possibilidade de ser fotografada por um vizinho indiscreto é um misto de estranheza e pânico. Para mim, a casa me dá algo fundamental: algumas horas despida não de roupas, mas do olhar do outro. A possibilidade dessa nudez, que vai muito além das peças de vestuário, é importante para a minha sanidade. É o que me dá, às vezes, o espaço/tempo necessário para remendar a minha pele e enfrentar o mundo lá fora. Não é para todos que quero mostrar os meus rombos, assim como não é para todos que quero mostrar meus livros mais queridos ou as lembranças que escolhi para botar sobre a minha escrivaninha. E, mesmo que só eu reconhecesse o meu gesto numa galeria, me sentiria violada e exposta. E talvez começasse a ficar paranoica com esse vizinho que usa sua câmera fotográfica para me espionar e passasse a encenar a minha vida. Ou, como já passei a fazer, fechar as cortinas da peça da casa onde estou. Eu, que gosto tanto de luz.
Meu sentimento pessoal deve ser respeitado ou há algo, que a juíza americana chamou de liberdade de expressão, que deve se sobrepor a ele? Não sei. Será que a liberdade de expressão do fotógrafo, ao registrar secretamente a vida de alguém, não está cerceando a liberdade de expressão dessa pessoa dentro de sua casa? Possivelmente. E o que difere, afinal, voyeurismo de arte? O destino que se dá ao olhar? Ou o sentido?
Alguém tentar entrar fisicamente na casa de um outro sem permissão é ilegal. Mas, pelo menos na decisão judicial americana, a invasão de um olhar não autorizado, que capta uma cena privada e a torna pública, é legal. Mas, ainda que seja legal, é ética?
Tenho dúvidas. O que me parece claro é que essa discussão vai muito além da tensão entre liberdade de expressão e privacidade, como foi colocada. E precisamos discuti-la. Porque é fascinante, mas também porque pode haver um fotógrafo nesse exato momento, empunhando uma teleobjetiva na janela do prédio em frente, sinceramente disposto a fazer poesia da nossa vida privada. Mesmo que, diferentemente do personagem de Janela indiscreta, do clássico de Alfred Hitchcock, nossa maior subversão seja comer leite condensado de calcinha.
(Publicado na Revista Época em 16/09/2013)
Como o Super-Homem vai trocar o collant?
A etiqueta solidária das festas infantis de hoje nos carrega para aventuras imprevisíveis
O convite do aniversário de João Bolota trazia a seguinte observação: “Não precisa comprar presente. Se quiser, pode me trazer algum brinquedo seu ou fazer um desenho pra mim que já ficarei contente”. Muitas das minhas amigas com filhos pequenos declararam guerra contra o consumismo infantil. É uma tendência entre pais preocupados em não criar shopping-dependentes, que demandam cada vez mais mercadorias antes mesmo de perder os dentes de leite, e estimular uma relação solidária tanto com os amigos quanto com o mundo ao redor e desde cedo ampliado. Já levei sabão em pó em vez de presente, fraldas e leite, que depois foram doados para espaços comunitários devidamente visitados e escolhidos pelos pais dos aniversariantes. Mas João Bolota, assim conhecido porque antes de ser João já era uma “bolota” na barriga da sua mãe, pedia algo ligeiramente diferente em seu aniversário de 3 anos. Acabou nos levando a alguns labirintos internos e externos. E a um Super-Homem preso em seu collant azul.
De repente, lá estávamos nós, dois adultos, em estado de semipânico diante de nossos brinquedos. Acho que ele iria adorar o seu King Kong, sugeri. “O quê? Mas foi você que me deu…”, disse ele. E, em seguida desferiu um golpe baixo: “E o seu Alien? O tema da festa é monstros…” Meu Alien? Meu Alien? Você está se referindo ao MEU Alien? “O seu Harry Potter, então?”
Ele continuava a série de golpes abaixo da linha da cintura. Mas eu também podia ser má: o seu Dodô! “Mas os (marinheiros) europeus comeram todos os (pássaros) dodôs no século 17. O meu é o último!”, disse ele, maduro. Pois então. É além de tudo educativo. A Paula (a mãe do João Bolota) vai adorar explicar toda a destruição, genocídios, etnocídios e dodocídios envolvidos no processo colonial. É perfeito! Ele não achava. Aos 44 anos, estava agarrado ao dodô. “E o seu tiranossauro rex?” Meu olhar cheio de dentes o desestimulou a continuar. Cinco minutos mais tarde, estávamos um diante do outro no meio da sala de casa, em posição de duelo, eu com uma miniatura do Freud na mão, ele brandindo o menir do Obelix.
Caímos em nós. E no ridículo. Havíamos falhado miseravelmente no quesito desapego. Não estávamos preparados para nos descolarmos da infância.
Envergonhados, mas bem menos do que deveríamos, partimos em busca de alternativas que não traíssem a proposta dos pais do João Bolota, que era a de estimular a troca, a doação e o desapego. Em nosso atual estágio, estávamos de fato em busca do desapego alheio, o que nos levou a estacionar nossos pés diante da banca da feira especializada em brinquedos usados. “Não é usado, é vintage”, ele disse, me corrigindo todo animado. Sim, sim, muito mais chique. A verdade era que sabíamos muito bem que ali não havia nada de desapego. Por trás daqueles brinquedos de outros tempos em geral há um adulto em crise financeira ou um adulto que já não vê mais sentido em um monstrinho verde, agora reduzido à mera mercadoria, o que em qualquer caso é um pouco triste.
