O bigode de meio metro

Por que João colocou 100 parafusinhos no rosto sem depilar seu orgulho

“Doutor, precisava que tu me quebrasses um galho.” João Alberto dos Santos Marques, 55 anos, exibia 25 fraturas na face e oito no nariz. Tinha levado um coice quando tentava convencer uma vaca a adotar um terneiro desgarrado na fazenda gaúcha de nome Cinacina. Havia passado uma noite inteira deitando sangue. E dizendo: “É só uma dorzinha qualquer, o tipo de um esfolão”. Desconfiava que a coisa “não era tão boa” porque a prótese dentária lhe escapava da boca, mas esta não era nem de longe sua maior preocupação. João também não gastava um segundo do seu tempo pensando no olho que tinha “saltado para fora” nem nas feições que se deformaram. O que estava em jogo naquele momento em que o mundo parou era muito mais vital que a integridade do seu rosto. A identidade, para João Marques, era dada por algo que continuava bem ali, tremulando sobre a sua boca, portentoso e lindo como sempre. “Doutor, o senhor podia me poupar o bigode?”

Cinco horas de operação depois, o cirurgião tinha instalado 100 microparafusos de titânio no rosto de João Marques sem tocar num fio do seu bigode. “Fiquei muito contente com o doutor!”, me disse ele dias atrás, quando o alcancei por telefone, lá para os lados da fronteira do Brasil com a Argentina, onde vive entre São Borja e Santo Antônio das Missões. Eu escutara a história da boca da sua irmã, que o acompanhou na cirurgia no Hospital de Caridade de Ijuí, minha terra de nascimento, e tinha ficado muito intrigada. O que é o bigode para este homem?

Fui saber. E João me contou em gauchês. Para esclarecer, o gauchês – assim como o gaúcho – não tem nada de homogêneo. Cada canto tem nuances e concepções de mundo medidas em lonjuras. O de João é o do gaúcho fronteiriço que anda mais sobre as quatro patas do cavalo que as suas próprias duas pernas. Que tem sangue mestiço de português com índio guarani. Que só tirou a bombacha e botou calça comprida no dia do casamento e até hoje se arrepende (da calça, não do casório, que fique bem entendido!). Que enrola o lenço vermelho dos maragatos no pescoço por “uma ideologia que é um sistema que vem desde os tempos do avô”. Que não gosta de praia, só de mato. Que diversão de fim de semana é laçar boi com os amigos. E que quando é obrigado a ir pra cidade – “Deus me livre!” –, assim que pode se atocaia com o chimarrão debaixo de um pé de árvore e por lá fica até a hora de ir embora.

Por que eu quis saber do bigode do João? Porque esse tipo de personagem ganha importâncias na literatura – e esquecimentos na vida real. Porque o gauchês do João é dele, mas também é nosso, ainda que eu seja uma gaúcha sem intimidade com o Pampa e você seja um paulistano da Vila Madalena ou um nordestino do Agreste, um ribeirinho amazônico ou um funcionário público de Brasília. Porque faz bem pra vida lembrar que enquanto tocamos a nossa lida urbana, o João está lá, alisando seu bigode com os dedos, o olhar fazendo um cafuné no horizonte. Porque me dá gosto contar o momento único em que um homem com a cara toda partida luta para salvar seu bigode – e o faz por intuir que na integridade dele está contida a inteireza do seu mundo. Porque acredito nas epopeias invisíveis – e a de João, se soubermos prestar atenção nos detalhes de sua fala, é salvar os pequenos saberes que fazem dele o que é.

Foi com muita gentileza que João Marques interrompeu a lida para me atender. Permitiu que eu abrisse uma janela e desse uma espiada em seu universo alicerçado sobre um bigode de meio metro.

Esta foi a nossa prosa. E, se ela é bem divertida, há mais nela do que parece à primeira vista.

– Me conta como é esse teu bigode, João!

– De uma ponta a outra tem meio metro. Do nariz para a direita, 25 centímetros. Do nariz para a esquerda, outros 25 centímetros. Por aqui não tem um bigode do tamanho do meu. Tu sabes? Eu coloco atrás da orelha!

– Sério?

– É, uma ponta em cada orelha.

– E por que tu deixaste um bigode desse tamanho?

– Sempre achei lindo bigode grande. Sou bisneto de português e tu sabes que português é apaixonado por bigode. Português sem bigode é quase como gaúcho sem bombacha.

– Não sabia disso…

– É… Na lógica é assim que funciona. Decerto tá no sangue esse negócio de bigode. Eu sempre fui cuidando desse lado da história. Tu sabes que já nasci velho. Se encontro três livros, um mais velho que o outro, eu pego logo o mais velho de todos. É isso. Nasci velho.

– E se tu perdesses o bigode na cirurgia?

– Deus te livre se o médico tivesse de tirar. Acho que eu não ia me conhecer mais. É da identidade minha, de índio primitivo. Não há o que me faça desistir desse bigode. Tu sabes que meu bigode tá em Roma?

– Roma?

– Tu sabes como é no interior. O bispo quando vem, crisma um monte de crianças de uma vez só. E eu tinha ganhado um afilhado nesse dia. Quando terminou a crisma, o bispo me disse: “Quero um particular contigo. Na primeira oportunidade que der, me tira um retrato porque tu me lembras muito meu avô, que tinha um bigode igual ao teu. Depois me manda pelo padre”. O padre é muito meu amigo, sabes, vem pescar e caçar aqui em casa. Tirei o retrato e no que deu na volteada estou em Santo Ângelo, onde o bispo mora. Pensei, com o retrato já no bolso: Vou acertar as contas com o bispo. Cheguei lá na casa do bispo, que agora tá aposentado: “Eu tenho um acerto, uma conta com o senhor. Casualmente vim acertar hoje”. O bispo gostou muito. Disse que ia pra Roma e levaria o retrato pro Papa orar por mim quando fizesse as orações. Nem sei se já foi, mas digo por aí que meu bigode tá em Roma.

– É verdade que tu estás num concurso de bigode?

– É um jogo.

– Como foi isso?

– O Altair, um amigo meu que tem um alambique e vende sua cachaça pelos municípios aqui da região encontrou esse homem em Itacurubi que também tem bigode grande, conhecido por Tio Nato. Este Tio Nato é um contador de causos, gosta de ligar pra rádio e contar anedota. É bem historiador ele. Pois fizeram um jogo de um capão assado (cordeiro desmamado e castrado) e uma carreira de cerveja. Quando fui operar, eu disse pro doutor que tinha este jogo e tinha um seguro. Se ele me cortasse o bigode eu achava que me pagavam o seguro, mas ia perder o jogo. O doutor então abriu uma exceção pra mim. E foi um sucesso a cirurgia, caso muito sério. Vinte e cinco dias depois eu já andava a cavalo no campo. Aí, quando meu amigo contou pro Tio Nato que o meu bigode de ponta a ponta tinha 50 centímetros, ele disse que já tinha perdido. Agora é só marcar de medir os bigodes e comer o capãozinho.

– Não tem nenhum bigode maior que o teu na região?

– Por aqui não tem um bigode como este meu. Mas parece que tem um rapaz lá no Itaqui que tem um bigode de 50 centímetros pra mais. Ele também gosta de coisas antigas, parece até que tem um museu. Tenho muita vontade de conhecer.

– E como tu cuidas do teu bigode?

– Nunca facilitei no cuidado com meu bigode. Digo pro rapaz que me faz a barba, de nome Joaquim, mas vulgo Quim, que me faça a barba caprichosamente, mas não mexa no bigode. Qualquer centímetro que crescer é lucro pra mim.

– Mas e o cuidado com ele em casa, pra lavar e tal…

– Tu sabes que não sou de ficar com muitos cuidados. Faço a higiene e às vezes uso um xampu pra ele ficar mais solto. Penteio com a mesma escova do cabelo. Eu não sou de torcer o bigode nem nada. Gosto de deixar à vontade. Ao natural, bem estendido. Acho lindo ao natural.

– E a tua mulher, a Ozana, gosta desse teu bigode?

– Ela aceitou normal, as gurias é que acham muito engraçado. É um troço quase que meio exótico, no bom sentido. Alguns amigos até usam essa expressão. Ah, mas deixou um bigode meio exótico. E eu sou muito bom de prosa e apesar de não ter grande estudo sou bom de argumento. Eu digo: Mas que esperança, meu amigo, se fosse verde ou encarnado podia ser exótico. Este bigode é do índio primitivo. Bigode igual a este meu tu só vês no túnel do tempo da Zero Hora (seção de memória do jornal gaúcho). E uns vêm até me elogiar porque sabem que estou dizendo não de brabo, mas porque é meu direito. Uns me batem nas costas e outros só encabulam.

– Me fala um pouco mais da tua vida aí na fazenda. Desde quando tu andas a cavalo?

– Desde os quatro, cinco anos. E até o dia de hoje nunca paguei um pra domar meus cavalos. Meus cavalos se deitam e obedecem ao comando da minha fala. Tenho retrato pra mostrar. Faço parto de vaca, faço até cesariana. Aprendi na lida bruta da vida. A melhor escola é a do mundo. E não é querer me gabar, mas tem veterinário que vem se aconselhar comigo qual é o mais prático, qual é o mais certo. Eles sabem na teoria, mas na prática quem sabe sou eu. Na lida campeira é touro criado, é cavalo, não é pra me gabar, mas aqui na vizinhança marcam dia pra ver quando vou poder capar lá pra eles. E até o dia de hoje nunca tive problema nenhum.

– E como é que tu fazes a castração do gado?

– Gaúcho mesmo não usa máquina, não usa burdizzo. O gado é capado à faca. Faca de ferro que é a melhor. Eu, quando vejo um índio desses de burdizzo debaixo dos pelegos, derrubando touro pra capar, eu tô fora, nem é comigo. Eu entendo mesmo e sei fazer essa lida bagual, do tempo antigo.

– E tu ainda comes os bagos do boi como no passado? Quando era criança eu assistia à castração e comia também, mas agora faz um tempão que não vejo isso.

