A negligência que mata

Governo brasileiro atrasa a entrega de medicamentos para Doença de Chagas e coloca em risco a vida de milhares de pessoas nos países mais pobres do continente

Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida. É noite e você está deitado na cama com a sua família. Sua casa tem telhado de palha e paredes de pau a pique. Sua casa nem é uma casa, mas um casebre. E tem buracos em vez de janelas porque você não tem dinheiro para comprar os vidros. Você tem fome, mas já está acostumado com essa sensação de falta no estômago e de fraqueza no corpo todo. Você nunca teve essa experiência, então não sabe como é comer até se fartar e dormir saciado. Isso já seria dor suficiente para uma vida, mas de fato é só um coadjuvante na sua história. O vilão entra agora. Cai do teto e das paredes sobre você. Dezenas, às vezes centenas, de insetos com cerca de três centímetros de comprimento. Caem como pernilongos numa casa infestada deles. Cobrem seu corpo, entram pela sua boca, chupam seu sangue e defecam sobre sua pele. Você coça, porque é desesperador. E, ao coçar, um organismo invisível entra no seu corpo e começa a matá-lo. Ao coçar, você começa a morrer.

Tente imaginar como se fosse você, por mais distante que essa realidade possa estar da sua vida, porque esta foi a noite de milhares de pessoas nas regiões mais pobres de países vizinhos como a Bolívia e o Paraguai. Gente como você, apenas com o azar de ter nascido em nações que ainda não conseguiram se recuperar da destruição histórica a que foram submetidas, primeiro pelos colonizadores espanhóis, depois pelas elites predatórias e por governos incompetentes e/ou corruptos.

Estes homens, mulheres e crianças que acordaram hoje como acordam todos os dias, picados pelo inseto conhecido aqui como “barbeiro”, têm apenas uma chance: o tratamento com um medicamento chamado Benzonidazol. O remédio para Doença de Chagas é produzido por um único país no mundo: o Brasil. A responsabilidade foi assumida pelo governo brasileiro com a população mundial, em uma das ações estratégicas para reforçar a liderança do país no continente e sua vocação de potência emergente. Na semana passada, a organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou que, por negligência, o Ministério da Saúde do Brasil atrasou a remessa de remédios, colocando em risco a vida de milhares de pacientes e paralisando os projetos de combate à doença.

A denúncia passou quase despercebida. Ganhou muito menos destaque na imprensa do que sua relevância exigiria, numa semana em que o grande tema midiático da saúde foi a proibição dos inibidores de apetite pela Anvisa. Levanto a questão porque a invisibilidade é, de fato, o que tem matado milhões de pessoas no mundo inteiro, vítimas das chamadas “doenças negligenciadas”, como Chagas. E o que são doenças negligenciadas? São aquelas que a indústria farmacêutica não tem interesse em pesquisar a cura porque atingem a parcela mais pobre dos países mais miseráveis do mundo. Ou seja: seu tratamento não dá dinheiro. E são aquelas que parte da imprensa opta por deixar para o canto da página ou para página nenhuma porque não atingem as pessoas que compram jornais. E é assim que parte da população mundial – sempre a mesma parte – morre: porque a vida de uns vale menos que a de outros. E nós todos somos cúmplices dessa lógica quando viramos a página porque a notícia não diz respeito ao nosso umbigo. Notícia, como sabemos, não tem natureza. “O quê” e “quem é notícia” são escolhas políticas e socioeconômicas com consequências na vida de todos, mas principalmente na vida dos mesmos de sempre.

Acredito que é responsabilidade da imprensa aproximar mundos. O leitor pode não saber o que é ter Mal de Chagas. Nós, jornalistas, temos a obrigação de investigar e de contar a ele. Por isso comecei esta coluna narrando como são as noites de uma parcela de nossos vizinhos. No primeiro semestre deste ano fiz um trabalho voluntário como jornalista para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Bolívia, o país mais atingido por Chagas no planeta. E conheci em profundidade o que é ter a patologia que leva o nome de um dos brasileiros mais geniais da História, o sanitarista Carlos Chagas: na primeira década do século XX, ele identificou o vetor e o protozoário transmissor e descreveu a epidemiologia da doença.

A Doença de Chagas, como aprendemos na escola (pelo menos no meu tempo se aprendia), é transmitida pelo inseto chamado no Brasil de “barbeiro”. O bicho se esconde nos buracos das paredes e dos telhados das casas de pau a pique ou adobe, naquelas onde há buracos para se esconder, e à noite pica suas vítimas como fazem os pernilongos. Ao chupar o sangue, quase imediatamente defeca. A pessoa coça, num gesto automático, e o Trypanosoma cruzi, o protozoário que mora nas fezes do barbeiro, entra no organismo e se instala. Metade dos homens, mulheres e crianças infectadas vão desenvolver a doença que atinge coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Sem tratamento, o Mal de Chagas leva à morte. Na América Latina, estima-se que de 10 a 15 milhões sofram de Chagas e 14 mil morrem por ano de uma patologia que poderia ser prevenida e tratada.

A doença, que tem na miséria uma poderosa aliada, atinge a parcela mais invisível de países já invisíveis no mundo – ou vistos apenas como curiosidade folclórica. A realidade do Mal de Chagas na América Latina começou a mudar a partir do final da década de 90. Entre 1999 e 2011, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) desenvolveu oito projetos de tratamento em Honduras, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Paraguai e Bolívia. Pela primeira vez a população atingida teve uma chance. Para que vocês alcancem o tamanho da tragédia, basta saber que parte das pessoas contaminadas sequer sabia que o barbeiro era o causador da doença. Achava que as mortes súbitas que acometiam uma geração após a outra eram uma doença de família. Algo que estava no sangue.

Ao iniciar o tratamento, as equipes de MSF descobriram que o Benzonidazol não causava bons resultados apenas nas fases agudas da doença de Chagas, mas também nos casos crônicos. No Brasil, por exemplo, estima-se que existam entre 2 e 3 milhões de doentes crônicos, contaminados no passado. Mas, nos últimos anos, foram descobertas ocorrências agudas em diversos estados e especialmente na Amazônia. A comprovação de que o medicamento trazia bons resultados também para pacientes crônicos aumentou a demanda pelo medicamento e significou a diferença entre viver e morrer para milhões de pessoas. Com a atuação de MSF, os países endêmicos começaram a se organizar para assumir a sua parte na prevenção e tratamento de Chagas. E todos nós sabemos como as estruturas governamentais se movem devagar – e mais ainda em países assolados por conflitos e miséria por todos os flancos.

Com muito esforço e um bocado de percalços, tudo começava a se encaminhar para a construção de políticas permanentes de prevenção e tratamento. Cabe ao governo de cada país assumir a responsabilidade pela eliminação do barbeiro e por programas de melhoria das casas, para que os insetos não possam se instalar. E cabe a MSF implantar projetos de diagnóstico e tratamento, assim como treinar multiplicadores no próprio país, para que depois da saída da organização as ações sejam assumidas pelas instâncias locais como política pública e tenham continuidade.

Começaram então a surgir indícios de que o Brasil, o único produtor mundial do Benzonidazol, não conseguiria entregar os lotes no prazo. O medicamento é, ele mesmo, um exemplo clássico das doenças negligenciadas. Foi sintetizado em 1960 para tratar outra patologia e descobriu-se que produzia bons resultados em Chagas. Apesar de causar efeitos colaterais em parte dos pacientes, ainda é a melhor droga existente porque nunca mais a indústria se interessou em pesquisar outra. A Roche, multinacional farmacêutica que produzia o medicamento, desinteressou-se de continuar fabricando-o por falta de retorno comercial e, em 2003, transferiu a patente para o Brasil.

Como a Roche deixou um bom estoque de medicamentos no mercado e matéria-prima para a produção dos primeiros lotes, até agora o governo brasileiro tinha cumprido seus compromissos. Mas o Ministério da Saúde demorou a organizar-se para dar conta da cadeia completa de produção. Para passar a produzir o Benzonidazol integralmente no país, escolheu tardiamente apenas uma única fonte para sintetizar o princípio ativo: uma empresa privada chamada Nortec Química. Com a matéria-prima, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) fabricaria o medicamento. E aí começaram os atrasos e o tradicional jogo de empurra-empurra das responsabilidades.

