Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

Todo dia é dia de estupro

Ela deixou o coração das trevas para contar sua história. A travessia de Marie Nzoli – do Congo a um hotel de luxo de São Paulo

“Por que a água é azul?”, pergunta Marie Nzoli, apontando para a piscina. Em um mundo com infernos demais, ela acabara de chegar do pior deles. Pela primeira vez em 48 anos de vida, deixara a República Democrática do Congo e, depois de uma saga de três dias, desembarcara no Gran Hyatt, um luxuoso hotel de São Paulo, com vista para a Ponte Estaiada. Na mala, trazia lençóis.Como nunca havia pegado um avião, ela pensava que seria necessário forrar a poltrona com eles. Ao olhar para a piscina e constatar que “a água é azul”, talvez estivesse tão ou mais encantada que o astronauta Iuri Gagarin ao ver pela primeira vez a Terra do espaço. Marie Nzoli atravessara vários mundos –fora e dentro de si – para contar sua história ao Brasil.

De onde Marie vem, o estupro é um instrumento de guerra. E as mulheres contaminadas pelo HIV são armas biológicas. O Congo é devastado por conflitos armados antes e depois da independência da Bélgica, em 1960. No final do século 19, quando a África já tinha sido canibalizada pelos europeus, a terra de Marie inspirou Joseph Conrad a escrever o perturbador “O coração das trevas” – livro que no século 20 inspiraria Francis Ford Coppola ao filmar“Apocalipse Now”, transportando o horror para o Vietnã. Hoje, o Congo continua habitado pela insanidade. Além das guerras, é arrasado também pela fome, pela falta de água potável e por doenças como Aids, sarampo e malária. Tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.

Para compreender o espanto de Marie é preciso apalpar as dimensões de sua travessia.Marie deixara uma casa de madeira, tijolo e barro, com uma plantação de batata e feijão e uma criação de cabras, porcos e coelhos, na pequena cidade de Butembo, no Kivu do Norte, uma das regiões mais perigosas do Congo.E, quando algo é muito perigoso no Congo, pense no inimaginável. Encravado no leste do país, a província de Kivu do Norte faz fronteira com Uganda e Ruanda. E, para além de todos os tormentos, vive uma disputa étnica entre tutsis e hutus. O genocídio que matou cerca de 1 milhão de tutsis na vizinha Ruanda, em 1994, se estendeu para dentro da fronteira leste do Congo, para onde hutus fugiram em massa depois da recomposição do país. (Se você não conhece essa história, pegue na locadora um filme chamado “Hotel Ruanda”.)

Militares e guerrilheiros igualam-se na capacidade de cometer atrocidades em massa, deixando a população desamparada, sem ter para quem pedir proteção. Quase 2 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivem hoje longe de suas aldeias – em fuga, mas sem conseguir escapar.“O povo do meu país está sempre fugindo”, diz Marie. “Foge de tudo, porque sabe que está sendo exterminado.” Foge em círculos.

Mulheres como Marie vivem a demência de ter seus filhos recrutados à força pelas milícias, quando ainda são crianças, e suas filhas, assim como mães e irmãs, estupradas muitas vezes, por muitos homens alternando-se sobre os seus corpos. É prática comum, além de violentar, arrancar os mamilos e o clitóris à faca, e furar os pés para que não possam fugir e sangrem até a morte. É uma guerra sem fim, alimentada pelo mercado internacional de diamantes, e talvez o Congo seja, há mais tempo, o pior lugar do planeta para uma mulher nascer.

A única saída para Marie é inventar vida no território da morte. Com outras 17 mulheres, ela criou, em 1983, uma organização chamada Coperma para reagir à violência contra seus filhos. Hoje, somam quase oito mil pessoas. Marie trabalha com vítimas de estupro. Mulheres de todas as idades que, além de serem estupradas, muitas vezes ficam com fístulas porque a violência transformou o canal do ânus e da vagina, ou da bexiga e da vagina, em uma coisa só. O rasgo é produzido pela quantidade de homens que se alternam sobre cada mulher, mas também é feito à faca ou com revólver ou fuzil. E, por terem sido estupradas, elas são discriminadas na comunidade.

No Congo, Marie é uma mulher de classe média. Perguntei o que isso significa. Ela explicou: “Eu como todo dia”. Marie nunca ouvira falar do Brasil. Nem mesmo do clássico futebol, favela e carnaval. Ela chegou aqui ao aceitar o convite da jornalista Ana Paula Padrão para participar de um fórum de debates chamado “Mulheres reais que inspiram”, promovido pelo site “Tempo de Mulher”, em 2 de julho. Quando recebeu o convite, foi correndo procurar o Brasil no mapa. Marie estava feliz, porque há muito sonhava em vencer as fronteiras do Congo para pedir socorro ao mundo.

Nos quatro dias em que permaneceu na capital paulista, Marie repetia: “Como o Brasil é rico, como as casas são bonitas, como a população vive bem aqui!”. Sua tradutora, Ilka Camarotti, retrucava: “Não é todo o Brasil que é assim”. Quando perguntei a Marie do que sentiria saudades, quando voltasse ao Congo, ela disse algo impensável para qualquer brasileiro: “Da limpeza do aeroporto”.

Além do aeroporto, o hotel foi todo o Brasil que Marie conheceu. Nele, ela teve várias primeiras vezes: o banho de chuveiro, vinho branco argentino (ela nunca tinha provado nenhuma bebida alcoólica), algumas frutas, como coco, a escada rolante, o cartão para abrir o quarto, a TV (ela nunca tinha visto) e o controle remoto. Um arrepio de prazer ao receber nas axilas o jato de desodorante do patrocinador do evento.

Mas nada impressionou Marie mais do que o elevador. No último dia, ela já apertava os botões sozinha, com um dedo trêmulo, como se estivesse prestes a acessar algum tipo de magia. E nunca sabia qual era a hora de dar o passo para fora, o momento em que o chão, sem sair do seus pés, chegava ao chão de fato.

