Vizinho indiscreto

Um fotógrafo tem o direito de se posicionar diante da janela, com uma lente potente, para registrar cenas privadas e depois exibi-las?

Desde que, anos atrás, ouvi as primeiras notícias de uma nova tendência no mundo da fotografia, a de registrar a vida privada dos vizinhos, mudei meus hábitos dentro de casa. Passo bastante tempo entre paredes íntimas, porque trabalho em casa, e sempre gostei das cortinas abertas, a luz entrando, o máximo bem mínimo de amplitude numa cidade como São Paulo, com prédios, janelas e outros mundos dentro delas por todos os lados. Mas, com medo de uma lente indiscreta, passei a fechar as cortinas de forma que nenhum olhar desconhecido, ninguém que não tenha batido na minha porta pedindo licença para entrar, possa me alcançar. A possibilidade de me descobrir numa exposição de fotos ou num site da internet, mesmo que meu rosto não possa ser reconhecido, alterou a minha vida mesmo antes de se concretizar.

Em agosto, a justiça americana deu uma decisão favorável ao fotógrafo Arne Svenson, que havia sido processado por dois de seus vizinhos depois de expor retratos feitos de sua janela. Com uma lente de grande alcance, o olhar de Svenson penetrou para além dos vidros de um prédio no bairro de Tribeca, em Nova York. A série de retratos foi exibida na exposição intitulada The Neighbors (Os Vizinhos). Svenson teve o cuidado de não mostrar o rosto dos fotografados, mas as pessoas se reconheceram. Uma delas sentiu-se desconfortável ao identificar objetos do quarto da filha. A simples ideia de que havia alguém espionando a sua vida privada provocou mal-estar. As fotos foram oferecidas pela galeria por valores que variavam de US$ 6.200 a US$ 8.400.

A exposição provocou muita discussão e rendeu vários artigos na imprensa americana: o que fazer quando a liberdade de expressão de um invade a privacidade de outro? Na sentença favorável ao fotógrafo, a juíza diz: “Arte é liberdade de expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda (da Constituição)”. Mas será que a questão se resume a saber qual dos conceitos – liberdade de expressão ou privacidade – se impõe sobre o outro?

Arne Svenson afirmou que o veredicto foi “uma grande vitória para os direitos de todos os artistas”. E reafirmou sua intenção ao fotografar os vizinhos: “Eu acredito que aspectos inconscientes, não ensaiados da vida, são mais bonitos para fotografar, por serem mais abertos à interpretação, à narrativa”, disse ao jornal britânico The Guardian. “Um momento dramático tem o poder único da ação, mas os pequenos e conectados momentos são como marcamos nosso tempo na Terra.” E concluiu, lindamente: “Estou muito mais interessado em registrar a respiração entre as palavras do que as próprias palavras em si mesmas”.

No Brasil, Felipe Morozini fez 180 mil fotos de sua vizinhança nos últimos dez anos, da sacada de seu apartamento, localizado no 13o andar de um prédio do centro de São Paulo. Algumas fotos mostram pessoas nuas ou com roupas íntimas, em suas tarefas rotineiras. Morozini disse à Folha de S. Paulo: “Não me sinto desconfortável por mostrar essas pessoas. Não busco a falha do outro, mas a poesia”. No texto de apresentação da sua obra numa galeria, esse olhar que atravessa a janela dos vizinhos é apresentado de forma poética:

“É tudo verdade. Num prédio da Avenida São João, em São Paulo, um homem de corpo dourado e cabelos grisalhos todos os dias senta-se na varanda para olhar uma coleção de relógios. No outro prédio, todas as manhãs uma mulher bate bifes com um martelo de carne, no mesmo ritmo do sexo bruto que vive todas as noites. Um cachorro toma sol numa varanda cujo piso é trocado frequentemente: de ardósia para lajota para cimento. Um homem jovem numa janela segura uma câmera e diariamente invade em zoom a vida dos vizinhos, registrando esses hábitos e mazelas. Depois, analisa as imagens e acha pedaços de poesia inintencionais. Amplia então a fotografia de uma mulher nua, numa área de serviço cujas paredes são deliciosamente gastas pelo tempo. Ela segura um espelho, que reflete seu bico do seio. O acaso tem uma face erótica, revela a fotografia de Felipe Morozini. Que o artista tenha escolhido a luz, o dia em que roupas coloridas formavam uma curva na parede cinza, e tenha esperado o corpo da mulher repetir a linha escura vertical que centraliza a composição. Aceito. Mas não foi ele quem mirou o espelho para o mamilo no instante certo. Foi o acaso. Extrativismo estético autossustentável: o fotógrafo colhe migalhas do belo que existem naturalmente no mundo real”.

As fotos são de fato belas e emocionam. Dão transcendência à nossa rotina de minoridades. Nos enxergamos no pequeno gesto do outro, nos descobrimos próximos daquele que pensávamos desconhecer. Nossos passos claudicantes pela casa e pelos dias se revelam um balé poético. Tanto os retratos de Svenson quanto os de Morozini evocam as pinturas do artista americano Edward Hopper (1882-1967), com sua solidão pungente. Como alguém que gosta de fotografia e gosta de arte, o trabalho desses fotógrafos me dá muito prazer. Mas, como alguém que poderia estar no lugar do fotografado, me causa mal-estar. Como superar esse impasse?

Quando alguém confronta Svenson com a questão da moralidade na obra sobre seus vizinhos, ele costuma defender-se dizendo: “Eu não fotografo nada lascivo ou degradante. Não estou fotografando os moradores como indivíduos específicos, identificáveis, mas como representações da humanidade”. Acredito que ele acredita nisso. Porque é uma das verdades possíveis. Mas há outras.

