Protestando dúvidas

Faces e máscaras na revolta sem nome que ocupa as ruas do Brasil

Ainda não há um nome para o que aconteceu/acontece no Brasil. Só tentativas, associadas a fenômenos ocorridos em outros países, como Primavera Árabe, Occupy, Indignados. Não é algo original como “a revolta do vinagre”, como apareceu aqui e ali, também não é Passe Livre. Nenhuma tentativa de nomear os acontecimentos deu conta de sua complexidade, o que parece nos dizer alguma coisa. Talvez porque o nome ainda esteja em disputa, como tanto por esses dias. Talvez porque não seja possível nomear o que não compreendemos. Mas, sobre aquilo que permaneceu inominável, se disse muito. Na mesma proporção da ocupação das ruas por centenas de milhares de brasileiros houve uma produção de narrativas sobre o que acontecia. Fragmentadas, contraditórias, como os cartazes empunhados pelo movimento. Tento escutar algumas delas nesta coluna – não para explicá-las, porque só podemos tatear, mas em busca de pistas sobre o que essas narrativas revelam e mascaram. Se há algo que me parece claro é que máscaras ocultam faces, mas faces também ocultam máscaras.

1) Cuidado, o próximo vândalo pode ser você.

“Vândalos” e “baderneiros” foram as palavras usadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e adotadas por muitos setores para se referir aos manifestantes, de forma generalizada, até a quinta-feira (13/6). Nesta data, a violenta repressão da polícia paulista deu uma contribuição decisiva para a expansão dos protestos, não só em São Paulo como em todo o Brasil, e para o apoio da população a um movimento que até então boa parte olhava com desconfiança ou mesmo reprovação. A partir das manifestações da segunda-feira (17/6), disseminadas por várias cidades do país, momento em que o movimento recebeu a adesão de atores com demandas bastante diversas entre si, o discurso hegemônico sobre os protestos mudou. Ao longo da semana passada as manifestações ganharam a (quase) unanimidade: aqueles que antes eram “vândalos” e “baderneiros” se tornaram protagonistas de um “despertar”, faces do “gigante que acordou”. Nesse momento, os “vândalos” – esta tornou-se a palavra mais usada, às vezes trocada por “baderneiros” ou “arruaceiros” – tornaram-se, no discurso do Estado, da imprensa e mesmo da população, uma “minoria infiltrada” contra a imensa “maioria pacífica”.

Vale a pena olhar esse discurso narrativo com mais atenção. Antes de continuar, é preciso deixar claro que sou contra depredações – foi duro assistir ao ataque contra o Itamaraty, o belo prédio de Oscar Niemeyer. Também é preciso dizer que aqueles que usam a violência contra prédios e pessoas constituem mesmo uma minoria. Feitas as ressalvas, é possível pensar que essa interpretação, que divide a população entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, pode encobrir uma complexidade maior: a) Primeiro, ela isola os “vândalos” da massa de manifestantes, aceitando como unanimidade que a única forma legítima de se manifestar é não causando danos ao patrimônio, seja ele público ou privado. Logo, quem entende que atacar o patrimônio é também uma manifestação – como aconteceu muitas vezes ao longo da história do Brasil e do mundo, inclusive em acontecimentos hoje celebrados como heroicos – é automaticamente colocado fora da manifestação no discurso, como se não tivesse nada a dizer nem estivesse dizendo algo com seus atos. Me parece que, ainda que se discorde das depredações – e de novo, repito, eu discordo –, é perigoso deixar de reconhecê-la como uma forma de manifestação. É perigoso porque, ao fazê-lo, se promove um silenciamento: ao deixar de escutá-la em suas diferenças, fecha-se a porta para a compreensão de um aspecto que, querendo ou não, é uma face importante das muitas tensões produzidas pelo fenômeno. E é perigoso deixar de reconhecê-la como parte, ainda que indesejável, para todos os outros manifestantes, hoje protegidos no amplo guarda-chuva representado pela “maioria pacífica”; b) Ao dividir os manifestantes entre “pacíficos”, que seriam os legítimos, e “vândalos”, os “infiltrados”, na medida em que são aqueles que “quebram” não só a ordem e a paz, mas o patrimônio, estabeleceu-se que existe uma massa do bem, aclamada por todos, contra uma massa do mal, que deve ser isolada – ou os limpinhos contra os sujinhos. Como se sabe, os maniqueísmos nunca fazem bem para a compreensão histórica. E, afinal, quem seriam os “infiltrados”, numa manifestação de massa, heterogênea e contraditória, além de agentes do Estado (e talvez eventuais quadrilhas criminosas, presentes apenas para obter ganhos materiais?); c) Há vários riscos contidos na aceitação fácil desse discurso. Um deles é deixar de perceber que, mesmo entre os “vândalos”, há diferenças – e essas diferenças também contam desse fenômeno. Outro risco é que todo comportamento considerado indesejável poderá transformar aquele que até então era “manifestante” num “vândalo”, um conceito que tem se mostrado bastante mutável, elástico e flutuante.

É compreensível que, diante do que não se entende e não se controla, se busque classificar. Classificar é também uma forma de controle. Em especial, quando essa classificação reduz e encaixota. Pode ser esse o caso: há uma caixa para os “vândalos”, que não precisariam ser compreendidos, e há uma caixa para uma maioria pacífica, que, sim, valeria a pena compreender em sua heterogeneidade. Se poderíamos pensar os protestos como uma “terceira margem” da rua, na medida do novo que representam, do entre ruas que expressam, também se reproduz na narrativa hegemônica sobre ele um “à margem”, uma exclusão, o lugar dos que não precisam ser escutados.

Ao longo dos dias, ao ouvir as referências constantes aos “vândalos”, especialmente na TV, me veio esse estranhamento. Vândalos não me é uma palavra estranha. Como a maioria, a ouvi muitas vezes, em ocasiões as mais diversas. Mas, dessa vez, tornou-se estranha pela forma como foi dita e repetida, dando pistas de que havia ali um outro sentido. Parecia ser mesmo um “povo bárbaro”, como na sua origem. Quase esperei pelos visigodos, os ostrogodos… talvez os hunos. Em certo sentido, no discurso sobre o atual fenômeno, os “vândalos” voltaram a tornar-se um “povo” – a tribo que não deveria estar ali, saqueando Roma. Não mais “à margem” da manifestação, mas a própria margem.

É preciso aprender com a história, diz o clichê. Nesse caso, a história de uma semana atrás. Não custa lembrar que, até então, “vândalos” eram todos aqueles que atrapalhavam o tráfego, no discurso dos mesmos que hoje os aclamam como “brasileiros que despertaram”. Quem serão os próximos “vândalos”?

(Parênteses. É um fato digno de atenção que aqueles que até duas ou três semanas atrás atacavam, ridicularizavam e às vezes até criminalizavam as manifestações dos movimentos sociais organizados pelo Brasil afora estejam achando altamente cívico o atual movimento das ruas, mais ainda quando os cartazes expressam generalidades. Isso deve significar alguma coisa.)

