A vingança de Rogério Pereira

Ou como fazer um jornal literário com um barril

Inventamos uma vida para preencher um buraco. E seguimos vivendo porque nunca conseguimos cobri-lo por completo. Algo sempre nos falta. E esta falta nos move pelo tempo, nos impele a criar um enredo que faça sentido. No caso de Rogério Pereira foi um barril.

Zulma, a mãe de Rogério, não pôde estudar. Como a maioria das crianças pobres da sua infância no interior de Santa Catarina, ela trabalhava na roça. Quando se rebelava, e às vezes acontecia, a avó a enfiava dentro de um barril e sentava-se sobre ele. Zulma ficava lá, confinada até que a vontade de brincar passasse. Por cima dela, o corpo da avó e toda uma tradição de gente parida só para a enxada.

Esta história contada por uma mãe que escreve pouco além do nome e jamais leu um livro talvez seja a mais importante da vida de Rogério. Assombrado pelo barril, ele acreditou que só escaparia desta sina se fosse capaz de preencher o vazio com palavras. Se o barril estivesse repleto de histórias, não haveria espaço para a escuridão – nem para crianças na escuridão. É por isso que, quando lhe perguntam por que criou um jornal literário num país onde ainda tão poucos leem, Rogério responde que é a sua vingança contra o barril. Agora, o barril é fábula. Como fábula é possível conviver com ele.

O Rascunho, jornal literário criado por Rogério Pereira, completou uma década de persistência. Baseado em Curitiba, tornou-se “o” jornal literário do Brasil. Nele há espaço para autores de todos os cantos do país, há espaço mesmo para quem está fora do mercado e longe da consagração. Tem assinantes mesmo em cidades pequenas como Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, Bom Despacho, em Minas Gerais, ou Parobé, no Rio Grande do Sul. O Rascunho resiste pela colaboração não remunerada de dezenas de pessoas, escritores, tradutores e jornalistas, que também têm lá seus próprios barris, prontos para encaçapá-los numa esquina em caso de distração.

O jornal é moldado, porém, à imagem turrona de Rogério Pereira. E chega aos dez anos porque ele é teimoso. Bem teimoso. Às vezes até difícil. Para alguns, “sincero demais”. Fazendo dívida ano após ano, ele vai terminar este com um rombo de R$ 90 mil. Rogério vai empurrando, pagando velhos empréstimos, fazendo novos. Encantado porque ele, que só entrava em banco como office-boy, hoje tem crédito. E todo mês, quando imprime os 5 mil exemplares do Rascunho, Rogério ganha do barril. Em dezembro ele botará nas ruas a edição de número 128, com 32 páginas e 40 colaboradores.

Conheci Rogério há pouco mais de um ano, em Curitiba. Desde então, espero uma chance para contar sua história aqui. Na semana passada, ele e o escritor Luís Henrique Pellanda lançaram o primeiro volume de As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago), em São Paulo. O livro reúne boas e longas conversas com 15 escritores brasileiros. Foram escolhidas entre as 171 entrevistas publicadas na primeira década do jornal. Estão ali Luiz Ruffato, José Castello, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cristovão Tezza, João Ubaldo Ribeiro, entre outros. Conversas de gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela – para gente que ama a literatura e é transformada (e perturbada) por ela.

Algumas horas antes do lançamento, eu e Rogério terminamos nossa própria boa conversa no café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Eu queria saber como um garoto que trabalha duro desde os 10 anos, filho de pais sem acesso à palavra escrita, criou um jornal de literatura que já faz parte da história da cultura brasileira. Queria saber como a literatura transformou Rogério Pereira. Ou como ele criou um enredo para sua existência e assim escapou do barril que mastigou sua mãe.

Ela sempre disse a Rogério: “Se eu tivesse estudado, tudo seria diferente”. Enquanto vendia flores, moldava móveis em bambu, entregava medicamentos para dentista, fazia todos os bicos que conseguia, Rogério acreditava nisso. Ele acreditava na mãe. E como todas as vidas, a dele também foi povoada de “e se”. E se a mãe não tivesse trabalhado na casa do diretor da sucursal da Gazeta Mercantil quando ele era adolescente? Se em vez disso tivesse sido empregada doméstica na casa de um dentista, de um médico, de um comerciante, que jeito ele teria encontrado? Seria ele outro?

O que importa é que, aos 14 anos, o patrão da mãe, Claudio Lachini, perguntou se ela não tinha um filho que pudesse empregar no jornal como office-boy. E Rogério se tornou o office-boy “diferente” da Gazeta. Diferente porque quando terminava o trabalho de banco, em vez de jogar fliperama como os colegas, ficava estudando na cozinha do jornal. À noite, cursava a escola pública. Os jornalistas o apoiavam, aliviavam o trabalho. Ele começou a ganhar livros, a comprar. Iniciou-se com Rubem Fonseca, Dalton Trevisan e João Antônio. Ficou no jornal por oito anos e até chegou a ser promovido a “renovador de assinaturas por telefone”. Segundo ele, o trabalho mais chato que fez na vida, ainda pior do que vender flores em dia de finados. Mais tarde, Rogério fez faculdade e se tornou jornalista. Fez ainda uma pós-graduação na Universidade Complutense de Madri.

Rogério ainda era office-boy quando o diretor do jornal lançou um livro de poesias chamado O que se viveu. Em casa, a mãe contou que havia “uma montanha de livros na casa do seu Lachini”. Rogério queria muito ler algo escrito por alguém que conhecia, “para quem pagava as contas, comprava pastel e cigarros no meio da tarde”. Rogério implorou que a mãe pegasse um emprestado. Ela, muito católica, resistiu. O amor materno acabou vencendo o medo do inferno e Zulma retirou um livro da pilha. Anos mais tarde, Rogério fez o acerto de contas. Encontrou-se com Lachini para um café num hotel chique de Curitiba. O jornalista queria entregar a ele seu primeiro romance para ser resenhado pelo Rascunho. Rogério levou o livro furtado, confessou o crime e ganhou a obra de presente, agora autografada. Algo ali se fechava.

O Rascunho começou sua história em 8 de abril de 2000, encartado no Jornal do Estado, de Curitiba. Era feito nas madrugadas e finais de semana e muitas vezes era preciso sacar dinheiro do bolso para que pudesse seguir adiante. Nestes primeiros anos, o jornal cavou uma fama de brigão, “iconoclasta e meio irresponsável”. Em suas páginas, Rogério e outros injetaram ironia e algumas vezes também crueldade, como no massacre do poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite. A seu favor é preciso dizer que sempre abriu o mesmo espaço para réplicas e tréplicas. Pergunto a Rogério se hoje se arrepende de episódios como este. Rogério responde: “Não me arrependo da história do Rascunho. Hoje, obviamente, o texto teria outro viés, outra forma. Mas possivelmente a mesma contundência”.

No quarto ano, a parceria com o Jornal do Estado acabou. Rogério tinha de decidir se acabava ali, como em geral acontece com a maioria dos projetos, ou se seguia adiante. Como é teimoso, turrão e às vezes difícil, seguiu. No sexto ano, tomou a decisão de abandonar a estabilidade da vida de emprego com carteira assinada para se dedicar só ao Rascunho e à literatura. Não perdia pouco, já que ganhava um salário bem razoável e tinha um lugar de reconhecimento como chefe de redação da Gazeta do Povo. É hoje um dos poucos brasileiros que vive da – e para a – literatura no Brasil.

Rogério brinca que criou uma holding. Além do Rascunho, existe o Paiol Literário, projeto que já levou 47 dos principais escritores brasileiros a Curitiba para um encontro com o público que depois é editado e publicado no jornal. Há ainda o vidabreve.com, um site com sete cronistas e sete ilustradores, uma dupla a cada dia da semana (eu e Ramon Muniz formamos a dupla da terça-feira); o Quintana Café & Restaurante, espaço dedicado à cultura e à gastronomia; e ele ainda faz curadorias de bienais e outros eventos literários pelo país afora.

O último dia do horário de verão, 20 de fevereiro de 2011, será também o dia em que Rogério vai botar o ponto final no seu primeiro romance – “Na escuridão, amanhã”. Coisas de Rogério, que adora um ritual. Faz questão, por exemplo, de abrir suas contas bancárias nas mesmas agências em que pegava fila como office-boy. Compra flores para a mulher, Cris, e para a filha, Sofia, de quatro anos, no mesmo lugar em que vendia flores na infância. Para ter certeza. “Eu passei por aqui de uma maneira e hoje passo de outra.”

Como não costumo botar fotos nesta coluna, preciso descrever Rogério. Ele está bem longe da imagem do jornalista desmantelado, dentes e dedos manchados de nicotina, uma ou duas doses de cachaça na mão, barriga de cerveja e torresmo de boteco. Pelo que tenho visto por aí, acho mesmo que esta figura clássica já pertence ao passado. Aos 37 anos, Rogério mantém o corpo em forma com três sessões de academia e dois jogos de futebol por semana. Usa uma argola em cada orelha, corte de cabelo milimetricamente despenteado, camisa branca de bom corte ou em cores sóbrias, capazes de manter um daltônico em segurança. Para ele, que alcançou Curitiba aos 6 anos com a família, a cidade será sempre “cinza, borrada pela neblina da infância”, como escreveu em uma de suas crônicas.

Rogério já foi descrito como um Dom Quixote, mas, pelo menos na aparência, se usasse uma echarpe poderia ser confundido com um dos italianos despojados das ruas de Milão. Não fuma há 15 anos, não bebe há 10. Casado, dois filhos pequenos em boas escolas, bom apartamento, boa qualidade de vida. É importante para ele que seja assim. Para tocar sua holding literária, usa o aprendizado forçado da infância e adolescência, onde desenvolveu a vocação empreendedora negociando redações e trabalhos escolares em troca de lanches e vale-transporte.