– Faz parte da lida. Se o cara chega a não estar lá no costado da mangueira com um punhado de sal nem começamos a lida. É o primeiro que vai pra beira da mangueira. E tu sabes que é o viagra campeiro. É um revigorante de primeira linha. Assim como carne mal passada é outro que não é brinquedo, um estimulante fora de série.

– Então a mulherada fica feliz nesse dia?

– É…

– Mas por que tu não usas a máquina para castrar, por que achas tão importante fazer do jeito tradicional?

– Eu sei usar a máquina, mas não uso. Considero que é capa de colonial. E eu não sou colonial, eu sou índio do campo mesmo, gaúcho e bagual. Comigo tem de ser no sistema antigo.

– E o que é “colonial”?

– Colonial, como a gente costuma dizer e me desculpe pela expressão, é o índio já meio pendendo pro americanizado. Tá no campo porque pertence à classe povoera. Termo pejorativo nosso aqui, que não é nem a expressão certa, mas a gente diz. Meio americanizado, povoero e meio cowboy. Este nós consideramos colonial.

– Tu já pensaste em morar na cidade?

– Nunca morei na cidade e não quero que Deus me castigue de um dia precisar morar lá. A cidade me dá um tipo de angústia. Sempre brinco com os meus amigos que quero ir mais pra costa do Icamaquã (rio) e não pra beira da estrada. Aqui é que eu acho lindo. No dia em que tenho mais tempo chego a entrar no meio do mato só pra sentir o cheiro. Me sinto tão bem que vou te dizer, sou apaixonado pelo campo e pelo mato.

– O que é um gaúcho no teu modo de ver?

– O gaúcho é aquele que entende de toda a lida que for preciso. Eu, se precisar derrubar uma vaca, carnear e charquear, eu sei fazer. Se tiver de carnear uma ovelha, charquear e assar, eu sei fazer. Na minha concepção, entendo assim. Se o cara disser que amanhã vamos sair bem cedo, eu tô com o cavalo encilhado e o ponche na garupa. O gaúcho tropeiro é praticamente superior ao tempo. Se amanhecer o dia com sol que racha eu tô indo. Se amanhecer o dia chovendo tô indo igual.

– Tu te orgulhas de ser gaúcho?

– Mas deus te livre!

– Como é um dia normal teu?

– Quando começa a pender pra amarelar a barra do dia já começo a agitar o serviço do campo. Às 5 e meia, 6h, já estou agitando. Tu sabes, né, que cada dia que tu saíres para a lida na fazenda tem uma surpresa, sempre tem uma surpresa. É uma vaca que o terneirinho se desprendeu e tem de procurar, ou uma vaca que não pode dar cria e tem de ajudar a nascer ou fazer cesárea, uma ovelha que apareceu mordida de cachorro… Desde que clareia o dia é assim. Eu aqui cuido de umas 200 cabeças de gado, umas 150 ovelhas e umas 40 éguas.

– Sozinho?

– É barbada depois que acostuma. E tenho os cachorros que me ajudam igual a um homem. Tendo cachorro bom, a gente lida com qualquer quantia de gado. Tenho cinco cachorros. A Famosa, o Bugio, o Raposinha, o Chatão e o Max. E quando tem algo maior, eu e meu vizinho trocamos serviço.

– Quando tu acordas, a primeira coisa é o chimarrão?

– Primeiro o mate. Depois tomo o meu desjejum.

– E o que tu comes?

– Carreteiro de charque. De manhã cedo é comida de sal.

– João Marques, tu és feliz?

– Mas bah!

– A vida é boa para ti e o teu bigode?

– Mas barbaridade, vou te dizer… uma pena ter de morrer.

(Publicado na Revista Época em 07/02/2011)

A Igreja do Livro Transformador

O escritor Luiz Ruffato conta como foi salvo pela literatura

Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados.

No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura. Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá

“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado…).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.

E assim foi. Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado… E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias… Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu… Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude…

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico

“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização…

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão…) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures…”

Comendo sonho e vivendo feijão

“Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe… Por essa época, havia uma novela na televisão, O Feijão e o Sonho, baseada num romance de Orígenes Lessa, que mostrava exatamente a luta de um professor cheio de sonhos e veleidades literárias, envolvido em terríveis dificuldades financeiras e enovelado na mediocridade de uma pequena cidade do interior…

Minha mãe, muito prática, me fez ver que se quisesse alimentar a idéia de um futuro melhor teria de arrumar uma profissão séria – e que não seria evidentemente a de escritor… Assim, entrei para o Senai, onde me formei em tornearia-mecânica, ao mesmo tempo em que fazia um curso noturno de contabilidade. Se no Senai pensava no feijão, à noite um professor, Alcino Antonucci, me desviava para o sonho, orientando as minhas leituras e incentivando meus primeiros passos na escrita.

Finalmente, um pouco antes de completar 17 anos, percebi que teria de cortar os laços com minha cidade, em definitivo. Por essa época, as grandes greves do ABC haviam interrompido o fluxo natural de mão de obra especializada de Cataguases, e os meus colegas de Senai estavam indo trabalhar na Fiat, na região de Belo Horizonte, ou nas grandes siderúrgicas do Vale do Aço mineiro.

Acabei no meio do caminho: parei em Juiz de Fora, onde trabalhava durante o dia como torneiro-mecânico e fazia cursinho à noite visando o vestibular da Universidade Federal. Entrei no curso de Comunicação Social num momento interessante, pois, vivenciando os estertores da ditadura, podíamos conciliar a luta política com as descobertas pessoais. No meu caso, uma formação literária alicerçada pela generosa orientação do poeta e professor Gilvan P. Ribeiro (antes, no cursinho, duas professoras também me incentivaram, Imaculada Reis e Hilda Curcio).

Neste período, além das minhas atividades políticas, participava de grupos de estudos e de um grupo de poetas que editava um folheto quinzenal, Abre-Alas, com apresentações aos sábados de poesia falada e militante na principal rua de Juiz de Fora, o Calçadão da Halfeld.

E lia, lia muito. Lia livros emprestados de amigos, livros de bibliotecas públicas, livros comprados em sebos, lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente a literatura contemporânea, pois estávamos em pleno boom da literatura brasileira e latino-americana.”

Ler para ser arrancado do lugar

“Eu comecei a me interessar por livros, ou melhor, pela leitura, muito cedo. Lembro-me que meu irmão gostava de ler o Jornal do Brasil aos domingos. Era um calhamaço que eu, de bicicleta, ia comprar numa banca do centro da cidade. Eu separava o caderno de Internacional e, deitado na varanda de casa, no calor sáunico de Cataguases, passava a manhã me informando dos rumos da Humanidade…

Junto com o Jornal do Brasil, eu trazia o jornal O Cataguases, que praticamente não tinha notícias, apenas divulgava os atos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário… No entanto, um grupo de escritores da cidade encartava nele um suplemento cultural, o Totem, de literatura… de vanguarda!!! Sim, de vanguarda… Capitaneados por Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, difundiam poetas brasileiros e estrangeiros que experimentavam o poema-processo, a arte-postal, o concretismo, o neoconcretismo, o poema-visual… E, mesmo não entendendo absolutamente nada, eu gostava daquilo…

Ou seja: um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental… Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens… Então, desde essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.

Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica – até hoje, às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber… Depois, de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares… Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do meu lugar de conforto, que me transforme.”

De bar em bar, vendendo palavras

“É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos 15 anos, um pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa, não, como seria natural, na poesia…

Minha mãe guardava a pasta de cartolina que enfeixava as páginas datilografadas como um tesouro – isso, muito antes de eu publicar meu primeiro livro, profissionalmente… Em Juiz de Fora, durante o cursinho, ganhei uma bolsa (que me isentava do pagamento das três últimas mensalidades do ano) ao vencer um concurso de contos (o primeiro e o segundo lugares!). Depois, quando entrei para a universidade, animado com o clima de urgência do grupo do qual fazia parte, publiquei meu primeiro livro…

Incentivado por um amigo, prematuramente falecido, José Henrique da Cruz, lancei O homem que tece, poemas, em formato de bolso, rodado em off-set, edição de mil exemplares, esgotado em menos de seis meses… Vendíamos de mão em mão, nos bares da cidade, e com o dinheiro arrecadado pagamos a gráfica e financiamos outros livros da mesma natureza.

Curioso, porque tanto o meu ‘primeiro romance’ quanto o ‘primeiro livro de poemas’ tratam de temas que seriam retomados, décadas mais tarde, no projeto que estou desenvolvendo agora, o Inferno provisório... Depois disso, ainda publiquei outro livro de poemas, Cotidiano do medo, já quando morava em Alfenas, sul de Minas… Esta seria a minha infância literária.”

Rodoviária do Tietê: a primeira casa em São Paulo

“Eu cheguei em São Paulo e, não querendo amolar algumas (poucas) pessoas que conhecia, e não tendo dinheiro para ir para um hotel ou pensão, dormia nos bancos da Rodoviária do Tietê. Isso durou um mês – dormia lá nas noites de segunda a quinta-feira, já que na sexta-feira eu dormia na poltrona de um ônibus em direção a Minas Gerais, onde passava o fim de semana (para renovar as roupas…), e a noite de domingo eu passava dormindo na poltrona de um ônibus, voltando para São Paulo…

Fiz algumas amizades por lá, inclusive com um policial, que, na primeira noite, não queria me deixar dormir dentro do prédio… Eu então expliquei para ele a minha situação e ele, condoído, tomava conta de mim… Eu chegava na rodoviária depois do trabalho, tomava um banho, comia qualquer coisa, e dormia sentado (os bancos da rodoviária, estranhamente, são feitos para provocar desconforto nos passageiros)…”

Em busca de voz própria

“Me calei, não escrevendo uma linha sequer, durante toda a ‘década perdida’ brasileira – que compreende mais de 10 anos, pois vai dos inícios da década de 1980 até meados da década de 1990. Este período foi um momento de maturação. Eu sabia que iria retomar a escritura, mas não me sentia pronto ainda. E assim, sem angústia ou ansiedade, fui tentando compreender por que deveria escrever, sobre o que, e, principalmente, como…

Até que em 1998 lancei Histórias de remorsos e rancores, seguido dois anos depois de (os sobreviventes), ambos coletâneas de contos, que, já ressoando minha voz literária, ainda não me satisfaziam do ponto de visto formal… Estes livros, embora tenham vendido bem, e o segundo tenha até mesmo recebido uma menção especial no Prêmio Casa de las Américas, não serão mais reeditados. Na verdade, foram incorporados, reescritos, ao projeto Inferno Provisório. A minha estréia, propriamente dita, considero Eles eram muitos cavalos, um exercício literário que me fez compreender sobre o que e principalmente como escrever…

Escrever, como ler, tem que ter, para mim, um componente de prazer estético, tem que ser um desafio intelectual. Porque, antes de tudo, escrevo para mim, escrevo histórias que gostaria de ler. Penso que uma história, para convencer o leitor, tem antes, necessariamente, que convencer o autor. Se me convenço de sua necessidade, se o que tento passar me comove esteticamente, talvez eu possa então comover o leitor, porque pode ser que haja ali uma verdade.”