Acompanhei de perto esse percurso. Dois anos atrás, um amigo desempregado precisou vender suas recordações da infância, as que tinha guardado para um filho que não veio, para um desses adultos enigmáticos, mezzo encantadores, mezzo perversos, que compram o brinquedo dos outros para revender. Guardou para si apenas um helicóptero, bastante valorizado nesse mercado, que tinha um defeito numa hélice. O comprador sugeriu que trouxesse o helicóptero que ele o consertaria, mas meu amigo interpretou a oferta como um plano maligno para tomar-lhe o brinquedo. Fantasiou que o comprador tinha sido uma daquelas crianças que querem para si todos os brinquedos do mundo e não os emprestam para ninguém. Agarrou-se ao helicóptero como se suas memórias mais queridas morassem na minúscula cabine, reconhecendo-se mais quebrado que a hélice.
Há talvez uma certa crueldade envolvida no ato de comprar/vender restos da infância. Aquele que coleciona clássicos coloca na estante também o cadáver de uma criança desconhecida. Às vezes ele mesmo. E talvez nós, como ele, estivéssemos ali, naquela banca ao mesmo tempo colorida e desbotada, em busca de algo que já não pode ser recuperado.
O dono da banca comia uma lasanha. Quanto é aquele He-Man montado num tigre vermelho?, perguntei. O homem pareceu irritado por ter sido instado a parar de mastigar. “Uns 60 pelo boneco, uns 50 pelo tigre”, respondeu, num grunhido. Ficamos em dúvida sobre o potencial do presente. Para quem não havia sido criança nos anos 80, He-Man seria apenas um loirão de sunga. Vimos, então, um Moai, aquelas estátuas gigantescas e misteriosas da Ilha de Páscoa. Esta tinha 5 centímetros e era de plástico bege. Com uma bateria, que não havia ali, o Moai falava. Nossa empolgação atingiu 10 graus na escala Richter. Finalmente descobriríamos o que um Moai poderia dizer sobre o mundo, sobre a vida, sobre sua própria existência. Basicamente, um dos mistérios da humanidade estava prestes a se revelar diante de nós e do modo mais improvável, como num daqueles filmes em que tudo começa numa lojinha de quinquilharias. Se o homem da lasanha fosse um chinês, seria um filme.
Perguntamos ao dono da banca, que agora tinha um pedaço de queijo pronto para saltar do seu queixo sobre uma Barbie Malibu: o que o Moai diz? E esperamos, de mãos dadas e se apertando, a respiração suspensa. “Chiniashitsu”, eu ouvi. Já ele ouviu algo terminado em “ão”. Discutimos um pouco, aos cochichos. Ele achava que eu tinha ouvido o nome de um escritor de autoajuda, o que seria trágico para a humanidade, depois de tantos séculos. Eu dizia que com certeza não era nada com “ão”. Decidimos esclarecer. Ao olharmos para o homem, percebemos que ele continuava comendo a lasanha, mas havia uns caninos novos na sua boca. Desistimos do Moai. Jamais saberíamos o que ele tinha a dizer. Talvez fosse melhor assim.
Então o vimos. E como não o vimos antes? Era o Super-Homem. Não o remake, mas uma versão antiga. Estava dentro da caixa, tinha até manual. E o fascinante dessa versão era que ela oferecia a possibilidade da transformação. Em geral, os heróis só são oferecidos na versão herói. Estão lá, com suas máscaras e seus collants brilhantes. Não tem vida privada, não ficam nus, não relaxam. Aquele ali, não. Ele vinha vestido com sua roupa de salvar mundos, mas havia ao lado dele uma cabine telefônica na qual ele podia se trocar e virar Clark Kent. Nunca entendi como ele conseguia fazer isso dentro de uma cabine telefônica, com aquelas botonas e a sunga vermelha por cima de tudo, mas essa é uma questão para outro momento. Nas costas da caixa a metamorfose estava bem explicada: em caso de necessidade, ele rapidamente passava do collant azul do Super-Homem para o terninho preto do Clark Kent. Para isso, bastava um minuto dentro da cabine telefônica.
Há dois tipos de super-heróis de quadrinhos, criados no século 20, que conquistaram permanência no imaginário de gerações, em parte graças ao cinema. Há os humanos, como o Homem-Aranha e o Batman, cuja essência seria dolorosamente humana e dotada de uma trajetória de perdas, em geral precoces, já que tanto Peter Parker quanto Bruce Wayne são órfãos. E há os deuses, como Thor, e os alienígenas, como o Super-Homem, que precisam se disfarçar (ou serem condenados a uma identidade frágil) para virarem humanos, já que sua essência é de super – mais que humano.
A máscara do Super-Homem é o Clark Kent. E Clark Kent ele se torna ao colocar óculos. Em tempos pré-cirurgia de correção de miopia, os óculos apontavam uma deficiência bem humana. Os óculos eram a fragilidade que mascarava o super em humano. Entre os vários diálogos antológicos do diretor Quentin Tarantino, o personagem Bill (David Carradine), em Kill Bill 2, diz à Noiva (Uma Thurman): “O Super-Homem não se transformou em Super-Homem. O Super-Homem nasceu Super-Homem. Quando ele acorda de manhã, ele é o Super-Homem. Seu alter ego é Clark Kent. (…) O que Kent usa – os óculos, o terno – é o uniforme do Super-Homem para se misturar a nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. E quais são as características de Clark Kent? Ele é fraco, ele é inseguro, ele é um covarde. Clark Kent é a crítica do Super-Homem a toda a raça humana”.
Entramos numa espécie de transe nerd. Daríamos um Super-Homem que virava Clark Kent para o João Bolota. Com a caixa finalmente em nossas mãos, começamos a examinar o presente, muito excitados. Só para descobrir que nossa visão de raio-x tinha falhado: não havia terninho nem óculos. Só mesmo a cabine telefônica. É claro que isso não fora mencionado pelo lasanha-man. Queríamos voar até a banca, mas tivemos de nos virar e retroceder sobre nossos pés mortais. “Não tem terninho nem óculos?”, perguntei, com o que pensei ser uma voz poderosa. “Não”, disse ele, sucinto. “Não?” Não. Pulverizamos lasanha-man com nosso superolhar, mas lasanha-man parece não ter percebido, ocupado em dar aquela limpadinha básica com a língua nos dentes. Caminhamos prostrados até a festa, destituídos de nossos superpoderes por um vilão de filme Spaghetti.