2) Os 20 centavos: ampliação ou redução do movimento?

Há uma compreensão de parte dos que estiveram nas manifestações desde o início, de que a manutenção de uma pauta clara, no caso a anulação do aumento da passagem de ônibus, num primeiro momento, para a tarifa zero do transporte público, a médio prazo, era fundamental. Além de ser uma reivindicação objetiva, ela dava conta de uma mudança profunda: a) falava da vida dos mais pobres, na qual o péssimo e caro transporte público determina (e se relaciona com) uma série de violências cotidianas e com a aniquilação da vida; b) dizia de uma transformação estrutural do atual modelo de mobilidade urbana, que prioriza o transporte individual em detrimento do coletivo, o que implica uma série de mudanças relacionadas.

No momento em que o movimento é apropriado por outras forças e essa bandeira passa a ser ampliada com a adesão de atores muito diversos entre si, em especial da classe média tradicional, parte desses manifestantes originais entende que o que pareceu uma ampliação foi, de fato, uma redução. Afinal, é bastante fácil reivindicar o fim da corrupção ou a paz, palavras de ordem tão bonitas quanto etéreas. Alguém sairia às ruas para pedir mais corrupção e mais violência? Difícil. Alguém se pronunciaria contra reinvindicações tão unânimes? Obviamente não. Paz e fim da corrupção, para citar apenas duas bandeiras que apareceram nos cartazes e nas entrevistas dos manifestantes, estão no cardápio de todos – assim como nas promessas vagas de governantes de qualquer partido. O que os manifestantes originais pretendiam – e pretendem – era algo que mexia com estruturas e privilégios, que dava conta de um modo de ver o mundo: tarifa zero para o transporte, assim como se optou em momentos históricos anteriores pela criação do SUS e pela gratuidade da educação pública.

Em parte, me parece que os manifestantes que avaliam existir uma redução qualitativa do movimento – e não uma ampliação – têm razão. Em parte, não. Ainda que o povo tenha ido às ruas com reivindicações amplas e mesmo contraditórias entre si, foi essa adesão que levou à redução da tarifa em São Paulo e em outras cidades, o que não é pouca coisa. Como era a única demanda objetiva, era a resposta objetiva que se poderia dar na perspectiva de arrefecer as ruas. O que acabou não acontecendo (ainda).

O movimento ganhou outras formas com a ampliação da adesão – e também outra força. Se há um risco na amplitude das reivindicações – algumas delas tão vagas quanto contraditórias, outras bastante precisas –, é poderosa essa expressão de repúdio a escolhas feitas pelos governantes, ao modo de fazer política, à falta de qualidade da vida cotidiana e à carência de representatividade no espaço público/político. Quando nos perguntamos se haverá mudanças concretas a partir dessas manifestações, me parece que precisamos compreender que a mudança já aconteceu. Mesmo que as ruas voltem a se apaziguar, nesta ou nas próximas semanas, a mudança já aconteceu. Outras poderão acontecer, mas há algo profundo que já mudou. Na vida pública, coletiva, mas também na individual, existe algo que já penetrou pelas frestas da nossa subjetividade.

Há uma preocupação sobre quem se apropriou do quê, sobre os riscos de uma guinada conservadora, sobre o uso por um ou outro partido, sobre o suposto desvirtuamento do movimento, sobre manipulações as mais diversas. São preocupações importantes. Mas isso é política. Ou alguém pensou que seria um passeio na Avenida Paulista? O jogo é pesado, é de gente grande (mesmo quando jovem). E é também nas ruas que essa disputa – política – precisa ser travada.

Nesse embate, talvez exista ainda algo de pungente e mais subjetivo, para além dos interesses imediatos: o desejo de não ficar de fora de algo tão especial, tão “histórico”, como foi dito e repetido, ainda que não se entenda direito o que é.

(Parênteses. Houve um certo susto com relação ao que é o povo nas ruas – e não apenas por parte das autoridades. Quando o povo vai às ruas, é sempre incontrolável e imprevisível. É ingenuidade pensar que será apenas bonito, como se, de repente, as pessoas todas expressassem somente bons sentimentos. São humanos os que estão nas ruas, com todos os seus desvãos. São os mesmos que xingam no trânsito, cometem pequenas ou até grandes vilanias no dia a dia, vomitam discursos de ódio protegidos pelo anonimato. O Brasil é um país violento, ao contrário do que se diz, e não só por conta dos homicídios e dos arrastões, mas pela violência contida nas relações cotidianas de todos nós, do mau atendimento em toda parte à intolerância com o outro em sua mínima diferença. Se há algo que as redes sociais já nos mostraram é o quão profundos são os desvãos humanos, aqui, em todo canto. É com isso que temos de lidar, tanto dentro quanto fora. Compreendo a decepção de alguns com “o povo”, mas, lamento, o pacote é completo.)

3) “A voz das ruas deve ser ouvida e respeitada”, disse a presidente, que até então preferia não escutá-la.

É ampla e complexa a pauta de porquês que colocou mais de um milhão de brasileiros nas ruas. Mas é bastante provável que pelo menos uma parte dessa composição de insatisfações esteja relacionada à pouca disposição de Dilma Rousseff para escutar os movimentos sociais. Lula era um político imensamente mais hábil do que Dilma. Mesmo quando sua popularidade aumentou, no segundo mandato, ele pelo menos ouvia movimentos sociais – ou “fingia ouvir”, como atestam alguns. Muitas vezes fazia o oposto do que havia dito e garantido que faria, mas recebia seus representantes, cuidava para que os interlocutores se sentissem amplamente acolhidos e saíssem satisfeitos. Essa era uma entre as muitas explicação para que quase nada colasse nele, já que as pessoas acabavam atribuindo os revezes à estrutura do gove rno, a assessores mal intencionados, jamais a um presidente tão carismático. Dilma, não. Se a presidente pensa diferente, não sei, mas todos os sinais que deu, desde que tomou posse, é de que não queria nem achava importante receber os movimentos sociais – os que restaram e não foram cooptados pelo governo.

Enquanto fez amplas concessões a setores como a bancada ruralista, para garantir apoio no Congresso, e deixou áreas consideradas menos estratégicas para serem ocupadas por políticos da estirpe de um Marco Feliciano, a presidente visivelmente se irritava com os pedidos de audiência e as reivindicações dos movimentos sociais. É algo da personalidade dela, como já ficou claro, mas seria injusto acreditar que é apenas uma escolha – ou limitação – pessoal da presidente. A exiguidade crescente dos canais de interlocução com a sociedade devem-se também a uma arrogância do PT, como partido no poder.

Confiante de que a popularidade tanto de Lula quanto de Dilma seria mantida pelos beneficiários de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, como de fato tem se demonstrado até aqui, assim como pela inclusão real e importante de uma parcela significativa da população na última década, o PT parece ter acreditado que não precisava mais nem ouvir, nem negociar com os movimentos sociais. Assim como talvez tenha se preocupado menos do que deveria com a necessidade de contratar militantes nas últimas campanhas eleitorais, justo ele que costumava botar uma massa vermelha e convicta nas ruas.

