Em Porto Velho, não diga que o rei está nu!

Estive em Porto Velho, Rondônia, no final de março. No norte do país, o estado se prepara para a construção de duas controvertidas usinas no Rio Madeira, Santo Antonio e Jirau, obras que são vitrines do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e já mereceram visita recente do presidente Lula. Funcionários especializados das empresas dos consórcios responsáveis pela implantação das usinas estão chegando com suas famílias para se instalar na capital pelos próximos anos.

Como sempre que viajo, por curiosidade pessoal e por obrigação profissional, gosto de ouvir as pessoas nas ruas. Em Porto Velho, as reclamações eram muitas. Os que estão chegando, pelas dificuldades que encontram. Os que estão lá, porque as dificuldades que já existiam multiplicaram-se com a chegada de mais gente. No domingo em que me despedi da cidade, a manchete de um dos jornais da capital era: “Médicos ameaçados de morte nos postos de saúde da capital”. A causa: demora no atendimento.

As razões que me levaram a Rondônia eram outras e nada tinham a ver com a precária infra-estrutura de Porto Velho. Mas, para um jornalista, deixar de contar uma história é deixar de cumprir seu dever. Decidi fazer uma matéria para este site, com foco no cenário encontrado pelos recém-chegados. Antes, como agora, o interesse jornalístico era óbvio.

Na matéria, eu mostrava que Porto Velho tinha problemas sérios de atendimento nas áreas da saúde, educação e saneamento básico. E um pouco mais: carência de espaços públicos, como praças e parques, ruas e calçadas esburacadas e acúmulo de lixo. Quem chegava, encontrava ainda aluguéis triplicados. Quem já estava lá, tinha dificuldade de renovar seus aluguéis porque as imobiliárias apostavam no poder aquisitivo dos novos moradores.

Essa era a história. Por contá-la, fui transformada numa espécie de inimiga pública de Rondônia. Como foi afirmado num artigo, em um site, “Nunca na história deste Estado tantos em tão pouco tempo se levantaram para atacar uma mesma pessoa, a anti-heroína Eliane Brum”. Uma das pessoas entrevistadas por mim, com nome e sobrenome na matéria, foi caluniada e perseguida. Um dos caluniadores descobriu suas fotos no Orkut e estimulou, ainda, uma campanha contra ela pela internet. Comentários feitos nesse site – e em outros – referiram-se a mim e a meus entrevistados com palavrões e ofensas de todo o gênero, passíveis de serem enquadrados como crime no Código Penal. Para não violar a lei, eles não serão reproduzidos aqui.

No início, fiquei chocada e sem entender. Afinal, sou jornalista há mais de 20 anos e já fiz centenas de matérias denunciando problemas de saúde, educação e saneamento básico, sem que jamais alguém estranhasse o fato de estar fazendo meu trabalho. Respirei fundo e passei a desconstruir as críticas, com a convicção de que deveria aproveitar a oportunidade para aprender mais sobre Rondônia.

Denunciar problemas é uma das mais importantes obrigações da imprensa em qualquer país do mundo. Apenas governos de países totalitários se notabilizam por atacar jornalistas que mostram os fatos como os fatos são. Em nenhuma das reações à matéria – de parte dos políticos, empresários e população –, alguém afirmava que os problemas mencionados na matéria não existiam. As informações estavam corretas. O suposto crime ao qual me condenavam era o fato de divulgá-las no site de uma revista nacional.

Cheguei então a uma curiosa conclusão: fui caluniada publicamente por ter ousado dizer que em Porto Velho há problemas. Ou seja: para parte da população e dos dirigentes, o que revolta não são os problemas, mas dizer que eles existem. Ou seja: basta apedrejar quem denuncia os problemas que os médicos vão se multiplicar, as vagas na escola vão aparecer e os buracos desaparecer.

A próxima pergunta era óbvia: por que as pessoas que se unem para me difamar não se unem para reivindicar a melhoria das condições de vida em Porto Velho? Por que não usam essa indignação para exigir cidadania e cumprimento das promessas de campanha? Não sei. Bom para os responsáveis que os eleitores se enfureçam não com os problemas, mas com quem diz que os problemas existem.