“É vintage”, disse à mãe do João Bolota, já antecipando uma justificativa sobre a ausência do terninho e dos óculos. “Sério? Que sensacional… Onde vocês acharam isso?”, disse ela, gentilíssima. Foi só depois de seis cachorros-quentes (sou uma cachorroquentólatra) que comecei a me deprimir com a situação do Super-Homem. Nenhum de nós dois tinha a coragem de encarar o João Bolota. Não que ele tivesse reparado, ocupado que estava em deslizar sobre a nossa cabeça numa espécie de tirolesa, já que a festa transcorria num buffet infantil com esportes de aventura. E quando ele quiser tirar o collant?, eu me preocupava. Comecei a imaginar o Super-Homem nu, trancado na cabine telefônica, sem coragem de vestir o collant azul brilhante mais uma vez para enfrentar o mundo lá fora. Eu me identificava com ele. Não sou super, mas muitas vezes estive nessa situação logo cedo de manhã. Sem contar que é de uma perversidade inominável condenar alguém, mesmo que um super-herói, a passar a vida de collant.
Demos ao João Bolota o pior presente do mundo: um super-herói sem humanidade. Se servir de atenuante, o que levou ao trágico desfecho foi uma sequência de eventos e relações bem humanas. Mas não sou muito favorável a atenuantes. Já estava pronta para interceptar Bolota com um rasante no teto, onde, juro, ele estava naquele momento, para dizer a ele: perdoe-nos, João Bolota, na próxima vez a gente faz um desenho. Então me lembrei. Há algo que podemos dar a ele. Nós podemos fabular. E dar um sentido novo a essa falta que possa transcender essa narrativa pateticamente real de perdas, enganos e lasanha fria. Algo sem preço.
Sabe, João Bolota, antes de você esse Super-Homem pertenceu a alguém que o amou. Mas que já não brincava mais com ele porque achava que, depois de crescido, não podia mais andar voando por aí de collant azul. Esquecido de como se brincava, um dia ele fazia uma ponte aérea, espremido na poltrona do meio da classe econômica. Espichou o pescoço e conseguiu ver uma nesga da asa do avião no céu, entre o banco da frente e a cabeçona do passageiro ao lado. Lembrou-se então de que um dia tinha voado como Super-Homem e sentiu uma dor aguda no peito. Pensou que estava enfartando, mas a dor desapareceu depois de um minuto e ninguém, nem mesmo a aeromoça que lhe oferecia uma batata de saquinho, notou que ele havia vivido uma quase morte.
Ao chegar em casa, depois de amargar duas horas no trânsito, ele resgatou seu boneco da parte de cima do armário embutido. Encontrou o Super-Homem agonizando, não por causa da criptonita, mas do mofo, entre edredons do inverno e uma bota que tinha perdido o salto. Decidiu que seu Super voaria com a capa de uma outra criança. Quando o sábado ainda não tinha amanhecido, ele se esgueirou pela feira e infiltrou o Super-Homem na banca de brinquedos, bem em cima, vistoso, entre o Forte-Apache e um carrossel de cavalos coloridos. (É por isso que lasanha-man apenas fingiu ser esperto. De fato, ele nem sabia de onde tinha aparecido aquele Super-Homem.)
Quando o verdadeiro companheiro do Super-Homem já ia se despedindo de seu velho amigo, temeroso de ser surpreendido nessa atividade subversiva, descobriu que, mesmo vestido, estava nu. O sol escalava o céu, afobado, e ele não queria ser visto pela multidão em sua monumental fragilidade. Foi nesse momento que ele pegou o terninho preto de dentro cabine telefônica e o vestiu às pressas. Em seguida, mascarou-se com os óculos.
Você se lembra, João Bolota, daquele homem de óculos e terno preto que parecia um jornalista na sua festa de aniversário? Havia vários jornalistas na sua festa de aniversário, porque seus pais são jornalistas, mas só um deles tinha a cara do Planeta Diário e de um namorado da Lois Lane. Foi bem rápido, não sei se você chegou a ver. Ele escondeu-se por um instante atrás do monstro de balões perto do bolo, apenas para ter certeza de que o seu Super ficaria bem. Ao avistar você, voando pelo teto, ele teve certeza de que tinha feito a coisa certa. E se foi. Eu ainda o vi sair, com um sorriso maroto na cara, ajeitando os óculos sobre o nariz vermelho.
É isso, João Bolota. Ele queria muito lhe dar o Super. Mas ainda precisava do homem.
(Publicado na Revista Época em 09/09/2013)
A nudez por trás do jaleco
O que as agressões contra os médicos cubanos revelam sobre o (não) debate da saúde pública?
A cena de um grupo de médicos cearenses vaiando os médicos cubanos, vários deles negros, que chegaram ao Brasil para ocupar postos em lugares onde os brasileiros não querem ir, é uma vergonha. Mas é bem mais do que uma vergonha. A trilha sonora da manifestação – “escravos”, “incompetentes” e “voltem para a senzala” – é reveladora de como os membros de uma carreira de elite olham para si mesmos – e se veem “ricos e cultos”, como gritaram médicos numa manifestação anterior – e de como a população que depende do SUS (Sistema Único de Saúde) é vista por parte daqueles que têm por dever lhe dar assistência. Dá pistas, especialmente, sobre a tensão social que existe nos corredores dos serviços de saúde pública, que é também uma tensão racial e de classe.
