Dólar na fralda

Quando se vive desejando. Até o fim

Aconteceu na semana passada. Ele tem 84 anos e está morrendo de câncer. A auxiliar de enfermagem do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, entrou no quarto para trocar sua fralda. Ele não permitiu. Ela insistiu. Precisava trocar a fralda, dar banho, fazer a higiene. De onde ele tirava forças para reagir com tanta veemência?

O dele era um não profundo.

Quando ela tentou mais uma vez, quase bateu nela. Ninguém tocaria nas suas fraldas.

Foi uma confusão. Até que a verdade se revelou.

Na fralda, ele guardava os mil reais da aposentadoria. Doze andares abaixo, no saguão, uma moça de 25 anos tentava subir para uma visita especial. Há algum tempo ela o ajudava com os afazeres domésticos, por assim dizer, duas vezes por semana.

Nunca antes na história do Brasil alguém escondeu dinheiro nas partes íntimas por uma causa legal. E tão inspiradora.

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Esta história real não é só curiosa. Ou divertida. É profunda. A enfermaria de cuidados paliativos trabalha com a ideia de que é possível viver intensamente até o fim. Da forma que é possível para cada um, com aquilo que é importante para cada um, no respeito à singularidade de cada um. Lá, não se morre sedado ou amarrado a tubos e fios, como acontece em tantos hospitais, em que os pacientes são alienados do fim da sua vida e nem mesmo conseguem se despedir de quem amam.

A equipe atua para deixar o doente sem dor, numa arquitetura delicada em que a medicação atenua os sintomas sem alijar a consciência. Cada decisão é tomada levando em consideração não apenas os aspectos médicos, mas a história de vida, sempre única e intransferível. Levando em consideração aquilo que é o que faz viver e tem sido tão esquecido pela prática médica tradicional: o desejo.

Não estamos vivos porque respiramos. Estamos vivos porque desejamos. E estaremos vivos enquanto desejarmos. Um pão de queijo, o calor do sol sobre o rosto, a voz de um filho, o amor de uma moça bonita.

Por isso essa história é tão excepcional. Seu simbolismo é explícito, uma literalidade. O homem que está morrendo – e que por toda vida desejou moças bonitas – deseja encerrar sua vida desejando.

Sobre uma cama de hospital, ele guarda o dinheiro na fralda. Fragilizado, ele ainda mantém o poder e a autonomia escondidos no que lhe restou de privacidade. O dinheiro que vai pagar a moça que lhe faz feliz aninhado junto à parte do corpo que lhe faz feliz.

Não havia mesmo como trocar aquela fralda, onde estava guardado o que sempre deu sentido à vida que se encerra. E que dará sentido, até o fim.

Quando chegar a minha vez de morrer, também espero estar conciliada com meu desejo – e com sua expressão mais profunda. Seja ela qual for.

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Nesta terça-feira, 15 de dezembro, faço minha estreia na TV. Depois de mais de 20 anos como repórter-canetinha, como são chamados os jornalistas dos meios impressos, sempre empunhando um bloquinho e uma caneta, peguei num microfone pela primeira vez. Fazia tempo que não me dava tanto frio na barriga, o que é sempre ótimo.

Fui convidada pela equipe do Profissão Repórter, da TV Globo, a voltar à enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual para contar a história – e as histórias – desse lugar extraordinário. Eu não poderia começar em melhor companhia: Caco Barcellos, um dos maiores repórteres do Brasil e uma das pessoas mais generosas que já conheci, dispensa apresentações; Thais Itaqui, uma jovem jornalista extremamente sensível e talentosa; e Mikael Fox, que além de ótimo repórter cinematográfico é um grande companheiro de trabalho. Ao contar essa história por imagens, não só ri e chorei, como às vezes ri e chorei ao mesmo tempo.

No ano passado, eu passei quase quatro meses no 12º andar do hospital, acompanhando a rotina da equipe de cuidados paliativos para uma reportagem de Época. Esta história pode ser lida nos seguintes links: A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava e Minha vida com Ailce. Agora, é a primeira vez que uma equipe de TV entra na enfermaria chefiada por Maria Goretti Maciel – uma médica que, tenho certeza, todos nós gostaríamos de ter por perto –, para acompanhar os surpreendentes enredos que se desenrolam naquele corredor.

Vivemos tempos estranhos. Basta ligar a TV ou acessar a internet para assistirmos a uma sequência sem fim de mortes violentas no noticiário, muitas vezes com detalhes escabrosos, sangue e vísceras. Mas a morte por doença ou velhice, a morte que a maioria de nós terá, esta se tornou um tabu. Para muitos, deve permanecer escondida, de preferência no ambiente asséptico dos hospitais.

Não é preciso ser Freud para perceber que as pessoas que não conseguem entrar em contato com o tema da morte são aquelas menos resolvidas com a vida. Agarram-se à ilusão de que se não enxergarem, se ficar bem escondido, pode ser que não aconteça.

O temor da morte é uma realidade atávica para uma espécie que tem consciência do fim. Mas a forma como encaramos o morrer é determinada pela cultura. Desde o século XX a morte foi se tornando cada vez mais oculta no Ocidente, como se fosse possível esconder que a vida termina.

As conseqüências desse silêncio que grita ecoam – mal – na vida social – e na de cada um de nós. Não só nos tantos exageros com que as pessoas tentam espichar a juventude a preços que seguidamente acabam custando muito caro, às vezes a própria vida, como na impossibilidade de cuidar de quem está doente e pode morrer. Para cuidar, é preciso primeiro enxergar.

É também esse medo que faz com que vivamos sem valorizar cada segundo, desatentos aos detalhes que tecem uma existência. Quando se faz de conta que a vida dura para sempre, esquecemos de prestar atenção na delicadeza que habita cada momento, na possibilidade irrepetível contida em cada segundo. Quando deixamos de olhar para a morte, deixamos de olhar para a vida. Parece-me que é um preço alto demais. Devemos aceitar nosso medo. Mas não podemos permitir que ele nos paralise, porque isso nos mataria antes do tempo.

A proposta da enfermaria de cuidados paliativos é poder olhar para o encerramento da vida como parte da própria vida. Natural e não necessariamente doloroso. Os enredos que se desenrolam naquele corredor comprido do 12º andar mostram que o fim também contém possibilidades se for vivido com verdade. Muito vale o perdão, as palavras finalmente pronunciadas, a reconciliação com os erros e acertos que existem em toda vida, um abraço apertado. Ou mesmo aquele prazer inesperado numa xícara de café.

