A burca, a França e todos nós

O debate francês nos leva a questões cruciais de nossa época

A França está muito perto de proibir o uso da burca (vestimenta em que os olhos são visíveis apenas através de uma tela) e do niqab (véu integral que cobre tudo, menos os olhos das mulheres) nos espaços públicos. O tema é fascinante porque não há respostas fáceis. Em busca delas, temos de enfrentar algumas das principais questões contemporâneas. Quais são os limites do Estado? Onde acaba a liberdade de expressão religiosa? Em que momento o relativismo cultural flerta com o totalitarismo? Proibir a burca vai ajudar as mulheres muçulmanas em sua suposta libertação ou vai marginalizá-las ainda mais? Será um golpe no fundamentalismo islâmico ou estimulará ainda mais o radicalismo? Questões sobre as quais vale a pena pensar porque permeiam a nossa vida cotidiana, para além das burcas reais (poucas, por aqui) e simbólicas (muitas) de nosso mundo.

Para quem não acompanhou, o parlamento francês discute a criação de uma lei banindo as burcas e niqabs de espaços como hospitais, escolas, repartições e transporte públicos. Os argumentos: o Estado francês é laico; a burca e o niqab não seriam expressões religiosas, mas uma violação dos direitos humanos da mulher; é preciso defender os valores basilares da França, aqueles que fazem os franceses serem aquilo que são.

Em meus primeiros contatos com o tema, me parecia razoavelmente claro que: 1) o Estado não tem de se meter com a vestimenta ou a expressão religiosa de ninguém; 2) proibir a burca e o niqab colocaria material inflamável nas mãos dos fundamentalistas islâmicos em sua crescente busca por adeptos, o que só agravaria uma situação que já é tensa e não precisa de mais munição para piorar; 3) a lei marginalizaria ainda mais a já sofrida população de imigrantes muçulmanos, a maior parte deles injustamente identificados com o fundamentalismo; 4) a liberdade só é possível na convivência com as diferenças.

Aqui no Brasil, por exemplo, acho absurda a existência de crucifixos nos espaços públicos. Eles deveriam ter desaparecido das paredes oficiais quando a Constituição de 1891 determinou a separação Estado-Igreja. Sempre que vejo o crucifixo acima da cabeça do presidente do Supremo Tribunal Federal no plenário, sinto engulhos. Parece-me claro – e até hoje nenhum argumento contrário me fez mudar de ideia, mas estou sempre disposta a ouvi-los – que um estado laico não pode estar identificado com nenhum símbolo religioso, seja ele um crucifixo, uma imagem de Oxum ou de Buda ou um retrato de Alan Kardec. Sou de família católica do tipo praticante, mas não sigo a religião, e me sinto violada em meus direitos de cidadã ao ver um crucifixo na parede do Supremo e em outros órgãos públicos.

Por outro lado, não vejo nenhum problema se um cidadão assistir a uma sessão do Supremo com um crucifixo no pescoço. Ou com adereços do candomblé. Ou vestido como um monge budista. Desde que não seja um funcionário público, claro, que naquele momento está representando não a si mesmo, mas a todos os cidadãos em seu pluralismo religioso garantido pela Constituição.

Digo isto porque me parecia que o tema das burcas era semelhante. Eu jamais usaria uma burca e veria o mundo por meio de furinhos de uma tela, mas não me cabe dizer o que faz sentido para outra mulher usar nem que ela deveria ver o mundo sem barreiras sintéticas. Se não admito que tentem me dizer como me vestir ou me obrigar a professar esta ou aquela religião, tampouco me sinto no direito de impor minhas verdades a ninguém. Cada um na sua, convivendo em respeito e harmonia com as diferenças. E, no caso da burca, eu não pisaria em um país que me obrigasse a contrariar minhas convicções me obrigando a vestir uma. Por que, então, seria legítimo o estado francês obrigar as muçulmanas a tirar a sua?

Estas foram minhas primeiras reflexões a respeito da França e da burca. Comecei então a ler mais, a pensar mais, e as questões se multiplicaram. Aqui, um parênteses: gosto bastante das dúvidas. São elas – e não as certezas – que fazem bem à construção do pensamento. Sempre fico embasbacada com aquelas pessoas que já saem brandindo suas verdades absolutas sobre tudo, sempre com uma ótima opinião sobre suas conclusões e nenhum respeito pelas dos outros. O instigante é justamente pensar, debater e aprender – o que pressupõe estar disposto a ouvir o argumento do outro e não enfiar o seu goela abaixo.

Neste caminho, primeiro é preciso entender que este debate é travado na França não por acaso. Não sei bem o que significa ser francês hoje em dia, nem acho que a resposta seja tão fácil como muitos franceses acham que é, mas é preciso reconhecer que a França tem uma história profunda de laicidade que fez muito bem ao mundo. Em 1880, mais de um século atrás, o Estado retirou os crucifixos e símbolos religiosos dos tribunais, escolas e repartições públicas. Nesta época, o ensino religioso foi eliminado do currículo escolar, e magistrados e militares foram proibidos de participar de festas católicas em caráter oficial. Em 1905, a lei da laicidade rompeu unilateralmente a concordata entre a França e o Vaticano, confiscando os bens da Igreja e suprimindo todas as subvenções. Desde então, a França se manteve fiel à separação Estado-Igreja.

