Para que tantos relógios se o tempo nos escapa?

Uma breve reflexão sobre a correria sem destino

Na casa da infância do meu pai havia um relógio de parede. Era precioso e ainda hoje persiste, enquanto a casa vai virando natureza no meio do mato. Meu pai e sua família viviam na zona rural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, num povoado de colonização italiana chamado Picada Conceição. Lá meu avô plantava e socava erva-mate, numa lida cotidiana que envolvia os filhos homens. Minha avó e as filhas ocupavam-se com a polenta, as cucas e a sopa, as galinhas, as roupas, a casa. O relógio de parede marcava o tempo da vida, solene sobre a mesa das refeições de domingo. Cabia aos mais velhos dar corda no relógio. Mas às vezes alguém esquecia e o tempo escapava. Descobriam então a vida parada sobre suas cabeças.

E agora? Como saberiam as horas? Redescobriam o que fingiam não saber. O relógio era só o reconhecimento de algo que já estava lá de tantas maneiras. Era a máquina do tempo numa vida em que tudo que era vivo ao redor seguia seus próprios desígnios. Acordavam com o galo, seu relógio com coração, e seguiam o dia orientados pelo sol. Esqueciam-se de dar corda porque raramente o relógio era consultado. Gostavam de ouvi-lo tiquetaquear, apenas. Orgulhavam-se da engenhosidade de sua máquina. Eles que descendiam de mortos de fome do outro lado do mundo.

Depois de algumas semanas, o silêncio do relógio tornava-se incômodo. Sentiam uma vaga inquietação imiscuindo-se pelas paredes da casa, a desconfiança de que as máquinas não deveriam parar. Tampouco se arriscavam a deixá-lo assinalar horas erradas, desarranjando o funcionamento do mundo. Meu avô então designava um dos filhos mais velhos para buscar o tempo na cidade. E, claro, fazer algumas compras. A 13 quilômetros, a cidade ficava longe para quem só contava com suas duas pernas ou as quatro do cavalo, sempre requisitado para tarefas mais sérias. E nunca se ajeitava o cavalo ou se aprumava a aranha para uma missão solitária. Só iam até lá, onde se sentiam deslocados com suas roupas de roça, para se abastecer do pouco que não trocavam por ali mesmo ou não encontravam no bem abastecido bolicho do Tio Chico. E para se apossar do tempo.

Meu avô entregava a um dos filhos seu próprio relógio de bolso, sempre parado porque só era usado em casamentos e outras ocasiões solenes da vida pública dos homens. Preso a uma corrente encimada por uma moeda de prata com a efígie de Dom Pedro II, era das poucas riquezas materiais do meu avô, herdada dos que vieram antes. O encarregado guardava o relógio no próprio bolso, esforçando-se para não machucá-lo com os calos de uma mão feita na enxada, encilhava o cavalo e galopava até Ijuí. Lá, no centro da praça principal, dava as costas para a igreja católica e postava-se diante da evangélica – ambas de frente uma para a outra e em lados opostos. Era uma traição à sua fé, mas justificava-se. Era na torre dos evangélicos que se exibia um relógio onipresente. Seus ponteiros regiam as horas da cidade. É preciso compreender que naquele tempo relógios eram bens valiosos. E possuir o tempo era para poucos.

Com máxima dedicação, um dos meus tios dava corda no relógio de bolso e acertava os ponteiros. Conferia. Enfiava o tempo no bolso. E galopava de volta. Na infância do meu pai, o tempo chegava a cavalo. Meu avô acertava os ponteiros do relógio da parede e a máquina voltava a tiquetaquear sobre a família. A ordem se restabelecia.

Meu pai herdou este grande respeito pelo tempo. Cada um de seus três filhos ganhou um relógio ao completar 10 anos. Por alguma razão ele e minha mãe chegaram à conclusão de que esta era uma idade em que podíamos começar a nos responsabilizar pelo tempo, a carregá-lo no pulso. Era um presente muito esperado e a compra do relógio envolvia uma série de debates e incursões à relojoaria de confiança. Não só porque exigia um grande investimento financeiro para o padrão de nossas posses, mas porque embora os de pulso fabricados em escala tivessem mudado os hábitos, naquela época ainda nenhum relógio era qualquer. Lembro de ter ficado algumas noites sem dormir pensando qual era o melhor modelo porque, ainda que não compreendesse a dimensão filosófica da escolha, intuía a sua importância. Este relógio marcaria o tempo da minha vida inteira.

Percorro agora a linha do tempo da minha trajetória errática cercada por relógios. A começar pelo do computador onde escrevo. Tudo ao meu redor marca a passagem do tempo, do celular ao forno de micro-ondas. As horas estão por toda parte, mesmo que eu não as queira. O tempo e as máquinas do tempo converteram-se em mercadoria ordinária.

Nem lembro em que momento perdi meu primeiro relógio, o da vida inteira, nem sei quantos outros tive até decidir que não precisava carregar nenhum no pulso porque o tempo havia se banalizado ao meu redor. Desconfio que esta perda da solenidade dos relógios tenha relação com a perda da consciência do tempo na vida de todos nós. Tantas marcações por todos os lados e o tempo se esvai como se fosse barato como um relógio de camelô. Vendemos o tecido de nossas vidas por muito pouco porque confundimos tudo.

Meu avô sabia que tempo não era dinheiro. Nunca se iludiu a esse respeito. Ele, que acompanhava o ciclo da vida das plantas e dos bichos, que dependia da terra, das chuvas e das estações, sabia que o tempo é tudo o que há entre a vida e a morte. É a riqueza imaterial da vida de um homem, de uma mulher. Não tinha estudo para conhecer as moiras da mitologia, mas pressentia que a elas pertenciam os fios do seu destino.