Não é surpreendente que alguém que se reconheça nas fotos ou reconheça partes do seu corpo ou da sua casa seja incapaz de se ver como “uma representação da humanidade”. O complicador é que aquele que se reconhece só pode se reconhecer como um “indivíduo específico”. Nós, que nos reconhecemos nele, enxergamos apenas a “representação da humanidade”, mas ele, o humano singular, se vê primeiro como indivíduo. O complicador é que aqueles que ali representam a humanidade são também aqueles que vivem a sua vida singular. Essa é a força artística do retrato e também o seu dilema ético.

Quando Svenson diz que não fotografa nada lascivo ou degradante, ele também está assumindo, nas entrelinhas, que viu atos que interpretou como lascivos e degradantes e escolheu não fotografá-los ou, pelo menos, não exibi-los. Não é um enorme poder, o de escolher qual parte da vida íntima de um outro pode ser mostrada, e isso sem que este outro saiba sequer que teve seu cotidiano documentado? Ou o enorme poder de espionar a vida dos outros, alcançando aquilo que o outro pensava proteger atrás da sua janela? Raramente um crime, com frequência um ridículo ou mesmo um desespero?

As fotografias dos vizinhos evocam questões fascinantes deste mundo novo, no qual já se anunciou o fim da privacidade. Ainda que com objetivos e sentidos bem diversos, os retratos da vida íntima de homens e mulheres anônimos estão ligados tanto à espionagem que Obama fez de Dilma quanto às gravações e fotografias que pessoas comuns fazem o tempo todo dos flagrantes de outros, para postar em seguida no YouTube e no Instagram – fronteiras e pudores dissolvidos pela tecnologia. Estariam ligados também ao exibicionismo corrente, expressado pelo ato já corriqueiro de postar as melhores imagens de si mesmo, hábito pelo qual pessoas comuns se forjam celebridades na janela do Facebook?

Talvez a resistência a fotos como as de Svenson, Morozini e outros possa também ser compreendida pelo fato de constituírem uma traição à imagem controlada que tentamos desesperadamente difundir nas redes sociais como a nossa imagem “verdadeira”. Essas fotos roubadas, feitas à revelia, escapam do que se poderia chamar de “controle de qualidade da vida exibida”. Revelam às vezes o tédio e não a felicidade, o ridículo e não a glória, as olheiras e não os olhos maquiados, nosso cotidiano sem Photoshop. A solidão de quem tem centenas, milhares de amigos no Facebook.

Há aqui algo interessante, que aparece tanto na escolha dos fotógrafos quanto na resistência de alguns fotografados: a ideia, bem contemporânea, de uma “verdade” na vida privada. Como se nossas evoluções na esfera pública fossem meras “máscaras sociais” – e estas máscaras sociais fossem decodificadas como “mentiras”. Como se existisse um “eu verdadeiro”, despido de máscaras, que se revela em nosso último ou até mesmo único reduto: entre as paredes da casa. Mas não existe um “verdadeiro eu”, não existe um lugar “em que somos nós mesmos”. Somos todas as nossas máscaras e nossas verdades estão espalhadas. O fato de estarmos com remela nos olhos e com um pijama rasgado na bunda não nos torna mais “verdadeiros” do que de salto alto ou de terno, assim como a melancolia que escapa pelos nossos olhos ao mirarmos o vazio no sofá da sala não é mais ou menos verdadeira do que nossos gestos numa reunião de trabalho.

A vida privada tem sido confundida com “vida real”, o que explica a obsessão das pessoas ditas comuns com a privacidade das ditas celebridades. Assim como a obsessão dos fotógrafos pela vida privada das celebridades – e mais recentemente pela vida privada dos anônimos. Poucos parecem se importar com o fato de a vida privada das celebridades ser constantemente invadida por paparazzi, exceto algumas celebridades. Como se, pelo fato de serem pessoas “públicas”, que ganham a vida por serem públicas, não pudessem ter uma vida privada, longe dos olhos de todos os outros. Mais do que isso: o público que as torna celebridades teria direito de acesso ao “verdadeiro eu” das pessoas que venera, àquela que seria a sua “verdade verdadeira” e que só poderia ser descoberta com flagrantes à sua intimidade.

Quando aparece um outro tipo de paparazzo, o que espiona a vida das pessoas comuns, para muitos é uma violência bem mais óbvia. Por quê? Ou qual é a diferença para as fotos íntimas de celebridades? A suposta verdade dos comuns não interessa a ninguém? Não é o que os preços dessas fotos nas galerias têm mostrado. Ou por que seriam imagens de ninguém em particular ou “representações da humanidade”, como disse o fotógrafo Arne Svenson? Mas se o problema está no fato de as pessoas se reconhecerem na sua singularidade, como alguém com nome, sobrenome, rosto e vida? Se o problema começa na singularização daquele que é, ao mesmo tempo, “representação da humanidade” e algo que ele chama de “si mesmo”? E, nesta singularização, preferia não ser fotografado secretamente de cueca na frente do espelho?

É mais complicado do que parece. O ato de fotografar pode ser julgado em si ou apenas no sentido atribuído a essa fotografia? A mesma fotografia que muitos consideram poética numa galeria de arte poderia ser decodificada como ridícula e virar motivo de escracho se jogada em determinados sites da internet. Ou, usando um exemplo mais explícito, a foto do bebê no banho, que enternece os pais no álbum de família, pode ser erótica para um pedófilo. Se o sentido só pode ser dado depois, a fotografia dos vizinhos nos aproxima e nos conecta na solidão das metrópoles, ao dizer de todos e não apenas de um. Já as fotos das celebridades, mesmo – e talvez principalmente – quando são anunciadas como flagrantes de cenas que as aproximam das pessoas comuns, o que fazem é marcar a diferença. Ambos estão fotografando cenas privadas sem autorização, mas a oposição de sentidos tornaria aquele que expõe a intimidade de celebridades para o gozo do público um invasor e o que expõe anônimos não?