Várias vezes, ao longo desta entrevista, Marie divagou. Enquanto a tradutora passava as respostas do francês para o português, ela espiava um prédio em construção, onde um elevador subia e descia. Alto, mas para si mesma, Marie espantava-se com o mundo: “La technologie…” E ria sozinha, em abissal perplexidade. Depois, voltava a contar sobre os estupros.

Perguntei a Marie o que gostaria de dizer aos brasileiros. Ela disse: “Agora que eu vim e dividi a minha história, esse combate não pode ser apenas meu. Essa luta tem de ser também do Brasil. Vocês precisam ajudar as mulheres do Congo.”Marie acredita que o que faltava para que os brasileiros se importassem era que alguém conseguisse chegar até aqui para contar o que está acontecendo lá. Para ela, é difícil compreender que alguém saiba – e nada faça.

Esta é a história de Marie Nzoli – cujo último nome significa “sonho”.

O pai expulsou a mãe porque ela só paria meninas

“Meu pai era professor na escola da prefeitura. E minha mãe, agricultora e dona de casa. Minha mãe teve quatro meninas. E porque minha mãe só tinha meninas, meu pai a escorraçou de casa junto com as filhas. Minha mãe fugiu para a casa do sogro. Eu tinha 8 anos.

Meu avô fez a reaproximação: por um lado, tentou convencer meu pai a aceitar minha mãe de volta, por outro, precisou convencer minha mãe a voltar para casa. Ela voltou. E então fez oito meninos, e meu pai ficou feliz. Mas, nós, meninas, continuamos sem existir.

Era meu pai quem dava dinheiro para a minha mãe. Mas o dinheiro era só para a escola dos meninos. Meu pai achava que menina não precisava estudar. Então, minha mãe roubou dinheiro dele. Eu não tenho o direito de dizer ‘roubar’, mas, na realidade, foi isso o que aconteceu. Minha mãe roubava dinheiro do meu pai para pagar o estudo das filhas.”

Marie “só” foi estuprada pelo marido

“Eu fui estuprada pelo meu marido. Muitas vezes. Eu estava fazendo comida e não queria. Mas, ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava mesmo diante dos meus três filhos. E, se eu me recusasse, ele me batia na frente das crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de ‘papai’.”(A tradutora diz: “é um monstro”. E Marie repete: “É um monstro”.)

“Em 1997, depois de seis anos de casamento, meu marido deixou um bilhete, dizendo que partiria para libertar o Congo.”(Neste ano,o guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila depôs o ditador Mobutu, no poder desde 1965). “Nunca mais vi meu marido. Eu tenho medo de que ele volte. Se ele voltar, vou dizer para ele que, como ficou muito tempo fora, só posso aceitá-lo se ele fizer um exame de HIV. Como nenhum homem quer fazer o exame de HIV, ele vai recusar. Porque os homens dizem: ‘Eu não vou fazer o teste, você tem de me aceitar como eu sou’.

Como ele vai se recusar a fazer o teste, eu posso dizer que então não posso aceitá-lo. Vou dizer a mesma coisa à família dele. Mas, talvez, eles exijam que eu devolva o dote de 10 cabras. Agora, não sou apenas eu que tenho de devolver, mas também os meus filhos. Sinceramente, eu não sei se eles vão querer.”

(Pergunto a Marie se ela já teve prazer sexual alguma vez.)

“Vários homens quiseram fazer sexo comigo depois que meu marido foi embora, mas eu não quis. Eu não quero mais pensar nisso. Eu não quero isso pra mim.”

Imaculada é o nome da irmã violada

“Minha irmã mais nova, de 14 anos, estava saindo da escola. E encontrou uma milícia. Eles viraram a cabeça da minha irmã para trás. Giraram tanto a cabeça que ela passou dois anos sem se mexer. Ficou também com os olhos doentes. Minha irmã ficava de olhos fechados, sem conseguir caminhar ou comer. Ela não se movia. Eu dava banho nela e também lhe dava comida. Naquele dia, minha irmã se debateu, mas dois deles a estupraram. Minha irmã se chama Immaculé.”

Mulheres contaminadas: a nova arma biológica

“Há estupros todo dia. Meninas e também mulheres mais velhas estão plantando. Os militares passam e as estupram na frente de todo mundo. Vi meninas de 10, as mais velhas com 15 anos, serem estupradas. Os mais pobres precisam andar até 30 quilômetros para encontrar água para beber. As meninas vão buscar água e, quando voltam, os militares as violentam. Depois, elas geram bebês.

Pouco importa se é milícia ou exército.Guerrilheiros e militares são todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de Aids na nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para cuidar das mulheres infectadas.

Os ruandeses e também os ugandenses, mas mais os ruandeses, querem exterminar a população do Kivu do Norte, onde eu vivo, para ocupar o nosso território. Antes, a guerra era com faca, com fuzil. Mas, hoje, além da faca e do fuzil, existe a doença. Eles estupram as mulheres, transmitem a Aids e assim vão nos matando. É um genocídio. E é um genocídio há muito tempo.”

Marie fez o parto nua, com dinheiro escondido no ânus e na mira de fuzis: se fosse menino, seria poupada; se fosse menina, fuzilada

“Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma (capital da província de Kivu do Norte, na fronteira com Ruanda) para vender batatas, nosso ônibus foi parado por militares de Ruanda. Esses militares têm autorização para trabalhar e para matar. Nesta estrada, a cada dia dez pessoas são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro, tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos. Eu precisava vender batatas e levei dinheiro comigo para a viagem.”(Marie não lembra se eram 10, 15 ou 20 dólares.)

“Quando esses militares de Ruanda pararam nosso ônibus, mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores evangélicos no nosso ônibus, e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.