O mundo da classe média baixa

“Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever, como escrever?

Aliás, eu tinha sim uma idéia de sobre o que escrever. Me parecia lógico que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia.

No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos autores brasileiros haviam se debruçado sobre esse universo, talvez porque o trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou o bandido – personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.

Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem ‘trabalhador urbano’ (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo ex-operário.”

Qual é a forma que dá conta deste mundo?

“Se eu sabia que queria retratar esse universo em meus livros, faltava responder à questão seguinte: como escrever sobre esse tema?

O romance tradicional nasce no Século XVIII como instrumento de descrição da realidade do ponto de vista da burguesia. Ou seja, o romance ideologicamente serve a uma visão de mundo específica. Então, qual seria a forma adequada de representar o ponto de vista da classe média baixa ou do trabalhador urbano?

Eu tentei então me filiar a uma família literária que surge paralelamente ao aparecimento do romance tradicional, que poderíamos chamar de anti-romance, que espasmodicamente construiu uma tradição: Sterne, Xavier de Maistre, Richardson, Dujardin, Machado de Assis, Joyce, Proust, Breton, Faulkner, Robbe-Grillet, Calvino, Pérec… E poderíamos incluir ainda nessa tradição, que chamaríamos de ‘literatura experimental’, contistas como Tchekov, Pirandello, Katherine Mansfield, e poetas como Mallarmé e os vanguardistas do começo do século XX.

Então, em 2001, lancei Eles eram muitos cavalos, nascido da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Publicado, me encontrei num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o ‘agora’, mas talvez necessitasse compreender antes ‘como chegamos onde estamos’.

Comecei a elaborar o Inferno Provisório, uma ‘saga’ projetada para cinco volumes, dos quais quatro já publicados, que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo. Ou seja, pulamos da roça para a periferia decadente urbana sem escalas…

Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. É o entrecruzamento das experiências ‘de fora’ e ‘de dentro’ dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário, etc) na subjetividade dos personagens. Enfim, refletir sobre a interpenetração da Historia com as histórias.

Só que não compreendo uma discussão sobre essa cisão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos do gênero romance. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema, etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade…

Cada volume do Inferno Provisório é composto de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, já que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras.”

Por que escrevo?

“Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever?

Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.

Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.

Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias.

Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie.

A Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.”

Sem a literatura, só teria restado o destino

“Em algum momento percebi, sem o saber, que meu destino já estava mais ou menos traçado. Meus pais, muito pobres, migraram para Cataguases em busca de uma vida melhor não para eles, mas para os filhos. Minha mãe é filha de imigrantes italianos que foram parar numa colônia no interior de Minas Gerais, na região de Rodeiro, e meu pai, filho de imigrantes portugueses – órfão de pai e de mãe aos dois anos, foi criado por uma família italiana de uma colônia na região de Dona Eusébia.

Eles chegaram sozinhos a Cataguases, sem nada. Mas a cidade, por ser um polo industrial consolidado desde os começos do Século XX, oferecia oportunidades de trabalho e possuía uma razoável infraestrutura educacional para, principalmente, a formação de mão de obra para o parque têxtil. E foi nisso que meus pais apostaram. Logo, minha mãe sustentava a casa com suas lavagens de roupa, enquanto meu pai, de saúde precária, não conseguindo emprego estável nas fábricas, passou a vendedor de pipocas.

O sonho de meus pais, portanto, era que nos formássemos, nos tornando empregados da indústria, ganhando um salário, constituindo família, comprando casa própria e bons eletrodomésticos. Meu irmão se formou no Senai e aos 26 anos era mestre-geral numa das tecelagens da cidade – mas uma morte estúpida encerrou sua carreira quando ela mal começava… Minha irmã, que foi tecelã durante algum tempo, largou a fábrica para se casar – uma atitude muito comum entre as meninas à época – e mais tarde tornou-se funcionária pública municipal, como merendeira escolar. E eu, embora tenha me formado também no Senai, acabei contrariando todo mundo, saindo de Cataguases e me jogando no mundo…

Provavelmente, ou melhor, certamente meu destino, se tivesse permanecido lá, seria hoje estar aposentado como operário especializado, com família, filhos, casa própria e bons eletrodomésticos…”

Primeira leitora: a mãe analfabeta

“A minha relação com Cataguases é estranha. Lá eu nasci e vivi até meus 16 anos. Depois disso, voltei apenas como visitante esporádico. Quando meus pais eram vivos, gostava de me entocar na casa deles, num bairro operário da periferia da cidade, e passava as horas conversando com minha mãe, uma mulher de uma visão de mundo inacreditavelmente complexa, compreensiva e reflexiva. Infelizmente, ela morreu em 2001, pouco depois do lançamento de Eles eram muitos cavalos, livro que, de certa forma, projetou meu nome.

Não tive, portanto, a felicidade de demonstrar que todo o sacrifício que ela fez pelos filhos, e por mim, especificamente, tinha redundado em alguma coisa… Eu me lembro que quando escrevi aquele que considero meu primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores, eu o li inteiro para ela, ainda antes da edição, para ver se ela o aprovava… E sua reação foi fantástica: ela se emocionou com as histórias, reconheceu o que havia ali de fabulação biográfica e me disse: Tenho um grande orgulho de você, meu filho. Aquilo serviu para que eu tomasse pé e acreditasse que estava no bom caminho…

Depois, li também os originais do meu segundo livro, (os sobreviventes), e de novo ela se emocionou profundamente. O Eles eram muitos cavalos, embora tenha sido iniciado (digamos assim, ‘mentalmente construído’) durante as férias de 2000 na casa dos meus pais, eu não o pude ler para ela. No carnaval de 2001 descobrimos que ela estava com um câncer fulminante – daquele mês até novembro, quando ela morreu, eu fui a Cataguases todos os fins de semana que não trabalhava no jornal, viajava 1,2 mil quilômetros, ida e volta. Saía de São Paulo na sexta-feira à noite e chegava de volta na segunda-feira pela manhã. Acompanhei de perto seus últimos meses…

Meu pai morreu pouco depois, em 2003. Restou em Cataguases apenas a família da minha irmã.”

Voltar é possível? A terra depois da partida

“A minha solidão, nesse sentido, existe desde sempre. Em Cataguases éramos estrangeiros – inclusive porque lá nunca houve uma colônia de italianos, como em outros lugares da região. Não pertencíamos à cidade e as minhas férias, por exemplo, as grandes (de dezembro a fevereiro) e as pequenas (de julho), eu passava na roça, na fazendola do meu avô, em Rodeiro, à época já dividida entre vários irmãos. Depois, fui para Juiz de Fora, Alfenas e, finalmente, São Paulo (passando, rapidamente, por Vitória e Rio de Janeiro).

Eu brinco que sou o exemplo típico daquele ditado: não tem onde cair morto… Porque não pertenço a lugar algum. Não sou de São Paulo (onde sempre serei considerado alguém ‘de fora’), não sou de Alfenas, nem de Juiz de Fora, nem de Cataguases, mas também não sou de Rodeiro nem de Ubá… Quando morrer, não sei onde serei enterrado… Talvez venha daí a temática mais presente em minha literatura: o desenraizamento, o despertencimento, a solidão e a perplexidade de não ter um lugar…

Sem bloqueio artístico

“Eu encaro o fato de ser escritor como uma profissão. Então, todos os dias, acordo às seis da manhã, tomo café, leio o jornal, e mais ou menos às sete, sete e meia, sento-me ao computador e começo a trabalhar. Vou nessa toada até meio-dia, mais ou menos. Quando estou em viagem, geralmente por conta de palestras, participação em feiras e festivais literários, não escrevo. A essa rotina me dedico apenas quando estou em São Paulo. Porque, para mim, são dois momentos diferentes, embora complementares, da minha atividade literária. Essa, a da solidão da escrita; e aquela, da divulgação dos meus livros.

Havia, e ainda há, certa prevenção das pessoas contra o fato de eu assumir que trabalho com rotinas, metas e prazos, porque, afinal, argumentam, não se trata de um trabalho mecânico, e sim artístico… Ora, acredito que essa visão seja equivocada, porque não há contradição entre disciplina e arte. Grandes artistas plásticos (Da Vinci, por exemplo) e compositores eruditos (Bach, por exemplo) trabalhavam sob encomenda, com prazos pré-fixados e salários no fim do mês… E nem por isso podemos acusá-los de serem menos importantes…

Portanto, nunca tive problemas como ‘falta de inspiração’ ou ‘bloqueio artístico’, porque planejo com bastante antecedência o meu trabalho. Quanto a aproveitar ou não tudo que escrevo… Sentar todos os dias, rotineiramente, para escrever não significa chegar ao fim de quatro, cinco horas de trabalho com algo que preste. Significa apenas isso: sentar quatro, cinco horas em frente ao computador e trabalhar, trabalhar e trabalhar… O resultado muitas vezes é nada… Talvez seja apenas isso que diferencie o trabalho intelectual: ele não pode ser mensurado pragmaticamente, tantas horas trabalhadas, tantas páginas produzidas… A aferição de competência se dá em um outro paradigma.”