Pergunto a ele por que escreve. Ele diz, alertando que para esta resposta não há como evitar os clichês: “Escrevo porque preciso, porque guiei a minha vida para a escrita, a literatura. Fiz da leitura um projeto para a vida toda. Não estou aqui à toa. Estou aqui porque construí o que sou – com toda a sorte pelo meio do caminho. Escrevo também por vingança àquele barril, escrevo para enchê-lo. Escrevo para me humanizar. Escrevo por vaidade, escrevo por vingança – sentimentos nada nobres, sei bem. Escrevo também porque talvez seja uma boa maneira de esperar a morte”. E mais adiante: “Os livros me salvaram. Eu sou o que li. O que busquei. Cada livro que li, cada livro que pensei em ler, cada livro que li pela metade, é o que sou”.

O primeiro livro seu foi comprado numa feira da infância. Avisaram na escola, e ele pediu dinheiro à mãe. Ela deu a ele o que hoje equivaleria a dois reais. Rogério só conseguiu comprar um de balaio. Era um livro sobre um homem em uma ilha. À espera. E não era a história de Robinson Crusoé. Rogério acredita que está lendo este livro até hoje. Quando era bem pequeno, sua mãe não viu que havia um “ninho de formiga” no lugar onde o deixou. E passou horas trabalhando sem poder voltar. Rogério foi flagelado pelas formigas. Hoje não consegue evitar. Ao deixar seu filho Lorenzo no berço sempre confere alarmado se não há formigas prontas a devorá-lo. Como disse o escritor catalão Enrique Vila-Matas, “a infância é uma batalha perdida”.

Rogério sabe que a vingança completa é impossível. O barril continua lá. Lembrando nos espaços vazios que a vida é frágil. E em geral dói. Zulma, a mãe de Rogério, é quem hoje envelopa os exemplares do Rascunho para assinantes, mas nunca leu o jornal nem qualquer dos escritos de Rogério. Continua trabalhando como diarista e é na casa de um dos patrões que passará este Natal servindo. José, o pai, é motorista de jornal. O irmão é funileiro. A irmã morreu de repente aos 27 anos. Alguns amigos perguntam a Rogério por que não ajudou os pais a melhorar seu nível de escolaridade. Ele responde: “É simples: a vida nos engoliu, nos mastigou feito bala de goma”. E, em outro momento: “Somos uma família distante e silenciosa. Como passamos boa parte da vida tentando sobreviver, cada um se virava da maneira que era possível. Não somos amorosos um com o outro. Nunca nos reunimos no Natal, no Ano-Novo ou nos aniversários. Mas isso não tem nada a ver com amor. Somos poucos que nos amamos em silêncio”.

O pai fez um quadro da primeira matéria de Rogério publicada em um jornal. Deu a ele de presente. O tema era uma cadeira que não provocava dor nas costas em quem passava o dia sentado diante de um computador. Mais tarde o pai pediu um livro emprestado. Rogério lhe deu uma obra de Autran Dourado, não lembra o título nem sabe o porquê da escolha. Tempos depois o pai devolveu o livro em silêncio. “Eu não lhe perguntei nada. Acho que tentou ler e não conseguiu. Envergonhado, devolveu o livro. Eu respeitei o seu silêncio. Ele respeitou o meu.” Quando o filho mais novo nasceu, Rogério reservou um caderno para que as visitas deixassem uma mensagem. Descobriu ali, na letra sofrida do pai, que ele escrevia seu nome – Rogério – com “j”.

Quando propus a Rogério Pereira contar sua história nesta coluna, ele teve receio. Que alguns pudessem achar que usava sua vida como autopromoção. “O Rascunho não tem reconhecimento porque foi fundado pelo filho da empregada doméstica, mas porque tem qualidade”, disse. Rogério só aceitou porque sua história prova algo que tanto eu quanto ele acreditamos profundamente: que a literatura é capaz de transformar a vida. Se há uma história que vale a pena ser contada é esta – a de como cada um dá sentido à sua existência, pega à unha o pouco que tem e se lança de cabeça no território das possibilidades.

Todos nós temos o nosso barril, com mais ou menos dor, mais ou menos peso, com outro nome. O que nos difere é o que fazemos com ele. A literatura, seja como leitor ou como escritor, nos permite transformar nosso barril em metáfora.

(Publicado na Revista Época em 29/11/2010)

A realidade da fantasia

Vivemos mais tempo na imaginação do que naquilo que chamamos de real

Acordo num susto. Estou ofegante e respiro pela boca. Confiro o relógio. São duas da manhã. Tive um pesadelo terrível. Mas não tenho a menor ideia, nenhuma pista mesmo, sobre de que matéria era feito. Este era tão ruim, falava de alguma verdade tão proibida, que mesmo ao acordar num repente é apagado. Seja lá o que for, vai assombrar meu sono e minha vigília ainda muitas vezes, adotando as formas mais diversas. Quando acordo novamente já amanheceu e agora eu guardo uma sensação boa. Eu voava e sabia que era um sonho. Podia voar sem medo de cair porque no sonho penso que, se cair, caio na minha cama. Passo o dia com estas duas sensações bem presentes dentro de mim. O susto não nomeado do primeiro pesadelo e meu voo sem medo sobre o mundo.

Estas duas sensações que vêm do sonho são menos reais para mim do que as notícias do jornal que leio enquanto tomo chimarrão? Ou o iogurte que como de colher com farinha de linhaça? As lembranças e sensações que você guarda do seu sonho e que às vezes lhe acompanham no cotidiano são menos reais para você do que as tarefas rotineiras?

Sigo no meu dia. Você que me lê também segue no seu, em algum lugar. Ao longo das horas eu devaneio enquanto cozinho, lavo roupa, passo no supermercado, devolvo dois filmes na locadora e estaciono meus pés na loja ao lado para escolher um creme para hidratar meu cabelo. Escolho um, mais barato, mas a moça me conta das maravilhas de outro e eu, que enquanto ela fala fantasio em minha cabeça imagens de meu cabelo reluzindo como o das propagandas de xampu, deixo-me enganar bem satisfeita.

Nas muitas horas que trabalho todo dia não saberia dizer por quanto tempo divago. Com certeza, muito. De repente, me pego olhando para a parede azul do meu escritório há uns bons 15 minutos. Sonho com uma possível viagem para a Escócia que planejo fazer com a desculpa de melhorar meu inglês, mas que é movida muito mais pelas fantasias que desde criança eu tenho com as Terras Altas, mulheres guerreiras e homens de kilt. “Eles não usam nada por baixo!”, brinca meu professor de inglês, dando apoio ao projeto, mas embalado por suas próprias fabulações.

Ao final do dia, leio um livro sobre a história do Haiti e lá pelas tantas estou no meio de um parágrafo tentando imaginar como eram os dias de Toussaint L’Ouverture, o líder negro que lutou pela libertação dos escravos e a independência do país. Mais tarde, converso com uma de minhas amigas mais descoladas e descubro que ela está com ciúmes da Kate Middleton. Suas dores nada têm a ver com o príncipe William, que ela até acha bem sem sal, mas sim com todas as histórias de princesa que leu e as comédias românticas a que assiste escondida até de si mesma. Minha amiga, uma mulher que se arriscou em dezenas de aventuras mundo afora e tem uma vida amorosa bem animada, quer ser princesa. Uma parte dela quer, é o que ela me diz, desconsolada com a descoberta, e já ligando para marcar uma sessão extra com o analista. Fico um pouco estarrecida, mas não exatamente surpresa. Até porque antes de dormir assisto ao “Robin Hood” de Ridley Scott. E obviamente quero ser Marion. Vou para a cama suspirando.

Conto aqui meu dia não porque ele seja especialmente interessante, mas porque possivelmente, com variações de temas aqui e ali, ele seja parecido com o seu naquilo que mistura de realidade e fantasia – em sonhos dormindo ou devaneios na vigília. Ainda que você divague com vitórias estrondosas do seu time de futebol, um sucesso profissional estonteante ou até ganhando na mega-sena sozinho (claro!) ou ocupando as manchetes em um ato de heroísmo. Ou se tornando um aventureiro intrépido em algum canto selvagem do mundo enquanto briga com a máquina de café do escritório.

Conto meu dia para que você possa lembrar o seu. E assim possamos ter bem presente que a fantasia ocupa mais tempo da nossa vida do que aquilo que chamamos de realidade. É, portanto, coisa séria. Não séria como sinônimo de chatice e sisudez, mas séria como algo para o qual vale a pena olhar com atenção – e não espanar como tema marginal. Quando lembramos o nosso dia, em geral recordamos os atos concretos, a rotina prática, desde a conta que pagamos no banco ao trabalho que realizamos. E assim calamos um pedaço grande do nosso cotidiano por desprezarmos como irrelevante ou, em alguns casos, até vergonhoso. Perdemos então a chance de nos conhecermos melhor e percebermos para onde caminha o nosso desejo.

É justamente sobre a realidade da fantasia um livro extraordinário que acaba de chegar às livrarias. Chama-se A psicanálise na Terra do Nunca (Penso – Artmed) e foi escrito pelos psicanalistas Diana e Mário Corso. Os autores nos lembram logo na introdução que, ao contrário de nossas crenças, vivemos mais na fantasia do que na realidade. “Quando reflete sobre si, o homem comum se vê como alguém racional, lúcido, com os pés no chão, mas que às vezes é tomado pela fantasia. Os psicanalistas acreditam no contrário: o homem sonha a maior parte do tempo, e em certos momentos, geralmente a contragosto, acorda”. E, mais adiante: “Na prática somos casados com a realidade, mas só pensamos em nossa amante: a fantasia”.