No início deste ano, em reunião da Organização Pan-Americana de Saúde, realizada em Bogotá, na Colômbia, os países endêmicos já tinham manifestado a preocupação de que o Brasil não conseguisse cumprir seus compromissos no fornecimento de Benzonidazol e deveria criar mecanismos para aprimorar a produção dos medicamentos. Os temores tinham fundamento. Em agosto, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) informou aos Médicos Sem Fronteiras que não seria capaz de atender ao pedido de 460 mil comprimidos destinados aos projetos da organização na Bolívia e de 360 mil comprimidos aos projetos no Paraguai. Segundo o Lafepe, a Nortec Química não conseguiu cumprir os prazos de entrega da matéria-prima. Sem matéria-prima, o Lafepe não pode produzir. E, sem estoque, o governo brasileiro não é capaz de cumprir seus compromissos. Enquanto um põe a culpa no outro nos gabinetes, todos nós sabemos (ou deveríamos saber) quem é que perde a vida lá na ponta.

Em documento divulgado na semana passada, a organização Médicos Sem Fronteiras afirmou: “Esta crise poderia ter sido evitada, mas o principal ator envolvido, o Ministério da Saúde no Brasil, tem fugido de suas responsabilidades e parece não destinar esforços para superar os diversos desafios. (…) MSF chegou a contatar o Ministério da Saúde do Brasil em várias ocasiões para alertá-lo sobre a escassez iminente e para exigir ações concretas. (…) O Ministério da Saúde do Brasil tomou a responsabilidade de ser o único produtor mundial de Benzonidazol. Ele deve agora mostrar uma liderança forte”.

Na manhã de sexta-feira, 7/10, entrei em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde. Fui informada de que o responsável pela área, Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS, não poderia dar entrevista naquele dia porque estava “resolvendo problemas pessoais”. E não havia nenhuma outra pessoa que pudesse falar sobre o tema. Na nota oficial que me enviaram, o Ministério da Saúde afirma: “Não há atrasos e nem interrupções no cronograma de produção e distribuição do Benzonidazol”. Curiosamente, naquele momento, em Recife, ocorria uma audiência na Secretaria de Saúde de Pernambuco para encontrar saídas para retomar a produção e reduzir os danos causados pelo atraso no cronograma.

Entrevistei então o coordenador de vendas do Lafepe, Djalma Dantas, que admitiu que, sim, há uma “crise”, devido ao atraso no recebimento do princípio ativo para a produção do medicamento. Por isso avisaram a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em agosto de que não conseguiriam cumprir o cronograma. Segundo ele, a Nortec deverá entregar o primeiro lote da matéria-prima apenas no final de outubro ou início de novembro. Depois disso, o Lafepe necessita de 20 dias para preparar o medicamento. E então a Anvisa precisa de um prazo para análise e liberação. “Em geral a Anvisa precisaria de pelo menos três a quatro meses para o procedimento de validação, mas deverão colocá-lo na frente de todos os outros pedidos”, disse Dantas. Para tentar reduzir os danos causados pela crise que o Ministério da Saúde afirma não existir há uma audiência nesta segunda-feira (10/10), em Brasília.

No mundo real, onde as pessoas morrem por decisões (não) tomadas em gabinete, o descumprimento dos compromissos assumidos pelo governo brasileiro com a população mundial já causou a suspensão do diagnóstico de novos pacientes no Paraguai e a suspensão de novos projetos de prevenção e tratamento na Bolívia.

Como jornalista, minha função é encurtar a distância entre os gabinetes e as pessoas que dependem de suas decisões para viver, para que o leitor se aproxime de mundos onde eu estive – e ele não. Pensando nisso, termino esta coluna voltando ao seu início. Nos povoados bolivianos em que trabalhei como jornalista, 70% das pessoas têm Chagas: sete em cada dez. Sete em cada dez dependem que o Brasil cumpra o compromisso assumido com a comunidade mundial para terem a chance de continuarem vivas. Tomara que a audiência do Ministério da Saúde sobre a crise que não existe tenha resultados.

(Publicado na Revista Época em 10/10/2011)

A perna fantasma

Uma história sobre nomes, partidas e chegadas

Acabo de chegar de viagem. E as viagens têm esse poder de iluminar as paisagens internas. Pegamos ônibus, trem, avião e, de repente, descobrimos que atravessamos o Atlântico não só fora, mas dentro de nós. Aconteceu comigo desta vez. Voei sobre o oceano para falar sobre a “palavra” na Itália. E descobri o mistério do “m” do meu sobrenome. Fiz uma volta completa para compreender mais de um século da história da minha família. E deste “m” que me constitui e do qual não consigo me livrar.

Explico. Pietro Brun, meu tataravô, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos italianos pobres expulsos pela fome e atraídos pelas promessas de terra na América. Pietro queria terra, sim. Mas o ímpeto feroz que o movia era salvar um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome, encarnado naquele momento na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o Exército como soldado por anos e lutou na guerra austro-prussiana nas fileiras da Áustria. Ele conhecia a sorte que tinha de ter sobrevivido não só às batalhas todas, mas também aos invernos e à falta de comida. Não queria que Antônio tivesse o mesmo destino, porque o mais provável para um soldado naquela época era morrer – e não viver. Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava, meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova, para embarcar como clandestino.

Meu tataravô Pietro tinha um motivo muito forte para salvar seu último filho homem – e sua descendência. Giuseppe, seu outro filho, fora estrangulado. O menino de 15 anos se distraiu pastoreando, e os animais comeram o pasto de um vizinho. Motivo suficiente para perder a vida. Sua mãe, minha tataravó Thereza, morreria de tristeza mais tarde. Os tempos eram assim.

Pietro queria terra, portanto, para plantar um filho. E um nome. E para isso separou a família já destroçada pela tragédia. Em Udine, na região italiana do Friuli, ele deixou seus mortos e as filhas mais velhas. Foi assim que os Brun, a árvore que me constitui como nome, se separaram. Não como um adeus, mas como um esquartejamento. Se as mãos que estrangularam um menino haviam despedaçado simbolicamente a família, o oceano era a faca que separaria literalmente suas partes. A mãe permaneceu com o filho morto, o pai fugiu com o filho vivo.

Quando desembarcaram no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, o funcionário do governo, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou o nome conforme ouviu. E foi assim que, no mundo novo, nos tornamos Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de Antônio e bisneto de Pietro, pegou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la. É este afinal o sentido da literatura da vida real. Ou pelo menos um deles. Tentar amalgamar pela palavra o que foi separado pela carne. Missão impossível, porque a palavra é para sempre insuficiente para abarcar a vida.

Há uns 20 anos pensamos em reivindicar a cidadania italiana. Temos todos os documentos, cuidadosamente organizados em uma pasta. Mas havia esta mudança de letra entre nós. Antes de ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial que substituiu um “m” por um “n”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e com certeza morreu sem saber. E se soubesse não teria se importado porque, afinal, era apenas o nome de mais um imigrante destituído de tudo, até de pátria.

Cabia a mim levar essa empreitada adiante. E não pude. Assim como nunca fui capaz de alcançar Udine e tentar descobrir o que aconteceu com os membros que permaneceram, embora já tenha estado na Itália quatro vezes. No ano passado, estive a meia-hora de trem de lá. E não peguei esse trem. Há uma semana, estive quase ao lado. E não fui. O que pode haver lá para mim, quatro gerações depois?, eu pensava. Se encontrar algum parente, podem até achar que quero dinheiro ou hotel de graça. Sinto uma tristeza irritada por aqueles descendentes de italianos que colocam adesivos nos carros: “Sou italiano graças a Deus”. Escrito em italiano, claro. Afinal, seus antepassados foram praticamente expulsos da Itália que tanto louvam – e foi no Brasil que reinventaram suas vidas.

Eu sou brasileira. Mas carrego essas partes mortas como vida, essa amputação transmitida pela oralidade e há duas gerações convertida em palavra escrita. E toda vez tenho de dar explicações sobre por que não tenho cidadania italiana. Como explicar o que nem eu compreendia muito bem? Só sabia que não podia simplesmente voltar a ser o que nunca fui: uma Brun.

Compreendi nesta última viagem por que não conseguia mudar a letra. A palavra é o corpo que eu habito. Eu não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. O que sei é que não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. Se no meu corpo carrego todas as minhas marcas em forma de cicatrizes, manchas de sol e agora algumas rugas, no meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, e também o silêncio que grita como aquilo que para sempre será incapturável em mim.