As perdas e ganhos se embaralham. Quem ganha com os retratos da vida privada? O fotógrafo, ao transformar cenas íntimas em arte que fala dessa época histórica. Nós, coletivamente, ao ganharmos um retrato de nossa humanidade, que nos faz transcender – e que transcenderá nossa vida ao alcançar as gerações futuras. Quem perde? Nós, também, individualmente, porque aquele que virou representação é também aquele que vive e que talvez não quisesse ser exposto abrindo a geladeira descabelado para pegar o leite pela manhã. E nós, coletivamente, na medida em que a única alternativa para não ter a intimidade exposta seja cobrir com cortinas nossas escassas janelas, por onde já entra muito menos luz do que gostaríamos.

De novo, como superar esse impasse? Ou o que é mais importante? E quem decide?

Quem observa com atenção a cidade, percebe que mesmo moradores de rua constroem paredes e portas invisíveis embaixo de viadutos ou mesmo nas esquinas. Lá dentro, evolucionam por peças sem paredes como se não fossem vistos por todos. Muitas vezes, diante dessas cenas, tão profundamente humanas, desviei os olhos, em sinal de respeito. Acho que nos humanizamos quando conseguimos enxergar – e respeitar – mesmo as paredes invisíveis. Me parece importante bater, mesmo em portas subjetivas, para que o outro tenha a chance de dar ou não sua permissão. Não é porque não enxergamos, que as portas e as paredes não existem. E não é porque a tecnologia permite, que podemos entrar na casa das pessoas, ainda que em nome da arte – ou do jornalismo – sem antes pedir licença. Mesmo que essa casa seja um amontoado de trapos embaixo de uma ponte.

Poder fazer/alcançar/fotografar/expor, graças à tecnologia, significa auto-autorização para fazer/alcançar/fotografar/expor?

Meu sentimento pessoal com relação à possibilidade de ser fotografada por um vizinho indiscreto é um misto de estranheza e pânico. Para mim, a casa me dá algo fundamental: algumas horas despida não de roupas, mas do olhar do outro. A possibilidade dessa nudez, que vai muito além das peças de vestuário, é importante para a minha sanidade. É o que me dá, às vezes, o espaço/tempo necessário para remendar a minha pele e enfrentar o mundo lá fora. Não é para todos que quero mostrar os meus rombos, assim como não é para todos que quero mostrar meus livros mais queridos ou as lembranças que escolhi para botar sobre a minha escrivaninha. E, mesmo que só eu reconhecesse o meu gesto numa galeria, me sentiria violada e exposta. E talvez começasse a ficar paranoica com esse vizinho que usa sua câmera fotográfica para me espionar e passasse a encenar a minha vida. Ou, como já passei a fazer, fechar as cortinas da peça da casa onde estou. Eu, que gosto tanto de luz.

Meu sentimento pessoal deve ser respeitado ou há algo, que a juíza americana chamou de liberdade de expressão, que deve se sobrepor a ele? Não sei. Será que a liberdade de expressão do fotógrafo, ao registrar secretamente a vida de alguém, não está cerceando a liberdade de expressão dessa pessoa dentro de sua casa? Possivelmente. E o que difere, afinal, voyeurismo de arte? O destino que se dá ao olhar? Ou o sentido?

Alguém tentar entrar fisicamente na casa de um outro sem permissão é ilegal. Mas, pelo menos na decisão judicial americana, a invasão de um olhar não autorizado, que capta uma cena privada e a torna pública, é legal. Mas, ainda que seja legal, é ética?

Tenho dúvidas. O que me parece claro é que essa discussão vai muito além da tensão entre liberdade de expressão e privacidade, como foi colocada. E precisamos discuti-la. Porque é fascinante, mas também porque pode haver um fotógrafo nesse exato momento, empunhando uma teleobjetiva na janela do prédio em frente, sinceramente disposto a fazer poesia da nossa vida privada. Mesmo que, diferentemente do personagem de Janela indiscreta, do clássico de Alfred Hitchcock, nossa maior subversão seja comer leite condensado de calcinha.

(Publicado na Revista Época em 16/09/2013)

 

Onde está Amarildo?

O fato de o ajudante de pedreiro ser visto como “boi” pode ter ajudado a fazer do seu desaparecimento um protesto

Os conhecidos chamavam Amarildo de “boi”. Porque fazia a proeza de carregar dois sacos de cimento nas costas, apesar de magro e quase baixo, em seu pouco mais de 1,70 metro de altura. Porque era também quem carregava os doentes nas costas, tirando-os de dentro da favela e vencendo as escadarias da Rocinha. De todas as descrições de Amarildo, é a do boi a mais marcante, a infinitamente repetida. É como boi que o enxergavam. Boi, não touro. E esta, talvez, seja parte da tragédia. A que começou muito antes do derradeiro crime.

Passei quase duas semanas sem acesso à internet, telefone ou qualquer notícia, numa viagem de trabalho. Não vi o Papa. Quando voltei, descobri que precisava saber onde estava Amarildo. Que, para muitos, o Papa não tinha sido o acontecimento mais importante, o sumiço de Amarildo, sim. A grande notícia era que Amarildo tinha se tornado notícia, num país em que o desaparecimento dos pobres costuma não ganhar nem nota de pé de página, apenas silêncio e impunidade. Que Amarildo tenha sumido é terrível. Que seu sumiço tenha virado faixa e slogan nos protestos, hashtag no Twitter e notícia na imprensa sinaliza – talvez – o começo de uma mudança.