É muito mais verdadeira do que alcançamos a frase que todos repetimos pelos nossos dias: “Não tenho tempo”. Mas não é corriqueira e muito menos é natural. É, na verdade, uma tragédia sem herói. Desconfie sempre do que parece um dado da natureza, algo da ordem imutável do mundo, do qual você não tem como escapar. Isto sim é ilusão criada e reproduzida. Só não conseguimos escapar da morte, mas podemos morrer em vida se entregamos nosso tempo. Talvez não exista nada mais importante do que pensar sobre o que você quer fazer com o tempo que é seu. Porque se não tem tempo para o que é importante para você, para as pessoas importantes para você, por alguma razão, em algum momento, você decidiu se desapossar de você. É preciso empreender este caminho sempre árduo de resistência e voltar a encarnar o próprio corpo.

Semanas atrás um jornalista gaúcho me perguntou se eu tinha me tornado “meio baiana”, agora que, na opinião dele, eu podia dispor do meu tempo. O preconceito era claro. E a provocação também. Respondi que a questão era de outra ordem. Gosto muito da Bahia e nunca vi ninguém trabalhar tanto quanto os nordestinos em São Paulo, se era a isso que ele se referia. Perguntei a ele, então, que se gabava de correr o dia inteiro (como alguém se orgulha disso?), o que tinha feito naquele dia. Do que ele se lembrava quando parava de correr, o que tinha sido importante naquelas 12 horas entre a manhã e a noite. Ele emudeceu, mudou de expressão várias vezes. Não sabia o que dizer. Tinha feito tanto e nada.

Acho que este é um bom exercício. Pelo menos para mim. Quero chegar ao final do dia e lembrar o que fiz sem esforço. E achar que vivi bem aquele dia. Que amei bem. Que trabalhei bem. Que estava lá.

Meu avô sabia que o tempo não pertencia ao relógio. O tempo não está fora, como somos levados a acreditar. Está dentro. Só nós podemos marcá-lo. É o que fazemos com nosso tempo que dá a medida da nossa vida.

(Publicado na Revista Época em 20/09/2010)

Uma história de luz

Dez anos da vida de um jornal que reconhece a vida

Quando morreu, ele tinha umas poucas roupas usadas demais, uma flauta doce e uma pasta onde guardava sua certidão de nascimento, a carteira de identidade e recortes de jornais. Na parte de dentro da capa desta pasta, ele escrevera: “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Tudo estava ali. Com esta frase ele se inscreveu no mundo e morreu como um homem. Só pôde morrer como um homem porque viveu como um.

A frase que ele escolhera para se identificar, para atravessar o espaço e quebrar com palavras a ausência de si, é a chave para acessar a vida que se foi mas fica no registro. Quem apenas decodificasse a frase sem conseguir lê-la, poderia se enganar com o legado do homem-garoto. Num olhar superficial, ele era um menino que morria cedo, aos 20 e bem poucos anos. Tinha marcas demais no corpo, toda uma existência contada ali em cicatrizes de facadas, de surras, de picadas, um mostruário completo de todas as formas de violência inventadas, um mostruário da humanidade contada pelas suas tripas. Tanto em tão pouco, uma confusão que a vida faz com o tempo e o espaço.

Mas tudo que estava ali contado nas cicatrizes daquele corpo no necrotério só existia porque ele tinha se tornado “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Era no conteúdo da pasta que ele nomeava, nos recortes de jornal que ele escrevia com outros garotos com destinos parecidos, mas jamais iguais, que ele havia se tornado o homem que morreu.

Dito de outra maneira. Ele havia nascido Luciano Felipe da Luz. Mas só se tornou Luciano Felipe da Luz ao começar a escrever-se no jornal. Ao escrever-se, ele tornou-se homem. E só se completou homem porque passou a ser lido como homem. Esta é a sutileza de sua identidade – “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Ao colocar no mesmo patamar o jornalista e o jornaleiro, ele intuiu que escrever e ser lido eram partes do mesmo mistério. Como jornalista ele se escrevia, como jornaleiro ele se fazia ler. Luciano Felipe da Luz eliminara ali, na frase do seu legado, a mercadoria. Ele, que até então havia sido a sobra do capitalismo.

O que faz de um homem um homem? O que nos faz o que somos? A narrativa, a capacidade de nos contarmos. Mas não só. O tornar-se homem só se completa na possibilidade de ser lido, no reconhecimento da história de cada um pelo outro. É naquele reconhecimento que vemos nos olhos de quem amamos ao acordar que nos humanizamos, que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha – na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em nós.

Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou este batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.

Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há várias formas de não ver um outro. Infelizmente exercitamos todas elas e sempre inventamos uma nova. Deixamos de reconhecer um homem – no homem – quando pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e principalmente alheia a nós.

Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto, era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros que como ele disputavam os restos da rua, da polícia que o espancava. Tudo o que conhecia era ser marcado por esta violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua, um maloqueiro, um vagabundo, um sujo, um feio, um malvado. Um problema para as autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes Benz.

O que causa espanto é que Luciano Felipe da Luz tenha sobrevivido a todos os atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma interpretação parcial dos fatos mostrava que ele era filho do abandono – de vários abandonos –, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Este parto de palavras pode ter dado a ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos, Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.

Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a este fio que permitia a vida – esta maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte dele, resgatou-se como Luciano. Parecia pouco, era tudo. O suficiente para cuidar do seu corpo, agora que ele era constituído também por palavras, estas cicatrizes da alma.

Agora que não o viam mais como resto, mas como “jornalista e jornaleiro”. Agora que ele se apresentava diante do cidadão com seu crachá de jornalista e jornaleiro e oferecia o jornal que ele também escrevia. Senhor, senhora, meu nome é Luciano Felipe da Luz e eu tenho uma história. Pela primeira vez, então, dois mundos dialogavam sem medos mútuos. E descobriam que só as palavras atravessam pontes. São gestos no ar.

Infelizmente não para ninguém, mas para a humanidade inteira, a Aids já o devastava há tempo demais e o cuidado com um corpo que agora podia ser marcado também pelo amor só o roubou pouco tempo mais da morte – o que não é pouco, mas também é. Morreu na luz. No Campo Santo, a parte do cemitério reservada aos pobres, foi sepultado pelos amigos e colegas do jornal. Que perguntaram ao coveiro porque ele, como todos ali, era apenas uma cruz com número – sem foto nem nome. A resposta era que ali os corpos eram enterrados com menos de sete palmos e desenterrados depois de algum tempo para dar lugar a outro corpo de pobre.