Eu sentia medo e raiva. Quando nos mandam tirar a roupa, a gente precisa dizer ‘obrigada’. Eles ordenam: ‘Agora, digam obrigada porque a gente ainda não matou vocês’. Mas, desta vez, não nos mataram. Como eu fazia acompanhamento psicológico na Coperma, um pastor disse aos militares que eu era enfermeira. A mulher de um deles estava grávida, e eles precisavam que alguém ajudasse no parto. Me deram um pano para cobrir o sexo, e eu fui ajudar a mulher. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados. Mas, se fosse uma menina, estaríamos mortos.

Eu tremia muito. Pensei que estava no final da minha vida. Mas, quando nasceu o menino, os militares ficaram numa felicidade enorme. Saíram para comprar cerveja e comemorar. E, quando voltaram, celebraram fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso. E depois botaram fogo no ônibus e nas pessoas. Dezoito mortos.

Então, nos mandaram sumir. E voltamos para o nosso ônibus nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na feira, para todo mundo se cobrir.”

(É comum as mulheres congolesas esconderem dinheiro no ânus e também na vagina, na tentativa de salvar o pouco que têm, caso sobrevivam à violência. Quando são estupradas, o dinheiro é de tal forma introjetado no corpo que é preciso uma cirurgia para retirá-lo.)

Só a mãe faz Marie chorar

(Pergunto a Marie se este foi o pior momento da vida dela. Ela me diz que não. Parece surpresa por eu cogitar que seja.)

“O pior momento da minha vida foi a morte da minha mãe, um ano atrás. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação, que destruiu o fígado. Era como se ela dormisse. Minha mãe, que me fez estudar. Que se esqueceu dela mesma. Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor da minha mãe. Fiz tudo para curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.”

(Então Marie, que narrou todas as violências com os olhos secos, como se contasse o seu cotidiano – e é o seu cotidiano – começa a chorar. E chora por um longo tempo. A mulher violentada de várias maneiras, que já testemunhou todas as formas de violência, chora apenas de saudades da mãe.)

(Publicado na Revista Época em 09/07/2012)

 

Quem está com Lula e Maluf na foto (além de Haddad)?

O esconde-esconde da imagem: a reação de Luiza Erundina dá razão a Lula ao provar que a representação da realidade é a única realidade que importa

A menina de 7 anos assiste a desenho animado na TV, no quarto dos pais, em sua casa na zona sul de São Paulo. A mãe, tentando aparentar tranquilidade, aparece na porta e diz: “Filha, tem um titio que veio roubar nossas coisas. Mas fica quietinha, que ele não vai fazer nada. Só vai roubar as coisas e depois vai embora”. Pega a menina pela mão e a leva ao corredor. Quando vê o ladrão, um rapaz com uma arma na mão, a menina pergunta:

– Mãe, esse que é o Maluf?

Até o ladrão riu.

* * *

A história é verídica. Aconteceu em 1988, nos primeiros anos da redemocratização do Brasil, uma época ultrapassada em que “malufar” era sinônimo de “roubar”. A menina, uma amiga, é hoje uma mulher e tornou-se jornalista. Ao ver a foto de Lula apertando a mão de Maluf, olhei “pelo retrovisor” e lembrei desse episódio.

Depois do choque inicial diante da foto de Lula com Maluf (e sem perdê-lo jamais), o que começou a me perturbar era que Lula pode ter razão. Não razão em pisotear os princípios e engolir a biografia, óbvio. Mas razão para acreditar que a imagem é a única realidade que importa para alcançar os fins. Que com um minuto e meio a mais de TV é possível fazer o eleitor acreditar que Fernando Haddad é o “novo” – e que o “novo”, ainda que ungido por velhas e viciadas práticas, é o melhor para administrar São Paulo. O que dá razão a Lula é a reação da opinião pública – e principalmente a de Luiza Erundina.

MALUFARAM Lula e Haddad nos jardins da casa de Maluf, em São Paulo. (Foto: Epitácio Pessoa/AE)

MALUFARAM Lula e Haddad nos jardins da casa de Maluf, em São Paulo. (Foto: Epitácio Pessoa/AE)

À primeira vista, a desistência de Luiza Erundina (PSB) de ser a vice de Haddad, supostamente em nome dos princípios, assim como a reação da sociedade e da própria militância petista, apontariam para um erro político estratégico. Em busca de um minuto e meio a mais na TV, Lula teria esquecido do que o levou a aceitar o inaceitável: o poder da imagem. Ou, em busca de ampliar o poder da imagem, Lula esqueceu-se do poder da imagem. Esqueceu-se daquilo que Maluf lembrou e por isso exigiu, em troca do apoio do PP à candidatura de Haddad: “A foto faz parte do pacote”.

A imagem, quando substitui a realidade ou se torna toda a realidade, pode nos cegar. Por isso, quero aqui apenas rememorar o que vemos nesta foto – e o que não vemos. O que vemos é Lula e Maluf – Haddad entre eles, mas sem importar muito (e isso é importante, já que Haddad não importa muito porque é o “novo” sem história).

O que vemos é Lula apertar a mão de quem no passado havia chamado de “o símbolo da pouca-vergonha nacional”. E Maluf apertar a mão de quem no passado havia chamado de “ave de rapina”. O que vemos é Lula, que no passado representou a possibilidade de ética na política, apertar a mão de quem no passado – e também hoje, mas agora embaralhado com muitos outros – representou a corrupção na política. O que vemos é Lula, que até alguns anos atrás encarnava um novo jeito de fazer política, consolidando mais uma aliança com o velho jeito de fazer política.

De fato, porém, o que vemos não é novo. Mas a foto nos faz acreditar que é. Ora, há quanto tempo o que existe de mais retrógrado e fisiológico na política nacional se tornou parte do espectro de alianças do PT, em nome da “governabilidade” ou em nome dos fins? O PP de Maluf esteve no governo Lula e está no governo Dilma – como antes esteve no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Lula apertou a mão de Maluf há muito tempo. Desde o primeiro mandato como presidente, pelo menos.