O espetáculo de racismo e de xenofobia da semana passada tornou ainda mais evidente o baixíssimo nível do embate em torno do programa Mais Médicos. Como tem acontecido no Brasil em questões fundamentais, a polarização só serve para calar a possibilidade de um debate sério, responsável e com a profundidade necessária. Neste caso, com o governo federal, de um lado, e as entidades corporativas dos médicos, no extremo oposto, o país perde uma oportunidade de discutir o tema urgente da saúde pública, cujas omissões e deficiências têm mastigado – objetiva e subjetivamente – a vida de milhões de brasileiros. E aqui desponta um silêncio eloquente: cadê a voz das pessoas que dependem do SUS nessa discussão?
A ausência dessa voz denuncia a fragilidade do debate. Prova também que os mais pobres estão muito longe de serem reconhecidos e se reconhecerem como cidadãos com direitos. Mais uma vez, ganha evidência a questão do olhar, não apenas sobre aquele que vem de fora – o “estrangeiro” – como sobre aquele que deveria estar dentro, mas está fora e também é visto como um outro distante – definido como “população carente” ou “camadas desassistidas” ou ainda “usuário do SUS”. Visto como um outro tão distante que o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, sentiu-se à vontade para declarar ao jornal Estado de Minas: “Vou orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos”.
Para completar a tragédia, Micheline Borges, uma jornalista do Rio Grande do Norte, postou no Facebook: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma Cara de empregada doméstica! Será que São médicas Mesmo??? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência… Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo!”. Na visão da jornalista, há uma cara/aparência para aquele que ostenta o jaleco e uma cara/aparência para aquela que deve ser coberta pelo avental – e esses corpos/raças/classes/mundos não podem se misturar. A mistura é a ameaça. Em sua intervenção aterradora ela desvela o que possivelmente muitos temem – mas ocultam com palavras menos terríveis.
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do atual embate na área da saúde pública e buscar avançar além do pensamento binário que tem marcado a discussão, entrevisto nesta coluna Deisy Ventura. Ela é professora de direito internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), entre outras instituições. Ventura é também uma pensadora das relações entre direito e saúde e acaba de lançar o ótimo livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1), numa parceria das editoras Outras Expressões e Dobra Editorial.
Na entrevista a seguir, ela analisa as principais questões em torno do Mais Médicos e também propõe autores, com seus respectivos links, para os leitores que quiserem se aprofundar no tema. O debate da saúde pública não pertence nem ao governo, nem aos médicos, mas ao conjunto da sociedade brasileira. Sua qualidade e consequências dependem da participação de todos.
Desde que foi anunciada a intenção do governo de trazer médicos estrangeiros para trabalhar em lugares do país nos quais médicos brasileiros não têm interesse em ir, pelos mais variados motivos, houve muitos protestos por parte de médicos e entidades corporativas. Entre os argumentos, estão os de que os estrangeiros não teriam boa formação nem entenderiam o português. Várias “justificativas” que parecem dizer: “eles são os outros” ou “os outros não podem entrar” ou ainda “este território é nosso”. Como a senhora analisa essa reação?
Deisy Ventura – Todos temos tendência a pensar que nossa cultura, nossa religião, nosso modo de viver são melhores do que os dos outros. Isto é etnocentrismo, algo que nos leva a viver adstritos ao nosso próprio mundo, e que se nota até em pessoas que viajam muito, mas veem o mundo por uma só lente, a do seu grupo. É o comportamento comum dos turistas, inclusive muitos dos que vêm ao Brasil e nos acham exóticos. Mas, outra coisa, bem distinta, é dizer que os outros, os estrangeiros, não podem entrar no nosso mundo. Assim como divulgar que eles nos ameaçam e que precisamos evitar que venham romper nosso equilíbrio. Pior ainda é acreditar que são eles, os outros, que estão mudando o nosso jeito de viver. Isto é xenofobia. Todo xenófobo é etnocêntrico, mas não acho que a recíproca seja necessariamente verdadeira.
É importante entender essa diferença porque há um movimento político, organizado por algumas das mais importantes associações médicas brasileiras, que procura denegrir a imagem dos médicos estrangeiros e gerar a desconfiança da população. Em 26 de junho, AMB (Associação Médica Brasileira), ANMR (Associação Nacional dos Médicos Residentes), CFM (Conselho Federal de Medicina) e FENAM (Federação Nacional dos Médicos) divulgaram nota em que se referem a todos os médicos estrangeiros, sem fazer distinção alguma, como “profissionais mal formados e desqualificados”. A mesma nota declara persona non grata o ministro da Saúde, o médico Alexandre Padilha. Assim, o debate sobre a vinda de médicos estrangeiros caiu imediatamente na clivagem situação/oposição, que tem empobrecido brutalmente o espaço público brasileiro.
O problema é que, para rechaçar uma medida conjuntural, um dos polos tem lançado mão de um dos mais terríveis males da história da humanidade, que é o horror ao estrangeiro. Em suas formas extremas, ele se encontra na origem de incontáveis massacres e até de genocídios. Esse surto de xenofobia é especialmente inoportuno porque o Brasil tem sofrido uma pressão migratória crescente, mas não tem uma política migratória e ainda guarda o estatuto do estrangeiro do regime militar. Faço parte de uma comissão de especialistas independentes, que foi instituída pelo Ministério da Justiça, no final de maio deste ano, para sugerir ao governo uma nova legislação sobre migrações. Mas discutir essas normas num clima de xenofobia é muito ruim para o Brasil.
A senhora já consegue sentir algum efeito desse recente surto de xenofobia sobre o debate em torno das migrações?
Ventura – A tensão gerada pelo escracho de estrangeiros é evidente entre os trabalhadores migrantes. Uma nota divulgada pelo Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes, que é uma rede de entidades sociais, vê no rechaço aos médicos cubanos a ideia, por parte dos médicos brasileiros, de que “‘eles’ vêm roubar ‘nossos’ empregos”. A exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos, os imigrantes temem tornar-se bodes expiatórios de crises cuja profundidade transcende largamente as migrações, especialmente a econômica.