O bafo constante da morte

“É estranho, porque, embora tenha consciência de que o homem constrói sua vida sabendo que tem um prazo de validade, penso que, ao mesmo tempo, e talvez exatamente por isso, a existência só faz sentido se for uma busca pela felicidade – não hedonista, mas ética. Gosto de pensar que, ao fim e ao cabo, poderei olhar para trás e me orgulhar do que fiz por mim, pela minha família, pelos meus filhos, pelos meus amigos e até mesmo pelas pessoas desconhecidas.

Essa perspectiva talvez relativize um pouco a dor da perda. Mas essa questão para mim surge sempre de uma forma muito dúbia, porque também percebo claramente que existe uma espécie de visão trágica permeando minha formação. Venho de uma comunidade italiana que, embora professasse (professe) um catolicismo militante, quase carola, sempre estranhamente vivenciou a morte não como uma passagem para a vida eterna, mas como um rompimento injusto com a vida…

E não porque percebesse a vida como um reduto de alegrias – porque na verdade a entende mais como um fardo ao qual nos resignamos. Esse paradoxo teológico-filosófico irresolvível está presente na minha vida, nas minhas histórias.”

A Igreja do Livro Transformador

“A literatura me arrancou da alienação, da ignorância, da falta de perspectivas. Me mostrou que somos seres para a morte e que nós temos que buscar, neste curto intervalo que é a vida, a felicidade. E para isso temos que nos projetar no mundo, nos lançar, nos afastarmos da poltrona do comodismo, da conformidade, para nos proporcionar um sentido.

Esta é a proposta da Igreja do Livro Transformador, que tem como mentores eu e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, que experimentou mais ou menos a mesma história de salvação pela literatura. Se depender de mim, a Igreja já será uma realidade ainda este ano… (risos)”

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua história de transformação pela literatura, seja ela um tsunami de alma ou uma ferroada de mosquito. Uma pequena descoberta, uma sensação nova ao ler um determinado livro ou mesmo um sonho.

(Publicado na Revista Época em 31/01/2011)

“Eu fiz o parto do meu filho, não o médico”

A luta de uma mulher para conseguir um parto natural nos dias de hoje

Sempre quis entender por que uma mulher prefere passar por uma cirurgia que exige um corte transversal de 10 a 15 centímetros e atravessa sete camadas de tecido do que ajudar seu filho a nascer da forma mais natural. Segundo a Organização Mundial da Saúde, apenas 15% dos partos têm indicação de cesariana. Mas, no Brasil, oito de cada 10 partos na rede privada são cirúrgicos. E, assim, os bebês brasileiros cujas mães têm plano de saúde nascem em horário comercial e o que era natural virou exceção. Por quê? E para o benefício de quem?

Já ouvi dezenas de vezes a justificativa de que a cesariana “é mais prática, cômoda e indolor”. Prática, cômoda e indolor para quem? Talvez seja mais prática, cômoda e indolor para o médico, que não vai ser acordado no meio da noite nem ter de desmarcar compromissos e consultas para acompanhar um processo natural durante horas. Mas, para a mulher, os fatos provam que não. Ainda que o parto natural leve mais tempo, assim que a criança nasce não há mais dor. Já a recuperação da cesariana pode levar semanas e até meses, quando tudo dá certo. Sem contar os riscos inerentes a uma cirurgia de grande porte. Há poucos dias, ao visitar uma amiga que acabou de ter seu segundo filho por cesariana, ela me disse: “A dor que senti ao tentar levantar depois da cesárea foi muito maior do que todas as dores do parto natural do meu primeiro filho. Não entendo como alguém pode achar que isso é melhor”.

Também já perguntei a alguns obstetras por que fazem tantas cesarianas. E a resposta de todos foi: “Porque nenhuma das minhas pacientes quer ter parto natural”. Será? Sempre desconfiei que parte dos médicos não sabe fazer parto natural. E, além de ser mais prático para eles, escolhem a cesariana porque também têm medo. Em uma reportagem sobre mortalidade materna publicada na Época em 2008, o obstetra Nelson Sass, professor da USP, afirmava exatamente isso: “Os estudantes de Medicina das melhores faculdades quase não têm contato com parto natural. É uma deformação das escolas. Como os casos mais complicados são encaminhados aos hospitais universitários e resolvidos com cesáreas, os alunos não treinam o parto natural”.

Este obstetra, que não foi treinado para o mais fácil e mais natural, vai convencer aquela gestante que, no caso dela, uma cesariana é a melhor opção. Quando uma mulher está com um filho na barriga e um médico diz que é necessário cortá-la para que ele saia, dificilmente ela vai desafiar a autoridade do médico e contestá-lo. Se o médico diz que é mais seguro, como ela vai discutir e correr o risco de comprometer a vida do seu filho? Nesses casos, mesmo mães que desejaram e se prepararam para um parto natural recuam diante da autoridade daquele que sabe. Mas, às vezes, aquele que sabe só tem medo. Ou, pior, tem um compromisso social em seguida ou apenas quer ganhar mais.

Quando uma mulher engravida e a barriga começa a crescer, dá medo, às vezes até pânico, saber que aquele bebê que está dentro dela vai ter de sair. E é ela quem vai ajudá-lo nisso. E que esse processo inclui dor. É natural ter medo. Isso não significa que essa mulher não possa lidar com esse medo e com todas as fantasias a respeito desse momento e, mesmo assim, viver o que tem para viver. A maior fantasia – e a que mais atrapalha todas as mulheres – é justamente a ideia de que a maternidade é sagrada e só envolve bons sentimentos. Então, para ser uma boa mãe, supostamente uma mulher teria de achar tudo lindo e elevado.

Poucas crenças são mais perniciosas para as mulheres – e depois para os seus filhos – do que o mito da maternidade feliz. A escritora francesa Colette Audry disse uma frase genial sobre o que é um filho: “Uma nova pessoa que entrou na sua casa sem vir de fora”. Como não ter medo e sentimentos conflitantes a respeito de algo assim? Engravidar e parir dá medo mesmo. E uma mulher não vai amar menos aquele bebê por sentir pavor, raiva e sentimentos supostamente menos nobres – ou supostamente proibidos. Ao contrário. Ela pode ser uma pessoa pior e uma mãe pior se sufocar esses sentimentos em vez de aceitá-los e lidar com eles. O que também implica lidar com o medo da dor do parto e da responsabilidade de ajudar o filho a nascer. É claro que auxilia bastante encontrar um obstetra responsável que converse com ela sobre seus sentimentos – em vez de abrir a agenda para marcar a cesariana.

É por medo de viver e porque ninguém as ajuda a lidar com seus piores pesadelos que muitas mulheres preferem não sentir – literalmente – um dos momentos imperdíveis da vida que é o parto de um filho. Acredito que a saída para esse medo não é ser anestesiada e cortada em data previamente marcada. E, principalmente, sem necessidade. Como me disse uma grávida um dia: “Prefiro a cesariana porque aí não tenho de passar por isso. Eu fico ali, sem sentir nada, e de repente meu filho já está do lado de fora”. Essa mulher nunca soube o que perdeu, porque perdeu.

Hoje há um movimento forte em defesa do parto natural e há crianças nascendo em salas humanizadas de hospitais e mesmo dentro de casa nas grandes cidades, como São Paulo, enquanto lá fora o trânsito para e os carros buzinam. Existem grupos semanais onde as mulheres e também os homens podem falar abertamente sobre todos os medos e trocar experiências sobre parto e amamentação. E poder falar sobre isso e dizer que eventualmente está apavorada faz bem para todo mundo e também para o bebê que vai ter uma mãe que consegue falar de seus sentimentos. E falar do que sentimos e do que não sentimos, por pior que nos pareça sentir o que não queríamos sentir – ou não sentir o que achamos que deveríamos sentir –, nos ajuda a amar melhor.

Algumas ressalvas, porém. A luta pela volta do parto natural é um bom combate. Mas é preciso não cair no outro extremo e virar xiita, já que dogmas não fazem bem à vida. Às vezes percebo com pena esse traço em alguns movimentos que poderiam ser melhores se deixassem a soberba de lado. A cesariana é uma ótima saída nos casos em que é indicada e pode salvar a vida da mãe e do bebê. O problema não é optar por ela quando claramente é a melhor alternativa diante de uma complicação – e sim fazer a cirurgia sem necessidade, um comportamento epidêmico no Brasil.

Nenhuma mulher é menos mãe ou menos mulher porque não conseguiu ter um parto natural. Assim como nenhuma mulher é menos mulher porque decidiu que não quer ser mãe. Já testemunhei mães orgulhosas de seu parto natural esmagar com sua suposta superioridade uma outra que precisou de cesariana. Este é um comportamento lamentável, quando não ridículo. Nesses casos, além de ter sido submetida a uma cirurgia e estar cheia de dores e pontos, a mulher é punida porque não foi uma superfêmea. Como se ter de fazer uma cesariana fosse uma nova modalidade de fracasso. Superfêmeas, assim como supermães, para o bem da humanidade é melhor que não existam. As mulheres mais bacanas e as que possivelmente serão melhores mães são as que assumem seus medos e não punem o medo das outras. E compreendem que na vida, assim como no parto, a gente tenta fazer o melhor possível. E o melhor possível tem de ser o suficiente.

Para nos ajudar a pensar sobre tudo isso, entrevistei uma amiga que teve seu primeiro filho há uns poucos meses, perto dos 40 anos. Eu a escolhi porque ela desejou muito um parto natural. E se preparou muito para o nascimento do seu filho. E conseguiu o seu parto. Mas, para isso, passou por um tremendo estresse desnecessário em seu embate com a cultura predominante da cesariana e o medo de que os profissionais escolhessem por ela ao longo do trabalho de parto.