Decidiram então registrar sua vida por escrito no jornal – e assim Luciano Felipe da Luz morreu como um homem que viveu, morreu inscrito na história. Antes, eles apenas desapareciam, invisíveis na morte como na vida. Agora, homens como ele, jornalistas e jornaleiros, morrem. E isso é um jeito de permanecer como vida.

Luciano Felipe da Luz, jornalista e jornaleiro do Boca de Rua, ficaria feliz ao saber que um dia, depois da sua morte, seus colegas de jornalismo e jornaleirismo fizeram também um filme. Nele, apresentavam Porto Alegre aos moradores de rua de São Paulo. Numa das exibições, no Centro Cultural Santander, na capital gaúcha, um espaço cultural muito valorizado e simbolicamente dentro do cofre de um antigo banco, foram barrados ao chegar. Ensinado a interceptar roupas velhas e pobres, o segurança intimou: “Quem são vocês?”. Um deles se adiantou: “Nós somos os autores”. E entraram.

Sim, eles são autores. Como autores podem viver. Como dizia Luciano Felipe da Luz: “A minha vida é sempre a sua. Se liga gente boa”.

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boca de ruaO Boca de Rua, um projeto da ONG Alice, completou 10 anos. O jornal, publicado a cada três meses, conta histórias de um mundo até então invisível, agora escrito, fotografado e grafitado por 15 moradores das ruas de Porto Alegre que se encontram uma vez por semana para decidir a pauta e reeditar a vida. Os analfabetos ditam suas palavras, todos se escrevem de alguma maneira com a ajuda de todos. Depois, é vendido nas ruas da capital por seus autores. Cada um tem a sua cota de exemplares e a renda pertence a eles.

A comemoração de aniversário, marcada para este domingo, foi suspensa porque choveu em Porto Alegre e na rua não tem telhado. Mas haverá festa quando o sol chegar. E o sol agora aparece. Aos jornalistas e jornaleiros que tornaram o Boca de Rua possível, a minha homenagem. Afinal, um jornal é exatamente isso – ou pelo menos deveria ser: o reconhecimento da vida.

Em palavras.

(Publicado na Revista Época em 13/09/2010)

Palavras em busca de adoção

A amplidão do vocabulário é a mesma da vida

Adote uma palavra antes que ela desapareça. Esta é a proposta de um site encantador, criado pelo Oxford English Dictionary. Você abre o site e há uma tela cheia de palavras carentes. Elas saltitam, se exibem, dão piruetas, na tentativa de chamar sua atenção. Basta passar o mouse em qualquer uma e ela começa a gritar: “Me escolha!” ou “Sim! Sim! Eu!” ou “Olá!” ou “Aqui!”. Se você clicar, aparece o significado e a ficha de adoção. E sugestões de como usá-la em diferentes contextos. Você elege sua pequena órfã e se compromete a levá-la para passear na vizinhança, enturmá-la no cotidiano. Nas conversas de bar, nos bilhetes e nos emails, nos pedidos de informação e até nas brigas e nas declarações de amor. A utopia contida na criação do site é que, se cada uma destas palavras zumbis voltarem literalmente à boca do povo, elas serão de novo letra viva.

Pena que é em inglês. Espero que o Houaiss ou o Aurélio ou qualquer outro dicionário ou universidade ou pessoa faça um site igualzinho com a zumbilândia do nosso português. Enquanto isso não acontece, podemos fazer a nossa parte para que o dicionário da língua portuguesa no Brasil não se torne um livro de óbitos.

Por que uma palavra morre? Como as pessoas, por várias razões. Larápio, por exemplo. Para quem já esqueceu, é um sinônimo de ladrão. Foi usado bastante no passado, inclusive pela imprensa. Hoje, está relegado ao arcaísmo. Acabaram-se os larápios? Como sabemos, muito antes pelo contrário. Mas talvez tenha acabado um certo jeito de olhar para aquele que furta ou é desonesto de outras maneiras – e a palavra larápio não deu mais conta de todas as variações de meliantes (outra!) que surgiram. Ou ainda, foi considerada emproada demais para os novos tempos. Agonizou por esvaziamento de sentido. E outras palavras precisaram nascer para atender às novas necessidades.

Quando uma palavra morre é um mundo inteiro que morre com ela. Quando uma palavra da língua portuguesa falada no Brasil desaparece, é um jeito de ser brasileiro que desaparece com ela. Um jeito de ser e de estar, de sentir a realidade, de olhar para os sentimentos e para o outro. E outras formas de ser e de estar surgem ou se impõem com palavras recém-nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E quanto mais se transforma, agrega sinônimos e gírias, mais rica é a língua e também a cultura que ela expressa.

Como amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho esta nostalgia de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas porque perderam sentido – e mais pelas invisíveis. Arrisco dizer que há um número maior de palavras invisíveis do que de palavras arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor possa compreender o texto, por exemplo, abandonamos uma população de palavras mais intrincadas. Como todas as escolhas, esta também não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter significado reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos apequenamos.

O vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo que se torna emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor: tente ser sem palavras. É impossível. Pensamos, sentimos, amamos, desejamos, brigamos, sonhamos, existimos – com palavras. Sempre com palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio, Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta Gorda. Estamos nas palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras. Quando estamos e somos nas mesmas poucas palavras, somos e estamos menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e preferir se fechar numa quitinete.

Em minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato com algumas construções de linguagem e invenções de palavras que ampliaram minha capacidade de perceber a realidade. Vinham de analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os Raimundos da Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do Nordeste. Ou as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no Amapá, que enquanto aparavam bebês pariam palavras. Como Nazira Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque a parteira mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”. Ahn? “Não tem marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de 96 anos, me explicando o ofício: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.