Existe uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e não com a que herdamos. E existe aquilo que deve permanecer porque é história que veio antes. Podemos desconhecê-la, mas de algum modo ela ainda estará lá. Por isso eu sempre escolho a memória. A desmemória assombra porque existe e não a nomeamos, respira em nós como fantasma. A memória, não. A memória é uma escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade para ressignificar nossas lembranças. As vividas por nós – e as da tradição familiar.

Ao fugirem para o Brasil, literalmente esquartejados, os Brun ganharam uma perna a mais no nome. O “n” virou “m”. Mas esta perna a mais era um membro fantasma, um ganho que assinalava uma perda. Esta perna a mais era Giuseppe assassinado por estrangulamento, era Thereza morta de tristeza, era uma pátria perdida, um estar no mundo que já não podia ser. Passou despercebido para os que aqui chegaram porque eram analfabetos. Ao se alfabetizar, ganhar uma existência nas letras, meu pai descobriu que era um nome errado. Se alfabetizar, reconhecer-se na palavra escrita, como sabemos, é, ao mesmo tempo, redenção e maldição.

Não pude entrar com uma ação judicial, relativamente simples, para corrigir o nome, porque não é possível para mim eliminar essa cicatriz que assinala tanto uma presença quanto uma ausência. E presença e ausência é, afinal, a essência de todos os nomes. Seria só uma mudança no documento, me dizem, mas para mim nada que é documento e nada que é escrito pode ser “só”.

A perna a mais que o Brasil nos deu é tanto, demais. Eliminá-la seria como apagar toda uma jornada que vai muito além do Oceano Atlântico. Porque essa perna a mais é ao mesmo tempo perda e ganho. A perda de tudo o que ficou e o ganho de tudo o que aconteceu depois, o velho e o novo. Não posso simplesmente apagá-la ou corrigi-la porque para mim não é erro – e sim marca. Uma marca que diz mais de mim do que as letras que sobreviveram incólumes à mudança de mundo. Uma marca que, se for eliminada, se converterá em falta.

Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como todos nós que resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois até Pedro Brum. Como não há rastro do funcionário displicente que errou o nome do imigrante ao registrar sua chegada nos papéis do governo, posso dar um outro significado mesmo a este homem que possivelmente fazia o seu trabalho com a mesma dedicação empreendida por grande parte dos funcionários públicos de hoje.

Agora sei que não tenho um nome errado, mas um nome assinalado pelo que viveu. Há uma semana dei a essa perna não mais o lugar de membro fantasma, mas de travessia. E agora me dedico a inventar um funcionário público melancólico e solitário, que à noite devorava livros em um quartinho de pensão no Rio de Janeiro do final do século 19, espantando a caspa que caía sobre as páginas gastas pelo uso. Diante de mais um imigrante estropiado e destituído de letras, amputado por uma separação e uma saudade, ele pensou: este homem vai precisar de mais uma perna para conseguir inventar uma vida no Brasil. E, poderoso assim de repente, molhando a pena no tinteiro e a empunhando com brio, como eu agora o invento, naquele momento ele inventou um “m” para mim.

(Publicado na Revista Época em 19/09/2011)

Duas mulheres indomáveis

Aos 102 anos, Aracy e Margarethe encerraram uma vida de cinema

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Margarethe Bertel Levy (à esq.) e Aracy Guimarães Rosa

Quando Margarethe morria no hospital, em casa a respiração de Aracy começou a falhar. Como o da amiga, também o seu pulmão ameaçava afogar-se. Maria Margarethe Bertel Levy morreu no dia 21 de fevereiro – e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa na madrugada de 3 de março. Ambas tinham 102 anos. E uma história espetacular. Aracy, funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, havia salvado Margarethe de morrer num campo de concentração nazista. Uma brasileira e a outra judia alemã, as duas belíssimas, iniciaram sua amizade ao tornarem-se duas mulheres contra Hitler. E fizeram dela um laço inquebrantável ao viverem no Brasil que para Aracy era a terra natal, para Margarethe a rota de fuga. Quando a morte tentou separá-las, fracassou como todos que antes tentaram obstruir o caminho destas duas. Morreram quase juntas, com diferença de dias. Deixaram como legado uma vida de cinema.

Conheci essas duas mulheres três anos atrás. Quando tinham apenas 99 anos. Aracy Guimarães Rosa, como o sobrenome revela, foi o grande amor do escritor João Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas, talvez a maior obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a ela. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Em cartas para Aracy, Rosa revela um furor sensual que ninguém diria ao olhar apenas para seu aprumo de diplomata. Como ao escrever: “Antes e depois, beijar, longamente, a tua boquinha. Essa tua boca sensual e perversamente bonita, expressiva, quente, sabida, sabidíssima, suavíssima, ousada, ávida, requintada, ‘rafinierte’, gulosa, pecadora, especialista, perfumada, gostosa, tão gostosa como você toda inteira, meu anjo de Aracy bonita, muito minha, dona do meu coração”. Para Aracy, o escritor que criou um mundo e reinventou a língua portuguesa era o seu “João Babão”.

Mas Aracy não era apenas – e não que isso fosse pouco – a mulher por quem Rosa se apaixonou e com quem viveu até a sua morte. Aracy foi autora e protagonista de seu próprio romance na vida real. Tornou-se o “Anjo de Hamburgo” – a funcionária do consulado brasileiro que salvou dezenas de judeus do nazismo ao contrariar a política de Getúlio Vargas, enganar o cônsul e dar vistos para o Brasil antes que fossem presos em campos de concentração de onde jamais sairiam vivos. Seu nome está em Jerusalém, no Museu do Holocausto, como “justa entre as nações”, a mesma honraria com que foi reconhecido Oskar Schindler, cuja história foi contada em “A Lista de Schindler”, blockbuster de Steven Spielberg.

Eu a conheci para escrever uma reportagem que se chamou A lista de Aracy. Na matéria conto o que aconteceu com homens e mulheres que puderam tecer uma vida – e gerar uma descendência que, sem Aracy, não existiria. Um deles, Günter Heilborn, deu o nome de Aracy à primeira filha mulher e o nome de sua mãe, Selma, queimada num forno nazista, a uma orquídea de pétalas brancas e amarelas que criou como botânico amador. Há um mundo inteiro que só existiu porque Aracy existiu. E teve a coragem de fazer o certo – contra quase todos.

Ao buscar Aracy, alcancei Margarethe. Estas duas mulheres se encontraram no consulado brasileiro de Hamburgo em 1938. Aracy para salvá-la, Margarethe para ser salva. Em comum tinham a beleza e o fato de não seguirem a cartilha feminina da época. Eram ambas indomáveis. Ninguém podia com elas. Aracy, por exemplo. Era desquitada, no Brasil dos anos 30 (!!!). Fluente em várias línguas, tivera o desplante de, aos 26 anos, pegar o filho de cinco anos pela mão e rumar para a Alemanha para construir uma nova vida.

Sozinha com um menino pequeno, estrangeira num país à beira da insanidade e da guerra, ela teve a ousadia de desafiar a política do seu próprio país e enganar o próprio chefe. Armou uma pequena rede clandestina com arianos contrários à perseguição aos judeus que envolvia até o dono da autoescola onde tinha aprendido a dirigir seu Opel Olympia. Chegou a passar a fronteira com um judeu no porta-malas do carro com placa diplomática. E no meio dessa confusão teve tempo para viver um tórrido romance com Guimarães Rosa, o cônsul-adjunto que havia deixado no Brasil a primeira mulher, duas filhas e uma ainda incipiente estreia literária.

Margarethe tampouco era uma judia comum. Filha de pais ricos e liberais, passou boa parte da infância e da juventude viajando. Falava sete línguas. Seduzira Hugo, seu marido, (ou foi seduzida) na cadeira de dentista. Apaixonaram-se enquanto ele, 16 anos mais velho, cuidava da bela paciente. Com a ajuda de Aracy e de vários clientes arianos, Margarethe e Hugo conseguiram embarcar no navio Cap Ancona e chegar ao Brasil com a fortuna intacta. Não faltaram nem mesmo as jóias de Margarethe. Viveram em São Paulo sem maiores relações com a comunidade judaica. Hugo teve uma sólida clientela formada entre famílias alemãs. E Margarethe seguiu com sua vida cosmopolita.