Quando fui visitá-la no hospital, no dia seguinte ao nascimento do bebê, ela tinha necessidade de contar sobre o pavor vivido não por causa das dores do parto, mas pelo medo de que roubassem dela esse momento. Seu bebê era saudável, ela ajudava a dar nele o primeiro banho e amamentava-o sem nenhum incômodo. Mas o embate com a equipe de saúde a tinha marcado. E teria sido melhor se ela tivesse a certeza de que sua decisão seria respeitada – e uma cesariana só seria feita se realmente houvesse necessidade.

Há cerca de um ano ela deu outra entrevista para esta coluna, sobre seu desejo e suas dificuldades de engravidar, e os mitos de fertilidade que atrapalham a vida das mulheres. Agora, ela nos conta o capítulo seguinte. A experiência de cada mulher é única. Esta é a da minha amiga. Nem certa nem errada, nem melhor nem pior, apenas a dela.

ÉPOCA – Você queria muito ter parto natural. Por quê?
Me parecia uma experiência mais completa do que uma cesariana, mais natural e menos passiva. Queria fazer força, ajudar meu filho a vir ao mundo. Não queria alguém tirando ele com um bisturi sem que eu visse, por trás de uma cortininha hospitalar, em 10, 15 minutos. A cena tinha de ser maior, mais demorada e curtida. Me via puxando/empurrando meu filho pra vida. A gente tomava fôlego de vez em quando e ele continuava a sair. Algo pra se ir absorvendo aos poucos. Ao longo da gravidez, também fui construindo em mim a ideia de que um parto normal seria algo mais meu, sobre o qual eu teria mais controle do que uma cirurgia. Eu faria o parto – não o médico.

ÉPOCA – Este desejo, que é natural, afinal é assim que as crianças nascem ou deveriam nascer quando não há nenhuma complicação, acabou sendo difícil de botar em prática, porque toda a cultura ao redor empurrava você para uma cesariana. E isso deu a você uma carga extra de tensão. Como foi?
– Eu tive de fazer uma verdadeira maratona para conseguir meu parto. Sabia que as cesarianas eram regra, mas não que era tanto assim. Os médicos te dizem: “Vamos tentar um parto normal”, como se fosse o mais difícil, como se exigisse condições. Ora, o “normal” não é ser normal e a cirurgia só acontecer se algo der errado? O fato é que eu tive de convencer, barganhar, ameaçar trocar de médico para conseguir que fosse normal. Percebi que precisaria me informar horrores, me apropriar do processo, para que quando chegasse o momento ninguém pudesse me enrolar com desculpas como as que eu ouvia de amigas justificando cesáreas. E nesta viagem eu aprendi muitas coisas sobre parto. Tantas que teria sido capaz de fazer o meu sozinha. Descobri que bastava amparar meu filho na saída e secá-lo. Não existe nenhum procedimento imprescindível nem durante o parto, nem no nascimento – quando tudo está bem, é claro. Não deixa de ser um absurdo ter de descobrir como funciona algo tão ancestral e natural como um parto. Este processo parece que foi transformado em um mistério pela medicina moderna – um mistério até para as mulheres.

ÉPOCA – Por que você acha que a medicina tornou o parto um mistério? E por que você acha que as mulheres preferem cesarianas? Do que elas têm tanto medo, afinal?
Primeiro, por falta de informação. Os médicos dão pouca informação. Chegam a perguntar o que a mulher prefere, em vez de irem direto para o normal e partirem para a cesárea apenas quando necessário. Já ouvi de um médico que cesariana era mais “prático”. O ponto de partida é que já está errado. Se os médicos não esclarecem, as possibilidades de parto normal já ficam reduzidas. Por exemplo, o parto normal dói, mas tem a opção da anestesia no momento em que a paciente quiser, embora o ideal seja mais para o final. Acho que se as mulheres conhecessem melhor o processo, optariam menos por cesarianas. Há vários mitos envolvidos. Acho que algumas mulheres consideram o parto normal algo pouco civilizado, pouco moderno. Muitas têm medo de ficar com a vagina alargada depois que passar um bebê. Tem também a questão da falsa praticidade, de poder marcar o parto. Digo falsa porque não é nada prático ficar com pontos na barriga de uma cirurgia considerada de porte, fora o risco de ter um bebê nascido antes do tempo, antes de ficar pronto. Há mulheres que querem acabar logo com o processo do nascimento, como se ele não pudesse ser demorado e maravilhoso, sentido, como se esta demora não tivesse também as suas delícias. É como sexo: você sua, se esforça, quanto mais demora, melhor. Não combina ser asséptico, rápido, cirúrgico. O parto também não. Mas acho que o que mais pega é o medo da dor. Nosso mundo tem medo da dor. Mesmo a inevitável, a necessária, a que ajuda a trazer um filho pra vida. A dor de parto não é como outras dores. Não é como uma dor de ouvido, por exemplo. Ela vem aos poucos, para que a mulher se recupere nos intervalos. É forte, mas é uma dor de vida, não de morte. Vai trazer uma coisa boa. Isso te ajuda a suportar. Se não, tem a possibilidade de analgesia. Prefiro dizer que não são dores de parto, mas contrações, movimentos.

ÉPOCA – O que você aprendeu em sua busca de conhecimento, quase se armando para que não roubassem de você um dos grandes momentos da sua vida?
No fim, aprendi que havia vários tipos de parto normal – natural, normal, induzido, humanizado… E percebi que eu não queria apenas um parto “vaginal”. Queria um parto com o mínimo de intervenções, o mais natural possível. Nos últimos anos (ou décadas) foram estabelecidas tantas intervenções como rotina que, na maioria dos partos normais urbanos, de classe média, você toma uma superanestesia e fica inepta pra ajudar seu filho a nascer. Então tem de tomar hormônio pra estimular as contrações reduzidas pela anestesia. Na hora H alguém empurra sua barriga com uma manobra horripilante e desnecessária para que o bebê saia. E, no fim, quase que obrigatoriamente, cortam a entrada da sua vagina para ajudar o bebê a sair, mesmo que não precise. Eu não queria nada disso. Queria um parto meu, comandado pelo poder de dar à luz que a natureza me deu, apenas assistido pelos profissionais de saúde.

ÉPOCA – Em sua incursão pelo mundo da militância do parto natural, você participou de grupos e ouviu histórias de todo tipo. Quais foram essas narrativas e como elas ajudaram a construir a sua?
Eu tinha guardado na memória o relato especial de uma amiga que teve a filha ainda adolescente no hospital, mas sem anestesia, sentindo as dores do parto. Era minha história inspiradora de nascimento. Descobri na internet um grupo para grávidas, o Gama (Grupo de Apoio à Maternidade Ativa), para ajudar as mulheres a ter experiências assim. Frequentei esse grupo semanalmente com meu marido. Lá ouvi outros relatos de partos naturais, ou seja, sem anestesia nem intervenções, muitos ocorridos em casa. Quase todo dia tinha uma história incrível de uma mulher que tinha dado à luz deitada em sua própria cama, usando os lençóis guardados no armário, comovendo os vizinhos com o choro de bebê novo que de repente interrompia os gemidos do parto como se estivessem todos num século remoto, muitas vezes escandalizando a família com sua escolha “precária”. Não me lembro de um relato exato porque eles se pareciam muito, mas de detalhes misturados de nascimentos em apartamentos apertados no caos de São Paulo. Um casal contou que teve o filho num cômodo sem janela, na parede apenas o quadro pintado por um amigo imitava a paisagem de fora. Que loucura alguém parir sem janela, pensei. Eu adorava esses detalhes curiosos e muito humanos. Teve o marido assustado que se refugiou na cozinha para fazer comida enquanto a mulher se contorcia pra dar à luz no quarto, como se nada de extraordinário estivesse acontecendo na casa enquanto ele cozinhava. Teve a história da mulher que berrou no meio de uma contração para o marido não entregar pra parteira as toalhas de banho brancas, e sim as estampadas, se não estragaria o enxoval dela. Teve o caso de uma que ficou muito brava com o companheiro porque ele ficava contando os intervalos das contrações e isso a deixava nervosa. Ela pedia que ele parasse e ele continuava contando. Teve a que achou que tinha defecado no parto, mas era só a placenta saindo depois do bebê. E teve uma que de fato defecou. Nunca tinha imaginado que coisas assim pudessem acontecer. Além dessas histórias do grupo, fui também buscar histórias mais próximas. Uma amiga contou que teve o bebê quase no saguão do hospital, antes de a médica chegar, porque o marido não acreditou que o trabalho de parto estivesse tão avançado. A filha nasceu enquanto ele estacionava. Essa história me fez pensar que eu deveria conhecer bem os estágios do parto, para o caso de uma emergência. Outra me contou como se sentiu traída ao final de um trabalho de parto normal e tranquilo, quando o anestesista a agulhou pelas costas sem que ela quisesse, apenas para justificar sua ida ao hospital numa antevéspera de ano novo. E de como ela se sentiu dolorida nos dias seguintes por causa da peridural e da traição. Me fez pensar em como era importante eu deixar claro meus desejos e manter em minhas mãos o comando da situação. E também a importância de deixar claro para o meu marido o que eu queria – e não queria. Ouvi também um relato triste da minha irmã, que sempre quis parto normal e acabou levada a uma cesárea que ela acreditava desnecessária. Ela não viu os filhos saírem, não sentiu nada. E quando fui resgatar essa história, senti como isso tinha deixado nela uma ferida aberta. Uma ferida que eu não queria aberta em mim. Fui escutando essas histórias para ver como era, saber o que eu queria, o que eu não queria, e para tentar aceitar o que talvez estivesse além do meu querer.

ÉPOCA – Quando seu filho nasceu, você disse que ficou muito tensa durante o processo porque a todo momento tinha medo de que os médicos pudessem dar uma anestesia, fazer algum procedimento ou mesmo uma cesariana contra a sua vontade. Como foi isso?
Ao longo da gravidez, fui decidindo o que eu queria e o que não queria pra mim e para o bebê. Coisas muito importantes, pelas quais eu e meu marido faríamos todo o possível, e outras que nos importaríamos menos se escapassem do planejado. Meu maior terror era passar por uma cesariana. Ainda mais se fosse desnecessária. Não sei em que pedaço de mim isso pegava, mas pegava. Nas últimas semanas, minha obstetra falou: “Querida, se rolar cesariana serão dez anos de terapia pra você, não é?”. Eu disse: “Exatamente. Você entendeu o tamanho da coisa”.