Todos “cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão rico como a vida. Recriavam-se nas palavras como os grandes inventores da língua escrita, autores do cânone como Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida é pobre. Não materialmente, mas de experiências.

Não dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com um vocabulário medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é medíocre porque o vocabulário é medíocre? O que se perde quando usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que deixamos de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não conseguimos nomeá-lo. Então, ele está – mas não para nós. É uma maneira de ser cego, surdo e mudo com todos os sentidos funcionando.

A rigor, não existem sinônimos perfeitos, uma palavra que tenha exatamente o mesmo significado que outra. Há palavras que expressam quase o mesmo que uma outra. Mas o quase, na língua como na vida, faz toda a diferença. “Cão” e “cachorro”, por exemplo. Parece o mesmo. Mas não é. O cão contém um distanciamento, uma frieza, que o cachorro não tem. Ou o cachorro expressa uma proximidade, contida na própria sonoridade da palavra, mais comprida, musical e leve, que o cão jamais alcançará na sua dureza de uma sílaba só. Quando tomamos tudo pelo mesmo, perdemos as nuances. Abrimos mão da graça.

Acredito que a resistência da palavra se dá na arte. Especialmente na música e na literatura – seja ela oral ou escrita. E o empobrecimento da língua às vezes acontece nos meios de comunicação de massa. Em programas de TV, por exemplo, que uniformizam a linguagem por acreditar que, se não o fizessem, não seriam entendidos por todos. Só que não existe uma linguagem padrão. O que existe é um vocabulário que se impõe pela hegemonia política e econômica. No caso de muitos programas de TV que se pretendem nacionais – e aqui não falo de nenhuma rede específica, até porque quase todas seguem a mesma cartilha –, fala-se uma espécie de paulistanês e carioquês culto, como se esta fosse a suposta língua portuguesa do Brasil.

Mas como, se o Brasil é exatamente a convivência e o diálogo de suas diferenças, se a riqueza do país e da língua se dá na diversidade? Seria muito estúpido esperar que uma ribeirinha da Amazônia usasse as mesmas palavras que um rapper da periferia de São Paulo. Que rearranjassem as palavras da mesma maneira se vêm de uma história, de uma geografia e de um estar no mundo tão diverso. Isso não os torna menos brasileiros ou faz com que pertençam menos à mesma nação – pelo contrário. Esta diversidade expressa também na linguagem é talvez a mais forte identidade do Brasil. Mas há que resistir ao seu apagamento.

Mesmo na internet, que muitos encaram como a eclosão das singularidades, duvido um pouco que de fato seja isso que esteja acontecendo. Sem negar sua fabulosa importância, o que vejo, por enquanto, é a reprodução de tribos que já existiam. Um diálogo entre iguais que se fortalecem, o que não é pouco. Mas não um diálogo de diferentes, que é o que poderia ser mais interessante. Ampliaram-se as vozes, mas parece que, para além de seus pertencimentos, seguem surdas umas às outras.

Ao deixar o Rio Grande do Sul e ir para São Paulo, eu mudei de várias maneiras. A única que lamento é a mudança que se deu pelas palavras. Para escrever no que se costuma chamar de imprensa nacional – mas que é a imprensa paulista e (cada vez menos) carioca –, abri mão de porções da minha identidade. Em vez de guri e guria, passei a falar e a escrever menino e menina. Em lugar de tu, você. E assim por diante.

Mais do que trocar palavras, o que perdi foi uma paleta de tons e de cores. Eu era capaz de expressar uma mesma realidade ou sentimento de várias maneiras, de nomear um animal ou um objeto com diferentes palavras. Era herdeira de uma língua portuguesa do interior do extremo sul do Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação promovida pelos imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo deixado junto com seu sangue por índios, espanhóis e portugueses na demarcação do território.

Eu falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma experiência singular. É natural, por exemplo, que no Sul tenhamos uma variedade maior de expressões para o frio do que no Norte e Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos forjados numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei. Mantive a experimentação da língua feita pelos personagens reais cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais padronizada.

Agora empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra. Voltar é sempre uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de mim nas palavras esquecidas, mas a partir desta experiência de uma década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante – alargada por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me marcaram.

Há duas semanas, escrevi um “cusco” numa crônica que faço em outro site e fiquei muito faceira. Ah, sim, quando eu cheguei a São Paulo eu era “faceira”, às vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais faceira que terneiro novo” – e não feliz. A vantagem, no meu caso, é que basta botar o pé na casa da minha infância que tudo volta. Minha mãe mesmo, professora de português e literatura e a melhor doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário próprio. Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem ela. Esta invenção é parte essencial do que ela é. E nos proporciona grandes momentos.

Sempre desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra preferida. Eu tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira vez que a li. Eu intuo o seu significado, mas resisto a buscá-la no dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por mim mesma antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma palavra ou um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu encalço no mundo de fora.

No caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu mistério, indevassável até para mim que a amava. Queria que ela ficasse um pouco hermética, já que o amor é sempre misterioso. Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por ela. Eu sinto a palavra, vivo ela – nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se por ciúmes ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um arcaísmo nem um regionalismo. É uma palavra da língua culta. Título de um livro de um de meus autores preferidos, um japonês chamado Junichiro Tanizaki.

Decidi dar a minha palavra para vocês. VORAGEM. Eu sou esta palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para finalmente procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss. (Dois minutos depois…) Aí está: “1. Tudo aquilo que é capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para o fundo; sorvedouro, turbilhão; 3. Grande profundeza, abismo; 4. Aquilo que provoca grandes arroubos, que arrebata, mortifica ou consome”. É tudo isso e ainda o que ela é para mim. Em mim. E o que pode ser ressignificado a partir de cada um.

Inspirada pelo site savethewords.org, escrevi esta coluna para lançar a ideia de usar uma palavra nova a cada dia. Não uma nova para todo mundo, mas uma nova para cada um. A cada manhã uma palavra inédita, pescada do oceano fundo e escuro onde elas habitam como peixes escorregadios. Uma decisão existencial mais profunda do que pode parecer à primeira palavra.