A foto permitiu que parte da sociedade enxergasse essa aliança. É bom enxergar, antes tarde do que nunca? É, claro que é. Mas também não é. Porque, se acreditarmos que as imagens são toda a realidade, nos tornamos facilmente manipuláveis. Se só conseguimos enxergar o que vira imagem, nos colocamos em um lugar muito frágil. No lugar que explica Lula apertar a mão de Maluf para garantir um minuto e meio a mais de espetáculo, no qual faz o truque de transformar o desconhecido em conhecido, o velho em novo.

Nesta imagem histórica, é quem não estava na foto que nos revela o quanto nos deixamos cegar tanto pelo que vemos – quanto pelo que não vemos. É Luiza Erundina, que agora desponta como aquela que disse: “Não aceito”. Ou como a guardiã dos princípios na política, a mulher que deu uma lição ética a Lula e ao PT, aquela que resistiu ao pragmatismo da “realpolitik”. É provável que Erundina seja uma mulher de princípios, porque parte da sua história pública nos prova isso. Mas não neste episódio.

No momento em que a imagem de Lula apertando a mão de Maluf foi imortalizada com um clique, Luiza Erundina estava lá naquela foto. Não estava, mas estava, porque havia aceitado a aliança com o PP de Maluf. Embora dizendo-se “desconfortável” com a aliança em declarações anteriores à fotografia, ela sabia da aliança e aceitou a possibilidade da aliança no momento em que aceitou ser a vice de Haddad.

Logo, Luiza Erundina não desistiu de ser vice por uma questão de princípios, mas por uma questão de imagem. Ou pelo fato de a foto desmascarar a falta de princípios que ela conhecia e aceitara. Ou ainda, porque a foto tornou mais real a realidade.

O problema, para Luiza Erundina, não era a aliança com Maluf, esta ela podia aceitar. Como não foi um problema para ela aceitar, em 2004, a aliança com Orestes Quércia (PMDB) – que não chegava a ser um Maluf, mas estava longe de ter boa fama. O problema, para Erundina, era exibir a aliança com Maluf em uma foto estampada na capa dos jornais. E passar a correr o risco – altíssimo – de aparecer, também fisicamente, em uma próxima foto. Neste sentido, ainda que apenas por erro de cálculo, Lula foi mais coerente que Erundina. Fez a aliança e permitiu a representação da aliança – pagou o preço cobrado por Maluf, que além de mais um cargo obtido no governo de Dilma para o PP, exigiu também uma imagem.

Antes da foto, mas já com as negociações bem adiantadas, Erundina declarou-se “desconfortável” com a presença quase certa de Maluf na campanha. Apenas “desconfortável”. Ela disse: “Para mim não será confortável estar no mesmo palanque com o Maluf. A campanha não sou eu nem Maluf individualmente. É um processo muito mais amplo e complexo, e isso se dilui, ao meu ver. (Mas) Claro que é desconfortável”. Após a publicação da foto, mas ainda antes de tomar a decisão de desistir da candidatura, ela fez uma declaração especialmente reveladora: “A foto provocou repulsa, uma reação em cadeia. Fui bombardeada nas redes sociais”. Depois de deixar a chapa, porque a imagem não se “diluiu” como o esperado, Erundina afirmou: “Quando a gente faz uma coisa que corresponde ao anseio da sociedade, a gente fica feliz”.

É claro que as pessoas podem mudar de ideia. É também desejável que voltem atrás, ao perceber que fizeram uma escolha errada. É preciso enxergar, porém, que Erundina teve bastante tempo para pensar nos seus princípios antes da foto, mas já com a aliança com Maluf bem delineada no horizonte. Portanto, é legítimo duvidar de que seu recuo seja justificado pelos princípios. Ela assume isso em várias declarações, especialmente nesta, sem parecer enxergar a contradição: “O tempo de TV é importante, mas não a ponto de sacrificar a imagem”.

Foi para não sacrificar sua imagem (e não seus princípios, como a repercussão de sua decisão fez parecer), que ela desistiu de ser vice. Por estar fisicamente ausente da imagem fatídica, Luiza Erundina produziu uma outra imagem simbólica que lhe interessa muito mais. Seria melhor para Erundina, para nós e para a democracia se ela ficasse feliz não por corresponder aos anseios da sociedade, mas por corresponder aos princípios éticos que norteiam a sua vida, mesmo que estes a levassem, eventualmente, a contrariar a opinião pública.

Vale a pena enxergar também que a postura de Luiza Erundina neste episódio mostrou, de novo, que Lula e o PT estão certos ao acreditar que um minuto e meio a mais de exposição planejada, produzida e controlada na TV seja decisivo para a candidatura de Haddad. A decisão de Erundina, tomada só após a foto, prova que, para ela e para muitos, é a imagem que vale, não a realidade. Ou é a imagem que torna real a realidade. Se a aliança estivesse consolidada – mas sem uma imagem para representá-la –, será que Erundina desistiria de ser vice? Ela mesma já respondeu: “Eu até entenderia se fosse um ato firmado dentro de um espaço institucional, entre diretórios, mas não dessa forma personalista”.

Para completar a foto há ainda o PSDB, o oponente sem oposição de fato no que diz respeito à imagem-bomba. A declaração de José Serra ao comentar a aliança entre Lula e Maluf foi a seguinte: “O PSDB tem um tempo suficiente de televisão. Não vale tudo para aumentar isso”. E a de Aécio Neves: “Isso não muda o resultado eleitoral, mas fragiliza o discurso de faxina do governo. No momento em que o governo federal se dispõe a fazer esse tipo de concessão, em troca de apoio político, essa discussão da faxina fica muito frágil.” Aécio ainda disse que a troca de apoio político por espaço na campanha de rádio e TV não deveria virar regra no país.