Depois que Guimarães Rosa morreu, Aracy continuou vivendo no apartamento do casal no Rio. Em 1968, ela escondeu nele o compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar por causa da canção “Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”. No prédio, próximo ao Forte de Copacabana, moravam vários oficiais. Enquanto a repressão caçava Vandré, ele compunha no sofá de Aracy. Depois, seu neto, Eduardo Tess Filho, levou Vandré para São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. Daquele dia em diante, porém, a cidade foi assolada por uma guerra que ela não tinha mais idade para combater. E ela acabou resignando-se a morar em São Paulo com o único filho, o advogado Eduardo Tess. Aos poucos, bem devagar, foi perdendo os fios de sua memória.

Depois da morte de Hugo, há cerca de 20 anos, Margarethe ficou só. Enquanto pôde, manteve a independência e dirigiu seu Corcel até os anos 90 pelas ruas de São Paulo. Sem filhos seus para apoiá-la na velhice, foi o de Aracy que a adotou, em mais uma delicadeza dessa história cinematográfica. Margarethe seguiu vivendo em seu próprio apartamento, mas amparada pelo carinho da família Tess, que a chama de “Margarida”.

Quando conheci estas duas mulheres, Aracy parecia não estar mais aqui. Margarethe pouco caminhava, tinha dificuldade para enxergar e quase não ouvia, mas mantinha a mente límpida. E afiada. Foi ela quem me disse: “Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”. Perguntei a ela como era na juventude. “Eu era sexy”, disse. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.”

Do tanto que tinham em comum, elas só não compartilhavam a fé. Aracy era uma católica fervorosa. Margarethe uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio (da fé). Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, afirmou. Quase virando um século de vida e ela era o que era, sem concessões.

Aos 99 anos, Margarethe me olhou com olhos que supostamente não me viam e disse: “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”. E acrescentou: “Com o tempo, a gente não esquece”. É uma grande frase, à altura desta mulher única.

Margarethe já não podia mais alcançar Aracy nas visitas que fazia a ela nos derradeiros anos de vida. A amiga parecia não reconhecê-la. Mas o laço invisível que as unia de algum modo seguia lá, intacto. Há tantos anos alheia de tudo e também de si mesma, de algum modo Aracy pressentiu que Margarethe estava partindo.

Pode ser apenas coincidência, afinal elas tinham 102 anos e Aracy completaria 103 no próximo 20 de abril. Mas prefiro acreditar que não. Na madrugada de domingo para segunda (21/2), Margarethe morria e Aracy, que até então estava muito bem, sentiu a respiração falhar. “Tiveram a mesma morte”, me disse Beatriz Tess, a nora de Aracy, que cuidou das duas como se fossem suas próprias mães. “A gente pensava que não, mas de algum modo Aracy sabia”.

Ao contemplar Aracy imóvel em sua morte, um século de história inscrito no corpo envelhecido, me emocionei ao pensar que poucas mulheres podem afirmar terem vivido com tanta intensidade. Com tanta aventura, tanta paixão, tanto risco. Tanta verdade. Por causa de Aracy, Margarethe teve pelo menos mais 70 anos de uma vida que ela soube honrar vivendo com voracidade. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar no Museu do Holocausto. E quando a amiga desligou-se do passado e também do presente, era na memória de Margarethe que ambas viviam.

Conhecendo um pouco a biografia destas duas mulheres extraordinárias, que não se renderam nem aos costumes nem aos preconceitos e nem mesmo a Adolf Hitler, gosto de pensar que elas não se deixaram vencer nem pela morte que as separaria. Posso imaginar Aracy pensando: “O quê? Se Margarethe se vai, eu vou com ela”. E tratou de morrer. Do mesmo jeito. Na hora que quis. Juntas, menos pelos dias que separaram a partida de uma e de outra, mais pela inteireza de uma amizade que redime o mundo.

(Publicado na Revista Época em 07/03/2011)

O novo, o velho e o antigo

Estudioso de Chico Buarque lança um olhar provocador sobre o Brasil e suas circunstâncias

Antes de o italiano Luca Bacchini descobrir o Brasil, foi o Brasil que aportou na sua alma em notas de samba. O Novo Mundo navegava na vitrola da casa da família na Roma da sua infância em discos de vinil que o pai ganhava de um piloto da Alitalia. Ao observar a euforia dos adultos, forjando em língua desconhecida uma versão mais viva de si mesmos nos carnavais improvisados que o pai organizava, Luca capturou o Brasil como uma visão particular de paraíso. Muitos anos depois desse primeiro contato, ele se tornaria um estudioso da obra musical e literária de Chico Buarque. Um “chicólogo”, como ele diz. E uma espécie de romano-carioca que corre sobre as pedras milenares da Via Ápia enquanto planeja sua próxima passagem pela Marquês de Sapucaí.

Convidei Luca Bacchini a refletir nesta coluna sobre seus passos entre dois mundos. A vida cotidiana em Roma, talvez a cidade do planeta onde é possível apalpar como em nenhuma outra o peso do passado no presente. Onde nossos pés pisam sem deixar marcas em pedras que foram assentadas ali antes de Cristo e ali estarão muito depois do nosso fim. E a apreensão da vida nesse país do futuro que é o Brasil, eternamente jovem em sua espera pelo dia seguinte.

Nesta entrevista, Luca Bacchini nos ajuda a pensar sobre o antigo, o velho e o novo. Sobre o Brasil e suas representações. Sobre Chico Buarque e a reinvenção da língua. Professor contratado de literatura brasileira e portuguesa do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade ‘La Sapienza’ de Roma, ele também é crítico literário e tradutor de livros, artigos e reportagens. Já publicou vários ensaios em coletâneas e revistas especializadas sobre a literatura e a música brasileira, especialmente sobre Chico, Tom Jobim e João Gilberto. Dedica-se nesse momento a escrever um livro sobre o romance Budapeste, de Chico Buarque. É também conhecido em alguns meios como “Luca do agogô”. Mas este é um personagem que só se manifesta durante o Carnaval no Rio de Janeiro.

Acompanhe.

Quis fazer esta entrevista ao ouvir você falar sobre a convivência entre o velho e o antigo na sua cidade, Roma. Essa lembrança constante de que as pedras sobrevivem a nós. De que somos frágeis e somos passagem. Qual é a diferença entre o velho e o antigo, para você? E como isso repercute no homem que você é?

Luca Bacchini – Uma cidade como Roma, que é chamada de “cidade eterna”, inevitavelmente implica uma relação problemática com seus habitantes, que são mortais. Dispondo de um tempo ilimitado, a cidade levará sempre uma posição de vantagem com relação a nós, que contamos com um tempo limitado. A gente aqui convive com as ruínas. A antiguidade é um período afastado e remoto, mas que persiste obstinadamente no nosso presente. O antigo é fascinante, não necessariamente belo, mas automaticamente impõe respeito. O velho já é ligado ao conceito de decadência, de enfraquecimento, de declínio de algo que era jovem, talvez bonito, e que hoje não é mais o que era antes. O antigo se mede em séculos e é o tempo “forte” das ruínas, enquanto o velho remete a um tempo “fraco”, mais humano, que inexoravelmente nos revela a caducidade das coisas. Roma é um dos lugares do mundo onde você pode perceber melhor esta diferença. O velho não se torna antigo porque não sobrevive ao tempo. É destinado à extinção, deixando apenas escombros e entulhos que irão desaparecer. Ao contrário das ruínas, que ficam para sempre. Tudo aqui se alimenta da tensão entre estas duas temporalidades antitéticas que acabam vivendo num contraste amoroso.

Como é essa convivência no cotidiano?

Luca – Roma impõe respeito, mas sem inibir. É uma cidade monumental – e não uma cidade com monumentos. A maioria das suas riquezas, artísticas e arqueológicas, não está protegida atrás de vidros blindados. Roma pretende ser usada, tocada, pisada, esculachada, sujada e continuamente re-vivida, sobretudo nas suas ruínas. No Coliseu já houve encontros de boxe e vários eventos musicais. Nas Termas de Caracalla já assisti a um show de Caetano Veloso e a uma representação daAida. Na infância, disputei peladas intermináveis no campo do Circo Massimo e hoje, duas ou três vezes por semana, corro na Appia Antica (Via Ápia). Quando termino o treino, uso as pedras da tumba dos Rabiri ou de Quinto Apuleio para fazer os alongamentos. Às vezes acontece de algum turista querer tirar uma foto e aí, tudo bem, mudo para outro sepulcro. Mas não sou profanador de tumbas. São elas que invadem a minha academia.

Você acha que este é o drama humano, também? Se vamos nos tornar velhos ou antigos, mortos esquecidos ou lembrados, permanecer além da vida? Esta é uma questão para você?