No ano passado, o presidente Nicolas Sarkozy fez um discurso contundente, com grande repercussão no mundo muçulmano, classificando a burca como “um sinal de servidão da mulher”. Sarkozy disse: “A burca não é um símbolo religioso, mas de subjugação das mulheres. E não será bem-vindo no território da República francesa”. Jean-Marie Fardeau, diretor do escritório de Paris da Human Rights Watch, uma das mais respeitadas organizações internacionais de direitos humanos, rebateu dizendo que a eventual proibição era uma violação de direitos. Fardeau afirmou: “Proibir a burca não fará mais do que estigmatizar e marginalizar as mulheres que a utilizarem. A liberdade de expressar a religião e a liberdade de consciência são direitos fundamentais”. E acrescentou: “uma proibição que restrinja unicamente a expressão da religião muçulmana enviará um novo sinal a muitos muçulmanos franceses, o de que não são bem-vindos em seu próprio país”.

Quem está certo? Ou qual posição está mais próxima da verdade? Ou da Justiça? Os argumentos de ambos os lados são bons, por isso o debate é interessante.

A França é o país europeu com o maior número de imigrantes muçulmanos, em torno de 5 milhões. Mas apenas 2 mil mulheres usam a burca ou o niqab. Ou seja, esta polêmica toda seria, num olhar simplista, por causa de uma minoria mesmo entre as mulheres islâmicas.

O que está em jogo, porém, é bem mais do que isso. Parece claro que o parlamento francês está dando um recado: se os imigrantes muçulmanos querem desfrutar das benesses do estado francês, precisam assumir os valores da república francesa, entre eles os princípios da laicidade do Estado e da igualdade de direitos entre os gêneros. Não basta estar na França, é preciso “ser” francês – ou pelo menos desejar ser –, no que isto significa de mais profundo.

Mas o que é ser francês hoje em dia? Não acho que exista uma resposta simples para esta pergunta. Nem me parece que, no século 21, exista uma França que não seja multicultural. De qualquer modo, estaria essa suposta “identidade francesa” tão ameaçada que seja preciso brandi-la numa guerra contra as burcas?

De certa forma, fica claro que no “território da república francesa” existem os franceses mais franceses que os outros. Há os franceses mais livres, iguais e fraternos que os outros. E, pelo visto, os imigrantes e seus descendentes, mesmo nascidos na França, não se incluiriam nesta categoria dos bons franceses. Os fundamentalistas, especialmente, seriam hóspedes não “bem-vindos”, que desrespeitariam a casa que os recebe, pátria de algumas intelectuais feministas das mais brilhantes, ao cobrirem o rosto de suas mulheres.

Quando Sarkozy diz que a burca é um “sinal de servidão das mulheres”, à primeira vista parece óbvio que tem razão. Afinal, que mulher emancipada aceitaria ver o mundo exterior por uma tela a vida toda? Mas, e se fosse uma escolha, o modo como determinada mulher escolheu viver sua fé, teria o Estado direito de proibi-la por considerar sua escolha indigna?

Parte-se sempre da certeza de que as mulheres islâmicas usam o véu integral porque não têm escolha. Mas tenho certeza que esta não é toda a verdade. Embora acredite que boa parte não tenha mesmo, existem aquelas que acham que esta é uma boa maneira de viver a sua religião. Já conheci algumas delas. Como o estado francês vai saber quais são obrigadas a usar o véu e quais escolheram usar o véu? Não saberão, a não ser que coloquem câmeras dentro dos lares das famílias que professam a religião islâmica. Nem mesmo em defesa dos “valores da república francesa” seria possível ir tão longe.

Por outro lado, se olharmos para o senso comum das mulheres ocidentais, para o que é aceito como “normal”, poderemos encontrar alguns paralelos interessantes. Como classificar as modelos esquálidas, adolescentes abaixo de qualquer peso considerado remotamente saudável, como vimos mais uma vez na última São Paulo Fashion Week? Desta vez não para obedecer aos princípios de uma religião tradicional, mas para obedecer a outro tipo de religião, possivelmente bastante fundamentalista: os rígidos padrões do mercado da moda. Muitas vezes também elas pressionadas a subir nas passarelas por pais que as veem como um atalho para a ascensão econômica. Não seria esta também uma violação dos direitos humanos das mulheres?

Ou como encarar a morte de mulheres em procedimentos cirúrgicos estéticos, como foi o caso da jornalista da TV Justiça Lanusse Martins, de 27 anos, morta quando se submetia a uma lipoaspiração na semana passada? Ou as cirurgias em que parte do estômago é retirada não por exigência da saúde, mas por vaidade, porque é mais fácil arrancar um pedaço do estômago que emagrecer? Mulheres bem longe da obesidade que arriscam a vida para eliminar quilos, celulites e se adequar aos padrões de beleza. Isto é menos opressor? É melhor porque são valores do nosso mundo – e não do mundo do outro? Pode se argumentar que, pelo menos, é por escolha própria. Será? Para mim, se arriscar aos riscos de um procedimento cirúrgico apenas por questões estéticas é tão absurdo como ver o mundo através de uma burca. Nem por isso acho que o Estado deve criar uma lei proibindo a cirurgia plástica por razões estéticas.