Não existe aí nenhum juízo de valor do que é melhor ou pior, certo ou errado ou mesmo mais ou menos importante. Apenas a constatação de que somos sonhadores despertos ou despertos sonhadores. Somos constituídos pelas nossas fantasias tanto quanto pelos fatos “reais” de nossa vida. Nossas fantasias falam de nós e moldam escolhas bem concretas na nossa trajetória. Desde o homem ou a mulher que escolhemos até a decisão de ter ou não filhos – e, no caso de tê-los, com que tipo de companheiro dividiremos esta tarefa. Assim como ajuda a determinar o que esperamos deste homem ou mulher, da família que vamos formar juntos e de nossos filhos.

É por causa de uma fantasia que eu escolho, como contei mais acima, viajar para a Escócia – e não para os Estados Unidos ou a Nova Zelândia. Tudo de concreto que acontecer lá terá começado décadas atrás, nas histórias das Terras Altas que lia na minha infância. É pela fantasia que os britânicos, assim como a minha amiga aqui, suspenderam sua rotina para falar do noivado do Príncipe William com a plebeia Kate Middleton. E não pela união concreta de um homem que começa a ficar calvo e de uma mulher que pouco se sabe além do fato de ser filha de uma aeromoça. É possivelmente devido à fantasia que o mundo não tenha perdoado Charles, o pai de William, por ter desejado ser o tampax de Camilla Parker-Bowles. Afinal, como ele teve o desplante de destruir num devaneio sexual todos os nossos melhores e mais puros enredos de príncipes e princesas que Diana tão bem soube aproveitar em seu marketing pessoal?

Temos a fantasia como algo menor em nossas vidas, quase um acessório decorativo. Como algo que supomos pertencer mais à infância do que à vida adulta. Nos equivocamos, porém. A fantasia é parte de nós e se faz presente em cada ato cotidiano. E não exatamente separada da realidade, como pensamos. Em geral não dá para dissociar fantasia de realidade, já que uma está imbricada na outra, influenciando-se e transformando-se mutuamente. Há grandes chances, inclusive, de que o nosso último pensamento antes de morrer seja uma fantasia sobre a nossa passagem por este mundo ou sobre o que nos espera em algum outro ou em nenhum, feita da matéria obtida no arsenal de sonhos e histórias de uma vida inteira.

Em seu livro anterior, Fadas no Divã (Atmed, 2006), Diana e Mário Corso se debruçaram sobre os contos de fadas, as histórias e personagens que habitam a infância e nos ajudaram a lidar com nossos medos, desejos e dilemas. Neste novo livro, os autores focam na cultura pop. Filmes, seriados e livros, especialmente, que por mobilizarem milhões e permanecerem no imaginário de uma geração ou de várias, são o que mais perto nossa época alcança de uma mitologia que organiza não a vida de todos, mas a de muitos.

Este livro delicioso, minha sugestão de presente neste Natal, nos ajuda a refletir sobre as fantasias compartilhadas de nossa época. Com a certeza de que nossas histórias preferidas são decisivas para nos tornarmos o que somos. Determinantes na conformação do companheiro, amante, pai ou mãe e também do profissional que somos ou seremos. Não somos muito diferentes das crianças que pedem para ouvir a mesma história muitas e muitas vezes para terem certeza do final – e a sensação de algum controle sobre o que nelas provoca confusão e medo. É bem parecido o que fazemos ao revermos, sempre que possível, os filmes, seriados e até as novelas com as quais nos identificamos de diferentes maneiras.

O que a série de ficção científica “Alien” nos diz sobre a maternidade, por exemplo? Ou “Os Simpsons” do novo lugar do pai na família contemporânea? Ou os androides de “Blade Runner” sobre a queixa do filho de que o pai não ocupa mais o papel tradicional? Ou ainda “Os Waltons”, para quem se lembra de John Boy e Mary Ellen, sobre a família perfeita que ninguém jamais teve? Assim como as crianças que fomos têm muito a agradecer à madrasta da Branca de Neve por ter nos ajudado a elaborar a raiva que às vezes sentíamos de nossa mãe, mas que não ousávamos pronunciar, os adultos que somos têm muito a agradecer ao bebê Alien que “nasce” do tórax dos humanos encarnando alguns de nossos medos mais impronunciáveis.

A ficção nos ajuda a lidar com nossa realidade mais profunda. E só pode nos ajudar porque é real. Se não fosse, filmes, livros e seriados que marcaram a vida de muitos não teriam sucesso nem ganhariam permanência. Não se trata apenas de entretenimento, algo menor e menos importante, mas de nossa própria carne. Os vampiros da série literária Crepúsculo, ainda que mais palatáveis e limpinhos que seu bisavô imortal, o Drácula de Bram Stoker, só vivem em nós – ainda que mortos – porque a relação entre sexo e morte faz parte do que somos e do que nos inquieta no que somos.

Engana-se quem pensa que fantasiar é algo incompatível com a vida adulta. Ao contrário. O que fazemos por toda a nossa existência é justamente inventar uma vida. Que sempre será em boa medida uma ficção. Quando nascemos, é a mãe que inicia a nossa narrativa, quem nos conta que somos alguém pelo seu olhar e pelo seu toque. Para que pudéssemos existir, nossos pais precisaram antes nos imaginar. O livro do bebê será nosso primeiro diário, a primeira história que dá conta de nossa existência como indivíduo. E depois da mãe e do pai virão os avós, os irmãos mais velhos, os personagens do mundo para além da casa. Nos tornamos adultos quando enroscamos em nosso próprio dedo o fio da narrativa de nossa vida.

Acredito que perceber a presença da fantasia na trama de nosso destino nos ajuda a derrubar algumas crenças pessoais e coletivas que nos atrapalham. E mais nos atrapalham porque as confundimos com verdades absolutas e irrevogáveis. Assim como acolher a fantasia no cotidiano pode nos tornar pessoas menos enrijecidas – ou menos paralisadas – por medos que não conseguimos nomear. Não é que podemos crescer e seguir sonhando. A questão é que só podemos crescer se seguirmos sonhando. Como nos lembra a epígrafe de A Psicanálise na Terra do Nunca, na frase brilhante de Fabrício Carpinejar: “A imaginação é o direito constitucional para viver de novo. Não desperdice a vida com uma única vida”.

Não por acaso o título do livro refere-se à Terra do Nunca, o território fantástico e mutante descrito por J.M. Barrie. Como lembram os autores, em um determinado momento Peter Pan pede a Wendy que volte para a Terra do Nunca. Para convencê-la, usa um argumento forte. Wendy poderia ensinar os Meninos Perdidos a contar histórias. Se eles aprendessem, poderiam crescer.

Em cada um de nós mora um menino perdido da Terra do Nunca. Querendo crescer sem saber muito bem como. Achando que está acordado quando passa a maior parte do tempo sonhando. Sem saber que a maior ficção de todas é acreditar que tem os dois pés no chão.

(Publicado na Revista Época em 22/11/2010)

O novo, o velho e o antigo

Estudioso de Chico Buarque lança um olhar provocador sobre o Brasil e suas circunstâncias

Antes de o italiano Luca Bacchini descobrir o Brasil, foi o Brasil que aportou na sua alma em notas de samba. O Novo Mundo navegava na vitrola da casa da família na Roma da sua infância em discos de vinil que o pai ganhava de um piloto da Alitalia. Ao observar a euforia dos adultos, forjando em língua desconhecida uma versão mais viva de si mesmos nos carnavais improvisados que o pai organizava, Luca capturou o Brasil como uma visão particular de paraíso. Muitos anos depois desse primeiro contato, ele se tornaria um estudioso da obra musical e literária de Chico Buarque. Um “chicólogo”, como ele diz. E uma espécie de romano-carioca que corre sobre as pedras milenares da Via Ápia enquanto planeja sua próxima passagem pela Marquês de Sapucaí.

Convidei Luca Bacchini a refletir nesta coluna sobre seus passos entre dois mundos. A vida cotidiana em Roma, talvez a cidade do planeta onde é possível apalpar como em nenhuma outra o peso do passado no presente. Onde nossos pés pisam sem deixar marcas em pedras que foram assentadas ali antes de Cristo e ali estarão muito depois do nosso fim. E a apreensão da vida nesse país do futuro que é o Brasil, eternamente jovem em sua espera pelo dia seguinte.

Nesta entrevista, Luca Bacchini nos ajuda a pensar sobre o antigo, o velho e o novo. Sobre o Brasil e suas representações. Sobre Chico Buarque e a reinvenção da língua. Professor contratado de literatura brasileira e portuguesa do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade ‘La Sapienza’ de Roma, ele também é crítico literário e tradutor de livros, artigos e reportagens. Já publicou vários ensaios em coletâneas e revistas especializadas sobre a literatura e a música brasileira, especialmente sobre Chico, Tom Jobim e João Gilberto. Dedica-se nesse momento a escrever um livro sobre o romance Budapeste, de Chico Buarque. É também conhecido em alguns meios como “Luca do agogô”. Mas este é um personagem que só se manifesta durante o Carnaval no Rio de Janeiro.

Acompanhe.

Quis fazer esta entrevista ao ouvir você falar sobre a convivência entre o velho e o antigo na sua cidade, Roma. Essa lembrança constante de que as pedras sobrevivem a nós. De que somos frágeis e somos passagem. Qual é a diferença entre o velho e o antigo, para você? E como isso repercute no homem que você é?