Creio que o melhor exercício que todos nós podemos fazer antes de debater a lei de migrações é lembrar de nossos familiares e amigos que foram trabalhar no exterior em busca de uma vida melhor. Lembrar do que eles contaram ou ainda contam sobre o modo como foram acolhidos ou rejeitados, sobre os direitos que facilitam sua subsistência digna ou a falta deles, que a impede.
Sem contar que muitos brasileiros são descendentes de imigrantes, que aqui chegaram como estrangeiros… Mas, na sua opinião, por que estamos vivendo essa clivagem situação/oposição de uma forma mais aguda hoje? Como a senhora situaria isso historicamente?
Ventura – A disputa política entre situação e oposição é natural. O que não é aceitável é ver o mundo sob essa, ou qualquer outra, perspectiva binária. Alguns campos de atuação do Estado alcançam hoje tamanha complexidade que só poderiam avançar se existisse um compromisso acima dos interesses pontuais das forças políticas e do xadrez eleitoral. Um deles é a saúde pública.
A impossibilidade de negociar esses pactos se deve a muitas razões. Acho que uma delas é o grande hiato que tivemos em nossa história política, entre 1964 e 1985. Fomos privados de mais de 20 anos de vida democrática. Além disso, a alternância de poder não parece algo natural para as nossas elites. Há rancores profundos no Brasil. Princípios elementares como a igualdade ou a publicidade, ou até mesmo o simples contraditório, no sentido de admitir que haja opinião diversa, ainda parecem ser concessões dolorosas para alguns. Por outro lado, o espaço de debate público é pautado por grandes empresas de comunicação, cuja atuação é partidária, no sentido de que toma partido, mas raramente se apresenta como tal. Sequer presta contas sobre as consequências das posições que defendeu ou defende.
A senhora acredita que a perspectiva binária do debate público tem mascarado a necessidade de uma discussão mais profunda sobre saúde pública?
Ventura – Todo tipo de xenofobia se auto-justifica pela necessidade de proteger um “povo escolhido”, uma “raça superior” ou coisas do gênero. Do mesmo modo, quem ataca os médicos estrangeiros diz agir em nome do interesse dos cidadãos brasileiros. Assim, avaliar o programa Mais médicos sob a lente dos preconceitos simplifica a vida de muita gente. O preconceito é justamente aquela opinião que a gente não confere, não põe à prova, acolhe passiva e acriticamente. Na definição de (Pierre-André) Taguieff (filósofo francês que pesquisa racismo e antissemitismo), seria algo como “crer saber, sem de fato saber”. O terrível é que um preconceito dá uma sensação de segurança muito maior do que um conceito. Elaborar uma opinião própria sobre a efetividade imediata do direito à saúde em alguns lugares do Brasil, que é a questão central do Mais Médicos, certamente dá um trabalho danado, exige reflexão e deixa muitas dúvidas.
Qual é a real oposição entre o programa governamental e a reação corporativa?
Ventura – O governo federal ousou enfrentar as entidades médicas num terreno que lhes é muito caro. No exterior, o Brasil é considerado um país cujos exames de revalidação do diploma médico são muito difíceis. Esse rigor tem protegido o mercado profissional brasileiro.
Estaríamos perdendo uma chance de debater a saúde pública? O que, na sua opinião, seria preciso incluir nessa discussão para que se torne, de fato, um debate profundo sobre saúde pública, que vá muito além dos médicos?
Ventura – Creio que a questão central dos últimos 25 anos nunca deixou de ser a implantação do SUS. Uma edição recente da Revista RADIS afirma que o projeto original do SUS está ameaçado pelo sub-financiamento, pela privatização do que é público, pelo controle social enfraquecido e pelo foco na assistência – em detrimento do conceito integral e ampliado de saúde. Gosto muito daquele número da RADIS porque sua capa diz: “a gente quer inteiro, e não pela metade”, trazendo a velha e boa imagem de um copo que podemos ver como metade cheio ou como metade vazio. Discutir seriamente o SUS implica enfrentar temas de enorme complexidade, sobre os quais há estudos valiosos, como os da (socióloga) Amélia Cohn, (do economista) Carlos Octávio Ocké-Reis e (do médico) Jairnilson Paim.
Mas tenho uma especial preocupação com o fato de o brasileiro pensar que sua ascensão social passa por ter um plano de saúde, e não pelo fortalecimento do SUS. Não apenas os planos de saúde têm revelado disfunções similares às do SUS, como a ideia é perniciosa. É como se renunciássemos, paulatinamente, à conquista histórica de um sistema universal, integral, equitativo e gratuito.
A que a senhora atribui essa ideia, que está se fortalecendo no Brasil também entre as famílias da chamada “Classe C” ou “nova classe média”, de que um plano privado de saúde é uma forma de ascensão social, mesmo que o plano tenha várias deficiências, mas quase como se fosse um bem de consumo, como um carro ou uma TV de tela plana?
Ventura – Há o problema objetivo das deficiências de atendimento no SUS e há o problema subjetivo de não agir politicamente para eleger parlamentares e gestores comprometidos com o SUS ou exercer um controle ferrenho do cumprimento destes compromissos. Mas, acima disso, há uma extraordinária máquina de propaganda dos planos de saúde. O pior de tudo é que eles continuam recebendo incentivos do Estado e são controlados por uma agência (Agência Nacional de Saúde Suplementar) sobre a qual pairam graves acusações de parcialidade e ineficiência.
O quanto essa reação dos médicos brasileiros diante da vinda dos médicos estrangeiros, recebida quase que como uma “ameaça estrangeira”, diz de uma assimilação de toda uma lógica da saúde em nossa época?
Ventura – Saúde, hoje, é um grande mercado. Enquanto a medicalização da vida avança vertiginosamente para alguns, que tomam remédios e intervêm no próprio corpo pelas mais incríveis razões, outros continuam morrendo de diarreia. Fernando e Ana Maria Lefevre dizem, no livro O corpo e seus senhores, que a tecnologia, a ciência e o mercado são criações humanas que foram se desgarrando paulatinamente do seu criador. E que está na hora de o homem “discutir a relação” com suas criaturas.