Luca – Quem dera que os homens se preocupassem em ser lembrados ou em permanecer além da vida. Seria, afinal de contas, uma preocupação nobre e profunda. Por séculos a Igreja desfrutou e alimentou essa fraqueza humana montando umbusiness incrível – basta pensar na “venda de indulgências”. Hoje, porém, estamos aflitos por exigências e necessidades muito mais práticas e imediatas. Meditar e refletir é considerado um tempo que você está subtraindo à ação. Vivemos exasperadamente a filosofia do “Carpe diem”, mas numa forma distorcida e hedonista, que tem pouco a ver com o pensamento horaciano. Acho que hoje o grande drama humano é aceitar a velhice ou, dito de outra forma, prolongar ao máximo a juventude. Daqui a 50, 70 anos a grama dos nossos cemitérios estará toda contaminada por botox e silicone.

Você acha que a morte é mais presente – ou uma presença – quando se vive numa cidade em que o passado é tão concreto e mesmo palpável?

Luca – A morte está mais presente onde há violência. Aqui na Itália não temos um contato cotidiano com a morte como no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Irã, na África do Sul ou nos países envolvidos em guerras. Acredito que todos os brasileiros ou a grande maioria deles têm um parente, um amigo ou um conhecido que já foi vítima ou testemunha de mortes violentas. Dentro do meu grupo de parentes, amigos e conhecidos, até hoje eu não ouvi nenhum caso de morte ou ferimento causado por criminosos ou, pior ainda, por policiais corruptos. Pelo contrário, a morte foi bem presente na geração que viveu a II Guerra Mundial. Minha avó, por exemplo, assistiu a toda a brutalidade e desumanidade da represália nazista na Itália. Ela viu famílias inteiras deportadas, homens justiçados sob os olhos dos filhos e da esposa, mulheres abusadas, partisanos torturados e massacrados. Ainda hoje ela me fala com horror do ruído das botas dos soldados alemães que ecoavam à noite pelas ruas estreitas da cidadezinha onde ela morava.

Vivendo numa cidade tão monumental, mesmo, já que em Roma o “monumental” faz sentido e não é apenas um adjetivo vazio, como é possível construir ou inventar o novo?

Luca – Morando numa cidade monumental – e na Itália há muitas – a gente tem o privilégio de frequentar cotidiamente a arte e a história. Por um lado, nós acabamos desenvolvendo uma natural sensibilidade estética. De repente é daí que vem o que no Exterior é chamado de buon gusto ou stile dos italianos. Por outro lado, criamos uma relação meio traumática com o passado que está sempre lá, materialmente presente, te olhando, te espiando e te questionando. Em termos políticos isso se traduziu numa falta total de interesse na programação do futuro e, consequentemente, na instauração de um sistema gerontocrático. Os nossos políticos são os mais velhos da Europa. Em qualquer setor da sociedade as decisões mais importantes são assumidas por pessoas com uma idade bem avançada, em vários casos até anterior àquela dos meus pais. De um certo ponto de vista as pessoas idosas são aquelas que mais se aproximam da eternidade (risos). Com certeza, o espírito do lugar não estimula a criação do novo. Morando aqui você é levado a perceber o novo numa forma prevalentemente negativa, como uma categoria transitória, provisória, com prazo marcado. Como algo que antecipa o tempo, mas que pelo tempo afinal será sempre derrubado, que inevitavelmente passará de moda e que, em breve, se tornará velho, superado, obsoleto, até desaparecer. Afinal, é tristemente normal que uma sociedade gerontocrática considere o novo como uma ameaça à ordem constituída porque ele viola no presente a hegemonia do passado. Para mim, o Brasil, com a sua vocação congênita de país do futuro, funciona como uma espécie de alternativa libertadora para equilibrar essa falta crônica de utopia.

Mas não é possível que o novo se torne antigo? Construir algo novo que permaneça, do ponto de vista arquitetônico e também imaterial?

Luca – Para responder devidamente, eu deveria ser eterno. Por enquanto, me limito a concordar com o antropólogo Marc Augé, quando diz que a nossa época não poderá produzir ruínas porque não tem mais tempo. Somos vítimas complacentes da cultura do descartável.

“O Brasil sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar o próprio passado”

Por que o Brasil seria, como você diz, uma alternativa libertadora devido à “vocação congênita de país do futuro”? Por que você sente isso a respeito do Brasil e não sente, por exemplo, por outros países da América Latina, todos eles jovens, já que os colonizadores destruíram a maior parte do que havia antes? O que é diferente aqui?

Luca – Naturalmente, a ideia do Brasil como “país do futuro” não é de minha autoria, mas há uma ilustre tradição secular atrás. Porém, acho muito difícil dar uma resposta satisfatória à sua pergunta. Explicar racionalmente e numa forma convincente os motivos dessa minha predileção me levaria a dizer banalidades ou a cair em lugares comuns, talvez correndo o risco de ofender outros povos latino-americanos. Tudo no Brasil é diferente. E com isso não quero dizer que tudo seja melhor ou pior que no resto do continente. Poderia argumentar essa diferença numa perspectiva histórica, cultural ou sociológica, mas isso não explicaria o meu sentimento pelo Brasil. Um aspecto interessante é que também a maioria dos italianos percebe essa diferença do Brasil com relação à America Latina numa forma muito clara e quase instintiva. Como resposta posso contar-lhe uma situação pela qual já passei e que acho bastante significativa. Cada vez que aqui na Itália, por motivos diferentes e nos contextos mais variados, devo explicar que sou um estudioso da cultura brasileira e que com um certa frequência viajo para o Brasil, assisto sempre à mesma reação. O interlocutor me olha com o mesmo jeito alusivo, ensopado por uma inveja mal disfarçada, saindo com comentários do tipo: “Você sabe tudo!”, “Você é o grande malandro”, “Eu não entendi nada na minha vida”, “Eu também deveria ter seguido o seu caminho”. Com meus colegas, especialistas de outras áreas da América Latina, a reação geralmente é entre a perplexidade e a interrogação: “Que interessante! Mas por que você resolveu ir até lá?”.

Qual é a sua percepção do Brasil? Ou, melhor, qual é a sua percepção do Rio de Janeiro, já que o “seu” Brasil é o Rio de Janeiro?

Luca – Eu sou a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta porque gosto demais do Rio de Janeiro e, portanto, qualquer afirmação minha seria viciada por uma parcialidade tão descarada que acabaria me deslegitimando. Como todas as pessoas apaixonadas não posso ser objetivo quando falo do objeto de amor. No Rio eu quero conscientemente ser seduzido, que é também a melhor disposição para ser iludido, eu sei disso, mas a cidade é apaixonante e não tenho como resistir. Sou um caso tão desesperador que, quando estou em Roma, até sinto falta daquele trânsito horrível que toma a Lagoa nas horas de pico, daquele cheiro forte de xixi que invade as ruas durante o Carnaval, daqueles temporais que em poucos minutos inundam a cidade paralisando tudo e daquele medo constante de poder ser continuamente assaltado. Para mim, o Rio é sobretudo um lugar de sonho encontrado quando era criança e que mais tarde descobri existir no mapa. É lá que reencontro o tempo perdido da minha infância. Portanto, esse tempo é mítico, sacro e incontestável. Nessa dimensão suspensa tenho a sensação – e a ilusão – de viver no presente um tempo eterno e, assim, no país do futuro consigo me descarregar do peso das ruínas.

Que ponte você faz entre o Brasil e a Itália, Roma e o Rio?

Luca – Até pouco tempo atrás eu tinha uma teoria para explicar o Brasil. Dizia que Roma é como o Rio, Milão como São Paulo e Nápoles como Salvador. Um dia uma amiga mineira me perguntou como ficaria se colocasse Belo Horizonte dentro dessa equação. Aí deu branco! (risos) Sendo o país do futuro, o Brasil se relaciona a um tempo que está banido na Itália. Em termos de identidade, ele tem um problema contrário ao nosso. Sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar – e legitimar – o próprio passado. A saída foi a construção de uma identidade nacional baseada mais no espaço e na geografia que no tempo e na história. Na Itália tudo pretende ser o “mais antigo do mundo” – o teatro mais antigo, a igreja mais antiga, a universidade mais antiga, etc –, enquanto no Brasil triunfa a retórica do “maior do mundo”. Nesse gigantismo natural que não depende da presença do homem, o povo brasileiro é chamado a expressar a próprio valor. Daí vem esse ufanismo recorrente baseado nos primados de grandeza: o maior estádio, a maior hidrelétrica, o maior shopping, o maior produtor disso, o maior exportador daquilo, etc. Dentro dessa visão, o que conta é só a quantidade. E isso pode ser muito arriscado, sobretudo em termos sociais de longo prazo, porque acaba narcotizando o sentido crítico do povo, que começa a avaliar a própria existência só em termos quantitativos. Um gigante sem consciência sempre será facilmente vulnerável, como demostrou Ulisses contra Polifemo (episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses vence o ciclope Polifemo cegando seu único olho depois de embriagá-lo).