Se a população mais pobre e desorganizada, que o cientista político André Singer denomina de “subproletariado”, tinha passado a garantir as urnas, para que se esfalfar com as reivindicações dos movimentos sociais, geralmente em nome das bandeiras históricas do partido? Ao escolher com quem precisava negociar e com quem não era mais necessário negociar, o PT afastou-se de aliados fiéis, assim como de suas bases tradicionais. Ao fazer crescentes concessões a novos e inconstantes aliados, movidos por interesses muito divergentes do que o PT defendia num passado muito recente e que mudam de lado em um segundo conforme conveniências privadas, desagradou a parcela da sociedade que historicamente esteve ao seu lado. Sempre em nome da “governabilidade”, guarda-chuva que supostamente tornaria tudo não só justificável como aceitável. É verdade que a máxima de que “os fins justificam os meios” foi adotada por todos os partidos no poder desde a redemocratização, mas também é verdade que do PT se esperava mais. E de quem se espera mais, também se cobra com mais veemência.

Não sei afirmar em que medida isso influenciou o movimento das ruas, apenas dizer que é uma pista a ser levada em conta na tentativa de compreender o fenômeno, já que o partido das ruas se descobriu apartado das ruas. E suspeito que não seja apenas por conta da ignorância dos jovens sobre a história do país e do lugar do PT nessa história. Inclusive porque foi o PT que, muitas vezes antes, esqueceu-se de sua própria trajetória. E se esforçou para que a esquecêssemos.

Nem por um segundo acredito que o lugar desqualificado da política convencional e dos partidos no imaginário dos manifestantes nas ruas seja responsabilidade exclusiva do PT. Nenhum partido escapa de compartilhar a responsabilidade pela desqualificação da política – e alguns possivelmente tenham contas maiores a acertar com a sociedade. Não é de hoje que as ruas vêm expressando seu descontentamento, sua sensação de não ser parte das decisões tanto dos governos quanto do legislativo, já que o voto é fundamental, mas não pode ser o único instrumento de participação numa democracia. No início deste ano, 1,6 milhão de pessoas assinaram a petição “Fora, Renan!”, o homem que saiu do Congresso pela porta dos fundos, para não ser cassado por corrupção, e voltou como presidente do Senado. Esta e outras manifestações foram pouco escutadas ou mesmo ridicularizadas como “coisa de ativistas de sofá”. Esqueceram-se de perceber que as ruas virtuais são bem reais. O que era virtual, no sentido de apartado da realidade, talvez fosse a propaganda de um Brasil próspero e feliz, com desejos restritos a bens de consumo.

É triste a expulsão de manifestantes com bandeiras de partidos nos protestos de quinta-feira (20/6). Concordo que seja autoritária, violenta e estúpida. Assim como é triste o ataque aos prédios das instituições, na medida em que mesmo os anseios mais díspares expostos nos cartazes dos manifestantes só poderão se realizar com o fortalecimento das instituições – e não com a sua destruição. Mas é preciso reconhecer que quem primeiro desqualificou os partidos e as instituições foram seus próprios membros. A crise de representação expressada pelos manifestantes nas ruas há muito vem sendo exibida nas redes sociais pela frase “Fulano não me representa” ou “Beltrano me representa”.

No pronunciamento de sexta-feira (21/6), Dilma Roussef disse que era preciso “ouvir a voz das ruas”. As próximas semanas mostrarão se Dilma acredita que é preciso ouvir a voz das ruas – ou acredita apenas que é preciso dizer isso para estancar a perda de popularidade e não comprometer a reeleição. O mesmo vale para governadores e prefeitos de todos os partidos.

(Parênteses. Há uma ironia irresistível nessa história. Lula apresentou Fernando Haddad como “o novo”, na campanha para prefeito de São Paulo, e funcionou. O bom era “o novo”, era “o novo” que o povo queria, o velho não servia para nada, inclusive porque implicava responder por uma história, enquanto no novo a história estava por ser escrita e no papel em branco cabe tudo. Esse truque de marqueteiro arregimentou adeptos e há muito político rodado se lançando como “o novo” por aí. Bem, “o novo” finalmente se apresentou nas ruas da cidade. E agora?)

4) O que é Copa, o que é futebol – o que é deles, o que é nosso

Uma pequena cena da periferia de São Paulo pode dar algumas pistas sobre as manifestações contra a Copa do Mundo na “pátria de chuteiras”. Às 23h de quarta-feira (19/6), o poeta Sérgio Vaz hasteou a bandeira do Brasil no bar do Zé Batidão, na Zona Sul da capital paulista. Era o encerramento daquele que talvez seja o maior sarau de poesias do país, a Cooperifa, frequentado por moradores das quebradas e por alunos da rede pública da região. Naquela quarta-feira particular, alguns dos poetas mais jovens estavam roucos de tanto gritar nos protestos. Vaz sublinhou o que já havia dito no início do sarau: “Estamos hasteando a bandeira não por causa da Copa das Confederações, não por causa da vitória do Brasil no futebol, mas por causa da conquista do povo nas ruas”.

Era uma pequena cena compondo o painel – multifacetado e polifônico – de um grande momento. Sua força é que, horas antes, Neymar fizera um gol espetacular e dera um passe para um segundo gol contra o México, mas isso era menos importante. O que se tornara digno de comemoração foi o que havia acontecido alguns minutos depois do final do jogo: o anúncio, pelo governador Geraldo Alckmin e pelo prefeito Fernando Haddad, da redução do valor das tarifas do transporte público, para atender ao clamor do povo nas ruas.

Vale a pena reservar um parágrafo para a descrição do lugar no qual se desenrola essa cena. Aos fundos do bar, sobre uma estante de livros em que se misturam clássicos do cânone a novelas românticas de banca de revista, estão os orgulhosos troféus do “7 Velas Caveirão”, time que foi patrocinado pelo mineiro Zé Batidão, o dono do bar. Sérgio Vaz sonhava, muito antes de ser poeta, com ser craque de futebol. Boa parte dos que ali estavam são torcedores fanáticos ou quase. Entre os programas da Cooperifa está um intercâmbio com times de futebol de várzea: em troca de uniforme, os jogadores levam suas famílias para ouvir de rap a Castro Alves nas quartas-feiras. Futebol e poesia, ali, habitam a mesma palavra. Ainda assim foi preciso dizer que o gol do Neymar não estava naquela bandeira do Brasil, no momento em que o povo dela se reapropriava.

Ao negar a importância da vitória do Brasil no jogo da Copa das Confederações, o que se afirmava era exatamente a posse do futebol como algo do povo – e não do Estado, nem das empreiteiras que expulsam a população e arrebentam favelas para construir estádios. Ao recusar o custo social da Copa é o futebol que se afirma. Não o futebol dos cartolas, das quadrilhas, dos contratos milionários e dos jogadores movidos a cifrões, mas o futebol como elemento constitutivo de identidade, no momento em que essa identidade ganha fluidez e contornos indefinidos nas ruas do país.