A imprensa tem sido ágil ao mostrar a morte violenta. Às vezes com bastante propriedade, porque é preciso denunciar as muitas guerras não declaradas que vitimam especialmente os brasileiros mais pobres. Mas a imprensa tem se omitido ao tratar da morte mais prosaica, a morte da maioria, que não vai ter sua vida encerrada por tiro ou acidente.

Ao propor um programa sobre a morte em uma TV aberta, o diretor do Profissão Repórter, Marcel Souto Maior, foi corajoso. E eu me sinto honrada por participar deste momento. Quem assistir vai ter a oportunidade de aprender alguma coisa. E, melhor que isso, refletir para viver melhor.

Não existe bom jornalismo sem ousadia. Embora seja sustentada por anunciantes, a imprensa só sobrevive e conquista credibilidade se for além das imposições de audiência, no caso da TV e da internet, do número de leitores, no caso dos jornais e revistas. Do contrário, deixa-se reduzir a pão e circo.

Contar a história cotidiana da nossa época significa ter a coragem de tocar nos temas difíceis – aqueles que são difíceis exatamente por serem os mais importantes. Para um jornalista, ser corajoso não é uma escolha, mas uma responsabilidade. Com o público, com os leitores.

O ocultamento da morte, em nosso tempo, é um tema que repercute em todas as esferas não só da vida privada, mas também da pública, da política ao meio ambiente. Parece-me, por exemplo, que se conseguíssemos olhar com mais naturalidade para nossa morte, não teríamos consumido o planeta com a voracidade de quem precisa acreditar que a vida – a nossa e a da Terra – dura para sempre.

Também nós, jornalistas, não estamos vivos enquanto respiramos. Mas enquanto ousamos. Deixar de ousar, acomodar-se aos temas mais fáceis e palatáveis ao público, é a morte simbólica de um repórter, de uma publicação, de um programa de TV.

Para nós, fazer um programa sobre a morte foi um ato de vida. Em todos os sentidos.

Ninguém precisa se lembrar de respirar ao acordar. Mas é preciso lembrar, a cada manhã, de desejar. Este é o ato que nos humaniza. E que nos manterá vivos, até o fim.

(Publicado na Revista Época em 14/12/2009)

Medo de chester

Por que nos deixamos enlouquecer no fim do ano?

Não sei quando aconteceu. Eu era do tipo que ficava toda faceira quando via a cidade iluminada para o Natal. Achava tudo lindo. Agora, eu rosno para as luzinhas. Decorações natalinas de shoppings me irritam. Panetone, mesmo antes do episódio Arruda, me tiravam do sério. Ontem fui pegar o elevador do prédio em que moro e dei de cara com uma bota de Papai Noel pendurada na porta. Rosnei. A ideia de me reunir à manada que vai às compras gastar o 13º me arrepia. Aqui em casa, os enfeites natalinos e o pinheirinho não saem da caixa há anos. Me escondo dos amigos-secretos como posso, mas de um jeito ou outro eles me descobrem. Já são dois! Acho que virei o duende malvado do Natal. Não faço mal para ninguém nem quero estripar o Papai Noel. Mas rosno.

Rhhhhhuuuuuuuuum. Humpft. Grunft. Algo assim.

O caso é que cada vez eu fico mais louca no Natal. E vejo todo mundo ficando louco ao meu redor. Para mim, a instalação das luzinhas natalinas marca a abertura da temporada de suplício, uma versão pós-moderna da via-crúcis.

Percebo que não sou a única. Muitos sofrem pelas esquinas, querem que o ano acabe antes, prefeririam acordar no Carnaval.

Sei que há um monte de gente que adora esta época do ano. Tenho um grupo de amigas que se reuniram na casa de uma delas na semana passada para arrumar a árvore de Natal na maior empolgação. Minha mãe passa o ano guardando dinheiro para os presentes. E minha avó fazia isso antes dela. E eu preciso confessar que tenho meus momentos.

Mas uma parte da humanidade gostaria de pular esta época do ano. Tenho um amigo que, na impossibilidade de saltar as festas de fim de ano, tentou pular pela janela na véspera e passou o Natal internado numa ala psiquiátrica. Esta parte da humanidade, da qual ele e às vezes eu fazemos parte, não tem direito à voz. Somos discriminados, olhados como párias. Não possuir espírito natalino é considerado quase uma deficiência, um desvio de caráter. Além de não conseguirmos ficar felizes embaixo de um pinheiro, nós, os anti-natalinos, ainda nos sentimos culpados.

Depois que você se casa, piora. É imperativo fazer um curso intensivo de diplomacia para apaziguar as respectivas famílias. O “quem vai passar com quem” o Natal e o Réveillon vira uma obra de estrategista. Nós, os casados com famílias em diferentes cidades, não cometeríamos erros básicos como invadir a Rússia no inverno, por exemplo.

Temos visão de futuro e olhos de lince. Mas coração mole. Para agradar a todos, gastamos parte dos dias de folga peregrinando por aeroportos. Como as companhias aéreas não têm espírito natalino, deixamos uma parte do 13º salário, justo aquela que não gastamos com presentes, num daqueles aviões que nos tratam como se fôssemos chimpanzés de zoológico e só nos dão amendoins.

Quando chega a hora da ceia, estamos exaustos e famintos. Eu, por exemplo, como qualquer coisa. Já comi até larva na falta de coisa melhor numa de minhas incursões pela floresta amazônica. Mas tenho medo de chester. Medo não, pavor. Começou anos atrás. Havia congelado o chester que ganhei da firma e, num domingo de geladeira particularmente vazia, resolvi assá-lo.

Não conseguia desgrudar os olhos do vidro do forno. Era estranho demais um bicho quase só coxa e peito. Como ele não me parecia deste mundo, também não me parecia que morria. Fui buscar instruções, uma bula. Estava escrito: “ave”. Como assim, ave?

Assei, assei, assei… e o chester continuava lá, morto-vivo. Ave. Não consegui. Não sou nem vegetariana nem cristã, mas me pareceu pecado comer aquele ser inventado só para ser comido.