Onde eu já vi isso? Um inimigo comum sempre foi muito útil para tirar o foco das mazelas reais. A História é pródiga em exemplos, no Brasil e fora dele, no passado e no presente. O truque é velho, o surpreendente é que alguém ainda caia nele. Melhor, claro, se o suposto inimigo vem do Exterior. Sim, porque foi isso que eu também descobri. Em Rondônia, eu sou uma estrangeira. Eu e meus entrevistados que lá chegavam. Nós todos, que não gostamos de buracos nas ruas, assistência ruim e desmatamento, deveríamos voltar para o lugar de onde viemos, o Brasil. Como “estrangeiros”, não temos direito de apontar mazelas.

Alguns ressuscitaram jargões da ditadura, período histórico, aliás, em que Rondônia multiplicou muitas vezes a sua população por estímulo do governo federal e de sua desastrada ocupação da Amazônia. Foram adaptados os mantras, algo como “Rondônia, ame-a ou deixe-a”. Eu, claro, não a amava. Nem os recém-chegados que ousavam criticá-la. Mais uma conclusão: para amar uma cidade é preciso ser cego. Deixe seus olhos e seu senso crítico na divisa. Ou seria fronteira?

Então entendi. Eu deveria ter escrito uma fábula sobre as maravilhas da cidade de Porto Velho. Me enganei de conto. Acabei protagonizando uma versão rondoniense de “A roupa nova do rei” e virei aquele menino que ousa dizer que o rei esta nu. Alguém esqueceu do fim da história. No meu livro, o menino não era atacado por dizer a verdade. Era o rei que ficava envergonhado ao ver que todos enxergavam sua nudez.

O problema é que eu amo Rondônia. Amo tanto que acho que Porto Velho merece ser uma cidade melhor do que é. E ouso achar isso porque sou brasileira e aquele estado me pertence tanto quanto a qualquer um. Acabo de voltar de uma viagem pelas capitais amazônicas. E, se todas têm problemas, nenhuma é tão carente de infra-estrutura e de espaços públicos quanto Porto Velho. E isso não acontece porque é uma cidade nova, porque outras o são na Amazônia.

Fazer de Porto Velho um lugar melhor para viver é tarefa de todos nós. E minha melhor colaboração é fazer bem meu trabalho de jornalista. Por isso, passada a decepção causada pela virulência das ofensas, não vejo a hora de voltar a Porto Velho e me debruçar sobre outros graves problemas da cidade e do Estado. É uma pena que jornalistas de todo o país não viajem mais seguido a Rondônia para exercer o ofício de registrar a história cotidiana do Brasil.

Devo desculpas, sim, a uma de minhas entrevistadas e à sua família. Ao contar suas dificuldades de adaptação a Porto Velho na matéria, eles foram vítimas de uma violenta reação por parte da população. Conversamos por cerca de uma hora, por telefone, dias depois dos ataques pela internet. Eles também estavam revoltados comigo. Era eu a culpada. Qual era o problema? Eles tinham dado a entrevista, as informações estavam corretas, mas, ao citar seu nome e sobrenome na matéria, foram crucificados. Se já estava difícil se adaptar à cidade, pior ficou com parte da população mandando que, se não estivessem gostando, que voltassem para casa. Como se não tivessem tanto direito quanto qualquer um de estar ali e de falar sobre as dificuldades que enfrentavam.

Eles têm razão. Eu não deveria ter divulgado o nome deles na matéria. Costumo dar palestras e oficinas sobre Jornalismo e um dos tópicos que abordo é a proteção das fontes. Nós, jornalistas, temos o dever de saber o que pode acontecer com nossos entrevistados quando as matérias são publicadas. E esse é um cuidado que eu sempre tomo no exercício da profissão. Nunca imaginei, porém, que alguém pudesse ser perseguido por dizer que encontrou problemas numa capital. Aprendi. Em Rondônia, só podemos divulgar os nomes dos entrevistados se eles afirmarem, como os bajuladores da fábula, que o rei está vestindo o mais belo traje do mundo, de preferência tecido com ouro e prata.

Já eu, como jornalista, sigo cumprindo meu dever: o rei está, sim, nu. Porto Velho tem problemas. E eles são graves. Como cidadã, espero que a parte mais lúcida da população, que também se manifestou, continue reivindicando uma cidade melhor para viver. Como jornalista, vou seguir fazendo a minha parte.

(Publicado na Revista Época em 13/04/2009)

Caso Sean: o clamor do sangue

O que faz de alguém um pai?