Luca Bacchini – Uma cidade como Roma, que é chamada de “cidade eterna”, inevitavelmente implica uma relação problemática com seus habitantes, que são mortais. Dispondo de um tempo ilimitado, a cidade levará sempre uma posição de vantagem com relação a nós, que contamos com um tempo limitado. A gente aqui convive com as ruínas. A antiguidade é um período afastado e remoto, mas que persiste obstinadamente no nosso presente. O antigo é fascinante, não necessariamente belo, mas automaticamente impõe respeito. O velho já é ligado ao conceito de decadência, de enfraquecimento, de declínio de algo que era jovem, talvez bonito, e que hoje não é mais o que era antes. O antigo se mede em séculos e é o tempo “forte” das ruínas, enquanto o velho remete a um tempo “fraco”, mais humano, que inexoravelmente nos revela a caducidade das coisas. Roma é um dos lugares do mundo onde você pode perceber melhor esta diferença. O velho não se torna antigo porque não sobrevive ao tempo. É destinado à extinção, deixando apenas escombros e entulhos que irão desaparecer. Ao contrário das ruínas, que ficam para sempre. Tudo aqui se alimenta da tensão entre estas duas temporalidades antitéticas que acabam vivendo num contraste amoroso.

Como é essa convivência no cotidiano?

Luca – Roma impõe respeito, mas sem inibir. É uma cidade monumental – e não uma cidade com monumentos. A maioria das suas riquezas, artísticas e arqueológicas, não está protegida atrás de vidros blindados. Roma pretende ser usada, tocada, pisada, esculachada, sujada e continuamente re-vivida, sobretudo nas suas ruínas. No Coliseu já houve encontros de boxe e vários eventos musicais. Nas Termas de Caracalla já assisti a um show de Caetano Veloso e a uma representação daAida. Na infância, disputei peladas intermináveis no campo do Circo Massimo e hoje, duas ou três vezes por semana, corro na Appia Antica (Via Ápia). Quando termino o treino, uso as pedras da tumba dos Rabiri ou de Quinto Apuleio para fazer os alongamentos. Às vezes acontece de algum turista querer tirar uma foto e aí, tudo bem, mudo para outro sepulcro. Mas não sou profanador de tumbas. São elas que invadem a minha academia.

Você acha que este é o drama humano, também? Se vamos nos tornar velhos ou antigos, mortos esquecidos ou lembrados, permanecer além da vida? Esta é uma questão para você?

Luca – Quem dera que os homens se preocupassem em ser lembrados ou em permanecer além da vida. Seria, afinal de contas, uma preocupação nobre e profunda. Por séculos a Igreja desfrutou e alimentou essa fraqueza humana montando umbusiness incrível – basta pensar na “venda de indulgências”. Hoje, porém, estamos aflitos por exigências e necessidades muito mais práticas e imediatas. Meditar e refletir é considerado um tempo que você está subtraindo à ação. Vivemos exasperadamente a filosofia do “Carpe diem”, mas numa forma distorcida e hedonista, que tem pouco a ver com o pensamento horaciano. Acho que hoje o grande drama humano é aceitar a velhice ou, dito de outra forma, prolongar ao máximo a juventude. Daqui a 50, 70 anos a grama dos nossos cemitérios estará toda contaminada por botox e silicone.

Você acha que a morte é mais presente – ou uma presença – quando se vive numa cidade em que o passado é tão concreto e mesmo palpável?

Luca – A morte está mais presente onde há violência. Aqui na Itália não temos um contato cotidiano com a morte como no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Irã, na África do Sul ou nos países envolvidos em guerras. Acredito que todos os brasileiros ou a grande maioria deles têm um parente, um amigo ou um conhecido que já foi vítima ou testemunha de mortes violentas. Dentro do meu grupo de parentes, amigos e conhecidos, até hoje eu não ouvi nenhum caso de morte ou ferimento causado por criminosos ou, pior ainda, por policiais corruptos. Pelo contrário, a morte foi bem presente na geração que viveu a II Guerra Mundial. Minha avó, por exemplo, assistiu a toda a brutalidade e desumanidade da represália nazista na Itália. Ela viu famílias inteiras deportadas, homens justiçados sob os olhos dos filhos e da esposa, mulheres abusadas, partisanos torturados e massacrados. Ainda hoje ela me fala com horror do ruído das botas dos soldados alemães que ecoavam à noite pelas ruas estreitas da cidadezinha onde ela morava.

Vivendo numa cidade tão monumental, mesmo, já que em Roma o “monumental” faz sentido e não é apenas um adjetivo vazio, como é possível construir ou inventar o novo?

Luca – Morando numa cidade monumental – e na Itália há muitas – a gente tem o privilégio de frequentar cotidiamente a arte e a história. Por um lado, nós acabamos desenvolvendo uma natural sensibilidade estética. De repente é daí que vem o que no Exterior é chamado de buon gusto ou stile dos italianos. Por outro lado, criamos uma relação meio traumática com o passado que está sempre lá, materialmente presente, te olhando, te espiando e te questionando. Em termos políticos isso se traduziu numa falta total de interesse na programação do futuro e, consequentemente, na instauração de um sistema gerontocrático. Os nossos políticos são os mais velhos da Europa. Em qualquer setor da sociedade as decisões mais importantes são assumidas por pessoas com uma idade bem avançada, em vários casos até anterior àquela dos meus pais. De um certo ponto de vista as pessoas idosas são aquelas que mais se aproximam da eternidade (risos). Com certeza, o espírito do lugar não estimula a criação do novo. Morando aqui você é levado a perceber o novo numa forma prevalentemente negativa, como uma categoria transitória, provisória, com prazo marcado. Como algo que antecipa o tempo, mas que pelo tempo afinal será sempre derrubado, que inevitavelmente passará de moda e que, em breve, se tornará velho, superado, obsoleto, até desaparecer. Afinal, é tristemente normal que uma sociedade gerontocrática considere o novo como uma ameaça à ordem constituída porque ele viola no presente a hegemonia do passado. Para mim, o Brasil, com a sua vocação congênita de país do futuro, funciona como uma espécie de alternativa libertadora para equilibrar essa falta crônica de utopia.

Mas não é possível que o novo se torne antigo? Construir algo novo que permaneça, do ponto de vista arquitetônico e também imaterial?

Luca – Para responder devidamente, eu deveria ser eterno. Por enquanto, me limito a concordar com o antropólogo Marc Augé, quando diz que a nossa época não poderá produzir ruínas porque não tem mais tempo. Somos vítimas complacentes da cultura do descartável.

“O Brasil sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar o próprio passado”

Por que o Brasil seria, como você diz, uma alternativa libertadora devido à “vocação congênita de país do futuro”? Por que você sente isso a respeito do Brasil e não sente, por exemplo, por outros países da América Latina, todos eles jovens, já que os colonizadores destruíram a maior parte do que havia antes? O que é diferente aqui?

Luca – Naturalmente, a ideia do Brasil como “país do futuro” não é de minha autoria, mas há uma ilustre tradição secular atrás. Porém, acho muito difícil dar uma resposta satisfatória à sua pergunta. Explicar racionalmente e numa forma convincente os motivos dessa minha predileção me levaria a dizer banalidades ou a cair em lugares comuns, talvez correndo o risco de ofender outros povos latino-americanos. Tudo no Brasil é diferente. E com isso não quero dizer que tudo seja melhor ou pior que no resto do continente. Poderia argumentar essa diferença numa perspectiva histórica, cultural ou sociológica, mas isso não explicaria o meu sentimento pelo Brasil. Um aspecto interessante é que também a maioria dos italianos percebe essa diferença do Brasil com relação à America Latina numa forma muito clara e quase instintiva. Como resposta posso contar-lhe uma situação pela qual já passei e que acho bastante significativa. Cada vez que aqui na Itália, por motivos diferentes e nos contextos mais variados, devo explicar que sou um estudioso da cultura brasileira e que com um certa frequência viajo para o Brasil, assisto sempre à mesma reação. O interlocutor me olha com o mesmo jeito alusivo, ensopado por uma inveja mal disfarçada, saindo com comentários do tipo: “Você sabe tudo!”, “Você é o grande malandro”, “Eu não entendi nada na minha vida”, “Eu também deveria ter seguido o seu caminho”. Com meus colegas, especialistas de outras áreas da América Latina, a reação geralmente é entre a perplexidade e a interrogação: “Que interessante! Mas por que você resolveu ir até lá?”.

Qual é a sua percepção do Brasil? Ou, melhor, qual é a sua percepção do Rio de Janeiro, já que o “seu” Brasil é o Rio de Janeiro?

Luca – Eu sou a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta porque gosto demais do Rio de Janeiro e, portanto, qualquer afirmação minha seria viciada por uma parcialidade tão descarada que acabaria me deslegitimando. Como todas as pessoas apaixonadas não posso ser objetivo quando falo do objeto de amor. No Rio eu quero conscientemente ser seduzido, que é também a melhor disposição para ser iludido, eu sei disso, mas a cidade é apaixonante e não tenho como resistir. Sou um caso tão desesperador que, quando estou em Roma, até sinto falta daquele trânsito horrível que toma a Lagoa nas horas de pico, daquele cheiro forte de xixi que invade as ruas durante o Carnaval, daqueles temporais que em poucos minutos inundam a cidade paralisando tudo e daquele medo constante de poder ser continuamente assaltado. Para mim, o Rio é sobretudo um lugar de sonho encontrado quando era criança e que mais tarde descobri existir no mapa. É lá que reencontro o tempo perdido da minha infância. Portanto, esse tempo é mítico, sacro e incontestável. Nessa dimensão suspensa tenho a sensação – e a ilusão – de viver no presente um tempo eterno e, assim, no país do futuro consigo me descarregar do peso das ruínas.