Mas há algo que precisa também ser dito: no mundo desenvolvido, houve uma migração extraordinária de médicos de países do mundo em desenvolvimento, para fazer o trabalho mais duro, com salários mais baixos. Em outras palavras, tanto a defesa do mercado como a importação de profissionais sub-remunerados são manifestações dessa tendência.
O que a senhora está afirmando é que os dois movimentos fazem parte da mesma lógica de mercado – tanto a “importação” dos médicos quanto a recusa deles. É isso? A senhora poderia explicitar melhor?
Ventura – Eu quero dizer que o programa Mais Médicos se justifica plenamente pela urgência de dar efetividade ao direito à saúde em numerosos locais do Brasil. E que essa reação desproporcional da corporação médica é uma evidente tentativa de proteção do mercado profissional, em detrimento da luta pelo direito à saúde. Mas também que esse direito à saúde não deve se transformar, em hipótese alguma, em justificativa para a criação de duas categorias de médicos: os nacionais bem pagos, que trabalham no setor privado, e os estrangeiros mal pagos, que trabalham no setor público. Ou seja, esse programa só pode ser acolhido como emergencial. Ele não pode se perpetuar, não porque os médicos são cubanos ou de qualquer outra nacionalidade, mas porque é preciso criar uma só carreira para todos os que atuarem no SUS.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, afirmou o seguinte: “Nesse caso me parece que (os médicos cubanos) não teriam direito a essa pretensão (asilo político). Provavelmente seriam devolvidos”. Ele respondia à pergunta sobre o que o governo brasileiro faria se algum médico cubano quisesse permanecer no Brasil após o fim do convênio. Como a senhora vê essa postura do governo brasileiro?
Ventura – O asilo não é um direito de quem o requer, é uma liberalidade do Estado que acolhe. Já o refúgio é um direito subjetivo de permanecer no território, baseado na lei brasileira e em tratados internacionais. Mas tanto a concessão de asilo como a de refúgio dependeria da convicção de que o requerente sofre perseguição no local onde se encontra. Não me parece plausível que o governo cubano envie dissidentes políticos para trabalhar no exterior. De todo modo, caso haja pedido de asilo ou refúgio, o governo deve responder caso a caso, sempre motivando a sua decisão, seja ela qual for.
Um dado curioso é que ambos os movimentos – o do governo, com o programa, e o das entidades médicas, com o rechaço a ele – dizem falar em defesa da população desassistida. Poderia ser uma apropriação de um valor simbólico, ligado ao salvar vidas/cuidar de vidas, mas que, de fato, serve para mascarar uma lógica de mercado?
Ventura – Faz parte da lógica da democracia que a gente possa se defender de quem nos defende, não é? O problema é que poucos têm a possibilidade real de participar desse debate. Gosto muito de um texto da (socióloga) Lara Luna (no livro Ralé Brasileira – quem é e como vive, de Jessé Souza), que ressalta a diferença entre o SUS “constitucional” e o SUS “real”. Ela diz que uma pessoa habituada a não ser tratada como cidadã tem dificuldade de agir como cidadã.
No seu livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1) – a senhora aborda a emergência do que chama de “ser vulnerável”, em detrimento do cidadão, uma tese aplicada ao direito e as relações internacionais. Me parece que essa tese pode explicar, em parte, a inexistência da voz, no debate brasileiro, daqueles que seriam beneficiados pelo programa Mais Médicos, segundo o governo, ou prejudicados por ele, segundo as entidades corporativas. Tanto o governo quanto as entidades dizem falar em nome do interesse dessa população, que sabemos existir e ser numerosa, mas ela parece não ter voz nem lugar de protagonismo neste debate. A senhora situaria esse silêncio como expressão desse “ser vulnerável”, que tem substituído o cidadão? E quais seriam as raízes e a evolução histórica, na medida em que a cidadania foi um conceito forte no período de redemocratização do Brasil?
Ventura – Foi lindo ver, durante a elaboração e depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, uma imensa massa de brasileiros redescobrir o discurso dos direitos. Na hora do aperto, o povo passou a dizer “eu tenho direito”! Mas os discursos estão mudando. Hoje, no mundo inteiro, parece que o ser humano virou um pobre coitado, ameaçado por tudo e por todos: violência, doença, catástrofe, inépcia das autoridades. De cidadão à vítima, ele passa a ser vulnerável, quase um pedinte, de proteção, de cuidado, de providências urgentes. As notícias nos induzem a viver com medo. Na tentativa de lidar com os riscos e a incerteza, as condutas se burocratizam ao máximo, em todos os campos da vida. Há protocolos para tudo, proliferam as sub-especialidades, com seus respectivos jargões e verdades. Tudo está normatizado. Mireille Delmas-Marty (professora honorária do Collège de France) ensina que, onde há muitas normas, em geral há pouco direito. As pessoas acreditam que essa parafernália é necessária para preservar vidas e, provavelmente, em alguns casos, realmente seja. Mas a regulação é um quadro cubista: há uma imensa assimetria no cumprimento de normas, há hipocrisia, há bolsões de caos e outros de rigor.
Por outro lado, no caso da saúde, associações de doentes têm sido criadas para lutar por tratamento e medicamentos para doenças específicas. Como a senhora analisaria esse fenômeno?
Ventura – Os mecanismos de participação social em saúde revelam um embate entre interesses de setores específicos, no qual têm êxito, em geral, os grupos mais organizados, com maior capacidade de influência. Grande parte dessas lutas visam ao acesso a medicamentos, o que de certa forma contribui para uma confusão crescente entre direito à saúde e direito ao tratamento. Ora, saúde inclui, no mínimo, moradia com saneamento básico, alimentação e educação. Com toda razão, Sueli Dallari, uma das precursoras do direito sanitário no Brasil, recusa qualquer definição de saúde que ignore tanto a necessidade do equilíbrio interno do homem, quanto o equilíbrio do homem com o ambiente em que vive.