Depois desta tragédia anunciada, me perguntam: o que você vai fazer no réveillon? Nada. Se tudo der certo, vou estar dormindo. Sempre me dá sono um pouco antes da meia-noite. Adoro uma festa, mas nenhuma em que eu tenha de fazer balanço do ano ao mesmo tempo.
Pretendo estar ronronando no sofá azul lá de casa, depois de ver um filme, ler um livro ou divagar com o João. Mas, claro, meu projeto está ameaçado pelos milhares de fogos que vão espocar ao meu redor.

Rrrrrhhhhhhhhhhhmmmmm. Humpft. Grunft.

Por que não ir para algum paraíso tropical? Ou para o meio do mato? Porque não existe nenhuma destas modalidades nesta época do ano. Todos nós temos a mesma ideia. E, assim, todos “os lugares paradisíacos e distantes das grandes cidades” se transformam em sucursais do inferno com pernilongos sem grife e preços da Daslu. E para chegar lá você fica horas empatado no trânsito ou no saguão do aeroporto. E se você ligar o rádio do carro ou a TV para matar o tempo enquanto espera vai ouvir mensagens. Ou a voz do Roberto Carlos. Eu gosto do Roberto em todas as épocas do ano, menos nesta.

Caso pense em se distrair comprando uma revista, vai ser intimado a ticar todas as resoluções que não cumpriu no ano que passou e fazer uma nova lista de tarefas. Ou vai precisar encarar páginas e mais páginas com receitas de como mudar de vida e ser mais leve no ano que se inicia. As festas de fim de ano marcam também a época de reprodução dos especialistas em felicidade alheia. Nós deveríamos sair em bloco, empunhando bombas de inseticida, para impedir que isso acontecesse, mas estamos presos em alguma confraternização.

E tudo isso ainda pode piorar muito se, como acontece em 99% das famílias, alguém encher a cara ou surtar e acabar tudo em mágoa, com todos os nossos esforços escoando pelo ralo junto com o espumante.

Quando tudo isso acaba, o ano recém começou. Você está endividado. Exausto. Diante de você há uma lista de resoluções e uma agenda em branco. Você acabou de vencer a maior tarefa do ano e já tem diante de si uma lista delas.

Sei que é difícil compreender, em meio a tantas luzes. Mas, como no genial Bartleby, o escriturário, de Herman Melville (sempre um ótimo presente de Natal, aliás), há quem diga, diante das promessas de Ano-Novo: “Prefiro não”.

Nós respeitamos quem prefere sim. E genuinamente aprecia. Mas não discriminem quem prefere cuspir nas luzinhas de Natal. Não olhem para nós como se fôssemos primos daquela bactéria descoberta em Marte. Nós, os anti-natalinos, também temos sentimentos. E o chester é nosso amigo.

(Publicado na Revista Época em 07/12/2009)

O depressivo na contramão

O que a depressão pode nos dizer sobre o mundo em que vivemos?

Em seu último livro, O Tempo e o Cão – a atualidade das depressões (Boitempo, 2009), a psicanalista Maria Rita Kehl nos provoca com uma hipótese sobre a qual vale a pena pensar: a depressão, que vem se tornando uma epidemia mundial desde os anos 70, pode ser a versão contemporânea do mal-estar na civilização. Ela teria algo a dizer sobre a forma como estamos vivendo e sobre os valores da nossa época. Para além da patologia, a depressão pode ser vista também como um sintoma social.

O que nossa época nos exige? Euforia, confiança, velocidade. Temos de ser pró-ativos. O que ela nos promete? Se soubermos traçar nossas metas e construir nossa estratégia, atingiremos o sucesso. Se produzirmos e consumirmos, alcançaremos a felicidade. Ser feliz deixou de ser uma possibilidade esporádica para se tornar uma obrigação permanente. Para nós, seres desta época, nada menos que o gozo pleno. Fora disso, só o fracasso. E o fracasso, este é sempre pessoal. Se não alcançamos o que nos prometeram no final do arco-íris é porque cometemos algum erro no caminho. E fracassar, como sabemos, passou a ser não um fato inerente à vida, mas uma vergonha.

O depressivo, neste contexto, é a voz dissonante. É o cara na contramão atrapalhando o tráfego, como na letra de Chico Buarque. Como diz Maria Rita, é aquele “que desafina o coro dos contentes”. Ela afirma, logo no início do livro: “Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão ruidoso quanto foram as histéricas no século XIX. A depressão é a expressão do mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo desenfreado”.

Neste sentido, a mera existência do depressivo aponta, nas palavras da psicanalista, a má notícia que ninguém quer saber. Se basta ser pró-ativo, bem-sucedido e saudável, por que tantos e cada vez mais, como mostram as estatísticas, são classificados como depressivos?

“A depressão”, diz Maria Rita, “é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na contramão do seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social da sua tristeza”.

Cada época cria seus proscritos. Na época da euforia e da velocidade, nada mais desafinado do que um depressivo. Se, em vez de hoje, o depressivo, então chamado de melancólico, vivesse no romantismo do final do século XVIII, “estaria tão adequado à cultura e aos valores de sua época quanto um perverso hospedado no castelo do marquês de Sade”.

Hoje, porém, os depressivos parecem ser não só o portador de uma má notícia, mas de uma doença contagiosa. Quem quer ter por perto alguém que sofre em um mundo cuja existência só se justifica pelo sucesso e pela felicidade plena? Num mundo em que todos têm de estar “de bem com a vida” para merecer companhia?

O depressivo não apenas sofre, mas silencia num mundo em que as pessoas preenchem todos os espaços com sua voz. E não apenas silencia, mas em vez de preencher seu tempo com dezenas de tarefas, uma agenda cheia, se amontoa no sofá da sala e nada quer fazer. Não só é lento, como chega a ser imóvel. Sua mera existência nega todos os valores propagandeados dia após dia ao redor de nós – e também pelo nosso próprio discurso afirmativo e de auto-convencimento.

Ao existir, o depressivo faz uma resistência política passiva ao establishment. Obviamente, ele não é um ativista nem tem consciência disso e preferiria não sofrer tanto. O que Maria Rita nos propõe é enxergar a depressão para além dos aspectos clínicos. Enxergar também como sintoma da sociedade em que vivemos. Como a ótima psicanalista que é, o que ela nos propõe é ouvir. Neste caso, ouvir o que a depressão tem a nos dizer quando escutada como sintoma social, como expressão de um mal-estar no mundo.