Seria um discurso alentador, não tivéssemos acompanhado os enormes esforços empreendidos pelo PSDB para conquistar o apoio de Maluf. Seria um discurso estimulante, não fosse uma outra foto mostrar Serra apertando a mão do ex-ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento (PR), afastado por Dilma por suspeita de corrupção. Valdemar Costa Neto, um dos réus no processo do “mensalão”, não está na foto, mas foi um dos arquitetos da aliança do PSDB com o PR na disputa da prefeitura paulistana. Ou seja, Valdemar Costa Neto, outra figura que não fica bem na foto, estava sem estar. De novo, o jogo de esconde-esconde das imagens.

Ao buscar um minuto e meio a mais de imagem, Lula afobou-se e esqueceu-se, por um momento, da natureza perigosa do que foi buscar. Mas deve contar com a possibilidade de a imagem sinistra ser esquecida – ou substituída por outras, produzidas pelos marqueteiros ao longo da campanha. Se é imagem o que vale, e não os princípios, agora há um minuto e meio a mais de TV para reverter o prejuízo e convertê-lo em lucro, ao transformar o espetáculo na única realidade que importa. Afinal, com o próprio Maluf há um precedente do PT em São Paulo: Marta Suplicy foi apoiada por ele no segundo turno da campanha de 2004 à prefeitura paulistana. Na época, Kombis decoradas com imagens de Maluf e Marta circulavam afoitas por São Paulo. Quem lembra? A própria Marta, a julgar por suas manifestações sobre a foto Lula-Maluf, parece ter esquecido.

Seria uma boa notícia se alguém estivesse sofrendo de fato por ter vomitado nos princípios. Mas nenhum dos envolvidos no episódio parece estar preocupado com princípios. Nem Lula e Haddad, que apertaram a mão de Maluf e posaram para a foto. Nem Erundina, que estava na foto sem estar, mas por causa da reação à ela desistiu de compactuar com o que já tinha compactuado. Muito menos José Serra, que adoraria estar no lugar de Lula e de Haddad, mas fingiu reprovar o vale tudo.

E nós? Nós precisamos enxergar além do que nos é dado para ver – e enxergar mesmo quando não há imagem. Ou tudo será permitido desde que ninguém veja, tudo continuará valendo a pena por um minuto e meio a mais de TV. O quanto realmente enxergamos o que estava – e o que não estava – na foto histórica só saberemos mais adiante.

Em 1988, diante da euforia e dos sonhos trazidos pela redemocratização do Brasil, depois de duas décadas de ditadura militar, havia dois cenários possíveis para o futuro. Boa parte de nós só enxergava um, só acreditava em um, só admitia um. Nele, a menina perguntaria ao ver o ladrão roubando a sua casa: “Mãe, esse que é o Maluf?”. E a mãe responderia: “Não, esse ladrão não é o Maluf porque o Maluf está preso”.

Naquele tempo, nenhum de nós – e tenho certeza de que nem mesmo Lula – poderia imaginar que o único diálogo possível no futuro seria este:

– Mãe, esse que é o Maluf?

– Não, o Maluf está ocupado, na casa dele, apertando a mão do Lula.

* * *
Revoltemo-nos. Mas sem esquecer que também estamos naquela foto. Sem eleitores como nós, ela não seria possível.

(Publicado na Revista Época em 25/06/2012)

 

A viagem de duas bolivianas com doença de Chagas para salvar suas vidas

Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem com o “Vinchuca”, o barbeiro transmissor da doença

ELIANE BRUM (TEXTO) E VÂNIA ALVES (FOTOS)
De AIQUILE

NO CORAÇÃO Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

NO CORAÇÃO
Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

Capítulo 1
No princípio, era um rufar de asas

A Vinchuca sempre esteve lá. Cada homem ou mulher dos vales e morros da Bolívia perguntou aos que vieram antes e obteve a garantia de que ela sempre esteve lá. Não há notícia de um mundo sem Vinchuca. Desde cedo as crianças aprendem a reconhecer o arranhar de suas asas e patas nas paredes de barro antes de atacar. “Soa como as folhas secas do milho ao vento”, dizem Cristina Salazar López e Maria Rodríguez Barrios. “Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.”

Quando ouviram a Vinchuca pela primeira vez, Maria e Cristina souberam, por intuição, que seria o som de sua vida. Na porção rica do mundo, a parte a que elas não pertencem, os vampiros da ficção movimentam milhões de dólares na indústria do entretenimento. Ali, nos vales da Bolívia, é como se os vampiros existissem. E milhões é a ordem de grandeza que mede o número de suas vítimas na América Latina.

São muitos os seus nomes. Barbeiro, chupão, bicho-de-parede, cascudo ou fincão. Vinchuca é seu nome em quéchua, a língua falada desde antes dos incas. Significa “deixar-se cair”. A cada noite centenas desses insetos de seis patas e até 3 centímetros de comprimento se alinham sobre o teto de palha e as paredes de barro das casas dos camponeses.

Quando homens, mulheres e crianças adormecem, despregam-se. Aterrissam sobre eles. Enfiam seu ferrão e sugam até seu corpo inchar. Empanturrados de sangue, defecam. Quando suas vítimas se coçam, em um sono agitado pela dor das picadas, o parasita letal que habita suas fezes invade o corpo. Ou as contamina pela boca e pelos olhos. É o Trypanosoma cruzi, identificado pelo sanitarista brasileiro Carlos Chagas na primeira década do século XX.

De cada 100 infectados, 50 desenvolvem a doença. Nestes, lenta e silenciosamente o protozoário vai levando seu hospedeiro ao fim, ao minar coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Mais de 10 milhões de pessoas estão infectadas no mundo. E, a cada ano, surgem 40 mil novos casos e cerca de 14 mil doentes morrem.