Um amigo parisiense, diante das minhas dúvidas, diz o seguinte: “eu não quero andar na rua do meu país e ver uma mulher de burca”. E se os cidadãos começarem a ficar ofendidos com piercings, tatuagens tribais, cabelos de várias cores, bombachas de gaúchos ou minissaias como a de Geysa Arruda, a garota que quase foi linchada pelos alunos da Uniban e hoje virou subcelebridade? Ou vestimentas de freiras, túnicas de hare krishnas ou quipás de judeus? O Estado deve banir tudo e determinar um uniforme que esteja adequado aos valores da república?

Proibir expressões individuais, seja pelo motivo que for, é comportamento de países fundamentalistas e/ou totalitários. Defender que determinada expressão individual, seja ela religiosa ou não, contraria os princípios do Estado e, portanto, deve ser banida, pode se tornar um escorregão para coisas muito perigosas. Valores são terrenos pantanosos. Se decidir proibir as burcas e os niqabs, a França pode estar se aproximando daquilo que tenta se afastar.

Por outro lado, quais são os limites dos direitos individuais e da expressão religiosa? Haveria, por exemplo, o direito de ser oprimido? Ao defendermos a necessidade de respeitar as diferentes culturas e a complexidade do outro, estaríamos incorrendo num relativismo cultural que só serve ao opressor? A mutilação genital, com a extirpação do clitóris, deve ser permitida porque é parte de uma determinada cultura? Ou o apedrejamento das adúlteras? Quais são os limites? E quem decide?

Neste caso, poderia se argumentar que a burca não fere a integridade física de ninguém. Mas e a integridade psicológica, a saúde de uma mulher obrigada a ver o mundo por uma tela, teria menos valor? Não interferir não seria omissão em vez de respeito? E, como toda omissão, uma forma de apoio àquilo que degrada a dignidade humana?

É complexo. Chego até aqui ainda com muitas perguntas. Tenho, porém, umas poucas convicções. Acredito que, se for aprovada, uma lei banindo burcas e niqabs vai servir para marginalizar ainda mais as mulheres islâmicas que usam os véus integrais, seja por imposição dos pais e maridos, seja por vontade própria. Acredito que vá acirrar ainda mais o sentimento de rejeição vivido por parte dos imigrantes muçulmanos. E não tenho dúvida de que será amplamente propagandeado pelos recrutadores do fundamentalismo, ao dizerem com a boca cheia: viram como eles não respeitam os sagrados ensinamentos do profeta, como riem de nossas crenças, como nos odeiam?

É possível até que mulheres que rejeitavam secreta e silenciosamente seus véus passem a defendê-los, como forma de assegurar a única identidade que conhecem. Nada pior do que uma causa comum para aumentar o radicalismo e o número de adeptos. Nada pior para a construção de uma sociedade tolerante com as diferenças que tratar o outro como bizarro – e seu estar no mundo como bizarrice.

Acredito que o melhor caminho para manter vivos os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade é sempre incluir – e não excluir. Não acho que a primeira estratégia do Estado deve ser criar mais uma lei. Nem me parece o modo mais inteligente de enfrentar a questão. Se o parlamento francês gastasse esse tempo e essa energia para assegurar educação e oportunidade para estas mulheres, para ampliar seu acesso à democracia, elas se sentiriam parte. E talvez, um dia, aquelas que não vestem as burcas e niqabs por vontade própria, conseguissem se sentir seguras e amparadas para tirar os véus por si mesmas.

(Publicado na Revista Época em 01/02/2010)

A lista de Aracy

Enquanto namorava Guimarães Rosa, ela enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para salvar dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

O ANJO DE HAMBURGO Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

O ANJO DE HAMBURGO
Funcionária do consulado brasileiro, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa arriscou a vida para salvar judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 20 de abril, ela completará 1 século

Adolf Hitler queria matar Günter Heilborn. Se tivesse conseguido, Luiza, de 4 anos, não contaria histórias mirabolantes para a família com ares de heroína trágica, Marina não teria criado uma taturana para descobrir como ela virava borboleta e Juliana, ao ouvir uma amiga da mãe dizer que era baiana, não teria declarado: “Eu sou mamífera”. Não teria existido futuro para Günter. E não haveria presente para suas bisnetas trigêmeas. O assassinato num campo de extermínio poderia ter interrompido não apenas a história de Günter, mas toda a teia de acontecimentos, piqueniques, lágrimas, dentes de leite, decepções, joelhos esfolados e perguntas sem resposta que sua vida gerou.