Parece óbvio que ter médico é melhor que não ter, mas também parece ser preciso que a discussão evolua para abarcar outros profissionais de saúde e outras questões de saúde pública, como o saneamento básico, que a senhora citou. As entidades corporativas têm afirmado que o problema da saúde pública não é apenas o número de médicos, mas que é preciso melhorar as condições e a estrutura da saúde pública. Por outro lado, essas mesmas entidades não costumam se manifestar de forma tão veemente ou mesmo de forma nenhuma pelo fortalecimento do SUS, o que pode significar que, superado o impasse, não exista pressão nesse sentido. Não seria uma visão mais ampla e responsável da saúde que está se perdendo também na atual polarização em torno do Mais Médicos?
Ventura – Sem dúvida. A vinda dos cubanos tem funcionado, nas últimas semanas, como uma árvore que esconde a floresta. O problema é que embrenhar-se nessa floresta exige tanto do governo federal como das entidades médicas uma tomada de posição muito difícil. Retórica à parte, qual seria, hoje, a verdadeira visão de sistema público de saúde de cada um deles? A resposta não me parece clara.
Muitas vozes – e não só a das entidades médicas – têm se levantado contra o fato de que os médicos cubanos não estão sujeitos às leis trabalhistas brasileiras e só recebem uma parte do pagamento, a outra vai para o governo cubano. São recrutados – e não empregados. Qual é a sua análise?
Ventura – Grande parte dos migrantes que trabalham no Brasil, a exemplo de cerca da metade dos cidadãos brasileiros, fazem parte da economia informal, que os priva de seus direitos trabalhistas mais elementares. Além disso, os estrangeiros no Brasil não possuem direito ao voto e seus demais direitos políticos são limitados pelo estatuto do estrangeiro em vigor. Em outras palavras, eles trabalham como brasileiros, mas não desfrutam dos mesmos direitos, e suas formas de reivindicar são limitadas. Algumas comunidades de migrantes são quase invisíveis: esfumam-se no concreto de cidades imensas como São Paulo. O assassinato do (menino boliviano) Bryan, ocorrido recentemente na capital paulista, revelou que, na falta de comprovante de renda ou de regularização migratória, a impossibilidade de abrir uma conta bancária leva algumas famílias a guardarem dinheiro em casa, o que as torna ainda mais vulneráveis.
Por isso, toda preocupação com os direitos dos trabalhadores estrangeiros, súbita ou não, é bem-vinda. Mas rotular os médicos cubanos como escravos ou semi-escravos, infelizmente, é apenas uma parte da lamentável estratégia de desqualificação desses profissionais. Certamente há pobreza, mas não há escravidão em Cuba. Já aqui, no Brasil, não apenas as denúncias recorrentes de trabalho escravo, como também o tempo que levamos para adotar uma lei decente sobre trabalho doméstico, nos deixam inúmeras interrogações a respeito de como lidamos com nosso passado escravagista.
Não obstante, penso que o regime jurídico aceito pelo governo brasileiro para trazer os médicos cubanos deveria ser diferente. É verdade que o Brasil não pode obrigar Cuba a se tornar uma democracia, e ainda menos pode suprir a evidente penúria de divisas que acomete cronicamente a pequena ilha. Por menos que isso agrade aos nostálgicos da Guerra Fria, trata-se de um acordo internacional que institui um regime jurídico próprio para a iniciativa de cooperação em apreço. Mas acredito que o Brasil e a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) teriam influência suficiente para obter de Cuba uma contrapartida mais favorável aos profissionais que participam do programa, sem que isso configurasse uma ingerência indevida.
Na semana passada, médicos cubanos foram hostilizados no Ceará por médicos brasileiros, aos gritos de “escravos”, “incompetentes” e “voltem para a senzala”. O que essa escolha de palavras, que os “de dentro” usaram para tachar os “de fora”, revela, na sua opinião?
Ventura – Quando vi aquelas cenas, como brasileira, fiquei muito envergonhada, e lembrei de uma entrevista do (antropólogo) Eduardo Viveiros de Castro, onde ele diz que talvez seja nisso que consiste realmente o sentimento de pertencer a uma nação: ter motivos próprios para se envergonhar, tão próprios quanto – senão mais que – os sempre lembrados motivos para se orgulhar.
Provavelmente, as pessoas que insultaram os cubanos atribuem a causa da sua própria hostilidade às pessoas a quem dirigem o seu preconceito. Na verdade, porém, à xenofobia, fomentada pelas associações médicas, somou-se um elitismo vivido ou almejado pelos xingadores. Há, em muitos setores, um descontentamento com esse pouco de igualdade que conquistamos nos últimos anos. Nesse sentido, os cubanos parecem ter sido bodes expiatórios. Quando eles forem embora, imagino essas pessoas perdidas como as vozes do poema “Esperando os bárbaros”, do (poeta grego Konstantíno) Kaváfis (1863-1933): “e agora, que será de nós sem os bárbaros?”.
Mas desconfio que esse tipo de xenofobia tem algo de seletivo. Por exemplo: há um grande entusiasmo na preparação da acolhida dos profissionais e turistas supostamente ricos que têm vindo a grandes eventos internacionais sediados pelo Brasil. Logo, continuo achando que os brasileiros gostam de estrangeiro rico – ou que pareça rico e aja como tal –, mas que não gostam de pobres. Se o pobre for estrangeiro, ele será duplamente vulnerável, primeiro por ser pobre, segundo por ser estrangeiro. Por isso, não consigo imaginar uma acolhida corporativa agressiva para um grupo de médicos suecos, por exemplo. Aliás, uma das características do provincianismo é a adoração ao estrangeiro idealizado e às belas coisas da “metrópole”.