Cristina, Maria e milhares de camponeses da região de Narciso Campero, província fincada ao sul do departamento de Cochabamba, na Bolívia, vivem, noite após noite, um filme de terror com bem mais de duas horas de duração.

Capítulo 2
Como Maria e Cristina se uniram pelo coração

Os pés de Maria Rodríguez Barrios hesitavam ao entrar no ônibus para Cochabamba. Um avançava, o outro recuava. Ela era quase empurrada. Vestia sua melhor pollera, a saia rodada das cholas (bolivianas de origem indígena), a tradicional blusa de botões, uma trança negra de cada lado da cabeça e o chapéu-coco. No peito, as folhas de coca para proteção. “Eu não vou”, disse à agente dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que a levou até o ônibus. “Você precisa ir. É sua chance de botar o marca-passo e salvar sua vida. Você não quer ver seus filhos crescer?” Maria queria. Mas o medo a fazia retroceder.

Maria tinha pavor de que seu coração parasse de repente, aos 38 anos. Morte súbita como a de seu pai e de sua mãe e de quase todos que conhecia. Maria tinha mais medo da cidade. E do que os homens e mulheres brancos da cidade poderiam fazer com ela. Não por vê-la, mas por ignorá-la.

Em segredo, Maria armou um plano. Assim que o ônibus partisse, ela pediria ao motorista para descer e voltaria para sua aldeia. Ela morreria, mas não seria humilhada na cidade. Segura de sua escolha, virou a cabeça bonita para espiar a passageira que subia as escadas do ônibus, com sua pollera de veludo e um ar de grande dama.

Os olhos líquidos de Maria encontraram a rocha dos olhos de Cristina Salazar López. Seus ouvidos treinados de camponesa puderam adivinhar que o coração de Cristina, aos 47 anos, era doente como o seu. Cristina ajeitou as dobras da saia ampla no banco ao lado de Maria. E disse, em quéchua: “Você não quer viver? Cuidaremos uma da outra”.

E foi assim que Maria e Cristina iniciaram uma longa travessia para salvar o próprio coração. “Por que você tem tanto medo?”, perguntou Cristina. “Porque os da cidade não nos enxergam. Não tenho para onde ir nem tenho dinheiro. E não entendo o castelhano, e eles não entendem o quéchua. Somos cholas. E eles nos desprezam.”

Cristina conhecia esse desprezo. E o usara para esculpir seu rosto de bronze com uma dignidade altiva e uns olhos de pedra viva que não recuavam diante de ninguém. “Escuta. Sou chola também. E como chola fui vereadora. E cheguei a ser prefeita da cidade de Aiquile por três meses. E falaram, e conspiraram, e tentaram me derrubar. E toda vez que tinha sessão me escolhiam para ler porque eu não sabia. Então fui para a escola depois de velha para aprender a ler e fui estudar as leis com um advogado para que não me enganassem. E descobri as fraudes deles, e os denunciei. Com as minhas polleras, as minhas tranças e falando apenas quéchua. Esta é a segunda vez que coloco marca-passo. O primeiro coloquei com dinheiro emprestado e ainda estou pagando. Sou pobre e só consigo comprar meus remédios porque as pessoas conhecem meu sofrimento e me dão dinheiro no ônibus.” E começou a chorar, porque receber esmolas a aviltava.

Cristina terminou seu discurso num soluço. Maria perdeu a vontade de fugir. Ela agora queria ficar. Suas mãos buscaram-se no banco encardido do ônibus. Reconheceram-se pela rugosidade dos dedos de quem trabalhava desde menina e tinha na terra entranhada nas unhas uma segunda pele. E, ao silenciar, perceberam que a primeira das cinco horas de viagem havia passado.

Capítulo 3
A gênese da Vinchuca, segundo Maria e Cristina

BARBEIRO Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

BARBEIRO
Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

Ao desembarcar em Cochabamba, Maria descobriu que a cidade era como ela tinha imaginado. Entre ruas largas e olhos indiferentes, Cristina não era apenas sua bússola, mas toda a sua geografia. Era sua aldeia e também os morros, as espigas do milho e o rio onde ela se banhava aos domingos. Cristina era o mundo que sabia dela, Maria. E foi assim que à noite elas decidiram dormir na mesma cama para não se perder uma da outra e também de si mesmas, enquanto esperavam a cirurgia que emprestaria um compasso regular a seu coração.

Foi Cristina, sempre ela, quem começou a contar: “Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado”.

Eram mulheres, agora. Mas continuavam assustadas. “Minha mãe nos dizia que uma em cada 100 vinchucas estava envenenada. E por isso as recolhíamos numa panela à noite e as queimávamos em água quente”, disse Maria. “Mas não sabíamos que causava essa doença. Como é mesmo o nome? Acho que Chagas é um nome dado pelos Médicos Sem Fronteiras.”

Cristina estava pregada na infância. “Maria, os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.”

Maria sentiu uma pontada no coração, sem saber se era da doença ou da angústia. Mas ela se envergonhava de pedir para Cristina parar. “Então catamos todas as vinchucas, e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: ‘Pronto, sepultamos as vinchucas’. Nas primeiras noites havia menos, mas elas foram voltando. Maria, as vinchucas renasceram.” Era uma história de terror, mas Cristina e Maria não sabiam. Para elas, era apenas a vida que conheciam. A vida que as levara até aquela cama na cidade grande.

Capítulo 4
E um dia os homens desembarcaram na vida de Maria Cristina

PRÊMIO Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

PRÊMIO
Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

“Como é seu marido, Maria? É bom ou mau?”, perguntou Cristina, para que a noite virasse logo dia. Não havia vinchucas naquele quarto de cidade. Mas o mal já respirava dentro delas, e era tarde demais para arrancá-lo do corpo. Então era preciso falar. Emendar uma história na outra para ter certeza de que havia uma vida. E, se acontecesse o pior, a existência estava lá, presa na teia das palavras.