É com essa fita métrica que a História vai medir a estatura de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, a funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo que enganou a diplomacia de Getúlio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Ela completará 100 anos no domingo 20 de abril. Separados em tudo, Aracy e Hitler compartilham a mesma data de aniversário. Quando ela nasceu, a mais de 10.000 quilômetros da Alemanha, em Rio Negro, no Paraná, ele completava 19 anos e sonhava em ser artista. Décadas mais tarde, ela viria a tornar-se o anjo de Hamburgo. Ele, o carrasco de 6 milhões de judeus. Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela.

O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? Que para ser uma boa pessoa é preciso ser uma má funcionária? A mulher sentada numa poltrona do apartamento do filho, em São Paulo, não pode mais responder. Ela sofre de Alzheimer. Os fios de sua memória são como um novelo que escorregou do colo e se perdeu.

Quando a trajetória de Aracy cruzou a de Günter, ela era jovem. E era linda. E não era vista com bons olhos. Em 1934, Aracy era uma mulher desquitada. Naquela época, para a maioria das mulheres, o máximo de ousadia era comprar um fogão a gás. Filha de uma imigrante alemã, Aracy pegou o filho de 5 anos pela mão e embarcou num navio para a Alemanha. Tinha 26 anos, era fluente em várias línguas e decidira ser a dona de sua história.

A vitória da vida Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família...

A vitória da vida
Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud (acima, ela segura sua foto). E com ela Karl iniciou uma família…

Depois de uma temporada na casa de uma tia, Aracy conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Os judeus haviam sido expulsos de universidades, repartições públicas e do Exército. Foram obrigados a entregar seus negócios a arianos. Do Itamaraty eram desferidas “circulares secretas” para embaixadas e consulados. Nelas, a ordem era dificultar a entrada de judeus no Brasil. O Estado Novo de Vargas flertava com o nazismo.

O dentista Günter Heilborn não conhecia nem Aracy nem o Brasil. No fim de 1938, ele foi preso num campo de concentração com milhares de homens judeus. Para não morrer de fome, contou à família que tinha de comer as próprias fezes. Enquanto Günter padecia em Buchenwald, Aracy fazia sua escolha. Com a ajuda de Hardner, antigo guarda civil e proprietário da auto-escola onde aprendera a dirigir seu Opel Olympia, ela forjava atestados de residência falsos para que judeus de qualquer parte da Alemanha pudessem pedir vistos em Hamburgo. Conseguia também passaportes sem o J vermelho que assinalava os documentos. Misturava os pedidos à papelada que levava ao cônsul. Ele assinava os vistos, possivelmente sem saber que despachava judeus para o Brasil.

Parece fácil fazer a coisa certa. Mas só é fácil para quem vê os fatos iluminados pelo julgamento da História. Aracy era uma mulher sozinha com um filho pequeno num país à beira da guerra. Suas ordens eram fechar a porta para os judeus. Anos atrás, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela disse: “Porque era o justo”. Em 1982, Aracy foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, título conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, aos não-judeus que arriscaram sua vida na Segunda Guerra Mundial para salvar a de judeus. Seu nome figura ao lado de Oskar Schindler e do então embaixador do Brasil em Paris, Luiz Martins de Souza Dantas, outro brasileiro entre as 22 mil pessoas que já receberam a homenagem.

Inge, a noiva de Günter, ouviu rumores sobre o “anjo de Hamburgo”. Naquele momento, ainda era possível conseguir a libertação de judeus que tivessem vistos para deixar a Alemanha. Os nazistas se contentavam em vê-los longe. Em breve, só se satisfariam com eles mortos.

O difícil era conseguir um visto. Na sala do consulado, Inge juntou-se a dezenas de judeus que haviam batido em muitas portas diplomáticas sem conseguir abri-las. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades – Breslau e Gleiwitz – pelos de Hamburgo para que pudesse ajudá-los. Inge pode ter cruzado ali com Grete e Max Callmann, acuados num canto da sala. “Eu me lembro como se fosse ontem”, diz Grete. “Meu marido viajou para todas as cidades da Alemanha onde existia consulado do Brasil e dos Estados Unidos. Um dia me ligou dizendo que havia chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos num canto, esperando nossa vez na sala cheia. De repente, uma moça nos chamou. Era a dona Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: ‘Vocês não me devem nada’.” Na noite de 9 de novembro de 1938, Grete era recém-casada com Max, 22 anos mais velho. Ele havia sido diretor de uma grande loja de departamentos. Como todos os judeus, perdera o posto por um decreto nazista. Sobreviviam agora com uma fábrica de aventais. Grete não conseguia dormir porque Max roncava. Pegou travesseiro e cobertor e transferiu-se para o sofá da sala. “Acordei às 5 horas da madrugada, com um barulho terrível na rua. Os nazistas quebraram tudo o que era de vidro, as janelas das lojas”, diz. Ela sacudiu o marido: “Algo muito ruim está acontecendo”. No dia seguinte, o mundo saberia que os nazistas haviam assassinado dezenas de judeus, incendiado, saqueado e destruído sinagogas, lojas e empresas hebraicas, confinado quase 30 mil homens em campos de concentração. A “Noite dos Cristais” inaugurou o que a História chamaria de Holocausto.

Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, embarcou às pressas num trem para Essen. Pretendia se esconder na casa da mãe. Quando se acomodou numa mesa do vagão-restaurante para jantar, havia ainda um lugar vago. Minutos depois, sentou-se diante dele um oficial da SS. Karl ouviu impassível o nazista discursar. “Foi a única vez na minha vida que tive de levantar e estender a mão. Tive de fazer Heil Hitler”, disse a ÉPOCA, pouco antes de morrer. Tinha 99 anos e ainda vivia a insanidade daquele momento.

aracy grete1

‘‘O que Aracy significou para nós? A vida’’ Grete Callmann, de 94 anos, fugiu da Alemanha com o marido, Max, graças a um visto de Aracy

O oficial desceu em Bremen sem desconfiar que o jovem alto, olhos azuis, era judeu. Essa história será contada em um livro do Núcleo de História Oral Gaby Becker, do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Karl escapou e, com a ajuda de Aracy, embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Seu pai, o alfaiate Alex Franken, morrera em Verdun, na França, combatendo pela Alemanha na mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial. Em Moers, sua cidade natal, uma placa saudava-o como herói.

Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter do campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. Para muitos, partir significava viver, mas abandonar os pais para morrer. “No trem para Hamburgo, vi pela janela minha mãe quase desmaiar”, diz Grete. “Foi a última vez que eu a vi.” Aos 94 anos, Grete chora sem soluçar. Suas lágrimas deslizam com a mansidão de quem nunca parou de chorar.
Enquanto o povo alemão envergonhava a si mesmo, Aracy desobedecia ao cônsul-geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro. E apaixonava-se pelo adjunto, João Guimarães Rosa. O jovem diplomata ancorou na Alemanha em maio de 1938. Tinha 30 anos, trocara a medicina pela diplomacia, havia vencido um concurso literário e perdido outro. No Brasil, deixara sua primeira mulher, Lygia, e as duas filhas, Vilma e Agnes.

Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingar ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro.

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

ROMANCE DE NÃO-FICÇÃO
Para Aracy, Guimarães Rosa escreveu mais de uma centena de cartas de amor

Entre 1938 e 1942, Rosa registrou as impressões de um diplomata brasileiro na Alemanha nazista. No diário, ele é contundente ao narrar a perseguição aos judeus – e parcimonioso nas referências ao romance com Aracy: apenas 16 menções. Mesmo assim, a publicação desse diário é barrada pelas filhas do escritor. Agnes e Vilma desejariam reduzir o tamanho de Aracy na biografia do pai. Procuradas, não quiseram dar entrevista.

O romance está bem documentado nas cartas que “Joãozinho” escreveu para “Ara”. “Deixa que eu diga que você estava linda, linda, na hora de partir. (…) Dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do aroma do corpo maravilhoso da dona de meu amor. (…) Serei absolutamente fiel, não olhando para as alemãzinhas, as quais, por sinal, todas viraram sapos!”, escreveu em 24 de agosto de 1938.

A declaração integra um acervo de 107 cartas e 44 cartões, bilhetes e telegramas escritos por ele. Com base no material, as historiadoras Neuma Cavalcante e Elza Miné preparam uma biografia de Aracy. Rosa registrou sem pudor quanto era feliz aos pés de Aracy – pés que eram objeto de fetiche. “Agora vou para a cama, para dormir com a camisolinha cor-de-rosa, depois de conversar um pouco com os chinelinhos chineses, que me falarão dos lindos pezinhos da sua dona”, escreveu no dia seguinte.

Enquanto a Alemanha se incinerava em ódio, Ara e Joãozinho queimavam de amor. O que em nada atrapalhou as atividades subversivas de Aracy. O casal nunca viveu debaixo do mesmo teto em Hamburgo. Ela chegou a esconder judeus em casa. “Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito”, contou Aracy, anos atrás. “Nunca tive medo de nada nem de ninguém.”

Getúlio Vargas passou os primeiros anos da guerra fazendo um agrado ao Eixo pela manhã, piscando para os Aliados à tarde. O ataque japonês a Pearl Harbor derrubou-o do muro. Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações com o Eixo. Rosa e Aracy foram confinados no balneário de Baden-Baden por quatro meses. Na viagem de volta ao Brasil, casaram-se por procuração no México. Em quase 30 anos ao lado de Aracy, Rosa inventou um mundo e reinventou a língua portuguesa. Ao lançar sua obra-prima, Grande Sertão: veredas, escreveu: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Quando Rosa e Aracy desembarcaram no Brasil, a filha mais velha de Günter e Inge começava a falar. Deram a ela o nome da mulher que lhes deu uma segunda vida. A pequena Marion Aracy só falava em alemão – e o governo havia proibido o uso do idioma. “Eu quero descer do bonde”, gritava a menina na língua do Führer. E Günter precisava fugir correndo com a filha no colo. Se fosse preso, só poderia dizer em alemão que também não gostava de Hitler.

A solteirice de Karl Franken durou pouco no Brasil. Logo se encantou por uma fugitiva do nazismo, Gertraud. O primeiro dos três filhos nasceu no ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha. Karl trabalharia por toda a vida na mesma empresa, a Mueller, de brinquedos e botões. Ele e Gertraud se tornariam uma referência na história da Congregação Israelita Paulista.