Não acho que os protestos foram planejados para a Copa das Confederações, pelo menos na medida em que ninguém poderia prever a proporção que tomaram. Mas também não acho que o momento seja apenas uma coincidência. Ainda vamos precisar compreender melhor o lugar do futebol e da Copa nessa convulsão das ruas. Quando sonhou com a Copa do Mundo no Brasil, Lula possivelmente pensou com a cabeça da década de 70, com a simbologia da ditadura que marcou a época da juventude dele e de tantos. Mas, ao recusar o custo social da Copa, o povo talvez esteja dizendo: “A Copa do Mundo não é nossa; o futebol, sim”.

(Parênteses. Sérgio Vaz ainda lembraria, com sua ironia certeira: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando a evolução para balas de borracha”.)

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Em sua crônica da semana passada, na Folha de S. Paulo, o ótimo Antonio Prata fez a síntese precisa do momento: “Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância”. Desde então, tornou-se quase um estilo começar um artigo dizendo que “ninguém está entendendo nada do que está acontecendo” – alguns com sinceridade, outros como mote para dizer que ele ou o veículo que representa, sim, está entendendo alguma coisa.

Aos que fazem essa afirmação com sinceridade, gostaria de dizer que concordo. Mas gostaria de dizer também que sempre foi assim. Toda reflexão sobre a história em movimento é um esforço para compreender o momento no qual estamos todos tateando a partir de referências do passado e investigações do presente – sempre fragmentadas, incompletas e aquém, por maior que seja o nosso empenho. O que oferecemos ao leitor são nossas melhores e mais profundas dúvidas – e é com dúvidas que vamos construindo a narrativa complexa do cotidiano. O risco seria, com medo da ruptura também em nossos padrões de pensamento, repetirmos certezas viciadas para não escutar o novo. Se existe uma potência possível, ela se dá na coragem de sustentar nossas incertezas.

Uma das melhores frases para esses dias sem nome foi postada pelo poeta Carlito Azevedo, no Facebook:

– Quem não estiver confuso, não está bem informado.

(Publicado na Revista Época em 24/06/2013)

 

Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”

A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.

A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável.

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.

Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis”.

A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinseicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.

Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (…) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.

A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.

A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.

Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.

Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.

Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.

E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.

(Publicado na Revista Época em 20/05/2013)

Índios, os estrangeiros nativos

A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas semanas.

Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte. Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar com mais atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.

Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não estariam reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de obra barata ou semi-escrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar o país com seus insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que alguns setores da sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio seria, quando não desaparecer, ao menos silenciar.

No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800 quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto dinheiro, que parar seja quase impossível.

Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no seu direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los? Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política. É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração. Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até agradecer aos chefes brancos por isso.

Quando os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses, inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos” ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto.

Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes. Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.

Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer: afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum programa de transferência de renda do governo.

Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais. Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista Fabiano Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato Grosso do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos degradados. Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e agradar a bancada ruralista.

O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as primeiras 16 páginas do resumo do Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na internet.

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.

A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da produção, certa assistência e farta alimentação”.

Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560 indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É necessário fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte, não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.

(Publicado na Revista Época em 10/06/2013)

 

Açúcar, Sal e Gordura: as engrenagens da ‘junk food’

O que colocamos em movimento ao abrir um saquinho de batatas fritas ou um refrigerante? Um livro e um documentário nos ajudam a compreender os métodos da indústria de alimentação e suas consequências nada inocentes

Tenho um amigo que tenta me ensinar como é o modo “perfeito” de comer uma determinada batata frita industrializada. “Você coloca sobre a língua, mas virada para cima, e deixa que as papilas gustativas entrem em contato com a batata. Aí pressiona delicadamente, com os dentes, num crac. Ela vai se desmanchar em puro prazer.” É assim mesmo que ele fala e, ao falar, sua voz ganha solenidade. Ele fecha os olhos para demonstrar a intensidade da sua fruição. Em seguida, me pergunta: “Você sentiu o crac, seguido pela explosão de sabores”?

Meu amigo trata a batata como se fosse uma hóstia, e sempre achei graça da sua devoção por algo que vem dentro de um tubo, nos sabores mais bizarros, mas que, sim, desmancha na boca e dá prazer. A junk food (comida e bebida tranqueira, porcaria e que faz muito mais mal do que bem) não é a minha igreja. Embora já tenha lido artigos e livros e assistido a alguns documentários sobre os métodos da indústria da alimentação, que muito se parece com a do tabaco, eu não tinha uma ideia tão precisa de que, ao expressar seu deleite, meu amigo transformava-se não apenas num consumidor, mas num produto. E num produto muito bem acabado de milhares de cientistas, psicólogos e marqueteiros a serviço das corporações de alimentos. Meu amigo, tão inteligente, tornava-se o consumidor perfeito – ou o idiota perfeito.

Os métodos da indústria de junk food foram dissecados pelo jornalista americano Michael Moss num livro-reportagem que acabou de ser lançado: Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us. Em tradução livre: “Sal, Açúcar, Gordura: Como os Gigantes da Comida nos Escravizam”. Moss é um repórter investigativo que ganhou o Pulitzer de 2010, o prêmio mais prestigioso dos Estados Unidos, pelo seu trabalho sobre a indústria da carne. Em 20 de fevereiro, ele escreveu uma reportagem no The New York Times, abordando alguns dos principais tópicos do livro, que pode ser lida aqui. Para escrever sobre a indústria de junk food, o jornalista afirma ter entrevistado mais de 300 pessoas, entre cientistas, marqueteiros e CEOs das grandes corporações. Segundo ele, alguns estavam ansiosos para extravasar o que estava preso na garganta. Outros só falaram, com muita relutância, depois de serem confrontados com algumas das milhares de páginas de relatórios secretos obtidos de dentro da indústria. Entre os relatos escabrosos, aparece inclusive o Brasil: um alto executivo de uma companhia de refrigerantes (demitido quando quis mudar os métodos) conta como peregrinou pelas favelas brasileiras, para expandir o mercado a partir da estratégia de convencer pobres a consumir o que não precisam.

Ao final da investigação, o jornalista compôs um retrato sombrio sobre os métodos da indústria para manter os consumidores cativos, apesar da epidemia de obesidade que atinge não só os Estados Unidos, mas parte do mundo. Michael Moss chega a uma conclusão que, não fosse a qualidade da apuração jornalística, soaria como teoria conspiratória: a intensidade, tanto da fórmula química quanto das campanhas de venda, torna as pessoas extremamente vulneráveis, sendo quase impossível resistir. Para Michael Moss, a junk food parece ser uma espécie de droga sintetizada a partir de três ingredientes: sal, açúcar e gordura. Em seu trabalho, ele prova que CEOs, marqueteiros e cientistas sabem que estão produzindo não apenas salgadinhos, doces e refrigerantes, mas adultos e crianças com problemas cardíacos, hipertensos, diabéticos e com uma série de doenças relacionadas, que terão a vida encurtada no final e limitada no meio. Mas o que vale são os lucros – e eles são cada vez mais superlativos.