“Meu marido é bom, ele não me bate”, respondeu Maria. “E como você o conheceu?”, disse Cristina. “Eu estava pastoreando as ovelhas, e ele surgiu no canto do morro. Ele me ofereceu uns doces, e comemos juntos. Perguntou se eu queria me casar com ele, que não era bonito, era bem feio até. Perguntei a ele: ‘Você vai me tratar bem ou vai me pisar?’. Ele garantiu que nunca bateria em mim. E isso me animou. Então aceitei, e duas semanas depois ele apareceu na minha casa com os pais.”

Cristina queria mais: “E ele te pegou naquela noite mesmo?”. Maria se torceu na cama. Ela tinha vergonha de falar. Mas respondeu, porque Cristina era mais velha e já tinha se alojado na porção sadia de seu coração. “Você sabe, Cristina, que os homens não perdoam, mas ele estava cansado, tinha vindo de longe, e dormiu. Depois, pedi que ele esperasse, e ele esperou. Só nos casamos um ano depois, quando eu já estava grávida da minha filha. E, como a tradição manda, foi ele quem fez o parto.”

Cristina sentou-se na cama: “E como foi?”. Maria queria ficar séria, mas não conseguia. “Você sabe, Cristina, que só é lindo dar à luz porque nos dão caldo de galinha. Por isso as mulheres ficam grávidas a cada ano. Para tomar caldo de galinha pelo menos uma vez.” As duas se abraçaram e riram. E mais riram porque não podiam rir. E por um momento se esqueceram de que eram mães e esposas, e camponesas, e quase mortas.

“E você, Cristina, como se enamorou?”, perguntou Maria, quando o riso estancou e a escuridão trouxe um frio que não vinha de fora. “Eu estava apaixonada por outro. Muito apaixonada. Um curandeiro viu meu futuro nas folhas de coca e disse que eu não me casaria com o homem que amava, mas com um muito mais pobre. E assim foi. Este, que seria meu marido, trabalhava na oficina de costura comigo, mas eu não gostava dele. Um dia cheguei em casa, e ele estava lá com sua mãe. Meus pais disseram que eu tinha dado esperança, que, se não aceitasse, seria considerada uma mulher perdida. Eu aceitei, Maria. Mas chorava. E então meu marido me levou para sua aldeia.”

Maria correu os dedos pela trança negra de Cristina. Tão tímida que nunca soube se Cristina chegou a perceber. “E você o esqueceu?” A voz de Cristina era grave agora. “Eu o enterrei, Maria. Porque minha mãe disse que uma mulher podia ser tocada por um só homem na vida. Eu o enterrei, porque agora eu tinha um marido.”

Maria percebeu que Cristina não queria mais falar, mas o sono escapara por alguma fresta da janela, e a angústia passeava por seu peito com pés de ferro. Insistiu. “E seu marido é bom?” A voz de Cristina se suavizou. “Ele é bom, Maria. E gosta de mim. E, porque ele é bom e se preocupa comigo e não bate em mim, passei a gostar dele. Ele não é bonito nem simpático, mas acabei por lhe querer bem. Dançamos muito na festa de casamento, e foi um dia feliz. Depois, ele me pegou.”

Maria hesitou antes de perguntar. Mas talvez não houvesse outra chance, e ela nunca tinha conhecido uma mulher com tantas respostas. “Pode ser bom, Cristina?” Cristina quase podia colher a urgência na voz de Maria. E por isso afagou sua mão. “Tudo depende do homem, Maria. Se ele te trata bem, se te abraça, se te acaricia, então você pode gostar. Mas, se ele vier bêbado e fizer à força, você não pode gostar. Aí, como as pessoas dizem, você está com seu coração seco.”

Maria fez um silêncio espichado, antes de voltar a perguntar: “E havia Vinchuca na tua primeira vez, Cristina?”. Dessa vez, Cristina segurou o riso entre os dentes: “Maria, você acha que a Vinchuca respeitaria minhas bodas?”. As duas voltaram a se abraçar, os corpos sacudidos por gargalhadas. “Eu devia ser homem, não mulher”, disse Cristina, de repente. “Há tanta dor em ser mulher. O trabalho da mulher nunca acaba.” Maria concordou. “Se existir uma outra vida, Maria, eu quero voltar homem. Você sabe por quê?” Maria achava que sabia. “Para casar-me contigo!” Não falaram mais naquela noite. E demoraram a dormir.

Capítulo 5
Maria e Cristina descobrem que seu coração é grande, mas não é bom

Naquela noite havia um medo novo. Elas teriam de atravessar a cidade na madrugada para entrar na fila do hospital e fazer os exames. A cidade já era assustadora quando havia sol. Mas ao sol elas eram invisíveis. À noite, temiam que as enxergassem. No campo haviam dito a Maria que as mulheres da cidade iriam atacá-la e arrastá-la para um beco onde os homens a violariam. E foi isso o que ela garantiu a Cristina que aconteceria.
A aflição era ainda mais urgente porque o dinheiro acabara. E agora elas não sabiam como comer até o dia da cirurgia. Deitadas na cama para esperar a hora de enfrentar a cidade, agarraram-se às mãos e às palavras com uma força apressada. Era preciso encontrar uma história, mesmo que fosse triste.

“Maria”, disse Cristina, “aos 16 anos eu senti o veneno da Vinchuca pela primeira vez. Era como se uma faca perfurasse meu coração.” Maria não se moveu. Apenas apertou a mão de Cristina, para que ela soubesse que estava escutando. “Minha mãe me disse que uma pessoa só poderia ter duas pontadas como esta na vida. Na terceira, morria. Fiquei com muito medo de morrer e chorava muito. Mas a terceira pontada veio, e eu não morri. Eu não sabia que era a doença de Chagas, nem minha mãe. Ela dizia que, como a Vinchuca sugava nosso sangue todos os dias de nossa vida, nos tornávamos fracas.”