Amarildo de Souza, 43 anos, foi levado para a sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, favela da zona sul do Rio de Janeiro, na noite de domingo, 14 de julho. “Para averiguação”, como a polícia costuma dizer quando carrega com ela algum pobre, como se fosse uma justificativa aceitável. Amarildo acabara de voltar de uma pescaria quando quatro policiais o abordaram, supostamente confundindo-o com um traficante, embora testemunhas digam que pelo menos um deles o conhecia muito bem. Nos dias 13 e 14 de julho, a “Operação Paz Armada” – e aqui o nome não é apenas uma ironia, mas também uma violência – colocou 300 policiais na Rocinha e prendeu dezenas de pessoas.

Uma testemunha contou à repórter Elenilce Bottari, de O Globo: “Ele (Amarildo) estava na porta da birosca, já indo para casa, quando os policiais chegaram. O Cara de Macaco (outro apelido curioso, desta vez de um dos policiais da UPP), meteu a mão no bolso dele. Ele reclamou e mostrou os documentos. O policial fingiu que ia checar pelo rádio, mas quase que imediatamente se virou para ele e disse que o Boi tinha que ir com eles. O Cara de Macaco conhecia o Boi e vivia implicando com ele e a família. Esse policial é ruim, gosta de humilhar os pobres daqui”. Amarildo entrou no carro da Polícia Militar vestindo apenas bermuda e chinelos. Sem camisa, o torso de boi estava nu. Desde então, não foi mais visto.

O comandante da UPP, major Edson Santos, disse aos repórteres Marco Antônio Martins e Fábio Brisolla, da Folha de S.Paulo, que Amarildo teria ficado menos de cinco minutos na unidade, o suficiente para ser desfeita a confusão de identidades, e em seguida teria sido liberado. A Rocinha tem 84 câmeras. Naquele domingo, as duas câmeras diante da UPP tiveram problemas. O GPS dos carros de polícia não funcionavam. O que teria acontecido com Amarildo que as câmeras não puderam ver? Que caminhos teria ele percorrido que o GPS não pôde registrar? Ou ele deixou a UPP caminhando e desapareceu depois, como afirma o policial?

Amarildo era ajudante de pedreiro e criava os seis filhos num barraco de um único cômodo, num ponto da favela em que o esgoto serpenteia pelas vielas e tuberculose é doença corriqueira. Não sabia ler, só escrevia o próprio nome. Como conta a repórter Anne Vigna, da Agência Pública, era descendente de escrava, filho de uma empregada doméstica e de um pescador, numa família de 12 crianças. Ganhava R$ 300 numa obra em Copacabana, salário que complementava carregando sacos de cimento nos finais de semana. Estava contente porque tinha conseguido comprar tijolos para alargar sua casa. Ele, que a vida toda construíra a casa dos outros, nas quais tijolos não faltavam. Como o animal cujo nome lhe impingiram, Amarildo também atravessava a vida carregando um peso que não lhe pertencia.

Sim, porque Amarildo era chamado de boi, não touro. Boi de canga é aquele que puxa o arado, um passo penoso depois do outro, um dia seguido de outro dia, as costas suadas debaixo de um sol excessivo. Quem já viu a cena sabe que o mais brutal são os olhos mansos do boi, a resignação de quem só conhece uma sina, a canga que já lhe espremeu a alma. Se Amarildo era ou não boi talvez nunca saberemos, mas o fato de Amarildo ser visto como boi, o que foi citado em quase todos os perfis da imprensa, não deve passar incólume. Não pela sua dimensão poética, mas porque há algo de perturbador no discurso do boi.

O boi não é um animal qualquer. A palavra que o representa marca uma castração. O boi é um vir-a-ser que não será, um interrompido no meio do gesto de tornar-se. Ele poderia ter sido um touro, não fosse o homem ter dado a ele outro destino quando ainda era pouco mais que uma criança, num ritual de sacrifício, mesmo que as técnicas sejam hoje modernas. O boi é aquele que é emasculado para ser ofertado ao serviço ou ao consumo. É emasculado para a servidão – seja como força de trabalho, seja como fornecedor de proteínas. É alienado de si para virar carne, força bruta a serviço de seu dono e algoz. O touro, não. O touro tem a pulsão sexual, o que o faz ser aquele que é. Na literatura, os bois humanos são castrados de esperanças, de possibilidades, de revolta com sua condição servil – de liberdade.

O perigo do boi, no caso de Amarildo, é que o boi parece se transmutar em uma outra palavra, também repetida com insistência nas descrições que dele fizeram: “trabalhador”. Amarildo é o (sub)proletário que ganha meio salário mínimo, condenado a vender o corpo tão barato que nem mesmo consegue alimentar direito a si e à sua família. Mas há um valor simbólico associado a esse trabalhador braçal que carrega duas sacas de cimento nas costas, enquanto outros só conseguiriam carregar uma. Um valor representado pelo boi, essa figura enganosamente bucólica vinda do Brasil colonial, que atravessa os séculos e ganha novos sentidos no capitalismo. Esse valor talvez faça com que seja mais fácil para o Brasil que reclama seu sumiço amá-lo. Amarildo, o boi humano, é o pobre submisso. E parece ser também isso o que torna seu desaparecimento inaceitável.

E aqui, o parêntese sempre necessário. É inaceitável qualquer pessoa entrar num posto policial e desaparecer, como tem acontecido com milhares em todo o Brasil. É inaceitável Amarildo desaparecer, assim como é uma grande notícia que Amarildo tenha virado notícia. O que sugiro é uma complicação um pouco maior, que talvez nos ajude a avançar, sobre o quanto essa figura de Amarildo, o boi, pode ter ajudado a transformar seu nome num slogan de protesto nas ruas e nas redes sociais. A pergunta que proponho aqui é se o fato de Amarildo ser o trabalhador que carrega dois sacos de cimento nas costas o tornou mais palatável para parte daqueles que denunciam seu sumiço e exigem uma resposta. Isso em nada muda a necessidade imperativa de denunciar e exigir uma resposta, porque o sumiço de Amarildo e de todos os outros que não viraram slogan é desde sempre inaceitável. E inaceitável um a um. Mas pode nos ajudar a compreender a complexidade do momento em que vivemos. E talvez nos ajude a não cair em armadilhas nos dias que virão.