Entre as muitas declarações colhidas pelo jornalista, há algumas que se destacam pelo cinismo. “Eu otimizo sopas. Eu otimizo pizzas. Eu otimizo molhos para saladas. Nesta área, eu sou aquele que vira o jogo”, diz Howard Moskowitz, uma lenda da indústria, que há décadas vem “otimizando” produtos em baixa e transformando-os em armadilhas letais para homens, mulheres e crianças, usando para isso muito dinheiro, equipes de primeira linha e pesquisa de ponta. O cientista assim afirma sua total falta de conflito por produzir morte: “Não existe questão moral para mim. Eu fiz a melhor ciência que pude. Precisava sobreviver e não podia me dar ao luxo de ser uma criatura moral. Como pesquisador, sempre estive à frente do meu tempo”. Moskowitz estudou matemática e tem Ph.D em psicologia experimental em Harvard.

A reportagem mostra como vários produtos, de diferentes corporações, foram “otimizados” para dar ao público algo do qual ele não conseguiria escapar: o “bliss point” – que pode ser traduzido como o “ponto da felicidade”. Para atingi-lo, é necessário não apenas encontrar o sabor, a textura e a quantidade precisa dos ingredientes, a maioria deles nocivo à saúde, mas também investigar em profundidade os pontos de fragilidade de homens, mulheres e crianças. Identificar as barreiras – e quebrá-las uma a uma. As mães prefeririam dar comida saudável para seus filhos? Ok, mas sua principal queixa é a de que não têm tempo. Logo, é o tempo o flanco descoberto a ser atacado. Como alcançar as crianças diante da TV? Ora, com truques psicológicos como um slogan como este, de um produto que embala desejos de autonomia frente aos pais: “Todo dia você faz o que eles dizem. Mas na hora do lanche é você quem manda”.

Até hoje a indústria trabalha com a lista de “sete medos e resistências” à batata frita de saquinho, identificada ainda em 1957 pelo psicólogo Ernest Dichter: 1) você não consegue parar de comê-las; 2) elas engordam; 3) elas não fazem bem para você; 4) elas são gordurosas e fazem sujeira; 5) elas são muito caras; 6) suas sobras são difíceis de guardar; 7) fazem mal para as crianças. A partir desta descoberta, o psicólogo sugeriu à indústria mudanças como: em vez de usar a palavra “frito”, usariam “assado” ou “tostado”; para não dar a ideia de excesso, os salgadinhos passariam a ser vendidos em embalagens menores. Em outras palavras: o caminho era – e continua sendo – ajudar o consumidor a não ter culpa de comer o que faz mal para ele.

Como quando nos deparamos nos supermercados e lanchonetes com aquelas embalagens dizendo, em letras grandes: “Não tem gordura trans”. Em alguns casos, o produto nunca teve gordura trans, mas, ao dizer o óbvio, ajuda-nos a eliminar a culpa, ao alimentar de fato a nossa auto-ilusão de que podemos comer uma porcaria sem causar danos à saúde. É claro que o restante dos excessos, como a quantidade alarmante de sódio e/ou de açúcar etc, figura em letras bem menores. Como disse um dos entrevistados na reportagem: “O que precisamos fazer é remover as barreiras, dando aos consumidores permissão para beliscar”. Dito de outra maneira: “ótimo sabor, máximo prazer e mínima culpa com relação à saúde”.

Um dos casos esmiuçados na reportagem mostra como uma empresa diminuiu a quantidade de sódio de um determinado produto, marcando três gols ao mesmo tempo: fez bonito para o público, ao aparecer como uma companhia preocupada com a saúde; economizou milhões de dólares em sal, um insumo importante; e vendeu muito mais, porque os consumidores se autorizaram a comprar o produto por conta da redução de sódio e da mudança de imagem da empresa. Na prática, em grande escala era uma economia considerável para o fabricante, mas a redução, para o consumidor individual, era tão pequena que em nada diminuía o impacto nefasto sobre a saúde. É este o truque para nos fazer engolir, contentes e confortavelmente iludidos, aquelas embalagens que anunciam: “Agora com menos sódio”. A máxima das indústria de junk food é conhecida: sal, açúcar e gordura – tira um, aumenta os outros dois e estampa no rótulo aquele que diminuiu. Baseado em depoimentos e documentos internos, Michael Moss pôde afirmar: “A intenção das companhias é usar a ciência não para responder às questões de saúde, mas sim para evitá-las”.

Descobri que meu amigo tem poucas chances de resistir ao “crac” da batatinha lendo a seguinte descrição sobre o fabuloso complexo de pesquisa de um dos fabricantes: “Perto de 500 químicos, psicólogos e técnicos realizaram pesquisas que chegaram a custar até 30 milhões de dólares ao ano. A equipe de cientistas concentrou a maior parte dos recursos em questões como a crocância, a sensação tátil na boca e o sabor de cada um dos itens. Suas ferramentas incluíam um equipamento de 40 mil dólares que simulava uma boca mastigando, apenas para testar e aperfeiçoar o produto”. Com todo esse arsenal humano, científico e tecnológico, alcançaram a Lua: o ponto perfeito de quebra do salgadinho diante da pressão média de uma mordida humana.

Enquanto tudo isso acontece, lá na ponta há alguém – na realidade centenas de milhões de alguéns – como o meu amigo, extasiado com a hóstia de uma indústria que, diante do relato de Michael Moss, poderia encarnar uma versão contemporânea do Mefistófeles. De fato, o poder desse personagem em nosso tempo seria bem vulgar, prosaico como tem sido nossos desejos. Steven Whiterly, um cientista da área de alimentos que escreveu um guia citado por Moss e intitulado Why Humans Like Junk Food (“Por que Humanos Gostam de Junk Food”), assim explica a epifania da batatinha frita de saquinho: “É a chamada ‘densidade calórica evanescente’. Se algo dissolve rapidamente (na boca), nosso cérebro entende que não há calorias ali… E que podemos continuar comendo aquilo para sempre”.

No Brasil, o relato mais impressionante sobre a indústria de junk food e a epidemia de obesidade em crianças está no documentário “Muito além do peso”, de Estela Renner. O filme foi lançado em novembro e está disponível na internet. Se você ainda não assistiu, reúna a família ou os amigos e clique aqui. É quase obrigatório. Ao peregrinar pelo Brasil, a diretora busca responder à pergunta: por que 33,5% das crianças brasileiras estão acima do peso. Ou algo ainda mais alarmante: por que, pela primeira vez na história, há um número crescente de crianças com problemas de adultos – de coração, de respiração e diabetes do tipo 2 –, relacionados à obesidade. “Eu abro a felicidade”, diz uma criança, ao falar sobre o que sentia ao abrir um de seus produtos preferidos, demonstrando a relação íntima entre consumo e propaganda.