“O futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres”

Que tipo de consequência pode se esperar dessa visão de que tudo se resolverá num suposto dia seguinte?

Luca – Falando das cidades americanas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss comentou que elas vivem febrilmente uma doença crônica. São sempre jovens, sem nunca gozar de saúde. Em 1935, ele visitou São Paulo e ficou maravilhado pelas “precoces devastações do tempo”. Penso que o Brasil tem um pouco dessa imagem do jovem doente. Nesses anos em que estive no Brasil eu vi um país sempre em obras, sempre envolvido em grandiosos projetos a serem realizados no futuro e que, graças a essa esperança, conseguia cotidianamente ignorar tanto os entulhos que sobraram do fracasso dos projetos anteriores quanto a persistência de graves problemas crônicos. O que mais me chama a atenção é a capacidade que o povo tem de se acostumar com quase qualquer coisa que o presente lhe propõe: violência, injustiça, corrupção, etc. Não é aceitação nem resignação, mas é a consequência de uma fé ilimitada e incondicionada na utopia do futuro que, talvez, seja para muitos a única maneira de sobreviver.

Na política também?

Luca – Na política em geral domina a idéia de que o Brasil é um país jovem e que, assim sendo, os problemas e os erros do presente em alguma medida podem ser tolerados enquanto “pecados da juventude”. Importa apenas o futuro glorioso que está na frente. E até lá o Brasil terá sempre o álibi do novato, do emergente. O fato que o slogan “Pra frente Brasil” ainda hoje seja usado pelos políticos é muito significativo. Se o Brasil não tivesse a obrigatoriedade do voto, com certeza assistiríamos a um filme bem diferente. Atualmente, poucos países no mundo adotam esse sistema e nessa pequena lista não aparece nenhuma das grandes democracias. A companhia teatral não está mais preocupada com a qualidade da comédia quando sabe que a casa está sempre cheia.

Você se refere à ultima campanha eleitoral, que elegeu Dilma Rousseff?

Luca – Estou me referindo de forma mais geral ao funcionamento do sistema político brasileiro, isto é, aos nexos entre os mecanismos para a criação do consenso, a composição do eleitorado e os programas de governo, independentemente do time que ganhou nessa eleição ou nas anteriores. Existe um problema estrutural nas regras do jogo que nenhum dos jogadores, sejam vencedores ou perdedores, têm interesse em mudar. A Dilma é apenas uma das soluções que esse sistema corretamente admite.

Você acompanhou o governo Lula e esta última eleição? O que você viu?

Luca – Sinceramente, eu não daria muita importância ao baixo nível do debate na última campanha eleitoral. Na política o transformismo paga mais que a coerência. Nesse segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra não teriam hesitado em lançar uma campanha feroz pela abolição do churrasco se tivesse sido decisivo o voto dos vegetarianos. A busca do consenso é sempre prioritária à perseguição do bem da nação – e isso, claro, não só no Brasil. Campanha eleitoral é aquela festa de sempre em qualquer lugar do mundo. Discurso de político aos eleitores é tão confiável quanto as promessas de um homem quando faz um pedido de casamento. No circo dos horrores da política italiana de hoje encontram-se exemplos excepcionais. Quanto ao Lula, ele foi eleito como presidente e saiu do Planalto como um grande herói do povo, atuando com sucesso na fórmula de um “populismo light”, que lhe garantiu índices de consenso extraordinários, sobretudo nas faixas de baixa renda. Acho que, afinal de contas, cada cidadão brasileiro, independentemente da orientação política e do nível social, pode estar orgulhoso de ter tido um presidente como Lula. E eu também, durante esses oito anos, enquanto estudioso e amigo do Brasil, tive o privilégio de compartilhar um pouco desse orgulho tanto na Itália quanto no Exterior. Claro, Lula cometeu muitos erros, alguns até de uma certa gravidade. Não vou negar que existem várias decisões com as quais absolutamente não concordo, sobretudo na política externa.

Como por exemplo…

Luca – Penso no flertezinho com o Irã e na tentativa de legitimá-lo internacionalmente; na defesa do Cesare Battisti e nas declarações do ministro Tarso Genro sobre a Itália; no silêncio sobre a violação dos direitos humanos em Cuba e na negação de asilo aos dois boxeadores cubanos durante os jogos panamericanos; na cooperação militar com a China e, consequentemente, na decisão de alterar o voto de condenação à China no Conselho de Direitos Humanos da ONU; na aproximação com o ditador Teodoro Obiang da Guiné Equatorial, em nome do comércio exterior e do petróleo; na distribuição de camisas da seleção brasileira aos chefes de Estado durante o G8 sediado em L’Aquila, sem entender que a celebração da vitória da Copa das Confederações naquele clima de consternação geral resultaria inoportuna e ofensiva para as vítimas do terremoto. O elenco poderia continuar também no plano da política interna, mas errar é normal para quem a cada dia deve tomar decisões para uma coletividade de quase 200 milhões de pessoas. Aliás, talvez uma grande parte dos brasileiros não dê a menor importância aos fatos que citei. Com a política externa não se ganham as eleições, ao menos que o país esteja em guerra. Apesar de tudo, acredito que o grande mérito de Lula foi o de não ter repetido muitos dos erros trágicos que seus predecessores cometeram teimosamente por décadas. E isso já foi suficiente para fazer do Brasil um país melhor.

Você se referiu algumas vezes à crença do Brasil como eterno “país do futuro”. Mas hoje começamos a ouvir, em alguns meios, que o futuro chegou. Você, que nos olha de fora mesmo quando está dentro, sente isso? Se o futuro chegou, você consegue arriscar algumas hipóteses do que muda no nosso imaginário do país e de nós mesmos?

Luca – Isso acontece ciclicamente no Brasil, com a mesma frequência com que em outros países se anuncia o fim do mundo. Vozes mais ou menos intensas de que o futuro tinha chegado já circularam durante o Estado Novo, no anos JK e na ditadura do general Médici. Não é uma novidade. Agora, boa parte do país é atravessada por uma euforia infantil devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A política e a mídia alimentaram a idéia de que estes dois eventos têm o poder mágico de resolver a maioria dos problemas do país. Essa ilusão é contagiante. Um trem-bala, uma estação do metrô, um aeroporto maior e um estádio reformado são suficientes para provar que o futuro chegou? O povo deveria ser bem mais exigente. Acho que o futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres, onde um número assustador de crianças vive nas ruas ou trabalha em vez de ir à escola, onde duas das maiores empresas são a prostituição e o narcotráfico. Mas isso é papo de gringo…

“O Brasil se tornou um lugar de sonho para onde fugir”

Falando em gringo, como você descobriu o Brasil?

Luca – A minha descoberta do Brasil concide com as primeiras lembranças que guardei da infância. Meu pai tinha uma amigo, piloto da Alitalia, que era apaixonado por música. Cada vez que fazia escala no Brasil, ele trazia para nós um disco de presente ou, quando tínhamos menos sorte, ele gravava numa fita o disco que tinha comprado para ele. João Gilberto, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Jorge Ben eram algumas daquelas vozes misteriosas, vindas de um país longínquo, que meu irmão e eu ouvíamos ininterruptamente. Tínhamos a certeza de que os intérpretes daquelas músicas não eram propriamente cantores, mas nossos companheiros de brincadeiras. Outros meninos, talvez um pouco mais velhos, que de um lugar indefinido chamado “Brasil” pediam que fôssemos seus cúmplices e que escutássemos em silêncio os segredos e as histórias que vinham nos sussurrar. Apesar de eles não se dirigirem a nós em italiano, conseguíamos entendê-los igualmente, cada vez numa forma diferente – afinal, quando existe uma amizade é possível se entender mesmo sem falar o mesmo idioma. Meus pais também adoravam aquelas músicas e, de vez em quando, organizavam festas de Carnaval em casa convidando os amigos. Era tudo muito surreal, todos cantando numa língua que não entendiam. Meu irmão e eu trocávamos os discos na vitrola e ficávamos olhando os adultos enlouquecidos. Para nós era uma grande alegria porque podíamos ir dormir mais tarde.

