O mundo se divide entre o que acontece e todos veem – e o que quase ninguém vê
Desaconteceu numa segunda-feira em que muito aconteceu.
Érica, uma pequena campesina de seis anos, não sabia. De nada.
O ditador da Líbia, elogiado até há pouco por tantos democratas, seguia matando seu próprio povo. O Japão confrontava-se com seus pesadelos mais sombrios. O cãozinho Pinpoo retornara para sua dona e transformara-se em popstar. A visita de Mister Obama ao Brasil deixara um rastro de bege.
Nesta mesma segunda-feira, 21/3, Érica também tinha um drama. O povoado boliviano onde ela vive, a 2.250 metros de altitude, é mais perto de nós do que o Japão ou a Líbia, mas muito, muito mais longe, porque há um tipo de distância que não é medida em quilômetros.
Enquanto o mundo vivia aos espasmos, Érica saltava na chuva que ameaçava deixar seu pueblo de casas de adobe exilado pelo rio que subia. Ela vestia uma camiseta de mangas curtas e uma calça de malha fina que mal lhe alcançava as canelas. Fazia um frio molhado e meus dois casacos se encolheram diante de Érica quase desnuda. Ela nos interceptou com um abraço forte, dado em mim e em Vânia Alves, assessora de imprensa da organização Médicos Sem Fronteiras. E nos levou até a sua casa tão nua quanto ela.
Ali dentro encontramos sua família acuada pela chuva. Dias antes eu testemunhara pai e filho, doentes, ararem a terra com um par de bois para plantar cebola num pedaço de chão tão pequeno que os olhos jamais perderiam de vista. Mas a água carregou o trabalho de dias, talvez semanas. E a água é como o tempo, o que carrega, carrega. Era preciso esperar a chuva passar e recomeçar. E se diluviasse quando a cebola estivesse lá, estaria tudo perdido, desfecho de mais de uma vez. E então haveria de se esperar e temer por mais um ano.
No interior escuro da casa era possível tocar o desespero contido transmitido de pai para filho. Mas também o amor pungente que unia aquela família, as duas meninas mais velhas acariciando a mãe doente numa cama, ajudando-a a vestir um casaco de lã fina para que sentisse menos frio do que elas, ajeitando as longas tranças negras raiadas de cinza e cercando-a para protegê-la de um mundo sempre tão hostil.
Mas havia mais ali. A língua deles é o quechua, um idioma e uma forma de ver o mundo que persiste deste o tempo dos incas, apesar da brutalidade da dominação espanhola e de um preconceito tão incrustado que nem mesmo Evo Morales conseguiu arrancá-lo. Nós precisávamos compreender ao entrar naquela casa com o respeito devido que aquela família agarrada a quase nada era amalgamada pela resistência. E me arrisco a dizer que ali a resistência se dá hoje mais pelo amor dolorido que sentem uns pelos outros e que os impele a se manter vivos. Sem este olhar amoroso que reconhecem nos olhos uns dos outros, haveria apenas invisibilidade, a morte antes da morte.
Perguntei ao avô de Érica, porque pai Érica não tem, o que havia para comer. Batatas. Só batatas. Há dias eu os via comer batatas cozidas na água. E nada mais. E reconhecia nos olhos febris de cada um aquela fome que não termina, que é a de todos os dias e dia após dia. Aquela fome que é assim. Você respira e sente fome. Você acorda e sente fome. Você dorme e sonha com fome. Você come a batata que lhe cabe e continua sentindo fome. Você não morre, porque as batatas não deixam. Você vive menos, bem menos, do que aqueles que têm além de batatas, mas vive. Com fome.
Este, porém, não era o drama envergonhado de Érica. Naquele dia ela estava mais séria do que nos anteriores porque sentia a gravidade que mantinha a família com os pés na terra. E sentia também a terra que teimava em escapar de debaixo dos pés. Érica tinha naquela segunda-feira algo de seu que precisava dizer.
A pequena nos rodeou, se torceu, acabou por esconder-se atrás da tia de 11 anos, talvez a mulher mais forte daquela casa. O que Érica poderia querer se precisava de tudo? Será que Érica desejava o que as crianças costumam desejar? Uma bala? Um chocolate? Uma boneca? Será que Érica queria comida? Ou dinheiro para ajudar sua família? Dólares para tapar a janela sem vidro por onde entravam seus medos mais reais.
Adivinhamos que ela nos pediria dinheiro porque viemos de uma cultura onde crianças desvalidas nos estendem a mão nos sinais de trânsito. Mas Érica só conseguia espichar sua voz balbuciante, que em seguida recolhia arrependida. Foram minutos, mas poderiam ter sido horas. Érica sofria com o que precisava fazer, mas não podia. E não pôde. Não foi ensinada a pedir, perdeu a coragem.
Nos preparávamos para partir quando Érica cochichou ao ouvido da tia que pedisse por ela. E então o drama clareou e nos jogou em outra espécie de escuridão.
Vermífugo. Érica queria vermífugo.
Enquanto Khadafi matava, o Japão tremia entre a realidade e a memória, Pinpoo voltava-se agora para os holofotes e Obama pronunciava outra meia dúzia de nadas na América Latina, Érica sofria de vermes. Talvez, como acredita Vânia, que é uma boa apalpadora de almas de criança, Érica desejasse aquele docinho do remédio para encantar sua fome.
Dois dias depois de deixarmos Érica e o seu drama envergonhado, Elizabeth Taylor, aquela que jamais morreria, morreu. Foi uma semana em que as tragédias sacudiram a rotina do mundo. Mas Érica só conhecia a dela, que não se alterava. E a dela era desconhecida de todos.
Alcancei o povoado de Érica com uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras para contar uma outra história que vai virar um livro internacional. E fui capturada pelo pedido de Érica. Enquanto no mundo tudo acontecia, ali se desenrolava um tudo que é decodificado como nada. Bem ao nosso lado, a Bolívia é um país muito, mas muito difícil de entender. Diante de sua realidade complexa, aqui mesmo no Brasil, sobra gente intelectualizada e bem alimentada disposta a soltar risinhos a bordo de suas certezas de gabinete. Porque “ah, a Bolívia é tão atrasada”. E parecem acreditar que isso é um tipo de análise.
Em meio a tantos acontecimentos, Érica é só mais um desacontecimento. E é também assim que o mundo se divide. Entre o que acontece e todos veem, assistem, comentam, tremem e choram. E entre o que ninguém vê. O equívoco é acreditar que porque ninguém vê não existe.
Desacontecida, Érica existe. Desacontecida, Érica resiste junto com sua língua. Se este é um mundo tão pródigo em imagens, e estas são tantas vezes confundidas com verdade, Érica agora tem a sua. Documentada. Uma foto feita por Vânia Alves, de MSF. Esta é Érica, que neste exato momento, desacontece.
(Publicado na Revista Época em 28/03/2011)