Existiria um temor de que a medicina, como carreira, perdesse status?
Ventura – De fato, a medicina é, no Brasil, uma das grandes carreiras liberais que ainda guardam uma força simbólica imediata de ascensão ou manutenção do status social. A ampliação vertiginosa das vagas nos cursos de direito, por exemplo, acabou com o prestígio dos bacharéis. O censo educacional de 2011 conta 723.044 alunos matriculados em 1.121 cursos de direito, cerca de 90% deles em instituições privadas. Em torno de 1 em cada 8 estudantes universitários brasileiros estuda direito. Já, na medicina, temos cerca de 200 escolas, com um número muito menor de vagas.
Por quê?
Ventura – Porque, diferentemente de outros cursos de graduação, não se abre uma faculdade de medicina apenas “com cuspe e giz”. A regulação da educação superior, sob evidente pressão das associações médicas, ainda exige que se faça um investimento muito grande para abrir um novo curso de medicina. Porém, apesar de mais rigoroso do que em outros campos, esse controle não consegue evitar persistentes reclamações quanto à qualidade de algumas instituições privadas brasileiras.
O presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, declarou que vai orientar os médicos a “não socorrerem erros dos colegas cubanos”. Que olhar sobre a saúde e sobre a população que depende do SUS essa declaração revela?
Ventura – Fico impressionada com o grau de polarização e o sectarismo que esse movimento alcançou. Tamanha intransigência nunca foi vista em defesa do SUS. (Essa declaração) é simplesmente uma incitação ao crime de omissão de socorro. Pura prepotência! Quando se escuta essa ameaça de punição ao cidadão brasileiro, até parece que ele tem escolha: eu quero ser atendido por um cubano ou por um brasileiro? E é advertido: caso aceite ser atendido por um cubano, assuma as consequências.
Uma jornalista potiguar, Micheline Borges, escreveu no Facebook: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma Cara de empregada doméstica! Será que São médicas Mesmo??? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência… Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo!”. Em um protesto contra o Mais Médicos, diante do Ministério da Saúde, semanas atrás, uma das palavras de ordem dos médicos que se manifestavam era: “Somos ricos, somos cultos, fora os imbecis corruptos”. De novo, o que isso demonstra? E o quanto essa tensão social se reproduz na assistência pública de saúde?
Ventura – Aqui entra forte um legado escravagista. Há uma incompreensão de que, em outros países, não são apenas as elites que chegam aos cursos de medicina. No entanto, os atributos físicos da elite brasileira são tão idealizados pelos parâmetros pasteurizados dos mercados internacionais que nem ela se parece consigo mesma. Uma voltinha pelos grandes hospitais brasileiros surpreenderá a tal jornalista, que parece ainda fixada na estampa artificial dos médicos de seriados ou novelas de TV. Ora, os médicos de carne e osso que vejo todos os dias não se parecem com George Clooney.
Creio que um bom exemplo dessa tensão social é revelada pelos estudos de João Biehl (professor de antropologia da Universidade de Princeton). Ele diz que o programa de HIV/Aids no Brasil reproduz as linhas de fratura de cor e de pobreza: os pacientes não são iguais, sofrem estigmatização constante, inclusive por parte dos profissionais de saúde. Segundo estatísticas citadas por Biehl, em alguns locais do Brasil a aids poderia ser duas vezes mais fatal para os negros do que para os brancos. Mas essa tensão não é uma exclusividade do Brasil. Num livrinho delicioso sobre saúde, o (epidemiologista) Francisco Bastos cita o exemplo da hipertensão entre os negros pobres americanos: estudos demonstram que a gravidade da hipertensão é fortemente associada ao quanto cada pessoa se sente discriminada em seu dia-a-dia, o que foi chamado de “escala de mensuração do racismo internalizado”.
De qualquer forma, sejam eles belos ou não, o que importa é que a profissão dos médicos é muito bonita. Porque pressupõe o dom de cuidar e de acolher, sem julgamentos. Gosto muito da ideia do (filósofo alemão Hans-Georg) Gadamer (1900-2002) sobre o que ele chama de “arte de curar”. Para Gadamer, a obra do médico, quando acabada, deixa de ser sua: quando o paciente “está curado”, o médico torna-se dispensável. Então a perfeição do trabalho médico seria a auto-exclusão.
Por trás dessa relação tão peculiar, porém, há gigantescas estruturas: a indústria de medicamentos, os sistemas de saúde, as instituições políticas, o mercado de insumos, a pesquisa e a tecnologia, etc. Ocorre que uma parte dos profissionais da saúde e de seus pacientes não consegue ver nenhuma dessas pontas. Por vezes, não entendem nem a magnitude do gesto de cuidar, nem a evidência de que este trabalho cotidiano é diretamente condicionado por decisões políticas e econômicas das quais não somente eles não participam, como não estão interessados em participar. Numa organização social injusta como a nossa, é difícil ver glamour em qualquer profissão. Mas se pode ver muitas outras coisas. Aliás, a saúde pública diz tudo o que há para ser dito sobre uma sociedade e um Estado.
E o que ela diz?
Ventura – Quanto às desigualdades sociais, elas aparecem em todos os indicadores de saúde, na ampla persistência de doenças como a tuberculose, a hanseníase, a malária, o mal de Chagas. Mas diz muito mais: por exemplo, que as prostitutas, aqui no Brasil, não podem se declarar felizes nem numa campanha relativa ao HIV/Aids. Que a Câmara dos Deputados, a casa que nos representa, vive uma fase de terrível retrocesso, pois ficamos boa parte do ano discutindo uma estultice como o projeto de lei que instituía a “cura gay”. O aborto continua no código penal, lugar onde jamais deveria ter estado. Enfim, a lista é muito longa…
(Publicado na Revista Época em 02/09/2013)