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P.S. – Se você puder, conte aqui qual é a sua palavra preferida. Como a conheceu e o que significa para você. Conte a sua história de amor com uma palavra. Ou o que uma delas fez pela sua vida. A gente conversa sobre tanta coisa – livros, filmes, sapatos, política, futebol, tecnologia, a vida alheia… –, por que não sobre palavras? Afinal, para dizer que estamos sem palavras precisamos de pelo menos duas delas.

(Publicado na Revista Época em 06/09/2010)

Ninguém quer o futuro

Vivemos um presente esticado porque o amanhã nos apavora

No passado, havia um futuro. Cresci acreditando que o futuro seria um tempo melhor. Meus pais cresceram acreditando que no futuro haveria um mundo melhor. Minha filha começou a duvidar do futuro. Meus netos possivelmente temerão o futuro. Não é uma mudança pequena. Não consigo avaliar com precisão o quanto isso nos modifica, mas escuto e olho e percebo que nos transforma. E imagino que seja uma transformação profunda. Esta vida em que preferimos não ter nenhuma representação de futuro. Já que qualquer representação baseada na realidade prevê a possibilidade do nosso fim. Não mais um fim do indivíduo, com a morte que nos aguarda a todos, mas o fim da espécie.

Tento lembrar no que eu acreditava nestes dias em que São Paulo está em estado de alerta, descendo aos 12% de umidade relativa do ar, e as capas de jornais mostram a nuvem de chumbo da poluição sobre os prédios e casas onde tentamos viver nossas vidas. Acabei de acordar e espirro sem parar. Nós, que sofremos de rinite alérgica, padecemos mais nestes dias. E eu já tomo antibiótico por causa de uma doença respiratória causada pela combinação de secura e contaminação do ar. Você quer sabe como será o mundo logo ali? Olhe para São Paulo. O pôr-do-sol tem exibido uma beleza assustadora. Poderia ser usado num filme de fim de mundo.

O que acreditávamos no futuro do passado? Ou pelo menos o que parte da minha geração, nascida sob o signo da chegada do homem à Lua, talvez tenha sido a última a acreditar? Que a ciência cumpriria suas promessas e nos libertaria do jugo do trabalho alienante. Além de nos garantir vida longa, juventude e bem-estar. Que teríamos todas as benesses da tecnologia sem pagar nenhum tributo ao planeta por isso. Que, seja qual fosse a nossa ideologia, por diferentes caminhos chegaríamos a um mundo em que ninguém mais fosse explorado ou passasse fome. Ninguém duvidava também que estaríamos viajando no espaço e desbravando outros planetas.

É verdade que a ficção científica desenhava um mundo muito mais sombrio e parecido com este aonde realmente chegamos – ou ainda chegaremos. De Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) a Philip K. Dick (Andróides sonham com carneiros elétricos?, no qual se baseou o filme cult de Ridley Scott, Blade Runner), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e outros. Mas era ficção. E tínhamos tanta certeza nas possibilidades do futuro que poderíamos ler o livro e assistir ao filme sem acreditar na imagem no espelho. O futuro, afinal, nos pertencia. Bastava depor ditadores e combater as corporações.

O que sabemos hoje é o suficiente para mudar radicalmente nosso desejo: nós gostaríamos que o futuro nunca chegasse. Diante de nós, há dificuldades de sobrevivência não apenas como indivíduo ou povo de uma nação determinada, mas como espécie. Começando, como sempre, pelos mais pobres e os mais frágeis entre nós, na geopolítica mundial e na geopolítica dentro do nosso quintal. Diante de nós se desenha uma guerra por água, alimentos contaminados e o aquecimento global. Os ditadores continuam por aí e as corporações extrapolaram as dimensões que conseguimos abarcar.

A tecnologia nos permitiu comunicação instantânea e a internet mudou para sempre nosso jeito de nos relacionar com o espaço, com o tempo e com os outros. Mas esta tecnologia espetacular faz com que o conceito de horário de trabalho tenha se tornado obsoleto e os chefes e as tarefas nos alcancem por email, torpedo e outras ferramentas que nos submetem onde estivermos, estendendo a jornada para todas as horas e confundindo espaços e limites. Mesmo os consideráveis avanços da ciência em várias áreas nos provocam desconfiança. É difícil achar que a clonagem e os transgênicos sejam apenas uma ótima notícia. E, depois da grandiosa pisada de Neil Armstrong na Lua, só conseguimos despachar umas sondinhas espaciais um pouco mais longe. Ou seja: estamos presos no planeta que exploramos além da conta. E começamos a nos sentir claustrofóbicos nele.

Assim como nos sentimos claustrofóbicos dentro de nossa própria vida. Não é a toa que tanto se fala de felicidade hoje. Este discurso da felicidade soa como um discurso do desespero. É uma noção de felicidade desconectada do real e dos sentidos dados para a vida, uma felicidade por si mesma. Afinal, torna-se difícil viver quando a melhor ideia de futuro que conseguimos ter é a quitação da casa própria depois de centenas de prestações ou a compra de uma TV com tela plana ainda maior para a Copa do Mundo no Brasil ou um carro que pode andar no deserto do Atacama, mas que vai ficar parado no trânsito da cidade.

Nossa concepção de futuro se apequenou. Restringiu-se a materialidades logo ali. Ao reduzir nossos sonhos à compra de objetos de consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida. A rejeição do futuro nos ajuda a entender a mediocridade do nosso presente. E de nossas aspirações. Explica por que, ao perguntar a alguém qual é o seu desejo, esta pessoa possa responder que é um Ipad. E ninguém estranhe.

Não é curioso um monte de gente acreditar que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012 por causa da suposta profecia de um povo para o qual o fim do mundo chegou muito antes, pelas mãos dos espanhóis? Parece ser mais fácil gastar energia e teses com um fim de mundo mirabolante do que encarar que, sim, o nosso mundo pode acabar. Não por profecias, mas como consequência de nossas ações e de nossas escolhas. Não em 2012. Mas progressivamente, como já vem acontecendo.