A única jóia que Grete Callmann conseguiu trazer foi roubada pelos funcionários brasileiros quando o navio ancorou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1939. Era seu anel de casamento. Grete era pianista. Tinha estudado desde os 6 anos para interpretar Beethoven, Mozart, até Wagner, conhecido por ter sido o compositor preferido dos nazistas. “Quando chegamos, eu sentia em mim todas as doenças que existem. Mas os médicos não encontravam nada”, diz. “Era medo.”

Quando as cartas da Alemanha chegavam, Grete tremia tanto que não conseguia ler. Seus pais estavam num campo de concentração. Ela sabia que um dia as cartas se calariam. Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como as dezenas de judeus salvos por Aracy.

O RECOMEÇO Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

O RECOMEÇO
Karl e Gertraud casaram-se no Brasil e iniciaram a família ao lado: três netos e três bisnetos não estão na foto porque vivem em Israel

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

…Karl e Gertraud tiveram três filhos. Da esq. para a dir., Arnaldo, casado com Rosana, Claudio, com Tamara, e Roberto, com Siona…

...Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e....

…Nos anos 70, Karl e Gertraud tiveram os primeiros dos nove netos. Alguns deles se casaram e….

aracy bisnetos

…lhes deram cinco bisnetos. A seqüência de fotos da família Franken foi feita uma semana após a morte de Karl. É uma homenagem a ele e a Aracy

Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram.

Günter e Inge tiveram três filhos – Marion Aracy, Miguel e Ruth – durante a guerra. Günter levou uma década para ter reconhecido seu diploma de dentista. Nos primeiros anos, sustentou a família com a ajuda de prostitutas. Tratava os dentes das mulheres num quartinho de prostíbulo. Quando um policial aparecia, elas diziam que o quarto era usado para fins comerciais. Inge costurou para fora, teve malharia, fez congelados, criou uma colônia de férias em Campos do Jordão. Parecia suportar melhor o peso da vida partida, sorria mais. Günter proibiu o filho de usar marrom, cor do terno que vestia quando foi preso pelos nazistas. Nunca teve bigode. Era chamado pelos netos de “biblioteca ambulante”, porque discorria sobre qualquer tema, de mitologia grega a botânica. Menos sobre o Holocausto.

Em 19 de novembro de 1967, Vera Tess, a neta preferida de Guimarães Rosa, buscava o avô em passos claudicantes pelo apartamento do Rio. Encontrou-o no escritório, tendo um infarto. Aracy perdeu seu grande amor, mas não perdeu a si mesma. No fim de 1968, Geraldo Vandré começou a ser perseguido pelo regime porque a canção “Caminhando” virou um hino de protesto contra a ditadura. Enquanto a repressão o caçava, Vandré compunha, todo refestelado num sofá do apartamento de Aracy.

O prédio era repleto de oficiais e tinha vista para o Forte de Copacabana. Os netos de Aracy, que passavam as férias no Rio, foram incumbidos pela avó de alertar sobre qualquer movimento verde-oliva. Vandré ficou por lá tocando violão, jogando conversa fora. Depois viajou para São Paulo numa Kombi, com o neto mais velho de Aracy, Eduardo Tess Filho. E de lá para o exílio.

Karl Franken morreu no último dia 1o de março. Faltavam menos de seis meses para completar 1 século. Anos atrás, ele voltou à Alemanha. Não encontrou a placa que homenageava seu pai como herói de guerra. Karl Franken afirmou a ÉPOCA, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”.

Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter apoderou-se por completo da vida que Hitler queria tomar. Morreu quando quis, em 1992. Inge o seguiu em 2000. Todas as tardes, ele e Inge sentavam-se para ouvir música clássica. Jamais ouviram Wagner. E nunca viram filmes sobre o Holocausto.

Grete Callmann tentou ver um filme sobre o nazismo. Começou a gritar dentro do cinema. Não voltou. Quando seu marido morreu, Grete comprou um piano usado. Seus dedos já não reconheciam as teclas. Aos 94 anos, Grete liga seu radinho ao acordar e atravessa o dia embalada por pianistas cuja vida não foi interrompida.

Aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada de Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma.

Aos 4 anos, as bisnetas trigêmeas de Günter Heilborn queriam saber por que posavam para fotos. A mãe explicou: “Homens muito maus prenderam seu bisavô, e uma moça muito boa, chamada Aracy, ajudou ele a fugir. Em homenagem a ela, a vovó se chama Aracy”. E por que prenderam?, foi a pergunta seguinte. “Porque não aceitavam que eles eram diferentes.” A família se uniu então no exercício de lembrar de todas as pessoas de diferentes “cores, crenças, tipos e tamanhos” que amavam.

Aracy Guimarães Rosa esqueceu-se de si mesma, mas jamais será esquecida.