O valor simbólico do boi atravessa o tempo e assinala visões de mundo, ainda que inconscientes, nas diferentes classes sociais. É tão comum como triste quando, ao ser confrontados com alguém identificada como autoridade, o que pode ser simplesmente alguém de uma classe mais privilegiada, os pobres apresentam de imediato sua carteira de trabalho para provar que existem e são pessoas boas. Ou para não serem humilhados ou presos, o que não funcionou no caso de Amarildo, mesmo quando “Cara de Macaco” enfiou a mão no seu bolso para pegar os documentos, conforme conta uma testemunha. É assim que a irmã de Amarildo, Maria Eunice Dias Lacerda, o descreve ao jornalista Fernando Gabeira, em reportagem da Globo News: “Ele não ficava em casa, ele era um tipo de pessoa que ele não descansava. Ele não tinha tempo nem pra comer, nem pra se divertir, o negócio dele era trabalho”. Em um perfil publicado na Folha de S. Paulo, essa mesma irmã enuncia o que poderia ser a contrapartida de ser boi em um pacto não pronunciado, mas persistente: “É duro dizer, mas eu acho que meu irmão está morto. Ele sempre dizia que revidaria se fosse agredido por um policial. Dizia que trabalhador não pode levar tapa na cara e ficar quieto”.

O perigo do boi fica ainda mais explícito em uma declaração de Sérgio Cabral (PMDB), o governador decaído do Rio. Ele afirmou no Twitter: “Nada justifica o desaparecimento de uma pessoa que foi checada pelo próprio comandante da UPP como trabalhador”. O que Cabral está dizendo? Se Amarildo não fosse um “trabalhador”, o desaparecimento e a possível morte estariam então não só justificados como legitimados?

De fato, é isso que temos testemunhado e com o que temos compactuado quando não protestamos contra os “suspeitos” executados pela polícia em sucessivas e persistentes invasões nas favelas, como aconteceu em junho na Maré, no mesmo Rio de Janeiro. Ou como acontece há décadas, séculos, em todo o Brasil. Sobre isso, escrevi um outro texto, “Também somos o chumbo das balas” (leia aqui). Nas palavras do governador, se Amarildo não fosse um boi/trabalhador, seu sumiço estaria dentro da normalidade. É essa aberração que tem sido a normalidade no Rio – e no Brasil inteiro.

É por isso que vale a pena se preocupar com o fato de Amarildo ser visto como boi – não como touro. E se Amarildo fosse “suspeito” ou “traficante” ou “bandido” – e não “trabalhador” – como reagiríamos? Teríamos sido capazes de transformar seu sumiço em denúncia e protesto? Ou preferimos ser rebanho, mesmo quando aparentemente nos rebelamos? Pode ser triste, mas necessário, constatar que, em alguns aspectos, uma parcela dos que protestam contra Cabral é mais semelhante do que diferente do governador decaído e da porção assassina de sua polícia. As questões incômodas têm o mérito de nos fazer a avançar e, quem sabe, nos tornar melhores.

Dito isso, a pergunta se impõe: onde está Amarildo?

(Publicado na Revista Época em 05/08/2013)

Esses filhos perplexos diante da velhice dos pais

O cinema anuncia novos arranjos para o envelhecer e traz um olhar irônico sobre essa relação familiar quase sempre conflituosa

Uma sequência de filmes mostra que a velhice mudou – ou está mudando. Isso diz bastante sobre o aumento da expectativa de vida, já que um dos temas cruciais da sociedade contemporânea passa a ser como ser velho nestes tempos. E faz com que atores e atrizes sem muita chance de viver papéis desafiadores por conta da idade, muitos deles obrigados a uma aposentadoria não desejada, passem a ter a chance de interpretações magistrais, como foi o caso de Emmanuelle Riva e de Jean-Louis Trintignant, no excepcional Amor. Ou tem levado atores consagrados a se aventurar na direção depois dos 70, como fez Dustin Hoffman no encantador O Quarteto. São filmes em que a velhice é contada pelo olhar de quem a está vivendo e há várias formas de pensar sobre o que está sendo dito, dentro e fora da tela. Minha proposta é refletir sobre uma em particular: nos últimos quatro filmes exibidos por aqui e que já estão ou devem estar chegando às locadoras e às TVs por assinatura, os filhos ou estão ausentes ou são uns atrapalhados, oscilando entre a boçalidade e a incapacidade de dar conta da própria vida.

Em O Excêntrico Hotel Marigold, o mais fraco deles, um dos casais britânicos vai parar na Índia porque a filha gastou o dinheiro dos pais numa aventura empreendedora na internet. Assim, precisam encontrar uma opção mais barata de moradia, o que os leva ao excêntrico hotel do título. Ainda que depois a opção se mostre interessante, mesmo que por caminhos tortuosos, não foi uma escolha num primeiro momento. E sim uma reação à atrapalhação da filha, que se arriscou não com o seu próprio dinheiro, mas (convenientemente) com o dos pais, o que também é uma marca da nossa época.

No ótimo E se vivêssemos todos juntos?, a filha do casal interpretado por Jane Fonda e Pierre Richard é uma chata pretensiosa que só aparece para (tentar) mandar nos pais e dar palpite na vida deles, para em seguida desaparecer. Já o filho do Don Juan interpretado por Claude Rich é muito mais participativo e francamente esforçado, mas o pai tenta escapar de todo jeito das boas intenções filiais porque esse filho só é capaz de enxergá-lo como alguém que vai quebrar a qualquer momento – o que é verdade, mas está longe de ser toda a verdade.