Maria também se sentia assim, exaurida de tudo. “Cristina”, disse ela. “Como vamos fazer para comer se não temos mais dinheiro?” Cristina não gostava de ser interrompida. “Maria, vai acontecer alguma coisa. Não te preocupa, o dinheiro vai aparecer.” Maria sabia que, se o dinheiro não brotava nos morros, onde a terra era fértil, muito menos no concreto da cidade. Mas calou-se.

“Escuta, Maria. Estou te contando uma história. E agora vou chegar na parte mais triste”, disse Cristina. “Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, Maria. Mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez, Maria?” E Cristina não esperou Maria responder. “Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. ‘Você quer morrer porque é frouxa’, ele dizia. Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir.” Maria se ergueu na cama. “O doutor te golpeou?”

Cristina fez um silêncio de lonjuras antes de responder. E Maria pensou que podia fatiar aquele silêncio. “Me golpeou, Maria. E fiquei com muita raiva dele. Ele me batia, e eu chorava. E, depois de saber que era Chagas o mal da Vinchuca, descobri que meus pais morreram de Chagas, que nove dos meus dez irmãos têm Chagas, que meu marido tem Chagas, e minha filha mais velha tem Chagas. E talvez o mais novo também tenha. Mas quero viver, Maria. Para contar essa história.”

Maria temeu a raiva de Cristina. Mas lembrou que ela também tinha raiva. E, se Cristina podia ter raiva, então a ela, Maria, também era permitido. “Faz três anos que comecei a ouvir um zumbido na cabeça, Cristina. Quando desperto, e até agora mesmo, escuto um zumbido. Fui ao curandeiro para que enxergasse a verdade nas folhas de coca. E ele me disse que eu estava com susto de chuva ou de touro. Me deu umas ervas, e melhorou um pouco. Só soube o que tinha meses atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras apareceram e fizeram exames em todos nós. Me disseram que eu estava muito doente e precisava colocar um relógio no coração. Fiquei com muita raiva e olhei para todos os lados, com medo que alguém estivesse ouvindo. Você sabe bem como é o costume, Cristina. Se soubessem que eu estava doente, as pessoas se alegrariam. E começariam a falar que eu morreria em breve.”

Maria sentia raiva de quem havia dado a notícia. Cristina tentou interrompê-la, mas ela não deixou. “Espera, Cristina, agora compreendo. Meses atrás eu não compreendia. E não contei a ninguém sobre meu coração. Só ao meu marido, que me aconselhou a esquecer e a seguir a vida como se aquele dia não tivesse existido. Então recebi o aviso de que tinha de ir ao cardiologista em Aiquile. Fui caminhando por quilômetros, mascando a coca com gana. Na cidade, eu tinha medo de perguntar e, quando perguntava, nem sempre me entendiam. Quando finalmente alcancei o médico do coração, ele me disse: ‘Ah, então os come-vinchucas mandaram você para cá?’. É assim que o doutor chama os Médicos Sem Fronteiras, de come-vinchucas.”

Cristina mexeu-se na cama, incomodada. “Não fui eu que chamei assim, Cristina, foi o doutor. E, depois de escutar meu coração, ele disse que o diagnóstico dos come-vinchucas estava certo. Ele disse mais, Cristina: ‘Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem para botar uma roupa boa no corpo, imagina para um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas para ver se te ajudam’. E eu fui. E por isso estou aqui. E agora entendo que meu pai e também minha mãe morreram de Chagas, e quatro dos meus sete irmãos têm Chagas. Os outros três ficaram com medo de fazer o exame, mas também devem ter o veneno porque não tinham como escapar. Meu marido disse que vai curar o Chagas com álcool. E que, se eu tomasse bastante álcool, também já estaria curada. Mas, você sabe, Cristina? Se eu não morrer nessa cirurgia, digo a você que nunca, mas nunca mesmo, ninguém da aldeia saberá que tenho um relógio dentro do peito. Porque as pessoas dizem que quem tem marca-passo não pode comer, não pode trabalhar, não presta para nada. Nunca vou contar para que não fiquem comentando que minha vida será curta.”

Maria parecia diferente. E Cristina estranhou. Sem saber o que dizer, Cristina perguntou, justo ela, que sempre foi uma mulher de pontos-finais. “Maria, será que já não é hora de andarmos?” E Maria, a mulher das interrogações, respondeu com uma exclamação: “Não! Ainda é cedo!”.

Capítulo 6
Epílogo

Na madrugada em que Maria e Cristina enfrentaram a cidade grande para alcançar o hospital, elas acharam 300 bolivianos no chão. Maria hesitou antes de juntar o dinheiro. Cristina mandou que pegasse e o escondeu no sutiã. Foi assim que se salvaram da fome. E puderam esperar pelo relógio que esticaria o tempo de sua existência.

Maria e Cristina colocaram um marca-passo e estão vivas. Na cirurgia, Cristina surpreendeu os médicos ao cantar com o peito aberto. Ela temia que, se morresse, Maria fugisse. Então cantou. Hoje, de tempos em tempos, Maria vence o medo, caminha durante horas pelos morros e alcança Cristina na pequena cidade de Aiquile. As duas se abraçam e sincronizam seus corações. Ao definir o amor que sentem uma pela outra, Maria e Cristina são uníssonas: “Nesta vida, somos irmãs”.

Se existir uma outra, me convidam para ser madrinha de seu casamento.

(Esta reportagem é a versão editada de uma das histórias do livro Dignidade! – obra comemorativa aos 40 anos de atuação dos Médicos Sem Fronteiras que chega ao Brasil nos próximos dias, pela editora LeYa. Nove escritores de diferentes partes do mundo, entre eles Mario Vargas Llosa, acompanharam o trabalho dos MSF nos lugares mais devastados e invisíveis do planeta e depois contaram sua experiência.)

(Publicado na Revista Época em 09/06/2012)

 

Página 82 de 85« Primeira...102030...8081828384...Última »