Que ponte você faz entre o Brasil e a Itália, Roma e o Rio?

Luca – Até pouco tempo atrás eu tinha uma teoria para explicar o Brasil. Dizia que Roma é como o Rio, Milão como São Paulo e Nápoles como Salvador. Um dia uma amiga mineira me perguntou como ficaria se colocasse Belo Horizonte dentro dessa equação. Aí deu branco! (risos) Sendo o país do futuro, o Brasil se relaciona a um tempo que está banido na Itália. Em termos de identidade, ele tem um problema contrário ao nosso. Sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar – e legitimar – o próprio passado. A saída foi a construção de uma identidade nacional baseada mais no espaço e na geografia que no tempo e na história. Na Itália tudo pretende ser o “mais antigo do mundo” – o teatro mais antigo, a igreja mais antiga, a universidade mais antiga, etc –, enquanto no Brasil triunfa a retórica do “maior do mundo”. Nesse gigantismo natural que não depende da presença do homem, o povo brasileiro é chamado a expressar a próprio valor. Daí vem esse ufanismo recorrente baseado nos primados de grandeza: o maior estádio, a maior hidrelétrica, o maior shopping, o maior produtor disso, o maior exportador daquilo, etc. Dentro dessa visão, o que conta é só a quantidade. E isso pode ser muito arriscado, sobretudo em termos sociais de longo prazo, porque acaba narcotizando o sentido crítico do povo, que começa a avaliar a própria existência só em termos quantitativos. Um gigante sem consciência sempre será facilmente vulnerável, como demostrou Ulisses contra Polifemo (episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses vence o ciclope Polifemo cegando seu único olho depois de embriagá-lo).

“O futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres”

Que tipo de consequência pode se esperar dessa visão de que tudo se resolverá num suposto dia seguinte?

Luca – Falando das cidades americanas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss comentou que elas vivem febrilmente uma doença crônica. São sempre jovens, sem nunca gozar de saúde. Em 1935, ele visitou São Paulo e ficou maravilhado pelas “precoces devastações do tempo”. Penso que o Brasil tem um pouco dessa imagem do jovem doente. Nesses anos em que estive no Brasil eu vi um país sempre em obras, sempre envolvido em grandiosos projetos a serem realizados no futuro e que, graças a essa esperança, conseguia cotidianamente ignorar tanto os entulhos que sobraram do fracasso dos projetos anteriores quanto a persistência de graves problemas crônicos. O que mais me chama a atenção é a capacidade que o povo tem de se acostumar com quase qualquer coisa que o presente lhe propõe: violência, injustiça, corrupção, etc. Não é aceitação nem resignação, mas é a consequência de uma fé ilimitada e incondicionada na utopia do futuro que, talvez, seja para muitos a única maneira de sobreviver.

Na política também?

Luca – Na política em geral domina a idéia de que o Brasil é um país jovem e que, assim sendo, os problemas e os erros do presente em alguma medida podem ser tolerados enquanto “pecados da juventude”. Importa apenas o futuro glorioso que está na frente. E até lá o Brasil terá sempre o álibi do novato, do emergente. O fato que o slogan “Pra frente Brasil” ainda hoje seja usado pelos políticos é muito significativo. Se o Brasil não tivesse a obrigatoriedade do voto, com certeza assistiríamos a um filme bem diferente. Atualmente, poucos países no mundo adotam esse sistema e nessa pequena lista não aparece nenhuma das grandes democracias. A companhia teatral não está mais preocupada com a qualidade da comédia quando sabe que a casa está sempre cheia.

Você se refere à ultima campanha eleitoral, que elegeu Dilma Rousseff?

Luca – Estou me referindo de forma mais geral ao funcionamento do sistema político brasileiro, isto é, aos nexos entre os mecanismos para a criação do consenso, a composição do eleitorado e os programas de governo, independentemente do time que ganhou nessa eleição ou nas anteriores. Existe um problema estrutural nas regras do jogo que nenhum dos jogadores, sejam vencedores ou perdedores, têm interesse em mudar. A Dilma é apenas uma das soluções que esse sistema corretamente admite.

Você acompanhou o governo Lula e esta última eleição? O que você viu?

Luca – Sinceramente, eu não daria muita importância ao baixo nível do debate na última campanha eleitoral. Na política o transformismo paga mais que a coerência. Nesse segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra não teriam hesitado em lançar uma campanha feroz pela abolição do churrasco se tivesse sido decisivo o voto dos vegetarianos. A busca do consenso é sempre prioritária à perseguição do bem da nação – e isso, claro, não só no Brasil. Campanha eleitoral é aquela festa de sempre em qualquer lugar do mundo. Discurso de político aos eleitores é tão confiável quanto as promessas de um homem quando faz um pedido de casamento. No circo dos horrores da política italiana de hoje encontram-se exemplos excepcionais. Quanto ao Lula, ele foi eleito como presidente e saiu do Planalto como um grande herói do povo, atuando com sucesso na fórmula de um “populismo light”, que lhe garantiu índices de consenso extraordinários, sobretudo nas faixas de baixa renda. Acho que, afinal de contas, cada cidadão brasileiro, independentemente da orientação política e do nível social, pode estar orgulhoso de ter tido um presidente como Lula. E eu também, durante esses oito anos, enquanto estudioso e amigo do Brasil, tive o privilégio de compartilhar um pouco desse orgulho tanto na Itália quanto no Exterior. Claro, Lula cometeu muitos erros, alguns até de uma certa gravidade. Não vou negar que existem várias decisões com as quais absolutamente não concordo, sobretudo na política externa.

Como por exemplo…

Luca – Penso no flertezinho com o Irã e na tentativa de legitimá-lo internacionalmente; na defesa do Cesare Battisti e nas declarações do ministro Tarso Genro sobre a Itália; no silêncio sobre a violação dos direitos humanos em Cuba e na negação de asilo aos dois boxeadores cubanos durante os jogos panamericanos; na cooperação militar com a China e, consequentemente, na decisão de alterar o voto de condenação à China no Conselho de Direitos Humanos da ONU; na aproximação com o ditador Teodoro Obiang da Guiné Equatorial, em nome do comércio exterior e do petróleo; na distribuição de camisas da seleção brasileira aos chefes de Estado durante o G8 sediado em L’Aquila, sem entender que a celebração da vitória da Copa das Confederações naquele clima de consternação geral resultaria inoportuna e ofensiva para as vítimas do terremoto. O elenco poderia continuar também no plano da política interna, mas errar é normal para quem a cada dia deve tomar decisões para uma coletividade de quase 200 milhões de pessoas. Aliás, talvez uma grande parte dos brasileiros não dê a menor importância aos fatos que citei. Com a política externa não se ganham as eleições, ao menos que o país esteja em guerra. Apesar de tudo, acredito que o grande mérito de Lula foi o de não ter repetido muitos dos erros trágicos que seus predecessores cometeram teimosamente por décadas. E isso já foi suficiente para fazer do Brasil um país melhor.

Você se referiu algumas vezes à crença do Brasil como eterno “país do futuro”. Mas hoje começamos a ouvir, em alguns meios, que o futuro chegou. Você, que nos olha de fora mesmo quando está dentro, sente isso? Se o futuro chegou, você consegue arriscar algumas hipóteses do que muda no nosso imaginário do país e de nós mesmos?

Luca – Isso acontece ciclicamente no Brasil, com a mesma frequência com que em outros países se anuncia o fim do mundo. Vozes mais ou menos intensas de que o futuro tinha chegado já circularam durante o Estado Novo, no anos JK e na ditadura do general Médici. Não é uma novidade. Agora, boa parte do país é atravessada por uma euforia infantil devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A política e a mídia alimentaram a idéia de que estes dois eventos têm o poder mágico de resolver a maioria dos problemas do país. Essa ilusão é contagiante. Um trem-bala, uma estação do metrô, um aeroporto maior e um estádio reformado são suficientes para provar que o futuro chegou? O povo deveria ser bem mais exigente. Acho que o futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres, onde um número assustador de crianças vive nas ruas ou trabalha em vez de ir à escola, onde duas das maiores empresas são a prostituição e o narcotráfico. Mas isso é papo de gringo…

“O Brasil se tornou um lugar de sonho para onde fugir”

Falando em gringo, como você descobriu o Brasil?

Luca – A minha descoberta do Brasil concide com as primeiras lembranças que guardei da infância. Meu pai tinha uma amigo, piloto da Alitalia, que era apaixonado por música. Cada vez que fazia escala no Brasil, ele trazia para nós um disco de presente ou, quando tínhamos menos sorte, ele gravava numa fita o disco que tinha comprado para ele. João Gilberto, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Jorge Ben eram algumas daquelas vozes misteriosas, vindas de um país longínquo, que meu irmão e eu ouvíamos ininterruptamente. Tínhamos a certeza de que os intérpretes daquelas músicas não eram propriamente cantores, mas nossos companheiros de brincadeiras. Outros meninos, talvez um pouco mais velhos, que de um lugar indefinido chamado “Brasil” pediam que fôssemos seus cúmplices e que escutássemos em silêncio os segredos e as histórias que vinham nos sussurrar. Apesar de eles não se dirigirem a nós em italiano, conseguíamos entendê-los igualmente, cada vez numa forma diferente – afinal, quando existe uma amizade é possível se entender mesmo sem falar o mesmo idioma. Meus pais também adoravam aquelas músicas e, de vez em quando, organizavam festas de Carnaval em casa convidando os amigos. Era tudo muito surreal, todos cantando numa língua que não entendiam. Meu irmão e eu trocávamos os discos na vitrola e ficávamos olhando os adultos enlouquecidos. Para nós era uma grande alegria porque podíamos ir dormir mais tarde.