Em “Muito Além do Peso”, testemunhamos meninos e meninas que adoram batatas em saquinhos, mas não reconhecem uma batata ao natural – ou que confundem um abacate com um pimentão. Em um dos depoimentos, uma médica conta como uma das crianças que frequentam seu consultório precisa se esconder no banheiro da escola para comer uma fruta no recreio, com medo de ser hostilizada pelos colegas. Não é engraçado, é só triste. Entre os muitos achados de um filme feito para informar, provocar reflexão e promover mudança está a possibilidade de visualizar a quantidade de açúcar contida em alimentos presentes no cotidiano de quase todos. É um susto quando enxergamos o açúcar correspondente a uma lata de refrigerante, por exemplo, ou a gordura que há num saco de salgadinhos. Crianças com dor nas pernas para caminhar e que já não podem jogar futebol ou brincar, meninos e meninas ofegantes, com problemas cardíacos, contam e se contam na tela como vítimas de uma epidemia que já lhes rouba a vida. Como a garota que já teve trombose, ou o guri pequeno e já obeso que esperneia diante de pais impotentes até ganhar salgadinho.

Não é fácil ser pai e mãe diante de um assédio tão poderoso e tão insidioso como o da indústria de junk food. Mas é preciso ser pai e mãe. Segundo pesquisas apresentadas em “Muito Além do Peso”, crianças com sobrepeso aumentam o consumo de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar em 134% quando expostas à publicidade. A média diária de permanência diante da televisão é de cinco horas. Como disse um dos entrevistados no documentário, referindo-se à publicidade na TV: “Você deixaria um vendedor formado em Harvard sozinho com o seu filho, dentro da sua casa, por tanto tempo”?

Documentários como o de Estela Renner e livros como o de Michael Moss são oportunidades para pensar e entender o que está acontecendo, enquanto somos tonteados por apelos de consumo dentro e fora de casa. São também estímulos para romper a passividade e tomar posição. No Brasil, as lutas vêm sendo travadas em vários palcos: dentro de casa e das escolas, na Justiça e no Legislativo. E as derrotas se acumulam. No final de janeiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou a lei que restringia a publicidade de produtos alimentícios para crianças. Pelo texto, aprovado pela Assembleia Legislativa em dezembro, se tornaria proibido veicular anúncios de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio, entre as 6h e as 21h, no rádio e na TV. Também seria vetado o uso de celebridades ou personagens infantis na venda de alimentos, assim como o uso de brindes promocionais, como os vendidos com sanduíches em redes de fast food (leia aqui). Em 22 de fevereiro, outra derrota. Desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região confirmaram a suspensão da Resolução 24 (RDC 24), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na resolução, a Anvisa (leia aqui) obrigava os fabricantes a colocar nos produtos o alerta de que o consumo em excesso poderia causar problemas de saúde como diabetes, hipertensão e obesidade. Desde que a resolução foi aprovada, em 2010, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA) luta para derrubá-la – e tem conseguido, alegando que a propaganda é “uma forma de liberdade de expressão”, que só pode ser alterada por lei do Congresso Nacional. No Congresso, o projeto de lei que trata da regulação da publicidade dirigida a crianças se arrasta há 11 anos (leia aqui). Em 2013, como tem alertado o Instituto Alana (veja aqui), um dos mais combativos nesta luta, ao completar 12 anos terminará a infância do projeto – uma infância passada engatinhando de comissão em comissão. E mais uma geração de brasileiros terá deixado de ser protegida.

As sucessivas derrotas e procrastinações dão uma ideia do tamanho do lobby da indústria de junk food, assim como do marketing e da publicidade. Mas não acho que somos apenas vítimas do poder das grandes corporações. Esta posição, a de vítima – e agora falo de adultos, não de crianças – tem uma boa quantidade de verdade, mas não é toda a verdade. Se isso tudo dá tão certo é também porque até mesmo o lugar de vítima pode ser confortável, afinal ele nos coloca na posição de quem sofre a ação, mas não pode fazer nada para impedi-la. Mas neste caso podemos, sim, como mostra muita gente que tem lutado no espaço público para isso – e muitos que têm mudado sua relação com o consumo, com a publicidade e com a comida, botando limites dentro de casa e indo para as escolas debater. Em um texto sobre o documentário (leia aqui), chamado “Muito além do peso (na consciência)”, Viviane Zandonadi, jornalista especializada em gastronomia, diz: “Afinal, se somos o que comemos e não sabemos o que comemos, o que é que somos”?

O que nos falta, talvez, seja nos reapropriarmos do nosso próprio poder – inclusive o do voto. E compreender que escolher é um ato humano profundo, que determina não só o que pegamos na prateleira, mas quem somos na vida. Vale a pena perceber que, se tivéssemos qualquer limite para o nosso prazer imediato, a junk food jamais se tornaria o problema que é. Se tanto valorizamos o indivíduo e a individualidade, é preciso não empurrar para o outro quando nossas más escolhas se revelam um desastre. As responsabilidades são múltiplas e com diferentes proporções – e a indústria tem que responder pelo que fez e faz, especialmente no que se refere à manipulação ou à omissão da informação. Mas, neste embate, também desempenhamos um papel ativo – e ele é mais profundo do que engolir mais ou menos porcaria. Se a junk food pode ser considerada uma droga de comida, o que nos leva até ela é muito mais complexo – e por isso, mais difícil de mudar.

Em sua análise, Michael Moss afirma: “Se os americanos beliscassem (junk food) apenas ocasionalmente e em poucas quantidades, não teríamos hoje o enorme problemas que temos. Mas por causa do tanto de dinheiro e de esforços investidos por décadas aperfeiçoando esses produtos, e então os vendendo incansavelmente, os efeitos já são praticamente impossíveis de reverter”. Concordo que lá ou aqui a mudança é difícil, bem difícil até, mas ainda assim temos escolha. Se é importante desnudar a racionalidade perversa da indústria de junk food e seus métodos inescrupulosos, também é importante desvelar nossos próprios mecanismos, do contrário nos livramos de uma armadilha para cair em outra. No fundo dessa história sórdida, desse emaranhado de lobbies e de bilhões de dólares, o que também é um participante ativo desse jogo é a nossa relação com a vida. É de uma relação de consumo e do imperativo do gozo – tão imediato quanto fugaz – que se trata.

Para mim, a melhor cena de “Muito Além do Peso”, a mais reveladora e profunda, é a de uma menina de olhos muito tristes contando que sua família sempre reza para agradecer pela comida, pedindo que não falte nada em sua mesa. Perguntam a ela, então: “Falta alguma coisa na sua vida”? E a menina de olhos muito tristes responde, alcançando muito além do peso, dos métodos e das estatísticas:

– Falta sentido.