Os medicamentos podem fazer enorme diferença nas depressões graves num primeiro momento, para arrancar da apatia e possibilitar uma elaboração dessa dor que permita lidar com a vida de uma forma menos paralisante. Inclusive para romper com o imobilismo e buscar uma escuta pela psicoterapia ou pela psicanálise. Os medicamentos antidepressivos têm sua hora, seu lugar e sua importância. Mas acreditar que a medicação resolve tudo é calar a dor de quem a vive. E, no âmbito social, é ignorar o que ela diz sobre o que há de torto em nosso mundo.

Afirmar que a indústria farmacêutica resolve tudo é silenciar o impossível de ser silenciado, como prova a escalada das estatísticas da depressão. Na esfera social, significa dizer que é uma ótima vida correr desde que acorda até a hora de dormir, sem ter um minuto sequer para elaborar o que de bom e de ruim viveu naquele dia. Sem tempo para viver a experiência. Ou, como diz Maria Rita, vivendo no tempo do Outro.

Acreditar que a epidemia mundial de depressão pode ser erradicada com pílulas é afirmar que no nosso mundo nada falta. E um pouco mais grave que isso: é acreditar não apenas que é possível atingir uma vida em que nada falte, como atingi-la é uma mera questão de adaptação, pró-atividade e saúde.

No âmbito do indivíduo, tratar a depressão apenas com medicamentos é tornar ilegítima a sua dor. É dizer ao depressivo que o que ele sente não merece ser ouvido porque é produto apenas de uma disfunção bioquímica. É reforçar a crença de que o depressivo não tem nada a dizer sequer sobre ele mesmo. É cristalizar o estigma. Sem contar que tentar calar os sintomas da depressão à custa de remédios leva ao embotamento da experiência, ao esvaziamento da subjetividade. O que se sente é silenciado – e não elaborado. E, ainda que alguém achasse que vale a pena se anestesiar da condição humana, o efeito do remédio, como bem sabemos, é temporário.

Para algumas pessoas, encontrar médicos que resolvem tudo apenas com pílulas vai ao encontro de suas próprias crenças – e de sua necessidade de proteção. É mais fácil acreditar ser vítimas de uma doença, uma disfunção que está fora deles, a pensar que é um pouco mais complexo e mais difícil de lidar do que isso. É mais fácil do que aceitar que ele, como sujeito psíquico, está implicado neste mal-estar. Eu tomo remédio e não preciso pensar que algo me incomoda. Eu engulo uma pílula e não preciso lidar com a inadequação que me faz sofrer.

É possível compreender que, para quem já está na contramão do mundo e é visto muitas vezes como um estorvo, ajuda não ter ainda mais essa “culpa”. Tranqüiliza pensar que aquela dor que está sempre ali foi causada por uma disfunção involuntária dos neurotransmissores. E que pode ser resolvida com um comprimido.

O problema é que a realidade mostra que não é tão simples assim. Quem já fez tratamento com antidepressivos sabe que “curar” uma depressão não é o mesmo que tratar de uma micose ou mesmo de uma pneumonia. Não basta tomar remédio: é preciso expressar a dor, é necessário elaborar o sofrimento e, em geral, mudar a vida ou a forma de olhar para a vida e para si mesmo.

Ao conversar com minha filha, também psicanalista, sobre esse tema, ela fez um comentário que cabe neste contexto. “É curioso como os filmes de ficção científica sempre usaram aquela imagem terrorífica de seres humanos levando uma injeção na nuca e se tornando embotados. Isso era assustador e nos assustava”, disse. “Agora, o que assustava passou a ser a vontade das pessoas. Elas querem tomar uma pílula, ou uma injeção na nuca, e ficar embotadas.”

Maria Rita sugere que vale a pena para todos – e não apenas para os depressivos – pensar o que a depressão está nos dizendo sobre nosso mundo. É isto ou continuar assistindo, impotentes, ao crescimento da epidemia, que atinge não apenas adultos, mas adolescentes e crianças, cada vez mais cedo. É preciso prestar atenção nesse mal-estar no mundo, escutá-lo, de verdade e com verdade, sem cair nos contos de fadas contemporâneos que transformam todos os monstros em déficits bioquímicos. Ao contrário de todas as profecias, a indústria farmacêutica não vai nos salvar de uma vida sem vida.

O livro de Maria Rita Kehl é complexo e vai muito além destas minhas primeiras interpretações. Uma das questões mais originais é a relação entre a depressão e o tempo. O depressivo seria também aquele que se recusa a se inserir no tempo do Outro. O nome do livro – O Tempo e o Cão – vem da experiência pessoal da psicanalista, ao atropelar um cachorro na estrada. Ela viu o cachorro, mas a velocidade em que estava a impedia de parar ou desviar completamente dele. Conseguiu apenas não matá-lo. Logo, o animal, cambaleando rumo ao acostamento, ficou para trás no espelho retrovisor.

É isso o que acontece com as nossas experiências na velocidade ditada pela nossa época. Diz Maria Rita: “Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (…) Seu esquecimento (do cão) se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para em seguida, com igual rapidez, esquecê-las. (…) Do mau encontro que poderia ter acabado com a vida daquele cão, resultou uma ligeira mancha escura no meu pára-choque. (…) O acidente da estrada me fez refletir a respeito da relação entre as depressões e a experiência do tempo, que na contemporaneidade praticamente se resume à experiência da velocidade”.

Por coincidência, estava zapeando na TV ontem à noite (domingo), quando encontrei a psicanalista no Café Filosófico da TV Cultura, um dos melhores programas da TV aberta. Lá, ela fez algumas considerações muito interessantes. Anotei duas delas para acrescentar a esta coluna. “Nos dizem que ‘tempo é dinheiro’. Ora, tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma violência”, afirmou Maria Rita. “Tempo é o tecido de nossas vidas”. E um pouco mais adiante: “Em qualquer sociedade, o poder se instaura por alguma forma de controle do tempo”.

Quem quiser ler o livro de Maria Rita Kehl precisa saber que é um livro difícil. Não se lê fácil como uma daquelas obras de auto-ajuda. Exige tempo, parada, reflexão. Para quem é leigo, é preciso ler e reler alguns trechos, voltar. Talvez até pular algumas partes que, depois de ler e voltar e reler, ainda assim não alcançamos. Mas vale todo o esforço.