ÉPOCA – Por que tanto horror à cesariana? Embora exista um abuso de cesarianas no Brasil, boa parte delas desnecessária, há casos em que pode ser a melhor escolha e mesmo fundamental para salvar a vida da mãe e do bebê. Se fosse este o caso, não estaria tudo bem para você?
Acho que se fosse o último recurso, tudo bem. Mas eu gostaria de ter certeza de que era realmente necessário e não uma conveniência ou inabilidade do médico, coisa que ficou muito difícil identificar hoje em dia. Acho que eu também mitifiquei o parto normal. Eu nasci de cesárea. E estou aqui, viva, sem traumas. Não tenho problemas com isso. Mas era um desejo meu ter o filho naturalmente. Só aceitaria a cesárea se tivesse muita clareza da necessidade.

ÉPOCA – Então conta como foi seu processo nessa luta com os profissionais de saúde ao longo do trabalho de parto…
Meu trabalhou de parto ativo durou 13 horas. Isso é considerado normal, mas as pessoas se assustam. Muitos médicos se assustam, inclusive. Meu pavor, quando eu via o relógio andando depressa demais, era que eles se cansassem e dissessem: “Bom, vai ter de ser cesárea”. E me empurrassem uma desculpa qualquer goela abaixo, com o poder da autoridade deles. Eu cheguei ao hospital com contrações fortes e ritmadas, num bom intervalo. Mas a dilatação era frustrantemente pequena ainda. Meu filho estava com a cabeça defletida, ou seja, virada pra cima, mirando o céu, então não descia. E minha vagina tinha uma reborda, uma espécie de dobra que se forma muitas vezes e também dificulta a saída. Eu sabia que nenhuma das duas coisas era motivo para cesárea, mas podiam tentar usá-las para fazer uma. Eu tinha chamado uma doula, uma acompanhante de parto, que na hora me ajudou com exercícios, posições e apoio emocional. Mas, depois de oito horas, acabei pedindo uma analgesia porque não aguentei a dor, estava dobrada, apagando nos intervalos das contrações. Tive medo que isso animasse os médicos a fazer cesárea, afinal, eu já estava anestesiada, ainda que de leve. Chorei muito porque não imaginava que a dor fosse maior do que eu. E chorei de medo. Lá pelas tantas entrou uma obstetra na sala e começou a conversar com minha médica. Ela dizia que o parto que ela fazia na sala ao lado estava demorando muito então ia virar uma cesárea porque ela já estava cansada. Entrei em pânico e comentei com a doula que não queria que todos se cansassem daquele momento meu e quisessem ir embora inventando uma cesárea. Minha médica ouviu e disse: “Temos todo o tempo do mundo para esperar”. Era verdade. Ela começou a me pedir pra fazer certas posições, me virava na cama, com muita delicadeza, até que o bebê se acertou e começou a sair. Nessa hora, de novo entrei em pânico, fiquei selvagem porque começaram a montar uma mesa de instrumentos e eu temi de novo uma cesárea. Pra que tudo aquilo? A pediatra, acostumada com partos humanizados, naturais, me disse que era normal, uma prevenção em caso de ocorrer uma emergência. Mas a cada barulhinho de metais mexendo eu gritava, perguntando o que iam fazer. Felizmente, o que fizeram foi apenas esperar meu filho sair, naturalmente, sem cortes, inteiros nós dois.

ÉPOCA – Qual foi o sentimento quando seu filho nasceu?
Eu parecia um bicho. Estava meio agressiva, assustada e ao mesmo tempo me sentindo a dona da cena. Queimava tudo quando ele estava saindo. Parecia que as tripas iam sair por baixo, apesar da analgesia, que era leve justamente pra eu sentir. Daí ele saiu, roxinho, com o cordão enrolado no pescoço e na mão, sem nenhum problema. Veja que os cesaristas adoram dizer que isso é motivo pra cortar uma mulher. Alguém que estava perto da vagina esticou os braços me entregando aquele pacotinho. Me escapou um: “O que eu faço com isso?”. Mas imediatamente eu soube e puxei ele pra mim, pro meu peito. Veio a pediatra e ajeitou-o pra mamar. E ele mamou. Eu chorava, chorava. Chorava e sorria. Parecia que não existia nada além dali. Que o momento era aquele. Que a vida começava e terminava naquela sala. Que ali dentro estava tudo que me importava. Senti orgulho de mim, do meu filho. Me senti poderosa, cheia de muita coisa boa. Talvez algumas mulheres se assustem com a intensidade de dor e de medo no relato do parto do meu filho e achem que não vale a pena. Primeiro, eu acredito que as coisas importantes não são necessariamente leves e indolores. Nem que as coisas boas só são boas se forem leves, rápidas e indolores. Meu parto foi forte. Em alguns momentos foi tenso e doloroso. Em alguns momentos tive medo. E, mesmo assim, foi uma delícia. Mesmo assim, tive um prazer indescritível. Tudo junto, como a vida é. Não trocaria isso por nada. Poucas vezes me senti tão viva. Poucas vezes estive tão viva. E completa.

ÉPOCA – Como é ser mãe? Fico observando você e percebo que, embora existam as angústias, e elas são muitas nesse início da vida de um filho, você parece estar sempre numa espécie de estado de completude. Volta e meia olha para o seu filho e chora de alegria…
Eu estou em estado de graça desde o momento em que meu filho nasceu. Eu tinha um medo, que para algumas pessoas pode parecer idiota, de ter um filho feio e burro. Bem, ele é lindíssimo. Meu bebê nasceu lindíssimo, como eu jamais poderia imaginar que seria. Tem orelhas perfeitas, nariz lindo. Ele é todo bonito. Tudo nele é bom. Senti algo indescritível quando saí da maternidade com ele nos braços, apresentando a rua lá fora, o sol, os carros, o barulho, as pessoas, a vida. Me senti a pessoa mais importante do mundo. Chorei quase todos os dias do primeiro mês de vida dele. De alegria, de plenitude. Chorei de ver que era tudo verdade, que ele estava ali. E ainda choro. A maternidade está além da minha maior expectativa.

ÉPOCA – Me parece, pela minha própria experiência e pela de outras mulheres que escuto por aí, que o afeto e o amor pelo filho não é algo dado, mas construído. De repente, há uma pessoinha nova fora da gente, na casa da gente, exigindo coisas com o seu choro. Mesmo que a gente a carregue por nove meses, fora do nosso corpo é outra história. Me parece que amamos aos poucos, num afeto que vai se construindo e se fortalecendo ao longo dos dias, até se tornar a ligação mais forte e profunda da nossa vida. E não como um amor que vem do além e cai como um raio na hora em que o bebê nasce, como somos ensinadas a acreditar que é o certo. Como foi para você?
É interessante porque, embora a maternidade seja atávica, o afeto não é automático, imediato. Eu não senti assim, pelo menos. Fui me apaixonando pelo meu filho. É algo que é construído da rotina com o bebê, que é uma das coisas mais intensas que alguém pode viver. Um dia aparece um serzinho estranho de dentro de você para você cuidar. Invade seu mundo, sua vida, com um cheiro novo, barulhos novos, hábitos novos. Surge um novo prolongamento de você, algo que não existia antes e que precisa de você para existir. No começo é ternura, curiosidade, encantamento. Acho que a natureza faz bebês fofos para a gente se encantar e cuidar deles. Aos poucos vai virando amor, delícia, intimidade. Você ama “aquele” bebê. Eu comecei a ficar mais mãe aos poucos. E acho que vou ser cada vez mais mãe, conforme o tempo passar.

ÉPOCA – Um de seus conflitos é a aproximação do momento de voltar ao trabalho, depois da licença-maternidade. Por um lado você tem vontade de largar seu emprego e virar mãe em tempo integral. Por outro, tem sonhos de que está trabalhando em grandes projetos. Não é fácil ser mulher, não é? Como você está se virando?
Não gosto nem de imaginar a volta ao trabalho. Parece que ele vai precisar de mim e não vou estar. Dizem que quem mais sente a dor dessa primeira separação é a mãe. Eu não consigo imaginar meu filho desamparado. Uma neura de que não cuidarão tão bem dele, de que eu não estarei lá vendo cada sorriso ou respiro. Acho que ainda sinto que ele é um pedaço de mim que ficaria pra trás algumas horas, doendo. Tenho um trabalho flexível, que me permitiria estar com ele em vários intervalos do dia. Ao mesmo tempo, já fiz as contas pra ver quanto tempo eu poderia ficar em casa só acompanhando ele crescer, mudar. Provavelmente, voltarei a trabalhar. Acho que ficaria tensa de não ter segurança financeira e talvez me cansasse, com o tempo, de ficar apenas em casa. Afinal, é uma rotina desgastante. Meu plano ideal seria que me dessem uma licença de um ano ou que meu emprego me liberasse e estivesse lá quando eu voltasse. Pra mim, seria o tempo ideal pra eu me dedicar ao meu filho, curtir cada minutinho, cheirar ele o dia inteiro. É importante trabalhar, mas é melhor ser mãe, ao menos nesse momento. Acho que o modo como as coisas são estruturadas no nosso mundo, no nosso universo brasileiro, não facilita muito a vivência dessas coisas. Poderíamos ter a opção de voltar logo ou não ao trabalho. Eu queria muito ficar mais. Mas dá medo chutar tudo e viver de economias. Eu não gosto de pensar nisso. Me incomoda, estraga meu dia. Meu filho fez parar meu tempo. Mas as coisas fora de nós não pararam. Não sei como resolver.