Em Amor, a maravilhosa Isabelle Huppert está menos maravilhosa no papel de filha do casal que se descobre velho de repente, numa manhã qualquer, em um segundo. Esta personagem, às voltas com um casamento que parece emocionante apenas pelas razões erradas, encarna a filha perplexa diante dos pais. Perplexa e apavorada diante da fragilidade e da finitude dos pais. Ela tenta intervir, ela tenta se impor, ela tenta dizer e fazer coisas sensatas – e tudo falha. Ela tenta principalmente ser potente, mas mal dá conta da própria vida. Seu diálogo com o pai, enquanto a mãe não sabe de si, é uma das cenas antológicas desse filme belíssimo.

Em O Quarteto, que se passa num “lar para velhos” que foram cantores e músicos antes de perderem a voz, a memória ou a saúde, os filhos não estão lá. Surgem, ao fundo, nos dias de visita, mas nenhum dos personagens principais parece ter filhos. Artistas de ópera, eles possivelmente não tiveram tempo para a maternidade ou a paternidade. E esta não parece ser nem uma questão, nem um motivo de arrependimento, o que é bastante interessante. Se tiveram filhos, o fato não foi tão marcante a ponto de ser citado, o que de novo é bem interessante. O quarteto é primeiro um trio, que se ampara e se diverte na velhice como os amigos de uma vida inteira que foram e ainda são. A quarta personagem, que chega para fechar o grupo, é uma diva atormentada pela perda da potência, que no seu caso se expressa pela voz que falha. Ela terá de descobrir que pode cantar mesmo com uma voz que não é – nem jamais voltará a ser – a da juventude. E para isso terá de amarrar alguns fios esgarçados do passado.

Só estou citando os últimos filmes, mas antes destes já tivemos outros em que os filhos aparecem ora perdidos, ora oportunistas na vida dos pais, como no delicioso Elsa & Fred. O que vale a pena perceber é que, cada vez mais, ao contar a velhice pelo olhar de quem a vive, conta-se também da perplexidade dos filhos apatetados diante dos pais. Não mais os pais velhos como um estorvo para filhos que mal dão conta da sua vida, sem saber se os enfiam num asilo ou os carregam para casas ou apartamentos onde mal cabem eles. E sim filhos atrapalhados ou boçais que, quando aparecem, tornam-se um estorvo para os pais.

A ponto de em E se vivêssemos todos juntos? deixarem o filho de um para fora do portão e ainda lhe darem um banho de mangueira para que vá embora de uma vez e não volte tão cedo. São velhos poderosos – e que reivindicam seu poder mesmo em uma condição de fragilidade – os do cinema. Poderosos porque não se deixam apartar de sua história na velhice, ao contrário. Apropriam-se dela e a usam para viver com intensidade seus últimos capítulos, apesar das inevitáveis perdas e limitações.

Cabe esclarecer que esta questão, a dos filhos diante da velhice dos pais, que aqui se torna a principal, nos filmes é secundária, quando não inexistente, o que também é muito significativo. Como filha de pais que envelhecem, eu me identifico com esses filhos perplexos e atrapalhados. Como uma mulher que envelhece, me identifico com esses velhos, nos quais me espelho para o futuro não mais tão distante. Em qualquer um dos casos, consigo encontrar discernimento para perceber o quanto é sensacional que os filhos, que se acham tão centrais na vida de seus pais, a qualquer tempo, sejam colocados no seu devido lugar.

“Minha mãe (ou meu pai) virou criança.” Esta frase, corriqueira na boca de filhos que parecem exaustos, me provoca alguma desconfiança. Soa mais como uma tentativa de potência de filhos que estão se sentindo bem impotentes. Ou soa como uma tentativa de mostrar que sabem o que fazem ou para onde vão, quando de fato se encontram completamente perdidos. Até porque é uma marca do nosso tempo o retardamento da vida adulta, de preferência para sempre. E a velhice dos pais, os adultos por excelência, afunda todas as esperanças inconfessadas de ser adolescente para sempre em pelo menos um lugar no mundo.

Sinto compaixão por esses filhos, como senti pelos filhos dos velhos do cinema. Como senti por mim mesma à certa altura. Ao perceber que meus pais estavam envelhecendo, em determinado momento achei que tinha de assumir também o comando da vida deles. Considerei que, para ser uma boa filha, tinha de ter todas as respostas. Ou, invertendo o lugar, me apropriar do famigerado “eu sei o que é melhor para eles”. Aos poucos fui percebendo que estava me tornando uma chata pretensiosa. Com tanto medo que eles quebrassem que queria carregá-los no colo, mas minha estropiada coluna vertebral mal dá conta de sustentar meu próprio peso.

Com a gentileza que lhes é peculiar, meus pais escutavam meus palpites e minhas pregações e, claro, faziam exatamente o que queriam. Devagar fui me dando conta de que era só o que faltava ter vivido e experimentado tanto para chegar à velhice e ter de suportar uma filha tentando mandar neles. Percebi que o importante era estar por perto não só para o que fosse preciso, mas pelo prazer da companhia, e continuar capaz de escutá-los. Se precisam da minha ajuda, eles mesmos me dizem – não só com palavras, mas de maneiras mais sutis. E se fazem coisas que eu considero mais arriscadas, tanto a decisão quanto o risco continuam sendo deles, como sempre foram. Não por minha majestosa concessão, mas porque não tenho nenhum direito de impor qualquer vontade. Se depois de me tornar adulta eu nunca permiti que meus pais interferissem de forma autoritária na minha vida, por que é que eu me acharia no direito de me meter de forma autoritária na deles quando estão envelhecendo? Escutar de verdade ainda é o começo e o fim de qualquer relação de respeito mútuo – e de amor.