E os convidados, o que achavam desse carnaval?

Luca – Entre os convidados, quem merecia destaque era um casal gay muito amigo da minha família que morava no mesmo prédio. Osvaldo era rico, feio, culto e mal humorado. Elio era exatamente o contrário: de origem humilde, bonito, sem cultura e sempre alto astral. Nessas festas o Elio vinha vestido de mulher e o Osvaldo de Pierrot choroso, com uma lágrima pintada no rosto. E os dois sempre brigavam por causa do Brasil! (risos) Quando ouvia um samba-enredo, o Elio ficava possuído e começava a jurar que na manhã seguinte compraria uma passagem para o Rio. E o Osvaldo ficava danado!! Nossa! (risos) O sonho do Elio era passar o Carnaval no Brasil e desfilar nas escolas. Eram cenas hilárias, com os dois gritando e berrando e todo mundo rindo até chorar. Eu não entendia porque os dois brigavam, mas a partir daí ficou aquela idéia do Brasil como uma obsessão, como um lugar de sonho para onde fugir. Lembro que uma frase recorrente do Elio era: “Um belo dia chuto o balde e fujo pro Brasil.” Ele faleceu dois anos atrás e nunca conseguiu visitar o Brasil. Até o fim da sua vida, cada vez que a gente se encontrava, ele sempre me fazia mil perguntas sobre o Rio e o Carnaval, como quem estivesse pensando em organizar uma viagem daqui a pouco. O Osvaldo já não berrava mais, mas sempre olhava muito feio para ele.

Quando você desembarcou no Brasil concreto pela primeira vez houve um choque entre imaginação e realidade?

Luca – Minha primeira vez no Brasil foi em 1999, junto com meu irmão, e foi totalmente hilária. Na época eu estava finalizando a minha tese de graduação sobre o uso das metáforas bíblicas nos cronistas do Novo Mundo e tinha ganhado uma bolsa de estudo para pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lembro sobretudo do choque climático. Viajamos em julho, trocando o tórrido verão romano pelos trópicos, sem imaginar que nos trópicos as temperaturas não são sempre “tropicais”, no sentido estereotipado que a gente atribuía a esse adjetivo. Partimos completamente desprevenidos porque estávamos indo para um país que, pela fantasia, frequentávamos desde a infância. Na mala só tínhamos colocado bermudas, sungas, camisas de mangas curtas e protetor solar. Naquele dois meses choveu muito e fez um friozinho bastante violento. Para enfrentar a emergência tivemos de comprar roupa pesada. Às 17 horas já era escuro e isso para nós era inaceitável num país tropical! Mesmo com frio e sem entender quase nada adoramos a cidade. Não tínhamos outra opção, porque aquele lugar tinha para nós um fortíssimo valor emocional e afetivo que invalidava qualquer capacidade crítica. Voltamos para Roma com o protetor solar ainda lacrado, mas com os corações já completamente apaixonados pelo Rio.

Quantas vezes você voltou, desde então?

Luca – A partir de 1999 voltei quase todos os anos, ficando dois ou três meses. Durante o doutorado era bem legal porque dava para ficar direto, por muito mais tempo. Agora, com os compromissos da faculdade, é tudo mais complicado. No ano passado nem pude ir ao Brasil. Tenho desfilado nas escolas de samba sempre que vou e sempre em mais de uma escola. A Estácio (de Sá) é uma constante, seja no grupo especial ou no grupo de acesso. As outras se alternam: Império, Caprichosos, Mangueira, Salgueiro, União da Ilha, Porto da Pedra. Digamos que sou um “viciado do samba”: qualquer escola que oferece a possibilidade de desfilar… eu vou.

Por quê? Como é o “seu” Carnaval?

Luca – Meus primeiros carnavais cariocas foram vividos inconscientemente na minha casa, em Roma, durante a infância. Assim, passar o Carnaval no Rio tornou-se uma maneira de alimentar uma espécie de tradição de família. Os samba-enredos sempre tiveram um poder emocional muito forte para meus pais, meu irmão e eu. Quanto ao “meu” Carnaval no Rio, ele tem um dimensão plural e coletiva e, portanto, seria mais correto que eu fale do “nosso” Carnaval, aquilo que passo em companhia dos meus amigos. A cada ano chegamos ao dia do desfile absolutamente convencidos de que a nossa escola vai ganhar, mas a apuração pontualmente nos contradiz. Então, começamos a gritar que foi um escândalo, que a escola foi roubada, que chegou a hora de acabar com a nossa inglória carreira de foliões e que nunca mais iremos desfilar. Mas já em agosto, timidamente, voltamos a falar da escolha do novo enredo e dos esboços da fantasias… Nos últimos anos comecei a tocar na bateria de alguns blocos de rua. O problema inicialmente foi que eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Até fiz um cursinho para aprender o básico do tamborim. Mas, como alertava Noel Rosa, “o samba não se aprende no colégio”. Então, mudei de estratégia. Pensei que a única solução fosse escolher um instrumento pouco difundido que quase nenhum bloco tivesse. Foi assim que comecei a tocar o agogô. Ainda hoje toco mal pra caramba, mas graças à falta de concorrência sou sempre muito bem-vindo nas baterias. Aliás, o fato de ser estrangeiro às vezes ajuda. Um dia um amigo me apresentou ao diretor de um bloco de uma maneira completamente maluca: “O rapaz aqui é “Luca do agogô”. Ele é italiano, nunca desfilou com a gente, mas em Roma já tocou para o Papa em São Pedro durante a missa do galo”. O diretor me olhou emocionado e me perguntou se eu tinha conhecido pessoalmente o Bento XVI! (risos).

Se o Rio surgiu para você como um lugar mágico para onde fugir, é isso o que é, em certa medida, ainda hoje? Neste sentido, você foge do quê?

Luca – Geralmente se foge “de” um lugar e não “para” um lugar. No meu caso ficou a idéia infantil de que o Brasil é um destino que se alcança pela fuga, e não por uma simples viagem, mas sem que a partida implique escapadas ou evasões.

Você quer morar no Brasil? Como seria viver no lugar mágico de fuga? Não teme não ter mais para onde fugir?

Luca – Queria morar aí, mas sempre com uma passagem de volta para Roma na mão, como forma de preservar a magia do lugar e não renunciar à possibilidade de fugir de novo. Claro que tenho medo – e muito – de perder o meu lugar de fuga. E nem faço questão de averiguar esse risco. A experiência de quem me precedeu não foi promissora. O austríaco Stefan Zweig, cuja fama se liga principalmente ao livro Brasil, um país do futuro, foi vítima da mesma utopia que o seduziu e que contribuiu para sustentar. Para fugir do nazismo Zweig teve de enfrentar uma longa peregrinação pela Europa e pela América. Desembarcou no Brasil em 1936, quase por acaso, e foi logo amor à primeira vista. Descreveu a cidade do Rio de Janeiro como uma das impressões mais poderosas que experimentou na vida, uma mistura de fascinação e estremecimento causada pela paisagem e pelo tipo de civilização encontradas. Os destinos sucessivos foram Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, até resolver se mudar definivamente para o lugar dos seus sonhos, em 1941. Foi morar em Petrópolis, mas enquanto os meses passavam e a chance de voltar para a Europa tornava-se sempre mais improvável devido à extensão do conflito mundial, ele entrava no túnel de uma depressão progressiva. No ano seguinte, suicidou-se em pleno Carnaval, junto com a esposa. No dia anterior tinha descido ao Rio para assistir aos desfiles na Praça Onze. Será que eu estou fugindo do Berlusconi sem sabê-lo? (risos)

Quando está no Brasil, você tem saudade da Itália?

Luca – Em Roma sou capaz de rodar a cidade inteira em busca de um feijão preto importado ou de uma goiabada em lata. Eu, que quase não bebo, até cheguei a comprar cachaça só para sentir o cheiro. No Brasil revira-se o imã da saudade e começo a comprar compulsivamente macarrão. Depois de muita procura, achei até uma loja que vende uma marca importada de Nápoles. Nunca como tanto spaghetti – e faço questão da grafia italiana da palavra – como quando estou no Rio. (risos)

“Chico Buarque é um genial inovador da língua”

Por que você escolheu Chico Buarque como tema de estudo? Por que o Chico e não outro?