ÉPOCA – Quais são as alegrias e os conflitos desse momento muito particular que você está vivendo?
As alegrias são todas. O sorriso dele quando acorda, as dobrinhas, o cocô sem cheiro. Os gemidos, o choro, o beicinho, a respiração, o espirro. Mas a maior felicidade é ele mamar no meu peito. Ele se alimentar de mim. Isso é uma loucura. E eu me alimento de olhar ele mamando, toda torta, querendo chorar de alegria. A mãozinha no meu peito. Algo indescritível. Não tenho muito tempo pra mim, o que me angustia, mas só um pouquinho. Me sinto bonita, forte, poderosa, e tenho conseguido administrar as dificuldades porque tenho uma boa rede de apoio – marido superparticipativo, empregada, família, grana. Talvez eu não seja a melhor referência, porque a maternidade nem sempre é fácil. E pra mim está sendo uma delícia. Meu maior conflito é querer às vezes ficar só eu, meu filho e o pai dele juntos, feito bichos, num ninho, nos lambendo. Mas o planeta não é vazio como eu queria que fosse agora. O que também tem um lado bom: muita gente pra eu mostrar a coisa mais linda que eu já vi.

ÉPOCA – Hoje, olhando para trás, o que o parto natural deu a você?
O meu não foi 100% natural porque eu tomei analgesia. Meu parto normal me deu a maior lembrança da minha vida. Uma longa cena que me mudou completamente. Me sinto uma mulher completa agora. Me sinto uma mulher feita. Acho que, por ter sido um parto normal, me sinto mais do que se fosse de outra forma.

ÉPOCA – Você tem medo do futuro? De seu filho estar aqui, de ter de educá-lo com um mundo inóspito lá fora…
Tenho todos os medos, os mais absurdos. De ele sofrer, de não ser feliz. Medos que eu sempre tive da vida, como todo mundo. Mas meus olhos estão tão cheios da visão linda do meu filho e meu coração transborda de uma alegria tão grande que não cabe mais nada. Essas visões ruins de futuro se apagam rapidamente. Uma ternura louca espanta os medos, tão logo eles chegam. E me enche de esperança a idéia de criar um ser humano lindo e feliz. De apresentá-lo ao mundo e o mundo a ele.

ÉPOCA – O que é ser mãe, afinal?
Para mim, ser mãe é me sentir completamente mulher, fêmea, em todas as possibilidades. Já li que não é a maternidade que te faz uma mulher. Mas há uma dimensão que a gente só conhece sendo mãe. É mais para sentir do que explicar. Me sinto maior do que eu era antes. Bem maior.

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua experiência de parto. Nem certa nem errada, nem melhor nem pior – apenas a sua.

(Publicado na Revista Época em 24/01/2011)

Na pele do outro

Como compreender o mal numa cena de shopping

O cotidiano parece se repetir conforme o previsto até que você é empalado por uma cena. Eu saía da loja de um shopping de São Paulo, na tarde de sábado, quando ele passou por mim. Não sei se era a forma como o ar se deslocava de outro jeito ao redor dele, mas eu ainda não o tinha visto e minhas mãos já se estendiam no ar para ampará-lo. Ou talvez fosse só impressão minha, uma vontade estancada antes do movimento. Era um homem velho. Mas mais do que velho, era um homem doente. Cada um dos seus passos se dava por uma coragem tão grande, porque até o pé aterrissar no chão me parecia que ele podia retroceder ou cair. Mas ele avançava. E porque ele avançava na minha frente eu pude ver aquilo que outras partes de mim já haviam percebido antes. Sobre a sua cabeça havia uma peruca tão falsa que servia apenas para revelar aquilo que ele pretendia esconder. E de uma cor tão diferente do seu cabelo branco que parecia descuido de quem o amava ou não amava. Aquilo doía porque havia uma vaidade nele, a preocupação de ocultar a nudez da cabeça. E a peruca mal feita a expunha como um fracasso. A cada um de seus passos de epopeia sua camisa subia revelando um largo pedaço da fralda geriátrica. E assim ele avançava como uma denúncia claudicante da fragilidade de todos nós. Atravessando o corredor do shopping, lugar onde fingimos poder comprar tudo o que nos falta, consumidos pelo medo dessa vida que já começa nos garantindo apenas o fim.

Eu o seguia nesse balé sem coreografia quando ouvi os risinhos. Olhei ao redor e vi as pessoas se cutucando. Olha lá. Olha lá que engraçado. Ele tinha virado piada. Aquele homem desconhecido deixara a sua casa e atravessava o shopping. Para isso empreendera seus melhores esforços. Tinha vestido a peruca para que não percebessem sua calvície. Tinha colocado a fralda para não se urinar no meio do corredor. E caminhava podendo cair a cada passo. E as pessoas ao seu redor riam. E por um momento temi uma cena de filme, quando de repente todos começam a gargalhar e há apenas o homem em silêncio. O homem que não compreende. Até enxergar seu reflexo no olhar que o outro lhe devolve e ser aniquilado porque tudo o que veem nele não é um homem tentando viver, mas uma chance de garantir sua superioridade e sua diferença.

Quando entrevisto algum escritor costumo perguntar: por que você escreve? Alguns me respondem que escrevem para não matar. Eu também escrevo para não matar. Acho que na maior parte das vezes a gente escreve, pinta, cozinha, compõe, costura, cria, enfim, porque não sabe o que fazer com as pessoas que riem enquanto alguém tenta atravessar o corredor do shopping sem ter forças para atravessar o corredor do shopping.

O que me horroriza, mais do que os grandes massacres estampados no noticiário, são essas pequenas maldades do cotidiano. E só consigo compreender os grandes massacres a partir dos pequenos massacres de todo dia. Os risinhos e dedos que apontam, os cotovelos que se cutucam.

Quem pratica os massacres miúdos do dia a dia é gente que se acha do bem, que não cometeu nenhum delito, que vai trabalhar de manhã e dá presente de Natal. Gente com quem você pode conversar sobre o tempo enquanto espera o ônibus, que trabalha ao seu lado ou bem perto de você, e às vezes até lhe empresta o creme dental no banheiro. É destes que eu tenho mais medo, é com estes que eu não sei lidar.

Entrevistei muitos assassinos sem sobressalto, porque estava tudo ali, explícito. Era uma quebra. O que me parece mais difícil é lidar com o mal rotineiro e persistente, difícil de combater porque camuflado. O mal praticado com afinco pelos pequenos assassinos do cotidiano que nenhuma lei enquadra. E quando você os confronta, esboçam uma cara de espanto.

O pequeno mal está por toda parte. Possivelmente sempre esteve. Apenas que cada época tem suas peculiaridades. E na nossa somos cegados o tempo inteiro por imagens que nos chegam por telas de todos os tamanhos. E cada vez mais escolhemos as cenas que veremos, com quais nosso cérebro decidirá se comover. E as dividimos com os amigos no twitter, enviamos por email e parece até que há uma competição sobre quem consegue enviar mais rápido as imagens mais impactantes. Mas não sei se isso é ver. Não sei se isso nos coloca em contato de verdade.

Penso nisso porque acho que o mundo seria melhor – e a vida doeria um pouco menos – se cada um se esforçasse para vestir a pele do outro antes de rir, apontar e cutucar o colega para que não perca a chance de desprezar um outro, em geral mais vulnerável. Antes de julgar e de condenar. Antes de se achar melhor, mais esperto e mais inteligente. Vestir a pele do outro no minuto anterior ao salto na jugular.

Para mim é imediato me colocar na pele do homem que atravessa o corredor sem saber se vai chegar até o fim sem tombar. Mas é mais difícil me enfiar na pele das pessoas que riem, porque sinto raiva. E tenho a pretensão de não ter nada a ver com gente assim. Incorro então no mesmo erro, ao me pretender tão diferente daquele que me horroriza. É certo então que também eu cometi e cometo meus pecados de soberba. Por coerência – e eu valorizo a coerência – preciso me forçar. E eu me forço porque acredito nesse ato.

Quais são as razões delas, então? Por que ao testemunhar o homem que atravessa o shopping em passos trôpegos elas riem, se cutucam e apontam? Fiquei pensando se estas pessoas estão tão cegas pela avalanche de cenas em tempo real que para elas é apenas uma imagem da qual podem se descolar. É só mais uma cena que, como tantas a que assistimos todos os dias, não sabemos mais se é realidade ou ficção. Não é que não sabemos, apenas que parece que não importa, agora que os limites estão distendidos. Por que apenas assistimos às cenas – não as vemos nem entramos em contato.

E é esta a grande diferença num mundo de tanta visibilidade e tão pouco contato real. E o real aqui não é uma oposição entre o real e o virtual, mas o real real. Eu vejo você, eu toco em você, eu sinto a sua dor e me sujo com o seu sangue, ainda que seja pelo computador. É um jeito de estar no mundo e se relacionar com o outro disposto a se deixar tocar e a assumir os riscos de se deixar tocar. Me parece que estamos cada vez menos dispostos a isso – apesar de termos uma possibilidade grandiosa de acesso ao outro por conta da internet. Será que é isso? Dezenas de amigos no facebook e nenhum contato real, no sentido de se deixar transtornar e transformar pelo outro, para além das amenidades e da persistente troca de informações?

Será que era por isso que podiam rir? Por que não tinham nenhuma conexão com aquele outro ser humano? É curioso que agora o verbo conectar é mais usado para nos ligarmos a uma máquina que nos leva instantaneamente para a vida dos outros. Pela primeira vez somos capazes de nos conectar ao mundo inteiro. O que é mais fácil do que se conectar a uma só pessoa – ao homem doente que atravessa o corredor do shopping diante de nós. É curioso como agora podemos nos conectar – para nos desconectarmos.

E se, ao contrário, riam porque se sentiam tão conectadas a ele que precisavam rir para suportar? Pensei então que talvez pudesse ser esta a razão. Aquelas pessoas realmente enxergavam aquele homem – e por enxergar é que precisavam rir, se cutucar e apontar. Porque a fragilidade dele também é a delas, a de cada um de nós.