Dá para entender por que o fim do mundo dos maias é mais palatável. Ele não depende de nós. Não precisamos nos responsabilizar por ele. Qualquer saída é mágica. Podemos continuar sendo os mesmos cretinos com relação ao meio ambiente e aos outros, porque o apocalipse cai do céu. Com a realidade do esgotamento do planeta é mais complicado. Ela exige de nós profundas mudanças de hábitos de consumo e de comportamento. Muito além de fazer uma reciclagem de lixo mais ou menos e achar que por isso estamos fazendo a nossa parte. Exige de nós um novo tipo de ser – humano – e de estar no mundo.

É verdade que o planeta está sofrendo. E uma variedade de espécies de flora e de fauna desaparece pela nossa sanha. Mas não é o planeta que vai acabar se continuarmos nesta toada. Somos nós. Tempos atrás, assisti ao documentário De volta a Bikini (National Geographic), do mergulhador Lawrence Wahba. O documentário conta o que aconteceu ao atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, onde os Estados Unidos testaram armas nucleares nos anos 40 e 50. Numa exibição de seu poderio bélico, expulsaram a população e destruíram a natureza de uma forma atroz ao detonar duas bombas atômicas como as de Hiroshima e Nagasaki. Assim como a Bravo, a primeira bomba de Hidrogênio, o mais potente artefato lançado pelos EUA em sua história.

Passados 60 anos, o atol se recuperava, os peixes voltavam e a vida se refazia. Ao assistir ao documentário, me choquei menos com a capacidade de destruição humana, já que esta é bem conhecida. O que me chamou a atenção foi o fato de que a vida se impunha sem nós. É o que possivelmente aconteça com a Terra depois que nos matarmos. Sem nós ela se renovará e seguirá seu curso. A passagem humana será apenas um lapso de tempo – nossos milhares de anos um nada perto dos milhões em que os dinossauros dominaram o planeta como espécie. Uma história curta que ninguém vai contar.

Em uma palestra no ótimo Café Filosófico, programa da TV Cultura, a filósofa Viviane Mosé se arriscou a ser mal interpretada. Não lembro as palavras exatas, mas ela sugeria que há algo de bom no aquecimento global. Pela primeira vez algo nos une para além das convenções arbitrárias, das ideias de nação, de religião, de etnias, de ideologias e de crenças – para além de tudo o que nos divide e nos afasta. Ainda que os mais frágeis e os mais pobres sejam os primeiros a sofrer, estamos todos no mesmo planeta que se esgota pelas nossas ações. Desta vez, não vai dar para os mais ricos saírem voando numa nave espacial de luxo para um planeta novinho em folha. E, ainda que estejamos todos mortos, já que assistimos apenas ao início de um possível fim de mundo, é dos nossos descendentes que se trata. Por paradoxal que pareça, o aquecimento global nos permite olhar para o planeta e para nós como os astronautas em órbita: sem divisões.

É uma chance. Uma oportunidade de sermos melhores. Porque talvez só sendo melhores possamos voltar a ter um futuro onde ancorar. Um que valha a pena imaginar e que impulsione as ações do nosso presente. Para isso, é preciso abrir mão das várias formas de anestesia diante desta realidade. Inclusive abdicar da exigência de uma felicidade que não se conecta à vida, que só é possível alcançar por alguma droga – legal ou ilegal.

Vale a pena analisar a literatura produzida nestes tempos sem futuro – ou melhor, com um futuro que ninguém quer. A literatura de qualidade, claro – e não as catastrofistas de ocasião. Talvez o exemplo mais interessante seja A Estrada (Alfaguara), do excelente Cormac McCarthy, levada aos cinemas por John Hillcoat e já em DVD. Nele, um pai e seu filho empreendem uma jornada num mundo pós-apocalíptico. É uma fábula sobre esse tenebroso futuro sobre o qual especulamos, mas é também uma narrativa sobre a única coisa que nos salva – o amor.

Quanto mais vivo e olho o mundo, aumenta em mim a convicção de que só o amor faz sentido e dá sentido. Não este amor umbigólatra por si mesmo. Ou no máximo pelos seus. Mas o amor que só se justifica no outro, que abarca a humanidade inteira. Enquanto tentarmos salvar “o nosso”, que é o de cada um, não temos a menor chance. Desta vez, os espertos de sempre não vão se safar. Ou pelo menos não por muito mais tempo que todos os outros.

Quando é a sobrevivência da espécie que está ameaçada, não há salvação individual. Ou nos tornamos melhores todos, nos reinventamos como homens e mulheres novos a partir das necessidades de um presente que está aí ou continuaremos assistindo ao nosso fim anunciado, aceitando as progressivas limitações que já contaminam nossa vida. Estes novos homens e mulheres precisam estar conscientes da precariedade da condição humana e de sua insignificância na história do planeta. É pelo reconhecimento da fragilidade que nos une que podemos nos tornar grandes de uma maneira inédita, uma que nos permita viver e deixar viver.

Há tantos clichês, alguns até bem bonitos, sobre viver o presente. Somos povoados por orientalismos neste sentido. Mas não é simbólico. Não desta vez. Tudo o que temos agora é esse presente esticado. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Mas a questão é exatamente estar presente – no presente.

E não anestesiados de várias maneiras, como tem acontecido. Não se trata do imperativo do gozo pelo gozo, do prazer instantâneo. Não é por acaso que às vezes saímos da mesa do bar onde bebemos e alguns de nós se drogam na companhia de estranhos próximos, mas que continuam estranhos apesar do riso, com a sensação de vazio, de que nada de importante aconteceu de fato. De que por maior que tenha sido a nossa euforia e a nossa performance, não estávamos ali. Ninguém estava.

Não é isso que é estar presente no presente. Viver no presente é ser capaz de criar sentido. Escutar o outro e a si mesmo. Se arriscar a ser transformado por esse contato. Só é possível estar no presente amarrando, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Só é possível mudar se arriscando a estar. No presente. Ainda que às vezes doa. Há um filme muito bonito sobre a coragem de abdicar de uma vida anestesiada e se arriscar a estar no presente. Pode ser encontrado em qualquer locadora. E fala dessa geração que começou a temer o futuro. Em português, se chama “Hora de voltar” (Garden State, de Zach Braff).