Aprendi algo sobre isso, na semana passada, ao ouvir Benjamin Moser, autor da recém-lançada (e excelente!) Clarice, (CosacNaify, 2009), uma biografia de Clarice Lispector. Ele contou que os livros que mais gosta da escritora são os mais difíceis, aqueles que teve de ler para escrever a biografia, e não os primeiros que leu e compreendeu de imediato. Então, disse algo mais ou menos assim: “Os escritores têm de nos alcançar, mas nós também temos de alcançar os escritores”.

Achei genial. E acho que é isso. Vale a pena essa busca para alcançar alguns escritores e suas vozes a princípio obscuras. Alcançar alguém é sempre uma experiência rica – e intransferível. O livro de Maria Rita Kehl, assim como os livros mais estranhos de Clarice Lispector, vale porque ao final deste esforço há uma voz original, dissonante de todas as mesmices que ouvimos – e eventualmente repetimos.

Para mim, que acordo todos os dias – e especialmente na segunda-feira – pensando em como não sentir mal-estar em um mundo tão brutal, que exige uma velocidade que me rouba a vida, fez todo o sentido. Só consigo viver por que a cada dia minha questão crucial não é me adaptar a um tempo que não é o meu. Mas encontrar formas de me recusar a viver segundo valores que para mim não fazem sentido. É esta busca – e esta insubordinação – que me mantém em pé, ainda que cambaleando, às vezes, como o cachorro atropelado por Maria Rita, e até caindo, de tempos em tempos.

Dias atrás, ao conversar com meu amigo Toco Lenzi, um homem que como poucos recusa os valores e a velocidade desta época, ele me contou uma história de sua última passagem pelo Saara, na Mauritânia, que cabe aqui. Toco atravessa o Saara a pé, da Mauritânia a Tunísia, em etapas e sem nenhuma pressa, com nenhum outro objetivo além de viver a experiência de atravessar o Saara a pé. Eu o acompanhei na primeira parte desta jornada para escrever um livro que ainda está no começo.

Toco conheceu um tuaregue que havia deixado o Saara e vivido – muito bem – na Europa. Apesar do que teria sido considerado um sucesso pela maioria de nós, ele resolveu voltar ao deserto e ao antigo modo de vida. Toco perguntou a razão. Ele respondeu: “Vocês têm relógio, nós temos tempo”.

(Publicado na Revista Época em 30/11/2009)

Deus e a Eutanásia

Por que temos tantas certezas sobre o que é melhor para a vida dos outros?

Nesta edição de Época, publiquei uma reportagem sobre o cotidiano de Odele Souza e sua filha Flavia, em coma há 12 anos, desde que seu cabelo foi sugado pelo ralo da piscina do condomínio onde viviam, em São Paulo. Há três anos, Odele criou uma voz para sua filha condenada ao silêncio. No blog flaviavivendoemcoma, ela denuncia o perigo dos ralos de piscina e sua frustração com a Justiça brasileira. Ao conhecer o blog, o que mais me fascinou foi a narrativa do dia-a-dia destas duas mulheres, ligadas uma a outra pela duração de uma existência. Quem quiser, pode ler a reportagem Saudades de sua voz.

Ao acompanhar a rotina de Odele, fui surpreendida por alguns emails que ela recebe, a partir da exposição no blog. Histórias como a dela e de sua filha mexem com medos e convicções profundas de todos nós. Flavia vive à margem da vida, como diz Odele. Mas vive. Ainda que não se saiba se tem algum nível de percepção do que se passa ao redor dela. E ainda que, tanto na Filosofia quanto no Direito, possamos discutir o que faz de uma vida uma vida.

Não posso afirmar o que eu faria se vivesse a tragédia que Odele viveu – e vive – com sua filha. Possivelmente, o mesmo que ela. Só posso dizer que gostaria de ter a coragem e o desprendimento de cuidar tão bem da minha filha como ela cuida da dela. Há certas coisas que só sabemos vivendo. Podemos no máximo especular.

Se um dia eu estiver na situação de Flavia, gostaria de morrer. Como a legislação brasileira não permite a eutanásia, já pensei em várias maneiras de garantir o direito de encerrar minha vida se um dia estiver num coma irreversível, assim como estudo alguma forma de absolver meus familiares da responsabilidade de realizar meu desejo. Esta é uma decisão que não deveria precisar ser tomada por ninguém que ama, embora também possa ser um ato de amor, coragem e cuidado.

Ou seja. Se estivesse no lugar da mãe, faria o mesmo que Odele faz: tentaria cuidar da minha filha da melhor forma possível enquanto ela respirasse. Se estivesse no lugar da filha, preferiria ter outro destino. Entendo que o exercício do amor e do cuidado pode conter as duas possibilidades.

Minha convicção mais profunda é a de que quem vive uma situação como essa – e só quem vive – tem o direito de decidir o que é melhor para si – ou para quem ama e não pode mais responder por si. Ninguém mais: nem os amigos, nem o padre ou o pastor, nem o médico, nem a Lei, nem o Estado. Esta é uma decisão da ordem do privado. E como tal deveria ser respeitada, seja ela qual for.

O que me deixou estarrecida, ao ter acesso à parte da correspondência de Odele, é como existem pessoas que têm certeza sobre o que é melhor para Odele e sua filha, Flavia. Estas pessoas não têm dúvidas, só certezas absolutas. Elas não vivem a experiência sobre a qual disparam sentenças, mas sabem o que é melhor para quem vive. Têm todas as respostas, sempre.

Veja dois exemplos, que Odele me autorizou a publicar:

1) “Eu lhe falava sobre Deus e lhe falava que havia visto muitas curas na igreja onde estou congregando. Na última vez que estive lá, pensei muito em você e na Flavia, pois uma jovem havia sido trazida de volta do coma pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares. A justiça dos homens, infelizmente, é tardia, mas a de Deus, jamais. (….) Basta que você confie, sou mãe como você também”.