(Publicado na Revista Época em 04/03/2013)

O coração grande de Cristina

A luta de uma camponesa para não morrer como estatística

Cristina foi sepultada no mesmo dia em que o Papa renunciou. Enquanto no Vaticano Bento XVI acontecia, ali, em Aiquile, Cristina desacontecia. Não havia uma relação de causa e efeito no fato de que o mundo vivia um de seus espasmos, e na cidadezinha boliviana um cortejo comprido levantava poeira ao passar pelas ruas carregando Cristina. Era uma coincidência, só, que para aquele séquito, a decisão de Bento XVI não era notícia. Talvez, dias depois, alguém tenha comentado: “Parece que aquele Papa que renunciou usa marca-passo. Como a Cristina”. Era só o que os dois personagens, um de um drama acontecido, outra de um desacontecido, tinham em comum. E é aqui que as histórias se separam, porque o Papa jamais esteve na de Cristina, além desse encontro fortuito. Desse azar do Papa, que teve a dramaticidade do seu ato empanada pela grandeza do adeus de Cristina.

Ela, ao contrário dele, jamais renunciou. Até o fim, quando o ar já lhe faltava, Cristina se agarrou às batidas descompassadas do seu coração. Se tivesse maneira, ela o teria sacudido com suas mãos bordadas de calos, obrigando-o a continuar. Por isso era difícil acreditar, naquela manhã de segunda-feira, que ela tinha morrido. Não posso morrer, ela dizia. Não quero morrer. Eu preciso ver meus filhos crescer. E quando ficava assim, Cristina cantava. Cantou também quando lhe abriram o peito para botar primeiro um marca-passo, depois um desfibrilador. E mesmo naquela segunda-feira cinzenta, em que a melancolia da cidadezinha metia os dedos por dentro das gentes, Cristina passava colorida em sua melhor saia rodada, sua blusa de renda mais bonita. Altiva, Cristina era altiva até mesmo em seu último passeio.

Todos sabiam o que havia matado Cristina, aos 49 anos. Coração grande demais, coração de gigante. Dizer que alguém tem um coração grande, naquela região da Bolívia, é um péssimo augúrio. Quanto mais o coração dela aumentava, mais a vida encolhia. Ela sabia que não podia ganhar a luta que lhe custou cada dia. Sabia que no fim, sempre muito mais cedo do que tarde, a Vinchuca venceria. A Vinchuca, esse personagem que entrou na sua vida talvez até antes da vida, quando ainda era um desejo no útero da sua mãe. E nunca mais saiu. Vinchuca é o nome em quéchua para o inseto que chamamos de “barbeiro”. Mas esta é uma história que ela mesma vai contar daqui a pouco, porque a voz de Cristina ainda vive. Ela garantiu que sua voz vivesse ao decidir que, se tivesse que morrer, não seria como silêncio.

Há sempre várias maneiras de descrever a causa da morte de alguém. A mais corriqueira seria dizer que Cristina morreu da doença identificada pelo brasileiro Carlos Chagas no início do século XX. É uma verdade que ela tenha morrido de doença de Chagas. Mas é uma verdade pequena. É preciso ampliar um pouco mais essa verdade. Cristina morreu porque a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar tratamento, vacina e cura para as doenças dos pobres, as doenças de quem não pode pagar por medicamento. Cristina morreu porque, apesar de fazer um século que a doença foi descrita, a principal droga usada para o seu tratamento foi desenvolvida para outra patologia em 1960 e é produzida hoje apenas no Brasil, por um laboratório público, e na Argentina. Cristina morreu porque esse medicamento só alcançou a região onde ela vivia neste século, levado pela organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e para ela já era tarde demais. Cristina morreu porque os camponeses moram em casas de pau a pique, cobertas de palha, onde até hoje em algumas delas centenas de barbeiros se escondem – centenas, até milhares em cada casa. E, se os camponeses mal tem o que comer, não há nenhuma chance de melhorarem o seu teto. Cristina morreu porque os barbeiros não são exterminados como poderiam e deveriam ser – e pessoas como ela são entregues a insetos que transmitem um parasita que pode matá-las. Cristina morreu, como os outros 14 mil que morrem da doença a cada ano, nas porções pobres do mundo e também na Amazônia brasileira, por causa da nossa omissão. Cristina morreu de silêncio.

“Cristina morreu de negligência”, diz Lucia Brum, dos Médicos Sem Fronteiras, uma referência em doenças infecciosas emergentes. Conversamos por telefone, e ela desenha com palavras a paisagem obscura das chamadas doenças negligenciadas, as doenças dos pobres do mundo, aquelas que não deveriam estar matando mais ninguém, mas matam porque quem poderia combatê-las não se importa. “Cerca de 90% das pessoas infectadas não sabem que têm doença de Chagas, porque nunca tiveram acesso nem à informação, nem ao diagnóstico, muito menos ao tratamento”, diz. Pergunto de Cristina, e a voz de Lucia lacrimeja. Ela trava. Combinamos que ela me escreverá. E penso nessa médica que convive com a morte e a impotência em todos os cantos do planeta, mas mantém a capacidade de chorar por uma pessoa – por cada pessoa. Mantém a capacidade de chorar por Cristina.

Lucia escreve:

“Não consigo pensar na Cristina sem pensar que ela foi vítima de um ciclo de negligências que também se reflete nas pessoas que sofrem com as doenças típicas da pobreza no mundo todo. Houve negligência quando se permitiu que ela e a família vivessem anos em uma casa infestada de barbeiros. Houve negligência quando não lhe deram a oportunidade de um diagnóstico precoce e o acesso a um tratamento efetivo, que curasse ou evitasse as complicações causadas pela doença de Chagas. Houve negligência quando não se investiu em pesquisas que contribuíssem para melhorar a atenção médica de todos os afetados pelas doenças esquecidas, porque foram esquecidos. Cristina nunca se calou diante de todas essas negligências. Aproveitou todas as oportunidades que teve para contar a sua própria história e através dela falar por milhares de outras pessoas que sofrem do mesmo mal, mas que não saíram do anonimato e continuam morrendo em silêncio. Existe uma forte identidade sociocultural entre a doença de Chagas e a América Latina, e escutar Cristina era sentir o clamor do continente latino-americano exigindo um maior esforço e compromisso para minimizar o sofrimento que afeta 10 milhões de pessoas em todo o mundo. É triste saber que é possível fazer muito por essas pessoas, mas falta compromisso e sobra negligência. Quando Cristina falava, todos se calavam. Essa lembrança vai me emocionar e comover sempre, pois nossos esforços não foram suficientes”.

Quando alguém morre como Cristina, não é a doença que mata. A doença é como a arma. Atrás da pistola ou da metralhadora, há uma pessoa. Atrás da pessoa, há um processo histórico e um presente no qual é preciso determinar as responsabilidades, caso se deseje barrar o massacre. Cristina e todos os que morrem como ela, morrem de assassinato. É o genocídio silencioso e invisível que mata os que não têm voz. Cristina se deu voz. Sua voz é seu legado.