O legado de Aracy

POR UM TRIZ Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

POR UM TRIZ
Com o visto, Inge tirou Günter do campo de concentração

Marion Aracy (sentada) é a filha mais velha de Günter e Inge Heilborn. Seu nome é uma homenagem à mulher que salvou a vida dos pais e tornou a sua possível. Ela teve dois filhos, Selma e Paulo. Selma (de azul), casada com Jorge (de listrado), teve as trigêmeas Marina, Juliana (de rosa) e Luiza (de braços cruzados) e Alexandre, de 2 anos. Paulo, casado com Ana Cintia, é pai de Carolina, de 3. “Sem Aracy, nem eu nem minha família existiríamos. Simplesmente não teríamos acontecido”, diz Paulo Heilborn.

aracy familia

Duas mulheres contra Hitler

Margarethe Bertel Levy e Aracy Moebius de Carvalho foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para sempre

“Entre mim e Aracy foi um golpe de amor. Só que entre duas mulheres”, ela diz a ÉPOCA. Tem 99 anos, quase não caminha, não enxerga e não ouve. Mas a mente está límpida – o que faz do corpo uma prisão. Em nenhum momento sua situação vira lamúria. Maria Margarethe Bertel Levy prefere a auto-ironia. É uma mulher impressionante. Como sua grande amiga, Aracy. A aventura dessas duas mulheres extraordinárias na Alemanha nazista é um roteiro de cinema pronto.

“Eu era sexy”, ela diz. E Aracy? “Muito sexy, linda, provocante, um corpo maravilhoso, os moços saltavam.” Elas eram tudo isso mesmo. As fotos ao lado (Margarethe de chapéu, Aracy de ombros nus) documentam a afirmação. Conheceram-se porque Aracy precisou salvar Margarethe. Encontraram-se no consulado de Hamburgo, em 1938. Até hoje estão juntas. Margarethe visita Aracy, que não mais a reconhece. O filho único de Aracy, Eduardo, cuida de Margarethe, que é viúva e não quis ter filhos “porque gostava muito de viajar”.

Os muitos significados dessa amizade improvável são tema de investigação da historiadora Mônica Raisa Schpun, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram”, diz Mônica. “Sua amizade vai muito além de gratidão.” Sobre elas, Mônica publicou um artigo chamado “História de um happy end transatlântico”.

Margarethe pertencia a uma família rica e liberal. Aprendeu sete línguas viajando. Conheceu o marido, o dentista Hugo Levy, no consultório dele. Ela era sua bela paciente, 16 anos mais jovem. Margarethe e Hugo eram cidadãos do mundo. Quando o cerco nazista apertou, Margarethe procurou Aracy, que escondeu Hugo em casa. Depois, emprestou o carro diplomático para que Margarethe o levasse ao interior. Aracy incluiu uma observação nos documentos do casal: “Transformar em visto permanente na chegada”. Cobriu essas letras miúdas ao levar o visto para o cônsul assinar.

É nesse ponto que a história fica ainda mais cinematográfica. Uma rede de alemães – arianos – ajudou os Levys. Um dia, um oficial da SS, Zumkley, bateu na porta do consultório para contar que a mãe de Hugo salvou sua vida ao amamentá-lo. “Agora chegou a minha vez de salvá-lo”, disse. Zumkley avisou o momento certo de partir. Um paciente, Plambeck, escondeu Hugo em sua casa por 12 dias. Outro paciente, funcionário público, conseguiu convencer um colega a encarregá-lo da letra “L” e, assim, fez o inventário – subavaliado – do patrimônio dos Levys. Eles partiram para o Brasil com todos os bens, do consultório aos dois cachorros. Um terceiro paciente garantiu a eles o conforto de quatro cabines no navio Cap Ancona.

Ao desembarcarem em São Paulo, com dinheiro e visto permanente, Margarethe e Hugo integraram-se logo ao Brasil. Margarethe, porém, não escapou da tragédia. “Pegaram minha mãe em Varsóvia. Puseram minha mãe no forno. Ela queimou”, diz. Margarethe crava uns olhos perfurantes, que ela jura que não enxergam direito, e diz: “Com o tempo, a gente não esquece”.

Aracy foi uma católica fervorosa. Margarethe, uma judia sem religião. “Eu não tenho esse apoio. Nasci judia e vou morrer judia, mas não sei nada de religião”, diz. Seu testemunho foi decisivo para que Aracy ocupasse seu lugar histórico no Museu do Holocausto, em Israel. Margarethe ainda visita Aracy, mas não consegue alcançá-la. Aracy esqueceu-se dela. À beira dos 100 anos, as duas mulheres e sua extraordinária amizade só resistem na memória de uma delas.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’ Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

‘‘Com o tempo, a gente não esquece’’
Acima, as duas amigas quando jovens: Margarethe, à esquerda, e Aracy, à direita Margarethe Levy, de 99 anos.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2008)

Ao amigo presidente

Eleitor gravou todas as promessas de Lula e fez o próprio balanço do primeiro ano do governo

O brasileiro Hustene Pereira terminou o primeiro ano do governo Lula sem emprego e, a suprema ironia, com bursite. Foi o que o médico do plantão lhe disse depois de examinar as radiografias: ‘Tá com doença de presidente’. Não era exatamente essa a herança que ele esperava do homem que ajudou a eleger. Doía mais o coração que o braço direito quando, nos últimos dias de dezembro, Hustene trancou-se no único dormitório da casa e só saiu depois de assistir a seis horas de fitas gravadas em vídeo. Nelas, ele tinha registrado todas as promessas de Lula para que pudesse fazer seu balanço pessoal do governo. Saiu do quarto constrangido.