2) “Dona Odele, por favor: sente-se confortavelmente, mantenha sua coluna ereta, feche os olhos, respire fundo e solte o ar aos poucos. Procure não pensar em nada, a não ser na possibilidade de a sra. estar no lugar de sua filhinha. Com tudo o que a sra. tem observado em Flavia, procure vivenciar se fosse com a sra. Pergunto: Qual seria a sua atitude, desprovida de apego, para com Flavia?. (…) Flavia se transformou em seu sentido de vida, em sua razão de ser. Suspeito que, em suas fantasias, se ela se for, a sra. não sobreviveria à ausência física de sua filha. Em outras palavras, a sra. está vivendo um estado de simbiose assimétrica com sua Flavia. Assimétrica, pois a sra. está viva e lúcida e sua filha somente tem vida vegetativa. Isto não me parece justo. (…) Mas qual seria, a meu ver, seu grande ato de generosidade? Eu respondo: Deixar sua filha partir deste mundo de dor, sofrimento, doença, velhice e morte. Não estou propondo homicídio. Deixe a evolução da moléstia de sua filha tomar seu curso natural. (…) Para o bem de sua filha, e de seu espírito, a sra. receberia grande Luz, se, por exemplo, deixasse de virá-la de posição de 15 em 15 segundos ou de hora em hora, que seja”.

A primeira oferta é de uma mulher que se identifica como uma crente. Ela oferece um milagre. Bastaria levar Flavia à sua igreja que ela despertaria do coma. Em nenhum momento ela pensa no que um milagre não realizado causaria em Odele. A mulher não vacila. Para ela, Flavia voltar de um coma considerado irreversível pela Medicina é apenas uma questão de fé.

No texto de seu email, fica subentendido que, caso Flavia não desperte, a causa seria a suposta falta de fé da mãe. Afinal, a autora havia visto uma menina voltar do coma “pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares”. Como ela diz, “basta que você confie”. Podemos supor que, pelo seu raciocínio, todas as tragédias não revertidas acontecem por falta de fé de quem as vive. Este raciocínio me parece muito cruel: se uma tragédia não foi revertida é porque a vítima – ou, no caso sua mãe – não teve fé suficiente. É ela a culpada, em última instância.

A segunda não chega a ser uma oferta. É mais uma tentativa de persuasão – ou de adesão à certeza do autor. Também com base numa suposta caridade, ainda que não a cristã, este homem convida Odele a se colocar no lugar da filha. Ele parte da premissa de que Odele, que cuida de sua filha 24 horas por dia há 12 anos, nunca o tenha feito. Nunca tenha pensado milhares de vezes no que sua filha pode estar sentindo, nunca tenha se colocado no lugar da filha até ele lhe oferecer esse conselho iluminado.

Ele afirma, sem sequer um lampejo de dúvida, que o melhor para Flavia é a eutanásia – ou ortotanásia, como diz em outro ponto. Na parte transcrita do seu email, o que me choca é a arrogância com que ele descreve o que Odele deve fazer para se colocar no lugar da filha. Ele, um estranho, tem a ousadia de dizer a uma mãe, por meio de um email, que seu maior ato de amor seria não virar a filha de lado, para que “a natureza possa fazer a sua parte”.

Esse nível de certeza sobre a vida do outro me soa assustador. Parece-me que as relações humanas, todas elas, se beneficiariam muito da dúvida. E do exercício, sempre saudável, de vestir a pele do outro. Sem, porém, perder o senso de que, por mais perto que consigamos chegar, não estamos nem estaremos naquela pele. E estar, de fato, é diferente de se imaginar nela.

Se ambos os missivistas, uma religiosa, o outro partidário da eutanásia, por um momento tivessem se colocado na pele de Odele, talvez escrevessem com mais humildade – e humanidade. Ou simplesmente se calassem. Ambos têm direito à sua convicção. Seu direito acaba, porém, ao desrespeitar o direito de Odele de ter a sua, mesmo que seja diferente das deles.

A certeza de que a verdade pessoal deve valer para todos é um comportamento corriqueiro. Todos nós sofremos, cotidianamente, com o excesso de certezas dos que nos rodeiam, suspensos alguns metros do chão pelo volume de suas verdades absolutas. A lógica, me parece, é a de que, se alguém conseguir impor sua verdade, não precisará nunca questioná-la. Embutido nesse comportamento, além do desrespeito ao outro, à surdez ao outro, parece estar o terror de ser assaltado por uma dúvida, ainda que bem pequena.

Neste caso, Odele recusou – com educação, mas também com firmeza – as duas alternativas apresentadas para tirar sua filha do coma: o milagre e a eutanásia. Veja os trechos a seguir:

1) O que disse a religiosa no email seguinte:

“Oi, Odele, peço desculpas, mas a sua falta de educação e sua prepotência são tão grandes que só Deus para ter misericórdia de sua vida… ninguém está pregando religião, minha querida, eu estava apenas falando sobre Deus, um Deus que pode curar sua filha porque ela NÃO está morta como a filha de Glória Perez. Mas, infelizmente, apesar de você escrever que tem um amor tão grande pela sua filha, sinceramente acho duvidoso. Uma mãe procura formas de ajudar a quem ama e não discriminar e desistir e esperar apenas a justiça do homem. Muitos ímpios não sofrerão nesta terra. O que falta na sua vida é Deus, um Deus grandioso. Não use de prepotência no problema de sua filha, porque sinceramente é isso que você está fazendo”.

2) O que disse o partidário da eutanásia em outro trecho:

“O que seria o melhor para Flavia? (…) Um paciente em coma, só mantendo vida vegetal, precisa ser regado diariamente várias vezes por dia, senão a plantinha se vai. Como médico, imagino os cuidados intensivos que a sra. deve dedicar à sua filhinha para mantê-la ‘viva’. Coloco entre aspas, pois sua humanidade já se perdeu. Com todo o respeito que esta situação nos obriga a dignificar, eu lhe pergunto: Dona Odele, a sra. a mantém nesta condição, por ela – que se tivesse consciência certamente sentir-se-ia constrangida de assim ser vista por todos – ou pelo seu apego a este corpo material? Não seria melhor mantê-la viva somente em sua própria consciência? O exemplo que a sra está dando é de nobreza duvidosa. Seria isso um verdadeiro amor? Dona Odele, eu sou espiritualista (não-espírita) e não confesso nenhuma religião determinada. Pense no espírito de sua filha aprisionado numa gaiola vegetal. Não seria mais justo e despojado, tanto para sua filha quanto para a sra., libertá-lo?

Desconfio muito das pessoas enormemente caridosas que, neste momento, a enaltecem, lhe dão prêmio internacional, e por aí vai. Talvez seja apenas uma forma de elas jactarem-se de sua capacidade de compaixão. Suspeito também que a sra. corre o risco de deixar-se envolver por este halo de santidade”.