Eu não sei se o garoto Sean Bianchi Goldman deve ficar com o pai biológico, David, ou com o padrasto, João. Resolvi, então, pedir licença para expor não minhas certezas, mas minhas dúvidas. Peço desculpas aos leitores que esperam uma sentença, mas não tenho nenhuma. O que tenho são muitas perguntas. E a maior delas é sobre o que faz de alguém um pai.

Me assusta esse clima de jogo de futebol – hoje competindo com os gols do Ronaldo no Corinthians – em torno do destino de uma criança de nove anos. E me surpreende como parece fácil para quase todos julgar o futuro de alguém, apenas com base no que leu, viu ou ouviu na imprensa. Me impressiona como quase todos têm certeza do que é melhor para uma criança que nunca conheceram. E me incomoda essa facilidade de se tornar juiz e dar sentenças incontestáveis sobre o destino de pessoas.

O que me chama mais atenção, porém, é que a maioria dos argumentos em favor da “certeza” de que o menino deve ficar com o pai biológico podem ser resumidos por uma espécie de “clamor do sangue”. David teria mais direito do que João porque é pai. E é pai porque tem o mesmo sangue.

Volto então à pergunta central que proponho aos leitores. O que faz de alguém um pai? A mim, não parece que a resposta seja – apenas – o sangue.

David é um bom pai porque quer a guarda do filho? Ou David é um mau pai porque teria ficado quatro anos sem ver o menino por conselho de advogados espertos? David é um bom pai porque diz que ama o filho em programas de TV de grande audiência? Ou David é um um mau pai porque exporia comercialmente o filho de todas as formas, de chaveiros a camisetas?

Sua ex-mulher, Bruna, sequestrou o menino e o carregou para longe de um pai amoroso? Ou fugiu, com seu filho, para o país e a família onde se sentia segura, de um homem que quebrava armários com os punhos? João, o padrasto, é um bom pai? Ou tem interesses escusos para ficar com o filho da mulher que perdeu? Como será para Sean mudar de língua, de país e de família depois de tantos anos? Ou como será ficar?

Não sei. Mas me espanta constatar que todos parecem saber. E não só saber, como ter certeza.

O argumento totalitário do sangue, esgrimado em todos os fóruns como prova incontestável de paternidade, pode ser muito perverso. Já fiz reportagens sobre crianças abusadas, por violação sexual e espancamentos, e ouvi mais de uma vez, de mães e familiares: “Ele machuca, é violento, mas é seu pai. E pai é pai”. Como se “o sangue” desse a esse homem um poder de vida e morte sobre seu filho. Como se o sangue – esse clamor atávico – fosse tudo o que devemos levar em conta para decidir qual é a melhor escolha para uma criança.

David pode ser um ótimo pai, embora alguns sinais possam nos fazer suspeitar de que não. Assim como João pode ser um ótimo pai. O fato de que a família de João tem dinheiro não o transforma imediatamente em carrasco. E o fato de David não ter dinheiro não o converte em vítima. A vida é um pouco mais complexa que isso. E esse é um caso difícil. Qual é a melhor resposta para o menino?

Não sei. Mas eu, que estou longe de achar a Justiça brasileira um modelo de eficiência, espero que os juízes de fato e de direito exerçam sua espinhosa tarefa com mais dúvidas e menos pressa do que aqueles que berram sentenças definitivas tanto aqui como nos Estados Unidos. E que a sentença definitiva seja a melhor possível para Sean, já tão violado no direito de não ter sua vida transformada em polêmica internacional.

Nesse tema, só tenho uma certeza. Compartilhar o “mesmo sangue” comprova apenas quem era o dono do espermatozóide que gerou aquela criança. Mas não faz de alguém um pai, no sentido mais amplo e complexo do conceito moderno de paternidade.

O que faz de alguém um pai é uma boa pergunta para transformar essa polêmica em algo que nos ajude a ser melhores do que somos. Qual é o melhor pai para Sean Bianchi Goldman é tarefa da Justiça responder. Com todos os defeitos que a Justiça possa ter, a sociedade democrática ainda não encontrou um instrumento melhor para julgar destinos em suspenso.

Por fim, a todos que se apressam a virar juízes, sugiro exercitar o instrumento da dúvida. São as perguntas que nos mostram os caminhos – não as certezas. E cuidado. Um dia vocês também poderão ter seu destino decretado com essa mesma facilidade por pessoas tão sensatas como vocês.

(Publicado na Revista Época em 12/03/2009)

 

Página 47 de 47« Primeira...102030...4344454647