E os convidados, o que achavam desse carnaval?

Luca – Entre os convidados, quem merecia destaque era um casal gay muito amigo da minha família que morava no mesmo prédio. Osvaldo era rico, feio, culto e mal humorado. Elio era exatamente o contrário: de origem humilde, bonito, sem cultura e sempre alto astral. Nessas festas o Elio vinha vestido de mulher e o Osvaldo de Pierrot choroso, com uma lágrima pintada no rosto. E os dois sempre brigavam por causa do Brasil! (risos) Quando ouvia um samba-enredo, o Elio ficava possuído e começava a jurar que na manhã seguinte compraria uma passagem para o Rio. E o Osvaldo ficava danado!! Nossa! (risos) O sonho do Elio era passar o Carnaval no Brasil e desfilar nas escolas. Eram cenas hilárias, com os dois gritando e berrando e todo mundo rindo até chorar. Eu não entendia porque os dois brigavam, mas a partir daí ficou aquela idéia do Brasil como uma obsessão, como um lugar de sonho para onde fugir. Lembro que uma frase recorrente do Elio era: “Um belo dia chuto o balde e fujo pro Brasil.” Ele faleceu dois anos atrás e nunca conseguiu visitar o Brasil. Até o fim da sua vida, cada vez que a gente se encontrava, ele sempre me fazia mil perguntas sobre o Rio e o Carnaval, como quem estivesse pensando em organizar uma viagem daqui a pouco. O Osvaldo já não berrava mais, mas sempre olhava muito feio para ele.

Quando você desembarcou no Brasil concreto pela primeira vez houve um choque entre imaginação e realidade?

Luca – Minha primeira vez no Brasil foi em 1999, junto com meu irmão, e foi totalmente hilária. Na época eu estava finalizando a minha tese de graduação sobre o uso das metáforas bíblicas nos cronistas do Novo Mundo e tinha ganhado uma bolsa de estudo para pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lembro sobretudo do choque climático. Viajamos em julho, trocando o tórrido verão romano pelos trópicos, sem imaginar que nos trópicos as temperaturas não são sempre “tropicais”, no sentido estereotipado que a gente atribuía a esse adjetivo. Partimos completamente desprevenidos porque estávamos indo para um país que, pela fantasia, frequentávamos desde a infância. Na mala só tínhamos colocado bermudas, sungas, camisas de mangas curtas e protetor solar. Naquele dois meses choveu muito e fez um friozinho bastante violento. Para enfrentar a emergência tivemos de comprar roupa pesada. Às 17 horas já era escuro e isso para nós era inaceitável num país tropical! Mesmo com frio e sem entender quase nada adoramos a cidade. Não tínhamos outra opção, porque aquele lugar tinha para nós um fortíssimo valor emocional e afetivo que invalidava qualquer capacidade crítica. Voltamos para Roma com o protetor solar ainda lacrado, mas com os corações já completamente apaixonados pelo Rio.

Quantas vezes você voltou, desde então?

Luca – A partir de 1999 voltei quase todos os anos, ficando dois ou três meses. Durante o doutorado era bem legal porque dava para ficar direto, por muito mais tempo. Agora, com os compromissos da faculdade, é tudo mais complicado. No ano passado nem pude ir ao Brasil. Tenho desfilado nas escolas de samba sempre que vou e sempre em mais de uma escola. A Estácio (de Sá) é uma constante, seja no grupo especial ou no grupo de acesso. As outras se alternam: Império, Caprichosos, Mangueira, Salgueiro, União da Ilha, Porto da Pedra. Digamos que sou um “viciado do samba”: qualquer escola que oferece a possibilidade de desfilar… eu vou.

Por quê? Como é o “seu” Carnaval?

Luca – Meus primeiros carnavais cariocas foram vividos inconscientemente na minha casa, em Roma, durante a infância. Assim, passar o Carnaval no Rio tornou-se uma maneira de alimentar uma espécie de tradição de família. Os samba-enredos sempre tiveram um poder emocional muito forte para meus pais, meu irmão e eu. Quanto ao “meu” Carnaval no Rio, ele tem um dimensão plural e coletiva e, portanto, seria mais correto que eu fale do “nosso” Carnaval, aquilo que passo em companhia dos meus amigos. A cada ano chegamos ao dia do desfile absolutamente convencidos de que a nossa escola vai ganhar, mas a apuração pontualmente nos contradiz. Então, começamos a gritar que foi um escândalo, que a escola foi roubada, que chegou a hora de acabar com a nossa inglória carreira de foliões e que nunca mais iremos desfilar. Mas já em agosto, timidamente, voltamos a falar da escolha do novo enredo e dos esboços da fantasias… Nos últimos anos comecei a tocar na bateria de alguns blocos de rua. O problema inicialmente foi que eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Até fiz um cursinho para aprender o básico do tamborim. Mas, como alertava Noel Rosa, “o samba não se aprende no colégio”. Então, mudei de estratégia. Pensei que a única solução fosse escolher um instrumento pouco difundido que quase nenhum bloco tivesse. Foi assim que comecei a tocar o agogô. Ainda hoje toco mal pra caramba, mas graças à falta de concorrência sou sempre muito bem-vindo nas baterias. Aliás, o fato de ser estrangeiro às vezes ajuda. Um dia um amigo me apresentou ao diretor de um bloco de uma maneira completamente maluca: “O rapaz aqui é “Luca do agogô”. Ele é italiano, nunca desfilou com a gente, mas em Roma já tocou para o Papa em São Pedro durante a missa do galo”. O diretor me olhou emocionado e me perguntou se eu tinha conhecido pessoalmente o Bento XVI! (risos).

Se o Rio surgiu para você como um lugar mágico para onde fugir, é isso o que é, em certa medida, ainda hoje? Neste sentido, você foge do quê?

Luca – Geralmente se foge “de” um lugar e não “para” um lugar. No meu caso ficou a idéia infantil de que o Brasil é um destino que se alcança pela fuga, e não por uma simples viagem, mas sem que a partida implique escapadas ou evasões.

Você quer morar no Brasil? Como seria viver no lugar mágico de fuga? Não teme não ter mais para onde fugir?

Luca – Queria morar aí, mas sempre com uma passagem de volta para Roma na mão, como forma de preservar a magia do lugar e não renunciar à possibilidade de fugir de novo. Claro que tenho medo – e muito – de perder o meu lugar de fuga. E nem faço questão de averiguar esse risco. A experiência de quem me precedeu não foi promissora. O austríaco Stefan Zweig, cuja fama se liga principalmente ao livro Brasil, um país do futuro, foi vítima da mesma utopia que o seduziu e que contribuiu para sustentar. Para fugir do nazismo Zweig teve de enfrentar uma longa peregrinação pela Europa e pela América. Desembarcou no Brasil em 1936, quase por acaso, e foi logo amor à primeira vista. Descreveu a cidade do Rio de Janeiro como uma das impressões mais poderosas que experimentou na vida, uma mistura de fascinação e estremecimento causada pela paisagem e pelo tipo de civilização encontradas. Os destinos sucessivos foram Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, até resolver se mudar definivamente para o lugar dos seus sonhos, em 1941. Foi morar em Petrópolis, mas enquanto os meses passavam e a chance de voltar para a Europa tornava-se sempre mais improvável devido à extensão do conflito mundial, ele entrava no túnel de uma depressão progressiva. No ano seguinte, suicidou-se em pleno Carnaval, junto com a esposa. No dia anterior tinha descido ao Rio para assistir aos desfiles na Praça Onze. Será que eu estou fugindo do Berlusconi sem sabê-lo? (risos)

Quando está no Brasil, você tem saudade da Itália?

Luca – Em Roma sou capaz de rodar a cidade inteira em busca de um feijão preto importado ou de uma goiabada em lata. Eu, que quase não bebo, até cheguei a comprar cachaça só para sentir o cheiro. No Brasil revira-se o imã da saudade e começo a comprar compulsivamente macarrão. Depois de muita procura, achei até uma loja que vende uma marca importada de Nápoles. Nunca como tanto spaghetti – e faço questão da grafia italiana da palavra – como quando estou no Rio. (risos)

“Chico Buarque é um genial inovador da língua”

Por que você escolheu Chico Buarque como tema de estudo? Por que o Chico e não outro?

Luca – Estudar Chico Buarque foi uma decorrência natural do meu interesse pela literatura e pela música brasileira. Muitas músicas do Chico ficaram gravadas inconscientemente na memória sonora da minha infância. Mas não foi só a vontade de resgatar esse baú de lembranças musicais que me levou ao estudo da obra dele. Afinal, Chico Buarque não era o único artista brasileiro que a gente ouvia em casa. Minha primeira pesquisa no âmbito da literatura brasileira foi sobre os cronistas do século XVI e XVII. E daí fui me aproximando devagarinho da contemporaneidade. Para chegar ao estudo de Chico Buarque demorei bastante. E isso foi bom, porque enfrentar a obra dele não é fácil. Exige muito da gente. Para o crítico é um fascinante desafio interpretativo cheio de obstáculos e armadilhas.

Na sua opinião, qual é o significado de Chico Buarque para a cultura brasileira?