Luca – Estudar Chico Buarque foi uma decorrência natural do meu interesse pela literatura e pela música brasileira. Muitas músicas do Chico ficaram gravadas inconscientemente na memória sonora da minha infância. Mas não foi só a vontade de resgatar esse baú de lembranças musicais que me levou ao estudo da obra dele. Afinal, Chico Buarque não era o único artista brasileiro que a gente ouvia em casa. Minha primeira pesquisa no âmbito da literatura brasileira foi sobre os cronistas do século XVI e XVII. E daí fui me aproximando devagarinho da contemporaneidade. Para chegar ao estudo de Chico Buarque demorei bastante. E isso foi bom, porque enfrentar a obra dele não é fácil. Exige muito da gente. Para o crítico é um fascinante desafio interpretativo cheio de obstáculos e armadilhas.

Na sua opinião, qual é o significado de Chico Buarque para a cultura brasileira?

Luca – Na minha opinião, Chico Buarque representa uma das figuras imprescíndiveis da cultura brasileira contemporânea. Não é apenas um músico extraordinário, que avança idealmente no mesmo caminho iniciado por Villa-Lobos e continuado depois por Tom Jobim, mas é também um genial inovador da língua portuguesa que podemos colocar ao lado de clássicos consagrados como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Antônio Cândido definiu Chico Buarque como “uma grande consciência, inserida num enorme talento”. Cada vez que sai um novo disco ou romance do Chico, a gente se dá conta de que esta consciência e este talento têm um tamanho muito maior do que se imaginava até aquele momento. Chico é um gênio em permanente expansão e evolução e por isso não deixará nunca de nos surpreender com a sua música e com a sua literatura. O estudo da obra dele é um exercício tão prazeroso e estimulante que se tornou o objeto principal das minhas pesquisas. E, assim, virei um “chicólogo”.

Como você começou a se tornar um “chicólogo”?

Luca – Comecei a me dedicar à obra de Chico Buarque durante o doutorado em Estudos Americanos na Universidade de Roma Tre. O título da minha tese era “Francisco-Francesco. Chico Buarque de Hollanda e a Itália”. Trata-se de uma reconstrução da relação do Chico com a Itália, a partir da estadia de 1953-54 até hoje, tentando um diálogo entre a vida e a obra. Recolhi muito material inédito ou pouco conhecido na Itália e no Brasil, como fotos, gravações, recortes de jornais, correspondências, etc. Ao mesmo tempo, tive o privilégio de entrevistar várias pessoas extraordinárias, famosas ou não. Além do próprio Chico e de seus familiares, pude contar com a colaboração de Sergio Bardotti, Toquinho, Ennio Morricone, Elza Soares, Lucio Dalla, Sergio Endrigo, só para citar os mais conhecidos. Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista humano antes que intelectual.

Você está escrevendo sobre o romance Budapeste. Pode contar um pouco sobre suas percepções?

Luca – A história de José Costa (personagem do livro) me ensinou que há sempre a possibilidade de plágios e roubos no mundo editorial. (risos) De repente alguém lê essa entrevista e resolve contratar um ghost writer para escrever um livro baseado nas minhas respostas. Já pensou nisso? A associação dos escritores anônimos é mais ativa do que o romance faz imaginar! (risos) E visto que ainda não assinei um contrato com uma editora, tenho que ser prudente nos adiantamentos. Em síntese, a minha pesquisa aborda o Budapeste focalizando-se no estudo do espaço, da intertextualidade e da linguagem. Trata-se de um trabalho de crítica literária que enriqueci também com as vozes das pessoas que entrevistei, inclusive aquela do próprio autor. O elemento recorrente nos vários níveis da análise proposta é a presença de um ménage à trois criativo entre o Brasil, a Hungria e a Itália. O Budapeste se tornou uma espécie de leitura obsessiva com a qual, daqui a pouco, vou celebrar seis anos de convivência. E o barato é que o livro ainda continua me surpreendendo. Por causa dele até me aproximei da cultura húngara e – ai de mim! – também um pouco do idioma, mas só o pouco suficiente para concordar com José Costa de que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Nos últimos anos já re-percorri todos os passos de José Costa no Rio e, provavelmente, na próxima primavera vou fazer uma breve viagem para Budapeste, apesar de o Chico ter escrito o romance sem visitar a cidade antes.

O quanto você se identifica com esse personagem entre duas cidades, duas línguas?

Luca – Na verdade, eu acabo me identificando com todos os personagens, até com os mais chatos, antipáticos e revoltantes. Acredito que essa tendência seja um elemento constituinte do processo de leitura. Afinal, os personagens de ficção têm a chance de sobreviver apenas graças a nós. Uma vez que fechamos um livro, eles não se extinguem, mas ficam conosco, iluminando com a própria sombra a nossa leitura do cotidiano. Com efeito, a vida de um personagem de ficção completa e complica a nossa experiência do mundo real. Cada um de nós, quando lê um livro ou escuta uma música, mergulha na história e nos sentimentos dos personagens e, daí por diante, começa a ver o próprio mundo de uma forma mais ampla, que abrange também a perspectiva deles. Esse processo de identificação acontece independentemente do sexo, da idade, do caráter ou do nível social do personagem. Graças à obra de Chico Buarque entramos em contato com uma galeria de personagens – e também de condições e sentimentos – extremamente variada. Nos tornamos íntimos de pedreiros, malandros, emigrantes, vagabundos, atrizes, sambistas, pivetes, prostitutas, favelados… E, ao mesmo tempo, assistimos a todas as possíveis declinações do amor – da paixão e da ternura até a raiva e a violência. Nessa lista, figura naturalmente também o José Costa, com a sua incapacidade de identificar-se plenamente com uma cidade, uma língua e uma cultura. No meu caso, o Budapeste oferece um acervo extraordinário de situações e cenas que recorrentemente desfruto para elaborar a percepção do que estou vivendo. Não posso negar, por exemplo, que no Rio as minhas caminhadas pela orla ficaram irremediavelmente marcadas por aquelas do José Costa. Sem que eu queira, suas palavras começam a bater na minha cabeça, misturando-se em harmonia com outras vozes e imagens que já encontrei em outros livros, músicas, filmes ou em experiências anteriores que já vivi na vida real. Os personagens de ficção têm a capacidade de nos surpreender quando menos esperamos, assim como acontece com as lembranças das pessoas que compartilharam conosco um trecho da existência.

Quando você virá ao Brasil novamente? Neste Carnaval?

Luca – Ainda não tenho uma previsão. De qualquer forma, outro dia me ligou meu amigo Adilson e me disse que a Estácio está linda e que vai ganhar o Carnaval, com certeza absoluta!

(Publicado na Revista Época em 15/11/2010)

Dilma-lá!

Faz alguma diferença ter uma mulher na presidência?

Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.

Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.

Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.

Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.

Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.

Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.

Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.

Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.

Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.

Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.

Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?

Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.

Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.

Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.

Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza”. Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.

O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.

Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?

Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.

Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.

Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.

Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.

Tomara que a gente goste.

——————– —– ——————-

P.S. 1 – Em algumas semanas, uma coluna é pouco diante dos temas factuais sobre os quais eu gostaria de escrever. Foi o caso da semana que passou, pródiga em barbaridades. Como precisei escolher, queria deixar aqui meu repúdio (e meu horror) à censura de Monteiro Lobato nas escolas públicas pelo Conselho Nacional de Educação. E sugerir a leitura de uma coluna anterior na qual o psicanalista Mário Corso argumenta brilhantemente sobre a influência (nefasta) do politicamente correto em nossas vidas.

P.S. 2 – Outra indignidade foi o “rodeio das gordas”, promovido por estudantes da Unesp de Araraquara, no interior paulista. Se o que aconteceu é reflexo de várias mazelas atuais, inclusive a da educação, é também reflexo do preconceito que perpassa nossa sociedade, obcecada por uma ideia distorcida de saúde e por um modelo de beleza anoréxico. Em geral destilado em doses mais ou menos disfarçadas, neste caso o preconceito foi levado ao extremo e a uma atitude criminosa. Espero que não fique impune. Escrevi duas colunas sobre o tema que podem nos ajudar a refletir: Porca Gorda e O insustentável peso do ser.

Boa leitura e até a próxima!

(Publicado na Revista Época em 01/11/2010)

Página 84 de 85« Primeira...102030...8182838485