Ao terem suas “ofertas” de algum modo recusadas, ambos sentem-se no direito de desrespeitar e julgar a decisão de Odele. Não são eles os prepotentes, mas ela, ao recusar a generosidade que lhe oferecem com tanto desapego. Ambos lançam mão do mesmo golpe baixíssimo: ao discordar deles, Odele prova que não ama a filha. Não “verdadeiramente”. No primeiro caso, por que ela recusa o milagre do Deus verdadeiro. No segundo, por que recusa a eutanásia.

De novo, vale a pena tentar vestir a pele de Odele ao ler emails como estes. Como se não bastasse a brutalidade de conviver com uma filha em coma, num cotidiano onde nenhuma resposta é fácil, pelo seu computador entram pessoas que nunca a viram, nem à sua filha, mas sabem o que ela sente, conhecem o seu amor (ou a falta dele, como a acusam), e têm certeza – reparem bem, certeza – sobre o que ela deve fazer da sua vida e da vida da sua filha.

Ao ler esta correspondência, me chamou a atenção ainda outro fato: como duas posições diferentes sobre o coma, a princípio antagônicas, a da religião e a da eutanásia, se unem pelo que podem ter em comum: a intolerância. É claro que nem a maioria dos religiosos nem a maioria dos defensores da eutanásia seriam capazes de tal demonstração de desrespeito com a dor – e com a decisão – de Odele. Ou pelo menos espero que não. Mas é curioso como partidários de teses opostas podem ser mais semelhantes que diferentes na intolerância, na certeza de que a sua escolha não é apenas a única possível, mas a única certa.

Cada um sabe da sua dor. Respeitar a escolha do outro, ainda que vá contra a nossa crença, é um ato de amor, de respeito e de dignidade. Parece-me até que se ama melhor quando somos capazes de aceitar que o objeto do nosso amor tome decisões diferentes das que gostaríamos. Discordar, e ainda assim aceitar, é bem mais difícil do que apenas concordar.

Da mesma forma, ao contrário do que tantos pregam, é o número de dúvidas – e não o de certezas – que dão a dimensão da sabedoria de alguém. Todo o conhecimento humano foi construído a partir de pontos de interrogação, não de exclamação. Muito menos de pontos finais.

É fácil detectar o autoritarismo e o desrespeito na correspondência enviada à Odele. São tão evidentes quanto um anúncio em neón. Na nossa vida cotidiana, porém, nem sempre é tão fácil perceber quando saímos por aí disparando nossas certezas como uma metralhadora giratória e infalível. Desde que Odele me presenteou com a confiança do acesso a estes emails, que compartilho aqui nesta coluna, aumentei o número de vezes por dia em que duvido das certezas. Das minhas e das alheias.

Não custa nada – e poupa muita dor a nós e aos outros – parar por um minuto antes de disparar um veredicto. São apenas quatro letras:

– Será?

(Publicado na Revista Época em 23/11/2009)

A era dos adultos infantilizados

Se não conseguimos crescer, como será possível educar os filhos?

Na semana passada, um amigo me enviou um email com o anúncio de um personal organizer. Ele sugeria que eu contratasse um desses “profissionais” para arrumar a minha mesa. Era uma sacanagem, claro. Eu detenho o título de autora da mesa mais bagunçada da Época desde que entrei na equipe da revista, em janeiro de 2000. Nesse quesito, sou imbatível. Na minha mesa, é possível encontrar, convivendo ecumenicamente lado a lado (ou um em cima do outro), um saco de salgadinhos, uma imagem de São Francisco de Assis, uma lagosta de borracha e um dicionário de sinônimos. Isso em apenas um cantinho. Às vezes preciso escrever com os cotovelos grudados no corpo, porque não tenho outro lugar para apoiá-los. Embora venha cogitando ter uma mesa organizada há umas duas décadas, na minha bagunça pessoal eu acho tudo e não perco nada – ou quase nada. É o meu jeito.

Mas há algo bem interessante na brincadeira do meu amigo. A multiplicação de termos como personal e coach diz muito sobre a época em que vivemos. E sobre os adultos que nos tornamos.

O conceito de infância, como o conhecemos, se consolidou no Ocidente a partir do século XVIII. Até o século XVI, pelo menos, assim que fossem desmamadas e conseguissem se virar sem as mães ou as amas, as crianças eram integradas ao mundo dos adultos. E, como tal, eram responsáveis pelas consequências de seus atos. A infância, como idade da brincadeira e da formação escolar, ao mesmo tempo com direito à proteção dos pais e depois à do Estado, é algo relativamente novo.

Nem sempre as crianças significaram a promessa para o futuro tanto de uma família como de uma nação. A infância não é um conceito natural ou determinado apenas pela biologia. Como tudo, é também ou principalmente uma invenção cultural, um fenômeno histórico implicado nas transformações econômicas e sociais do mundo dos humanos, em permanente mudança e construção.

Me parece que hoje há algo novo nesse cenário. A partir do século XXI, vivemos a era dos adultos infantilizados. Uma espécie de infância permanente do indivíduo. Não é por acaso que os coaches proliferam. Coach, em inglês, significa treinador. Originalmente, treinador de times e de esportistas. Mas que foi ampliada para treinador de tudo, inclusive de como viver: os life coaches. Personal trainers têm função semelhante. Treinar alguém para se exercitar, comer, se vestir, namorar, conseguir amigos e emprego, lidar com conflitos matrimoniais e profissionais, arrumar as finanças e também organizar os armários e a mesa de trabalho, como na sugestão do meu amigo.

Nesses conceitos importados dos Estados Unidos, o país que transformou a infância numa bilionária indústria cultural e de consumo, a ideia é a de que, embora estejamos no que se convencionou chamar de idade adulta, não sabemos lidar com nenhum aspecto da vida sozinhos. Coaches e personal trainers podem ser eufemismos para uma função muito parecida com a da babá. Crescemos, terminamos a escola, constituímos família ou não, vamos para o mercado de trabalho, mas precisamos de alguém que arrume nossa mesa e nossa casa, nos ensine a comer direito, nos diga como namorar e conseguir amigos, nos treine para impressionar o chefe e conquistar uma promoção. Nos ensine, em programas diários, semanais, mensais e anuais, como num planejamento das metas de uma empresa, a viver, como no caso dos life coaches.