Temos alguma chance se passarmos a determinar nosso estar no mundo por uma atitude amorosa com as pessoas e com o planeta. Começando pelas pequenas ações de todo dia, da relação com o motorista de ônibus e com a moça da padaria ao que realmente precisamos comprar e consumir, já que qualquer objeto tem um custo em recursos naturais e vai demorar a se decompor. Nenhum de nossos atos é impune. E agora, mais do que nunca, não é mesmo. Pagaremos o preço ainda nesta vida.

É uma transformação profunda. E que dá trabalho. Mudar é dificílimo. Acho que a maioria das pessoas vai continuar consumindo e se anestesiando loucamente. Sem nem mesmo perceber que é estranho ter de comprar água não contaminada ou ter dor no peito depois de uma caminhada, como acontece agora em São Paulo. Não tenho muita esperança. Mas me agarro à pouca que tenho. A de que mais gente desperte e esteja presente no presente. Para, quem sabe, reconquistarmos um futuro que valha a pena imaginar.

(Publicado na Revista Época em 30/08/2010)

Rir de si mesmo é ato civilizatório

Por que o humor é essencial para as eleições e para a vida

“Nunca vi um fanático com senso de humor”. A frase foi dita pelo escritor israelense Amos Oz, numa série de conferências sobre o mundo pós 11 de setembro de 2001, na universidade de Tübingen, na Alemanha. Ele prossegue: “Nem nunca vi uma pessoa com senso do humor se transformar num fanático, a não ser que ele ou ela tenham perdido o senso de humor”.

Lembrei deste ensaio quando vi os humoristas brasileiros promoverem, como disse Marcelo Tas, esta coisa seriíssima de ir às ruas para protestar contra a proibição de fazer humor com os candidatos em programas de rádio e de TV, como aconteceu neste domingo no Rio de Janeiro. “Humoristas são criaturas que não nasceram para organizar passeatas. Mas, diante de tamanha palhaçada no processo eleitoral brasileiro, alguém tinha que fazer alguma coisa. Mesmo que seja uma passeata de palhaços.” Numa entrevista à BBC de Londres sobre o tema, Tas, que comanda o programa CQC nas noites de segunda-feira na TV Bandeirantes, afirmou que não é simples lutar contra ignorância. Não é mesmo.

Mas, pensando em Amos Oz, me parece que pode ser ainda mais complicado: esta é uma luta contra a intolerância. Ainda que a intolerância e a ignorância possam ser feitas da mesma matéria. E que ambas venham disfarçadas, como muitas outras coisas que estão tentando nos impingir, pela embalagem cor-de-rosa do politicamente correto.

A resolução aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estabeleceu que, desde 1º de julho, as emissoras estão proibidas de “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido político ou coligação, bem como produzir ou veicular programa com esse efeito”. A decisão se baseia no artigo 45 da lei 9.504, de 1997. Quem a infringir, pode ser multado em até R$ 106.410 – valor que dobra em caso de reincidência. A norma serviria supostamente para, entre outras coisas, evitar que características e fragilidades de toda ordem dos candidatos fossem usadas com finalidades de humor em qualquer programa. E, assim, evitar que fossem “difamados” e, como consequência, “prejudicados” pelo riso dos eleitores.

Consigo entender facilmente por que uma ditadura teme o humor, a ponto de encarcerar, torturar e até matar quem o pratica. Mas por que razão uma democracia decide proibir o humor com candidatos a um cargo eleitoral? Afinal, de que estes legisladores têm medo? Por que seriam os candidatos a um cargo eletivo os únicos intocáveis? Qual é a ameaça que justifica a proibição de rir?

Engana-se quem pensa que o humor é algo trivial. Se fosse, aliás, não haveria tal proibição. Engana-se também quem pensa que possamos prescindir dele. O humor não é supérfluo, é essencial. Quando se consegue transformar uma tragédia em humor estamos consumando um ato de profunda subversão. Nos apropriamos de uma verdade para, pelo riso, torná-la ainda mais nua. Feito por homens e mulheres mascarados, por uma maquiagem de palhaço ou pelos trejeitos de um personagem, o humor é aquele que arranca as máscaras. Seja das grandes vilanias, seja das pequenas mazelas da vida cotidiana.

Rir de si mesmo é um ato civilizatório. Em qualquer eleição, talvez uma das informações mais importantes sobre um candidato é justamente se ele é capaz de rir de si mesmo. Se não for, pense bem.

Não ser capaz de rir de si mesmo é ser capaz de muitas coisas. A maioria delas bem ruins. Quem se considera imune ao ridículo, se coloca acima de todos os outros. Acredita que tudo o que faz é tão sério, é tão certo, é tão importante que, ao estar tão abarrotado de razão, não sobra espaço nem para dúvidas nem para piadas. Todos nós somos patéticos em alguma medida – e esta consciência é parte do que nos torna humanos. Quem não consegue rir de si mesmo, quando tropeça no tapete – sim, porque todos nós enrolamos os pés uma ou muitas vezes em diferentes tapetes ao longo da vida – manda demitir algum suposto responsável pela queda que acredita não lhe pertencer. Ou matar, conforme o nível de tirania do lugar onde vive.

Quem não consegue rir de si mesmo acredita que suas crenças – sejam elas ideológicas, morais ou religiosas – são mais certas que as de todos os outros. E se são mais certas devem ser impostas sobre as de todos os outros. O raciocínio seguinte é que, se as suas crenças têm mais valor, logo ele, a pessoa ou grupo que detém estas crenças, é melhor que todos os outros. E se é melhor que todos os outros a sua vida vale mais do que a de todos os outros. Logo todas as outras vidas valem menos e são sacrificáveis.