Mas nós, os filhos, nos atrapalhamos mesmo. E acho muito divertida a ironia com que somos tratados nessa sequência de filmes, mesmo quando não estamos. (Como assim não estamos, nós, tão centrais na vida dos pais? Que horror!) Alguns se atrapalham porque se confrontar com a velhice dos pais é se confrontar com a certeza de que não há mais jeito de escapar da vida adulta. E, para quem achou que poderia continuar sendo filho para sempre, é uma complicação virar gente grande de uma hora pra outra. Ao tentar dar ordens aos pais, esses filhos na verdade estão dizendo: “Não me deixem sozinho nesse mundo tão ameaçador. Não me desamparem!”. E a irritação que manifestam diante das limitações dos pais muitas vezes é um jeito tosco de disfarçar o pavor que sentem diante do desamparo iminente. Isso para alguns.

Para todos a velhice dos pais anuncia a própria velhice. É talvez o primeiro grande confronto com a fragilidade e com a finitude. Os filhos que olham aterrorizados para os passos claudicantes dos pais não temem apenas que eles caiam, mas principalmente que serão os próximos a ter pernas que vacilam. Ainda que não confessem nem para si mesmos, talvez seja este o maior horror. E este é um momento bem periclitante da vida. E quando isso se dá por volta dos 40, 50 anos, o confronto acontece quando o corpo está dando os primeiros sinais inequívocos de que já não somos tão jovens. É um duplo desafio, a velhice dos pais e o anúncio do próprio envelhecer. Que nem se compara, e isso também é preciso lembrar, com o desafio abissal que é ser velho – e ser velho nesse mundo em que, além de todas as dificuldades da idade, é preciso brigar para ser respeitado. E escutado.

Como já contei aqui, compartilho com um grupo de amigos o projeto de envelhecermos juntos num condomínio construído por nós em uma cidade pequena perto de uma grande. Uma cidade pequena por ser mais amigável a quem tem limitações físicas, sem contar que perder o pouco tempo de vida que resta empacado no trânsito não parece uma boa ideia. E perto de uma grande porque queremos continuar indo ao cinema, ao teatro, às livrarias e aos cafés e restaurantes, e numa cidade maior as alternativas gratuitas ou de baixo custo de eventos culturais são mais promissoras para quem vive de aposentadoria. Nossas casas terão fundos para um pátio comum, para o caso de querermos nos encontrar, e frente individual, para a rua. O pacto, já antigo entre nós, parte da ideia de envelhecer no mundo – e não apartado dele, como acontece com a velhice asilada – e perto de quem sabe de nós. Além de nos dar a possibilidade de amparar as dificuldades um do outro e de baratear os custos de manutenção. Neste sentido, nos aproximamos dos personagens de E se vivêssemos todos juntos?, mas com um pouco mais de privacidade.

Tenho encontrado gente na mesma faixa etária com projetos semelhantes com o seu grupo de amigos. E acredito que esta também é uma mudança importante. Acho que a minha geração está diante dessa questão como nenhuma outra. E tem aprendido algo importante com sua própria perplexidade diante da velhice dos pais. A questão dos meus pais, que sempre viveram com salário de professor, o que todo mundo sabe o que significa no Brasil, era fazer uma poupança para não depender dos filhos na velhice. A frase clássica dos pais bacanas, que hoje estão nos 70, 80 anos, é: “Não quero dar trabalho para os meus filhos dependendo deles”. Ou: “Não quero incomodar os meus filhos”.

A frase da minha geração – e que já se anuncia na boca dos velhos do cinema – é outra:
– Incomodar os meus filhos? Nem me importaria. O que não quero é que os meus filhos me incomodem!

(Publicado na Revista Época em 15/04/2013)

À margem do pai

Na floresta amazônica, um homem confronta sua solidão quando um filho seu é picado por uma cobra, o outro por escorpião. Como salvá-los sem nenhum acesso à saúde? O dia a dia dos protetores da Terra do Meio, onde não morrer é um golpe de sorte

Prostrado diante dos dois filhos agonizantes, Antonio da Rocha se descobre só. Sua brasilidade é de papel. À beira de um rio da Amazônia, ele está à margem da Constituição. Na Terra do Meio, no oeste do Pará, Antonio parece o personagem de um quadro de Portinari, um homem da cor do tronco das árvores, por volta de seus 40 e poucos anos, feito só de músculos. Está cercado pela mulher e por filhos que não o chamam “meu” pai, mas “o” pai. Antonio é o pai impotente que chora na noite do mundo.

É quinta-feira, 28 de março. E agora vamos precisar voltar algumas horas no tempo.  Avistamos Antonio e os filhos mais velhos movendo-se como gatos humanos na mata. Nas costas eles trazem o jamanxim, um cesto trançado em palha para carregar os frutos da floresta. Estão embrenhados na selva para catar patauá, de cuja semente se extrai óleo, e açaí, para fazer vinho para a Sexta-Feira Santa. São homens que não estão na floresta – são floresta. É por gente como eles, que é onde muitos apenas estão, que a Terra do Meio ainda resiste.

A tragédia acontecerá daqui a alguns minutos, mas vale a pena nos afastarmos do quadro enquanto eles evolucionam pela floresta. Agora há só verde a perder de vista, um verde quase opressor, um verde que uma vida inteira não é suficiente para esquecer. A Terra do Meio é assim chamada por se estender entre dois grandes maciços de terras indígenas, e entre dois rios, o Xingu e o Iriri. Essa geografia dificultou a devastação oficial, promovida pela ditadura militar nos anos 70, e retardou a devastação não oficial, promovida pelos grileiros ao longo das décadas – e ainda neste exato momento. Mas se a Terra do Meio é hoje uma das regiões amazônicas mais preservadas, com cerca de 90% da floresta em pé, é ao mesmo tempo o centro de um sangrento conflito por terras que a hidrelétrica de Belo Monte só fez piorar.