Desgostar do governo mas não conseguir xingar o presidente é o que há de realmente novo em sua vida. Ele acha que o país não mudou, mas continua tendo uma empatia enorme por Lula. Ao preencher quatro páginas em letra corrida numa carta endereçada ao Planalto, Hustene reclamou do desemprego, que joga gente como ele no abismo, do Fome Zero, que parece atolado no marketing, de que Lula saracoteou muito no estrangeiro quando os problemas estavam bem aqui, em sua barba aparada. ‘Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir’, diz. Assim mesmo, despediu-se com um ‘forte abraço ao amigo Lula’.

Hustene não é petista, é lulista. Sem ser filiado ao PT ou militante, ele votou em Lula em 1989, em 1994, em 1998 e finalmente em 2002. E votaria mais ä quatro vezes se fosse preciso. ‘Eu assisti à posse chorando. Tinha certeza de que voltaria ao mercado de trabalho’, cobra. ‘A gente não está pedindo absurdos. Um homem não quer esmola, vale-isso, vale-aquilo. Quer salário. A dignidade do homem é levantar, sair para trabalhar e pagar as contas.’

O último trabalho registrado na carteira de Hustene terminou em 17 de outubro de 2001. Em fevereiro do ano seguinte, ele ilustrou uma reportagem de ÉPOCA sobre desemprego. Dava rosto à estatística de milhões de pais de família que se descobriram do lado de fora da porta – depois de experimentar o gosto das ofertas nas prateleiras do consumo e de prometer aos filhos que se estudassem mais venceriam na vida. Ele sempre havia trabalhado no escritório de empresas, orgulhoso de sua datilografia e escrituração fiscal. Passou dos R$ 1.000 de salário. Em mais de dois anos de desemprego conseguiu fazer dois bicos como trabalhador braçal. No segundo, já completa um mês. Acorda às 4 horas para ajudar na carga e descarga de bebidas e alimentos. Ganha R$ 15 por dia quando há serviço. Em média, R$ 200 por mês sem benefícios.

‘Aos 44 anos de idade, estou no zero’, conclui. Ele não é do tipo que se entrega. Hustene é do gênero esperneante. Cansado de ouvir que não conseguia trabalho porque só tinha a 7ª série, bateu na porta do supletivo. Em dois anos de desemprego se formou no ensino fundamental, e faltam três matérias para ganhar o diploma do ensino médio. No meio, fez um curso de computação. Na escola, copiava tudo o que ouvia. Não perde documentário ou noticiário da TV e assim vai complementando a educação. Fez questão de escrever a carta a Lula para se certificar de que ele, Hustene, existe.

Acha que um homem precisa de futebol, fé e ideologia para não perder a sanidade. Fincou três pilares no assoalho de sua brasilidade: Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. O que sente pelo presidente é próximo do que nutre pelo Timão. Tanto um como o outro o decepcionaram no ano que passou. ‘Lula e o Corinthians empataram em 2003’, diz. ‘Jogaram para não cair.’ Mesmo assim, continuará torcendo por ambos. Não por um amor incondicional, mas por pertencerem ao reduzido rol de escolhas que definem o caráter de um homem.

Ao usar uma das metáforas preferidas do presidente, Hustene não está confundindo futebol com política. Está dizendo que perder a esperança tanto em um como no outro lhe custaria mais do que pode pagar nesta altura da vida. ‘A esperança que eu tive nestes anos todos era a de um trabalhador no governo. Se ele falhar, o que me resta? Rezo a Nossa Senhora de Fátima que ele não chute o pênalti para fora.’

Hustene escreve à noite na cozinha para não se sentir só, a mulher, a neta e dois filhos dormem no quarto, os dois mais velhos no chão da sala. Em forma de diário, manteve o ‘camarada Che’ informado. ‘Che, hoje o Brasil tem alguém digno dele’, na vitória. ‘Que o espírito guerrilheiro acompanhe o Lula nesta batalha’, na posse. ‘Aos 40 anos somos nós reserva do passado’, em junho. ‘Somos sufocados por uma herança neoliberal’, em julho. ‘Falta pulso’, em outubro. ‘É quase um ano de um governo com que tanto sonhei e não vi coisas concretas, mas espero ver ainda’, em dezembro. ‘Olha, Che, não desabafarei mais este ano. Estou preocupado com o Lula.’

No primeiro ano do governo, o Natal de Hustene passou sem peru nem presentes. O nome continuou sujo no SPC. A carteira de trabalho seguiu em branco. Hustene prometeu manter sua esperança em Lula por mais três anos. Só espera que, ao final, não lhe dêem para a vida a mesma solução que o médico deu para a bursite: ‘Não tem cura, só nascendo de novo’.

(Publicado na Revista Época em 05/01/2004)

Página 85 de 85« Primeira...102030...8182838485