Ser capaz de rir de si mesmo é um upgrade civilizatório. Você consegue imaginar Bin Laden achando graça de alguma bobagem que fez, de algum escorregão na caverna? Você é capaz de conceber Adolf Hitler se olhando no espelho e achando seu bigodinho um pouco ridículo ou pensando que afinal suas pinturas não eram mesmo tão boas assim? Você consegue imaginar algum destes facínoras que infelizmente progridem no mundo em todas as épocas se perdoando pelo seu ridículo? Não, claro que não. Mas é fácil imaginar o que fariam com quem risse deles.

E nós? Somos capazes de rir de nós mesmos, seja na vida privada ou na pública? Não custa lembrar que o Brasil tem grandes dificuldades quando é alvo do humor alheio. Quando a família Simpson desembarcou no Rio de Janeiro no episódio “O Feitiço de Lisa”, houve uma avalanche de protestos. Na animação, o personagem Bart era atacado por pivetes e Homer sequestrado por um taxista. Em seguida, levado até a Amazônia, que ficava bem ao lado. Ao tirar o saco da cabeça de Homer, um dos bandidos diz: “Aproveita pra olhar porque estamos queimando ela toda”. Há cobras e macacos no Rio, sem contar que apresentadoras de TV balançam os peitos num programa infantil chamado “Telemelões”. Na época, a Riotur ameaçou processar a Fox, produtora do seriado de animação, e por causa disso virou piada na imprensa mundial.

Mais recentemente, o ator e comediante americano Robin Williams causou polêmica ao fazer uma piada no programa de David Letterman com a escolha do Rio de Janeiro para sediar os jogos olímpicos de 2016. Depois de dizer que Chicago, sua cidade natal, entrou em “desigualdade de condições” na disputa, brincou: “Espero que ela (Oprah Winfrey) não esteja chateada de perder as Olimpíadas. Chicago enviou Oprah e Michelle (Obama). O Brasil mandou 50 strippers e meio quilo de pó. Não foi justo”. Há quem nunca mais tenha visto os filmes de Robin Williams depois de tal ofensa à imagem nacional.

Alguns de nós – ou a maioria, como parece ter sido o caso nos dois exemplos citados – podem achar as piadas de mau gosto, preconceituosas ou mesmo injustas. Ninguém é obrigado a achar engraçado. E daí? Será que os estereótipos vieram de Marte e não contêm nada próximo de alguma verdade? Será que os humoristas do mundo inteiro teriam de passar por uma censura prévia para analisar se seus esquetes e sátiras são agradáveis para os brasileiros? O humor é necessariamente do contra. Querer que o humor seja politicamente correto é matar qualquer possibilidade de humor. Não deixa de ser curioso que num país tão gaiato em muitos sentidos seja bem difícil aceitar piadas com nosso umbigo. Já quando o assunto é o outro, aí adoramos. E achamos que está tudo bem.

A questão é que talvez não seja tão por acaso que uma lei estapafúrdia destas, proibindo de satirizar os candidatos de uma eleição, esteja aí há mais de dez anos. Sempre vale a pena olhar um pouco para dentro para perceber o quanto estamos aptos – seja como povo, seja como indivíduo – a rir de nós mesmos. Ainda que seja como princípio de uma reação a verdades que tantos nos incomodam. Talvez esta lei tenha mesmo algo a ver com a gente – e não apenas saído de cabeças mirabolantes. Neste quesito, temos muito a aprender com os Estados Unidos, onde qualquer um – e especialmente o inquilino da Casa Branca – é alvo de todo o tipo de humor como parte da convivência democrática.

Como afirmou Gustavo Binenbojm, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao jornal O Globo: “A atual lei eleitoral é própria de sociedades que passaram por períodos de ditadura militar e ainda não atingiram a maturidade da liberdade de expressão. O que é essa maturidade? Defender a liberdade de expressão ainda que, circunstancialmente, ela possa se voltar contra você”.

Fazer humor com os políticos, com os governantes e com os poderosos é obrigatório. É imprescindível. Isso faz com que sejam lembrados que, como todos os mortais, eles também são ridículos. Iguala-os. Pinça-os das estratosferas da vaidade e da bajulação onde vivem e devolve-os ao rés do chão. Os humoristas, garantidos pela liberdade de expressão existente em qualquer democracia que mereça o nome, ajudam os políticos, governantes e poderosos a se manterem no seu real tamanho – nunca muito diferente daquele do mendigo da esquina. Ou do seu eleitor. E nos ajudam a lembrar que eles pertencem ao mesmo mundo que nós. Ao mesmo ridículo.

Não é pouca coisa o que nos tiraram nestas eleições ao blindar os candidatos contra o humor. Ainda assim, não fosse o barulho dos humoristas, estaria passando batido. Isto também é bem assustador: parece que estamos ficando cada vez mais passivos diante de tantas proibições. Ninguém está apedrejando ou executando um humorista que ousa fazer humor com um candidato, como poderia acontecer nos regimes totalitários, mas criaram uma lei para nos impedir de humanizá-los com nosso riso. De lembrá-los, a eles e a nós, que somos todos patéticos em alguma medida. Esta, aliás, é uma grande qualidade do humor: ao diferenciar sua vítima, a iguala.

Neste mesmo ensaio sobre a natureza do fanatismo, Amos Oz afirma que a melhor maneira de imunizar os povos contra o germe da intolerância seria distribuir “pílulas humorísticas” às populações do mundo, caso isso fosse possível. Como não é, acho que no nosso caso poderia valer a pena lembrar que vivemos numa democracia duramente conquistada e nos somar aos humoristas para reivindicar a devolução do nosso direito de rir dos candidatos. E do direito de lembrá-los de que devem rir de si mesmos todos os dias. Assim, quem sabe, eles não transformem o país numa piada sem graça depois de eleitos.

Não deixa de ser curioso que, ao se lançar seriamente como candidato nestas eleições, o palhaço Tiririca faça sua campanha com os seguintes bordões: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou: “Vote no Tiririca, que pior que tá não fica”.

(Publicado na Revista Época em 23/08/2010)

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