Ao nos reduzirmos a adultos que precisam de babás por total incapacidade de lidar com qualquer aspecto da vida, do sentimental ao profissional, a que renunciamos? A muito. Mas o principal é que renunciamos à responsabilidade. A construção contemporânea de infância está fundamentada no conceito de que, tanto no estatuto social quanto no jurídico, crianças são seres com direito à proteção e à educação – mas sem responsabilidade pelos seus atos. Crescer, tornar-se adulto, é justamente passar a responsabilizar-se pelos seus atos. Mas, no caso das novas gerações de 20, 30, 40 anos, se isso ainda vale para o estatuto jurídico, parece perder força no estatuto social.

Os adultos desse início de milênio parecem prolongar a infância no sentido da não-responsabilização. São sinais, aqui e ali, de uma transformação na forma de ver a si mesmo – e de ser visto. É corriqueiro testemunhar, seja no bar ou na empresa, gente que fica muito surpresa porque seus atos motivaram uma reação indesejável, uma conseqüência pela qual precisam responder. Nesse momento, vemos adultos com cara de surpresa, olhos arregalados como os de uma criança. Parecem pensar: “Mas por que eu, que sou tão bacana, tão inteligente, tão cool?”. Quando podem, chamam os pais, os advogados…. os coaches para salvá-los. A expectativa, como um direito adquirido, é a de que sempre serão “perdoados”.

Da mesma maneira, encarnam a geração do “eu mereço”. Se não há responsabilidade pelos seus atos, também não há responsabilidade pelas suas conquistas. Está cada vez mais diluída a ideia de trabalhar por aquilo que se quer com a consciência de que custa tempo, esforço, dedicação. Escolhas e também perdas, frustrações. Alcançar sonhos, ideais ou mesmo objetivos parece ser compreendido como uma consequência natural do próprio existir, de preferência imediata. É uma espécie de visão contemporânea da ideia mística de destino, de predestinação. Ou apenas uma questão de usar a estratégia certa. E, para nos ensinar a traçá-la, buscamos um business coach.

O “eu mereço” vem a priori. “Eu mereço porque eu sou eu”. Ou: “Eu existo, logo mereço”. O fazer por merecer foi eliminado da equação. Quando essa crença, tão fundamentalista quanto os preceitos de algumas religiões, fracassa, aí é hora de buscar o happiness coach (treinador de felicidade), o dating coach (treinador de relacionamentos amorosos), ohealth coach (treinador de saúde), o conflict coach (treinador de conflitos matrimoniais e profissionais), o diet coach(treinador de alimentação saudável). O life coach. É estarrecedor verificar como as gerações que estão aí – e as que estão vindo – parecem não perceber que a vida é dura e dá trabalho conquistar o que se deseja. E, mesmo que se esforcem muito, haverá sempre o que não foi possível alcançar.

Muito se tem falado e escrito sobre a falta de limites das crianças de hoje. E aqui o “de hoje” faz realmente sentido. A partir da constatação de que as crianças não param quietas um minuto, em lugar nenhum, a psiquiatria criou síndromes no mínimo curiosas. A indústria dos medicamentos estimulou a disseminação de drogas no mínimo questionáveis. Foram tecidas teses de todo o tipo, algumas delas bem estapafúrdias. Ou no mínimo curiosas.

Afinal, os professores choram em sala de aula pela prepotência dos alunos. E ninguém mais aguenta crianças berrando nos restaurantes, falando nos cinemas, atropelando nos corredores. Eu, que sou bem pouco tolerante não só com crianças mal-educadas, mas com gente mal-educada, em geral reclamo. Os pequenos e rosados pimpolhos costumam me olhar com os olhos estalados: “Mas eu sou tão fofo! Por que você não gosta de mim?”. E as mães, indignadas por eu não me render ao encanto de seus rebentos, também me olham ofendidas: “Mas ele é tão fofo! Todo mundo gosta dele. Você deve ter algum problema!”. E lá vem a ofensa predileta para atingir uma mulher: “Sua mal-amada!”.

Para além das boas hipóteses das muitas teses e debates sobre o fenômeno da infância insuportável, me parece que vale a pena pensar sobre quem são os pais dessas crianças. Se os pais são adultos infantilizados, que não conseguem se responsabilizar pelas suas vidas – e muitos nem acham que precisam… –, como esperar que suas crianças se responsabilizem? Como esperar que os pais sejam pais se continuam sendo filhos?

Esses pais continuam sendo filhos ao não responsabilizarem-se pelas suas vidas. Ao permitir que seus filhos façam o que bem entendem, não só dentro de casa, mas no espaço público, estão escolhendo o que dá menos trabalho. Sim, porque educar, botar limites, se importar, dá muito trabalho. E exige tempo, gasto de energia, esforço. Amor. O mais fácil é deixar para lá. Ou bater a porta da rua e deixar que a babá – a de seus filhos – se vire. Mas há algo mais.

Me parece que a permissividade com os filhos é uma permissividade consigo mesmo. Se os filhos encarnam o ideal dos pais, se neles estão colocados os desejos e as melhores esperanças dos pais, não seria de esperar que o ideal de pais infantilizados seja o de que os filhos possam tudo? Bem ou mal, ainda que andem pelo mundo como se não tivessem responsabilidade nem por si mesmos nem pelos destinos do planeta, em alguma medida esses adultos precisam lidar com as consequências de seus atos – ou não-atos.

É de se esperar que, para os filhos, desejem, consciente ou inconscientemente, que possam fazer tudo sem nenhuma espécie de retaliação. Aos filhos, tudo deve ser permitido. Algo como: “se para mim não está sendo assim, que pelo menos seja para os meus filhos”. Um ideal tão óbvio como é o desejo que os filhos se formem na universidade para os pais que não puderam estudar ou que o filho tenha casa própria para os pais que viveram a vida inteira de aluguel.

Desde que a infância se tornou um depositário do futuro, os pais desejam que os filhos realizem aquilo que não puderam realizar. Não seria lógico que os pais que se tornaram adultos sem se responsabilizar pela vida – sem sair da infância, portanto – desejem que os filhos possam fazer tudo? Nesse sentido, é ainda mais grave do que parece: ao permitir tudo, esses pais estão fazendo o melhor que podem para o cumprimento de suas mais caras esperanças.

Há muito para pensar. E, por enquanto – ufa! – ainda não inventaram um think coach.

(Publicado na Revista Época em 16/11/2009)

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