Luca – Na minha opinião, Chico Buarque representa uma das figuras imprescíndiveis da cultura brasileira contemporânea. Não é apenas um músico extraordinário, que avança idealmente no mesmo caminho iniciado por Villa-Lobos e continuado depois por Tom Jobim, mas é também um genial inovador da língua portuguesa que podemos colocar ao lado de clássicos consagrados como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Antônio Cândido definiu Chico Buarque como “uma grande consciência, inserida num enorme talento”. Cada vez que sai um novo disco ou romance do Chico, a gente se dá conta de que esta consciência e este talento têm um tamanho muito maior do que se imaginava até aquele momento. Chico é um gênio em permanente expansão e evolução e por isso não deixará nunca de nos surpreender com a sua música e com a sua literatura. O estudo da obra dele é um exercício tão prazeroso e estimulante que se tornou o objeto principal das minhas pesquisas. E, assim, virei um “chicólogo”.

Como você começou a se tornar um “chicólogo”?

Luca – Comecei a me dedicar à obra de Chico Buarque durante o doutorado em Estudos Americanos na Universidade de Roma Tre. O título da minha tese era “Francisco-Francesco. Chico Buarque de Hollanda e a Itália”. Trata-se de uma reconstrução da relação do Chico com a Itália, a partir da estadia de 1953-54 até hoje, tentando um diálogo entre a vida e a obra. Recolhi muito material inédito ou pouco conhecido na Itália e no Brasil, como fotos, gravações, recortes de jornais, correspondências, etc. Ao mesmo tempo, tive o privilégio de entrevistar várias pessoas extraordinárias, famosas ou não. Além do próprio Chico e de seus familiares, pude contar com a colaboração de Sergio Bardotti, Toquinho, Ennio Morricone, Elza Soares, Lucio Dalla, Sergio Endrigo, só para citar os mais conhecidos. Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista humano antes que intelectual.

Você está escrevendo sobre o romance Budapeste. Pode contar um pouco sobre suas percepções?

Luca – A história de José Costa (personagem do livro) me ensinou que há sempre a possibilidade de plágios e roubos no mundo editorial. (risos) De repente alguém lê essa entrevista e resolve contratar um ghost writer para escrever um livro baseado nas minhas respostas. Já pensou nisso? A associação dos escritores anônimos é mais ativa do que o romance faz imaginar! (risos) E visto que ainda não assinei um contrato com uma editora, tenho que ser prudente nos adiantamentos. Em síntese, a minha pesquisa aborda o Budapeste focalizando-se no estudo do espaço, da intertextualidade e da linguagem. Trata-se de um trabalho de crítica literária que enriqueci também com as vozes das pessoas que entrevistei, inclusive aquela do próprio autor. O elemento recorrente nos vários níveis da análise proposta é a presença de um ménage à trois criativo entre o Brasil, a Hungria e a Itália. O Budapeste se tornou uma espécie de leitura obsessiva com a qual, daqui a pouco, vou celebrar seis anos de convivência. E o barato é que o livro ainda continua me surpreendendo. Por causa dele até me aproximei da cultura húngara e – ai de mim! – também um pouco do idioma, mas só o pouco suficiente para concordar com José Costa de que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Nos últimos anos já re-percorri todos os passos de José Costa no Rio e, provavelmente, na próxima primavera vou fazer uma breve viagem para Budapeste, apesar de o Chico ter escrito o romance sem visitar a cidade antes.

O quanto você se identifica com esse personagem entre duas cidades, duas línguas?

Luca – Na verdade, eu acabo me identificando com todos os personagens, até com os mais chatos, antipáticos e revoltantes. Acredito que essa tendência seja um elemento constituinte do processo de leitura. Afinal, os personagens de ficção têm a chance de sobreviver apenas graças a nós. Uma vez que fechamos um livro, eles não se extinguem, mas ficam conosco, iluminando com a própria sombra a nossa leitura do cotidiano. Com efeito, a vida de um personagem de ficção completa e complica a nossa experiência do mundo real. Cada um de nós, quando lê um livro ou escuta uma música, mergulha na história e nos sentimentos dos personagens e, daí por diante, começa a ver o próprio mundo de uma forma mais ampla, que abrange também a perspectiva deles. Esse processo de identificação acontece independentemente do sexo, da idade, do caráter ou do nível social do personagem. Graças à obra de Chico Buarque entramos em contato com uma galeria de personagens – e também de condições e sentimentos – extremamente variada. Nos tornamos íntimos de pedreiros, malandros, emigrantes, vagabundos, atrizes, sambistas, pivetes, prostitutas, favelados… E, ao mesmo tempo, assistimos a todas as possíveis declinações do amor – da paixão e da ternura até a raiva e a violência. Nessa lista, figura naturalmente também o José Costa, com a sua incapacidade de identificar-se plenamente com uma cidade, uma língua e uma cultura. No meu caso, o Budapeste oferece um acervo extraordinário de situações e cenas que recorrentemente desfruto para elaborar a percepção do que estou vivendo. Não posso negar, por exemplo, que no Rio as minhas caminhadas pela orla ficaram irremediavelmente marcadas por aquelas do José Costa. Sem que eu queira, suas palavras começam a bater na minha cabeça, misturando-se em harmonia com outras vozes e imagens que já encontrei em outros livros, músicas, filmes ou em experiências anteriores que já vivi na vida real. Os personagens de ficção têm a capacidade de nos surpreender quando menos esperamos, assim como acontece com as lembranças das pessoas que compartilharam conosco um trecho da existência.

Quando você virá ao Brasil novamente? Neste Carnaval?

Luca – Ainda não tenho uma previsão. De qualquer forma, outro dia me ligou meu amigo Adilson e me disse que a Estácio está linda e que vai ganhar o Carnaval, com certeza absoluta!

(Publicado na Revista Época em 15/11/2010)

Em nome do bem se faz muito mal

As tentativas de censurar a literatura são mais graves e menos isoladas do que parecem

Apenas entre agosto e outubro deste ano foram três tentativas de censurar a literatura. Três que se tornaram conhecidas, podem ter ocorrido outras. A mais rumorosa delas foi o parecer do Conselho Nacional de Educação recomendando que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, fosse banido das escolas públicas. Ou apresentasse notas explicativas alertando sobre a presença de “estereótipos raciais”. Os membros do CNE viram racismo na forma como a personagem Tia Nastácia é tratada no livro. Dois meses antes, em agosto, pais de estudantes do ensino médio da rede pública de Jundiaí, no interior de São Paulo, protestaram contra o uso do livro “Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Segundo eles, o conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, usa “linguagem chula” para descrever atos sexuais narrados em cartas recebidas por uma dona de casa. Ainda em agosto, mais uma polêmica. Desta vez por causa do livro “Teresa, Que Esperava as Uvas”, de Monique Revillion, também destinado ao ensino médio. No conto “Os primeiros que chegaram” a autora descreve um sequestro com estupro e assassinato.

É bastante diferente quando a tentativa de censurar a literatura parte de pais ou pedagogos – indivíduos, portanto – e quando é encampada por um órgão que tem a tarefa de pensar a educação brasileira e ajudar a aprimorá-la com suas análises e recomendações. A má qualidade da educação na rede pública, como todos sabemos, é uma das maiores, senão a maior tragédia nacional. Entre as causas da indigência educacional brasileira está o fato de que os brasileiros leem pouco ou nada leem. Boa parte deles porque não tem acesso a bibliotecas, triste realidade que os programas governamentais têm tentado mudar com menos empenho do que seria necessário.

Quando soube das tentativas de censura, minha primeira reação foi rir. Era tão absurdo que parecia mesmo piada. Percebi então que enquanto nós rimos, eles proíbem. Esta última polêmica atingiu uma repercussão tão grande, capaz de fazer o ministro Fernando Haddad manifestar-se pedindo uma revisão do parecer, apenas por tratar-se de Monteiro Lobato, um autor consagrado. Quem teve a sorte de conhecer Tia Nastácia, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília e todos os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo deve ao autor uma das partes mais saborosas de sua infância. Tão deliciosa quanto os bolinhos da Tia Nastácia, aliás. Nos outros dois casos, os protestos e a repercussão tiveram um volume menor.

É assim que o autoritarismo vai se insinuando em nossas vidas, pelas bordas. Vai nos comendo aos poucos e um dia se instala em nosso cotidiano como se fosse um dado da natureza. Acontece quando a equipe responsável pela seleção dos livros depara com um conteúdo que já provocou polêmica antes e, para se poupar de problemas, acaba optando por uma obra mais palatável. Pronto, o livro em questão, apesar de sua reconhecida qualidade, jamais chegará às bibliotecas. Ou quando o professor na sala de aula, que já é criticado por quase tudo, prefere abster-se do risco. Em vez de escolher o melhor livro, opta por aquele que não causará a reação raivosa de nenhum pai ou mesmo uma discussão acalorada na classe. Pronto, os alunos só terão acesso a textos que nada provocam. Ou ainda quando algum escritor começa a se policiar nos termos que usa e nos temas que aborda para ter alguma chance de ser selecionado pelos programas de governo. É assim, muito mais pelo que não é dito, pelos caminhos subjetivos, que a vida se empobrece e o controle se instaura.

A História nos mostra que censurar livros e controlar o que é escrito estão entre os primeiros atos de regimes autoritários. Vale a pena revisitar a obra de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, um pequeno livro essencial que possivelmente o CNE não aprovaria.

Nas democracias, o autoritarismo costuma vir embalado no discurso do bem. Que é, de longe, o mais insidioso e difícil de identificar. Se o CNE afirma que Tia Nastácia é tratada de modo preconceituoso, como vamos nos posicionar contra a eliminação de algo tão abjeto como o racismo sem nos sentirmos boçais? Só mesmo porque o autor se chama Monteiro Lobato. Mas e se fosse um escritor menos conhecido, ainda que brilhante? Será que tantos teriam a coragem de defender a sua obra?