Nada nos garante que em algum momento da vida não estaremos nós também tentando atravessar o corredor do shopping por onde hoje caminhamos sem sentir. Nada nos assegura de que um dia não seremos nós a quase cair a cada passo. Se tivermos sorte e não morrermos de bala perdida ou de chuva, como afirmar que não usaremos fralda geriátrica ou tentaremos cobrir nossa calvície ou as marcas de uma quimioterapia com uma peruca que apenas denuncia aquilo que queríamos esconder?

Talvez seja esta a razão, pensei. Essas pessoas precisaram rir, cutucar e apontar para ter a certeza – momentânea e ilusória – de que ele não era elas. Não seria nunca. Só apontamos para o outro, para o diferente, para aquele que não somos nós. E quando apontamos para alguém é justamente para denunciar que ela não é como nós.

Neste caso, teria sido para se certificar. Elas diziam: Olha que peruca ridícula. Ou: Você viu que ele está de fralda? Mas na verdade estavam dizendo: O que acontece com ele nunca acontecerá comigo. Ou: Ele não tem nada a ver comigo. Por que deixam gente assim entrar num shopping?

Riam, cutucavam e apontavam por medo do que viam nele – de si mesmas.

São hipóteses, apenas. Uma tentativa de entender – de pensar e escrever em vez de responder com violência à violência que presenciei. E que me aniquila tanto quanto um massacre reconhecido no noticiário como massacre.

Talvez não seja nada disso. No Natal minha filha me deu de presente uma camiseta em que a Mafalda, a personagem do cartunista argentino Quino, dizia: “E não é que neste mundo tem cada vez mais gente e cada vez menos pessoas?”. Talvez ali, no corredor do shopping, não fossem pessoas – só gente. Porque nascemos gente – mas só nos tornamos pessoas se fizermos o movimento.

(Publicado na Revista Época em 17/01/2011)

Onde está Wally Sarney?

É prudente seguir este velho personagem, mas atualíssimo, na intrincada paisagem de Brasília

A imagem simbólica da transmissão da faixa presidencial de Lula para Dilma Rousseff não foi nem um nem outro – mas sim José Sarney com os dois. Quem acompanhou, viu. Estava tudo ali, como em geral está nestes grandes momentos em que os personagens se movem pelo palco e é preciso prestar uma atenção tão grande em quem se esgueira pelos cantos como em quem está no centro. O primeiro presidente operário transmitindo o cargo à primeira mulher presidenta. O discurso correto, mas pouco empolgante de Dilma. A cor da sua roupa, pérola em vez de vermelho. A filha como acompanhante da presidenta divorciada. O espalhafato com a mulher 42 anos mais jovem de Michel Temer. Hugo Chávez logo atrás de Hillary Clinton nos cumprimentos à nova governante. José Dirceu dizendo que não falaria porque a mulher não deixava. Erenice Guerra na posse (como assim?) levando seu abraço amigo à ex-chefe. A presidenta torturada pela ditadura militar passando as tropas em revista. Tudo bem significativo – por razões diversas. Mas o mais revelador era José Sarney. Para compreender a política brasileira e o Brasil é preciso saber onde está Wally. E o nosso Wally, com bigode e intenções muito diferentes, se chama José Sarney.

E onde estava Wally Sarney? Depois de passar o ano de 2009 levando chumbo como alvo de denúncias cabeludas, tanto que alguns chegaram a apostar que ele e sua dinastia tinham chegado ao fim, José Sarney estava ali, em 1º de janeiro de 2011, na presidência do Senado, dando posse a Dilma Rousseff como determina a Constituição. De quem era a voz de taquara rachada que se ouvia pelas TVs do país cantando o hino nacional? Adivinha. Quem tivemos de ouvir depois de Dilma? Sim. Tudo estritamente segundo a Constituição. Já que José Sarney teve o apoio decisivo de Lula para se manter no cargo quando as denúncias de corrupção tornavam indecente para o país que ficasse.

Onde estava Sarney depois? Pegando carona no Aerolula, o avião oficial. Carona para São Paulo e para outras geografias menos palpáveis e mais nebulosas. Para estupor das centenas de pessoas que se aglomeraram diante do apartamento dos Lula da Silva em São Bernardo do Campo para homenagear o presidente mais popular desde Getúlio Vargas, lá estava Sarney entre Lula e o prefeito Luiz Marinho. Em casa, como se viu. Chegou ali, segundo ele mesmo, “pelos caminhos da amizade e pelo reconhecimento”. E discursou: “Nele (Lula) descobri o homem de grande densidade humana, generoso, de patamar internacional. Nunca se viu antes no Brasil um presidente que falasse bem do outro. Mas eu vim aqui falar bem e dizer que ele sai consagrado por tudo o que fez”.

Não é pouca coisa que, no fim de tudo, depois de oito anos, tenha sido José Sarney a levar Luiz Inácio Lula da Silva de volta para casa ao som do Tema da Vitória – a música imortalizada nas homenagens a Ayrton Senna. “Quero agradecer ao companheiro Sarney que, quatro anos atrás, me disse que quando terminasse meu mandato ia vir até a porta do meu apartamento me entregar e veio”, disse Lula.

Na madrugada deste mesmo dia, a filha de José Sarney, Roseana (PMDB), tomou posse, pela quarta vez, como governadora do Maranhão. Com o apoio de Lula, que para isso atropelou as pretensões do PT local. E assim, como acontece há tempo demais na história deste país, o Maranhão segue sob o domínio do clã Sarney, que há décadas consegue o feito de manter o estado miserável – sempre disputando com êxito a liderança dos piores índices socioeconômicos do Brasil. No Amapá, estado pelo qual Sarney é senador, seus desmandos de coronel tem alimentado a crônica amazônica contada pelos corajosos blogueiros da região.

Até aí estava bem fácil localizar Wally Sarney, bem disposto sob os holofotes, saracoteando no centro do palco. Já na primeira semana do governo de Dilma Rousseff era importante descobrir onde ele não estava. Como, por exemplo, na posse do ministro das Relações Institucionais, Luiz Sérgio, responsável por negociar a divisão de espaços na máquina pública e a liberação de emendas parlamentares. A posse do ministro foi boicotada pelo PMDB como forma de mostrar seu descontentamento com a partilha dos cargos. E o que fez o ministro no dia seguinte ao boicote de sua posse? Defendeu a reeleição de Sarney à presidência do Senado: “Ele é um dos quadros mais experientes da política brasileira, foi parceiro do presidente Lula e certamente terá uma contribuição muito importante para o governo Dilma”.

E onde estava então o homem que não estava lá? Articulando, claro. De quem foi a ideia de defender um valor maior para o salário mínimo como forma de pressionar Dilma Rousseff na barganha por cargos? Segundo a jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S.Paulo, foi José Sarney quem sugeriu ao PMDB abraçar a bandeira do aumento do mínimo como forma de retirar do foco a disputa por cargos no governo de Dilma Rousseff, real interesse do partido. “É só falar do salário que vai virar manchete”, teria instruído o presidente do Senado em reunião com correligionários no apartamento do vice-presidente Michel Temer. O PMDB salta na garganta de Dilma e ainda faz bonito diante da população ao defender causa tão nobre.

Onde estava Wally Sarney nas últimas décadas? É uma longa ficha corrida de serviços prestados à nação. Quase sempre afinadíssimo com o poder. José Sarney apoiou a ditadura militar e foi beneficiado por ela. Abandonou o PDS (ex-Arena) que presidia por discordar da escolha de Paulo Maluf para disputar a presidência nas eleições indiretas de 1985. Ao perceber a fragmentação do PDS, dividido por disputas internas, fez uma manobra habilíssima e acabou como vice de Tancredo Neves na vitoriosa chapa de oposição. Como Tancredo adoeceu antes da posse e mais tarde morreria, Sarney virou o primeiro presidente da redemocratização. Durante os últimos 50 anos da vida do país, de um jeito ou de outro, Sarney sempre esteve no poder ou muito perto dele. E agora, aos 80 anos de idade, lá está ele, a sombra entre o operário que deixa o governo e a mulher que o assume.

A era Lula, autoproclamada como fundadora de um novo tempo, na qual “o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história”, como afirmou Dilma Rousseff em seu discurso de posse, termina assombrada pelo que há de mais arcaico na política brasileira, encarnado na figura do oligarca José Sarney. E é o PMDB de José Sarney que consome boa parte da primeira semana do governo de Dilma Rousseff em sua disputa com o PT por cargos e pelos orçamentos mais polpudos. Se o lulismo é algo novo na história do país, há algo de muito velho – e algo estrutural – que continua bem aqui, que nunca deixou de estar bem aqui. Apenas que forte e desenvolto como há tempos não se via. E que tem na figura de José Sarney sua imagem mais eloquente.

Entre os ensaios publicados sobre a história recente do país, destacam-se os do cientista político André Singer sobre o lulismo e o do filósofo Marcos Nobre na revista Piauí de dezembro. Neste último, Nobre fala sobre o fenômeno do pemedebismo – um jeito de ser e estar na política que transcende o próprio partido. “O fim da polarização. Nem petistas, nem tucanos: o pemedebismo no poder”.

Vale muito a pena ler o ensaio para compreender as últimas décadas da vida política brasileira e também as cenas a que estamos assistindo no atual momento. Ao traçar a genealogia e a linha do tempo do pemedebismo, o filósofo afirma: “De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o ‘lulismo’ foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente”.

E, em outro momento: “O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira. Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade”.

Nos acontecimentos a que se refere Marcos Nobre, Lula produziu uma de suas frases mais simbólicas das muitas de seu período no poder. Simbólica pelo que há de chocante no que disse e por ser ele a dizê-lo. E simbólica pelo que revela do momento nacional. Recordem-se. O presidente de origem sertaneja e nordestina, o ex-torneiro mecânico, o governante do povo, afirmou o seguinte: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”.

Aí está.

Enquanto sonhamos com uma reforma política, para compreender o país precisamos continuar procurando nas intrincadas cenas de Brasília, na complexa paisagem do Brasil, onde está Wally Sarney. E também – convém jamais esquecer – onde ele não está.

(Publicado na Revista Época em 10/01/2011)

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