Quando abriu a boca para contar sua história, em março de 2011, Cristina se revelou uma narradora poética. E algo curioso se passou. Ela só falava em quéchua, a língua de parte da população boliviana, um idioma que resiste desde antes dos incas. Eu não compreendia uma única palavra, mas elas me alcançaram mesmo assim, e meus olhos sofreram um naufrágio. Lucia conta que o mesmo aconteceu quando Cristina, que pela primeira vez deixava seu país, contou sua história em Olinda, na assembleia da Federação de Pessoas Afetadas pela Doença de Chagas, em 2010. Era a primeira vez que Cristina deixava a Bolívia, ninguém entendia seu idioma, mas ainda assim suas palavras chegaram. Nilce Mendoza Claure, a tradutora que me acompanhava na escuta de Cristina, explicou que a língua tem uma doçura muito particular e que tudo fica mais triste quando é dito em quéchua. Compreendi, ao meu modo, que o quéchua é como uma chuva fina que vai nos penetrando lentamente e, quando nos damos conta, estamos encharcados até os ossos.

Cristina assim explicou o que era a Vinchuca. E a partir deste parágrafo, não falaremos mais em barbeiro, mas em Vinchuca, porque é esta a palavra que expressa algo maior, mais completo e profundo do que um inseto. Perguntei qual era o som da Vinchuca. Cristina disse:

– Soa como as folhas secas do milho ao vento. Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.
Perguntei qual era o cheiro da Vinchuca. Ela disse:

– Cheira como sangue velho.

Ao escutar a narrativa de Cristina e de outras pessoas da região de Aiquile, compreendi que a Vinchuca não era apenas um inseto, mas algo que sempre esteve lá. Para aqueles homens e mulheres nunca havia existido uma vida sem Vinchuca, ela marca o tempo e as estações, ela é onipresente. Por isso escolhi colocar a palavra em maiúscula, porque ela expressa um nome próprio, quase uma entidade maléfica, o mais próximo de um vampiro real que eu já conheci. Não apenas porque suga o sangue, bem mais pela teia de significados que lhe foi atribuída na existência concreta e simbólica dos camponeses bolivianos.

Estes vampiros da vida real assinalam as gerações através dos séculos. E garantem ainda hoje a perpetuação da pobreza. Como as pessoas são infectadas ao nascer, às vezes ainda no útero da mãe, a evolução da doença começa quase junto com a vida. Depois das primeiras décadas, homens e mulheres morrem no momento mais produtivo, quando poderiam ter forças para pelo menos lutar para mudar o destino, por melhores condições de habitação e saúde, por uma alimentação mais rica, por educação. Em vez disso, exauridos pela doença, condenam com essa morte precoce seus filhos e netos à mesma sina de miséria e labirinto.

Era assim que Cristina contava essa história:

– Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado.

Só há pouco os camponeses descobriram a relação entre a Vinchuca e o que era chamado de morte súbita. Parte deles apenas alguns anos atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras criaram um projeto na região e passaram a fazer diagnóstico e tratamento. Até então, acostumaram-se ao fato de que as pessoas estavam caminhando pelo campo, pastoreando ovelhas ou plantando, e, de repente, caíam mortas. Era o jeito “natural” que pessoas como eles morriam, era a morte dos avós e dos bisavós, e seria a morte deles e a de seus filhos e netos. Foi já como adulta que Cristina descobriu que ela e seus irmãos tinham Chagas, assim como seu marido e sua filha mais velha.

Bem antes disso, a Vinchuca já tinha matado. De novo, a voz de Cristina:

– Os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.
Cheios de dor pela perda dos pequenos, Cristina e seu irmão mais velho clamaram por vingança. Decidiram acabar com as vinchucas, varrê-las de seu pequeno mundo. É ela que conta:

– Catamos todas elas e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: “Pronto, sepultamos as vinchucas”. Nas primeiras noites, havia menos. Mas elas foram voltando. As vinchucas renasceram.

Muito mais tarde, quando descobriu que as pontadas que sentia eram a doença de Chagas, Cristina buscou ajuda. Essa busca por salvação, em todos os relatos que escutei, é sempre um caminho de humilhações. Não há na Bolívia um sistema público de saúde universal, como existe no Brasil. E apesar de serem a maioria da população, os indígenas, e especialmente os do campo, são discriminados nas cidades. Ao falar quéchua, não são sequer compreendidos. É como se nem os vissem.

Ao contar uma de suas consultas com um médico de Aiquile, Cristina nos ajuda a compreender porque uma doença é sempre muito mais do que uma doença, é um universo de relações e de fissuras, um retrato multidimensional da sociedade. Ela diz:

– Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez? Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. “Você quer morrer porque é frouxa”, ele dizia. “Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir”.

Cristina conseguiria viver quase 15 anos mais, graças à chegada de organizações humanitárias à região. O preconceito tem raízes tão fincadas que alcança também os agentes dos Médicos Sem Fronteiras, chamados por alguns moradores e profissionais da cidade de “come-vinchucas”. Conheci Cristina quando fui à Bolívia para escrever sobre a doença de Chagas para o livro Dignidade! (Leya, 2012). A obra, na qual nove escritores de diferentes nacionalidades contam diferentes projetos da organização, marca os 40 anos de atuação de MSF nas epidemias e guerras do mundo. No meu capítulo, conto duas histórias reais: uma delas é a viagem empreendida por Cristina em busca de um marca-passo em Cochabamba.

Nesta jornada, ela conheceu Maria, outra camponesa. E Maria preferia morrer a ter de enfrentar a cidade grande. Foi Cristina quem a convenceu a continuar no ônibus e salvar sua vida. Foi isso o que Maria ouviu de um dos médicos da cidade:

– Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem pra botar uma roupa boa no corpo, imagina pra um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas pra ver se te ajudam.

Juntas, Cristina e Maria fizeram uma travessia que era muito maior do que as cinco horas entre a cidade pequena e a grande – era uma travessia entre mundos e era uma travessia de confidências entre duas mulheres forjadas num universo moldado por homens. Duas mulheres que, unidas por um coração descompassado, encontraram o caminho uma para o coração da outra. E, pela primeira vez numa vida bruta, tiveram tempo para si – e para a delicadeza.

Maria voltou com um marca-passo no peito, mas não contou a ninguém, porque ter marca-passo ainda é um estigma nas aldeias camponesas. Uma marca de fraqueza e de invalidez, que assinala as pessoas como quase mortas. É também este preconceito que a voz de Cristina se levantava para combater, ao falar publicamente sobre o relógio que acertava o ritmo do seu coração. Parte desta história pode ser lida aqui. A foto abaixo, da jornalista Vânia Alves, de MSF, mostra Maria e Cristina no quintal do cortiço onde Cristina vivia com a família, em apenas um quarto, dividindo o banheiro e a cozinha com os vizinhos. Cristina tem sua mão sobre o coração de Maria.

cristina morteHá gente que vive morta. E há gente que morre viva. Cristina Salazar López morreu viva.

(Publicado na Revista Época em 18/02/2013)

 

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