É preciso dizer que o CNE nega ter cometido qualquer ato de censura da obra de Monteiro Lobato. Ele apenas “recomenda” que todas as obras com “preconceitos e estereótipos”, como “Caçadas de Pedrinho”, não sejam compradas nem distribuídas pelos governos. Para o CNE, isto não é banimento. No caso de clássicos como os livros de Monteiro Lobato, se insistirem em usá-los nas salas de aula, o CNE sugere que seja feita uma nota explicativa alertando para seus pecados. Interpretar esta recomendação bem intencionada como uma tentativa de censura seria apenas mais uma das incontáveis “manipulações da imprensa”.

Entre os argumentos utilizados para defender o parecer está o de que os professores da rede pública não teriam preparo para discutir uma questão complexa como o racismo. Ou para contextualizar a época de Monteiro Lobato assim como o Brasil que ele retrata. Surpreende-me que nenhum professor tenha se manifestado contra uma generalização que poderia ser interpretada como preconceito. Mas, supondo por um momento que esta afirmação esteja correta, a saída seria banir todos os conteúdos que hoje são mal trabalhados nas salas de aula, de Monteiro Lobato à equação de segundo grau?

Neste mesmo rumo, acreditar que as crianças, por lerem “Caçadas de Pedrinho”, começariam a discriminar os negros nas ruas é no mínimo subestimá-las. É preocupante perceber que pessoas responsáveis por pensar e aprimorar a educação brasileira possam enxergar as crianças como meros receptáculos, vazios e passivos, sem capacidade de fazer relações, inferências e mediações. Se aceitarmos o argumento de que Tia Nastácia tem um tratamento racista na obra, sob os olhos de hoje e não da época de Monteiro Lobato, a atitude de um bom educador deveria ser a de calar as contradições e eliminar a oportunidade de debate?

Eu, que tive a sorte de ler toda a obra de Monteiro Lobato entre os 8 e os 9 anos e incrivelmente não me tornei racista, gostaria de dizer aos membros do CNE que mesmo a sua interpretação da personagem Tia Nastácia é pobre. Bem pobre. Mas a Academia Brasileira de Letras disse isso de uma forma muito melhor do que eu faria. Transcrevo aqui parte da manifestação da ABL, contrária ao parecer do CNE:

Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.

Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.

Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.

A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro”.

A única parte boa desta tentativa de censura foi me dar uma excelente desculpa para reler “Caçadas de Pedrinho” (Editora Globo) aos 44 anos e renovar minha gratidão a Monteiro Lobato pelo tanto de imaginação que me deu. Assim como comprar “Os cem melhores contos brasileiros” (Objetiva) para ler o texto de Ignácio de Loyola Brandão que provocou furor no interior de São Paulo. E de quebra ler Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Carlos Drummond de Andrade, Raduan Nassar, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, João Ubaldo Ribeiro e todos os grandes da literatura brasileira que fazem parte da coletânea. Banir tal livro das escolas? Por favor, não!

O conto de Ignácio de Loyola Brandão é excelente. Ótimo mesmo. Quando li a notícia de que alguns pais e estudantes queriam proibi-lo por usar “linguagem chula” na descrição de atos sexuais, estranhei. Afinal, tratava-se de adolescentes do terceiro ano do ensino médio, na faixa dos 17 anos. Neste mundo. Nesta época. Será que não seriam capazes de lidar com isso? Parece-me que, se não conseguem lidar com isso, então sim temos um problema.

Foi só ao ler o conto que formulei minha própria hipótese sobre a razão de tanto incômodo. Eu arriscaria dizer que o que pode ter perturbado estes pais e estes filhos é uma outra realidade que o conto desnuda, esta sem “linguagem chula”, com a qual muitos podem se identificar. Quem ler o conto, talvez concorde comigo. É verdade que é sempre mais fácil proibir aquilo que nos produz incômodo do que olhar para dentro e tentar compreender com honestidade os nossos porquês. Perturbar, incomodar e até transtornar o leitor, em minha opinião, são qualidades num texto.

Não encontrei o “Teresa, que esperava as uvas” (Geração Editorial), de Monique Revillion. Infelizmente. Pelo que li nos jornais, o conto da discórdia chocava pela crueza da descrição da violência. De novo, o livro era usado como material de apoio para estudantes do ensino médio, com idades a partir de 15 anos. Houve quem acreditasse, com bastante estardalhaço, que os adolescentes não seriam capazes de lidar com temas como a violência urbana e a sexual. Não compreendo como não ocorreu a estas mentes privilegiadas proibir logo todo o noticiário, que nem mesmo pode alegar em sua defesa que é ficção. Que os jornais e revistas sejam vendidos nos fundos das bancas, junto com os filmes pornôs.

Tudo isso – sempre – em nome do bem. Com as melhores intenções.

Sou filha de professores de português e literatura que dedicaram boa parte da vida a dar aulas na rede pública. Meus pais, que me ensinaram a amar os livros, se esforçaram muito para que tivéssemos uma biblioteca em casa. Na minha família as roupas eram remendadas e herdadas dos primos mais velhos. Se sobrava algum dinheiro era sempre para livros, para a educação. Numa cidade pobre em bibliotecas e com bibliotecas pobres, a nossa era uma das melhores. E foi lá que amigos meus e de meus irmãos, assim como alunos dos meus pais, se serviam livremente das letras. Volta e meia encontro alguém que me interrompe o passo na rua para me dizer que a biblioteca da minha casa foi fundamental na sua vida.

Devo a esta lucidez e a esta biblioteca boa parte do que sou e consegui fazer de mim. Assim como a Lili Lohmann, a moça da livraria cuja história já contei aqui. Nunca, em nenhum momento, nem meus pais nem Lili dificultaram o acesso a um livro. Eu lia o que bem entendia porque eles sabiam que esta busca pertencia a mim, era determinada pelos meus anseios e pelos meus incômodos, pela minha curiosidade que só aumentava. A viagem da literatura é talvez a travessia mais fascinante, importante e – ainda bem – sem fim da minha vida.

Eu era criança e já intuía que a literatura era o território do indizível. Nela cabia tudo o que era humano. Mesmo o feio, o brutal. Mesmo a covardia, a inveja, os sentimentos todos que a gente prefere dizer que não sente. A literatura, como as várias manifestações da arte, é o não-lugar geográfico onde podemos lidar com nossos demônios sem que eles nos devorem. A literatura só é literatura se incontrolável.

Tenho medo que os bem intencionados do politicamente correto inventem a maior ficção de todas, que é um homem sem conflitos, sem pequenezas e sem contradições. E então a literatura, que não será mais literatura porque deixará de estar encarnada na vida, ficará reduzida a uma casca vazia e sem ressonância onde não nos reconheceremos. Porque se estes iluminados se decidirem a revisar a literatura sob a ótica do que é politicamente correto nesta época, podem começar a alimentar sua fogueira com a Odisséia de Homero. E dali em diante não sobra nada. Em sua sanha não devem se esquecer de incluir a Bíblia – aliás, como ainda não pensaram nisso?

É sério, muito sério. E nenhum de nós deve se omitir quando tentarem arrancar o cachimbo do Saci Pererê ou submeter as bruxas dos contos de fadas a um tratamento a laser para eliminação das verrugas. Sobre isso sugiro ler “Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento”. Percebam bem quantos absurdos nos assediam, nas mais variadas instâncias, em nome do bem. Estamos conseguindo resistir, mais ou menos, e até colecionamos algumas vitórias parciais, como a reversão da censura ao humor nestas eleições. Mas é preciso se manter vigilante nesta luta de resistência.

Não sei o que pensam vocês. Mas eu, quando vejo aquelas pessoas com seu par de olhos angelicais, anunciando que ainda que seja contra a minha vontade estão fazendo o que fazem para o meu bem, não hesito. Corro.

(Publicado na Revista Época em 08/11/2010)

Dilma-lá!

Faz alguma diferença ter uma mulher na presidência?

Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.

Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.

Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.

Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.

Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.

Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.

Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.

Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.

Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.

Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.

Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?

Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.

Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.

Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.

Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza”. Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.

O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.

Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?

Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.

Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.

Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.

Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.

Tomara que a gente goste.

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P.S. 1 – Em algumas semanas, uma coluna é pouco diante dos temas factuais sobre os quais eu gostaria de escrever. Foi o caso da semana que passou, pródiga em barbaridades. Como precisei escolher, queria deixar aqui meu repúdio (e meu horror) à censura de Monteiro Lobato nas escolas públicas pelo Conselho Nacional de Educação. E sugerir a leitura de uma coluna anterior na qual o psicanalista Mário Corso argumenta brilhantemente sobre a influência (nefasta) do politicamente correto em nossas vidas.

P.S. 2 – Outra indignidade foi o “rodeio das gordas”, promovido por estudantes da Unesp de Araraquara, no interior paulista. Se o que aconteceu é reflexo de várias mazelas atuais, inclusive a da educação, é também reflexo do preconceito que perpassa nossa sociedade, obcecada por uma ideia distorcida de saúde e por um modelo de beleza anoréxico. Em geral destilado em doses mais ou menos disfarçadas, neste caso o preconceito foi levado ao extremo e a uma atitude criminosa. Espero que não fique impune. Escrevi duas colunas sobre o tema que podem nos ajudar a refletir: Porca Gorda e O insustentável peso do ser.

Boa leitura e até a próxima!

(Publicado na Revista Época em 01/11/2010)

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