Agora falta apenas um minuto para a tragédia. Pode parecer uma banalidade aqueles homens coletando frutos numa tarde de quinta-feira. Mas a banalidade é uma ilusão. Antonio pertence a uma comunidade formada por descendentes de soldados da borracha arrancados do Nordeste quando o preço do látex estava em alta e abandonados na mata quando o preço caiu. Esses ribeirinhos extrativistas firmaram resistência quando os grileiros tentaram sangrar a floresta no início dos anos 2000, rasgando estradas, queimando casas, expulsando e matando gente como eles. Sem documentos, o Povo do Meio sequer existia para o Brasil oficial. Mas se fez enxergar e, ao fazê-lo, construiu um épico escrito por analfabetos. Conquistou a primeira reserva extrativista da Terra do Meio, a Resex Riozinho do Anfrísio, assinada por Lula em 2004. Com essa certidão de nascimento, o Brasil reconhecia o Brasil.

Agora não há mais tempo para o passado. São 17h30. Antonio e seus filhos movem-se pela floresta como parte, não como fora. Valdeci, de 19 anos, sente a fisgada. Nem vê a cobra. “Viu de viagem, não deu pra conhecer”, explicaria depois Lindomar, de 20. Quase ao mesmo tempo Francenildo, de 13, dá um grito. Tinha sido ferroado por um escorpião. Um “lacrau preto ovado” que Lindomar mata com o terçado. A Valdeci é dada a única dose de Específico Pessoa, um elixir contra veneno de cobra, aranha e escorpião que trazem sempre consigo. Não há mais Específico Pessoa para Francenildo. Ele mesmo ainda não sabe que está quase morto e faz questão de carregar seu jamanxim nas costas até o rio.

Antonio da Rocha já nasceu sabendo que não se pode aguar a picada, que se a ferida molha a vítima pode sentir uma sucessão de choques no corpo que levam à morte. Ele atravessa o charco até a canoa carregando o filho agonizante nos braços. Francenildo vem logo atrás. Num repente, o menino dá um único gemido e cai espumando. Antonio da Rocha tinha acabado de depositar o primeiro filho na canoa quando corre até o segundo, enfia as duas mãos na boca do menino e só tira de lá espuma. A ferida está molhada. Lindomar junta o jamanxim dos irmãos e carrega-os penosamente. “Fiquei esperando por Deus o que ia acontecer.”

Uma tempestade cai sobre eles. Ser alcançado por uma borrasca numa canoa no meio de um rio da Amazônia é como testemunhar uma convulsão do mundo, um princípio e um fim. Antonio da Rocha carrega dois filhos que morrem e sua alma ruge em uníssono com o temporal. Já não há mais dentro e fora, o encerado que cobre a canoa não é capaz de protegê-los. Quando alcançam o porto, a casa e a família, eles viraram água. É água doce, mas Antonio, que tem sobrenome de rocha, chora sal.

É preciso fazer um minuto de silêncio antes de continuar a ler para compreender a solidão de um pai, impotente diante dos filhos que agonizam, no coração não metafórico da floresta amazônica.

(um minuto de silêncio)

Não é possível alcançar a dor de Antonio, porque não a conhecemos. Ou, pelo menos, a maioria de nós tem a fortuna de não a conhecer.

Um dia antes, ele havia dito: “Sou um homem de sorte. Tenho 14 filhos, só perdi um. E todos vivem comigo”. Seis mulheres e sete homens vivos, uma sétima filha morta por “vento caído” ainda bebê. No dia seguinte, ele dirá: “A sorte acabou”.

Há postos de saúde na Terra do Meio, três, construídos por meio de um termo de cooperação entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a prefeitura de Altamira. Mas estão vazios. Não há auxiliares de enfermagem, nem equipamentos ou remédios, não há nada nem ninguém. A explicação da prefeitura à imprensa é que não consegue gente qualificada para trabalhar porque a Norte Energia, responsável por Belo Monte, oferece salários muito mais altos, a do governo do estado do Pará é de que essa assistência é atribuição da prefeitura e a do governo federal é de que repassou recursos à prefeitura. Não há postos de saúde, portanto, nem no Riozinho do Anfrísio, nem nas outras reservas extrativistas da Terra do Meio. Quem protege a floresta não é protegido – nem tem assegurado seus direitos constitucionais.

Antonio da Rocha está só de mais de uma maneira. À meia-noite, quando a quinta-feira vira Sexta-Feira Santa, Francenildo morre. Com 13 anos presumidos, aparentando menos de 10, botando sangue pelo nariz e pela boca. A mãe e as irmãs enrolam seu corpo franzino em trapos. Uma fralda com bichinhos, um lençol listrado, um pano branco, uma camiseta amarela. Como se fosse uma múmia egípcia, com as mãos cruzadas sobre o peito. Ou um menino ninja, só com os olhos de fora. Referências do mundo de lá, porque de fato ele é um menino da floresta com a mortalha possível, porque sem mortalha acreditam que não se encontra a porta do céu.

Francenildo é velado sem vela, o que causa imensa aflição ao pai e à mãe. Sem luz também não se encontra a porta do céu. Colocam duas lamparinas, mas é preciso velas para velar direito. Há algum tempo eles se converteram evangélicos, mesmo sem desacreditar nem de rezas de outra tradição, nem de visagens que lhes dão notícias do além. Então alguém coloca uma daquelas Bíblias baratas de capa colorida sobre o corpinho mirrado de Francenildo. De tempos em tempos um dos meninos menores vai lá, resgata a Bíblia e fica folheando o livro fingindo ler. Como Antonio, o pai, todos são analfabetos. Francenildo morre sem letras. E para esta escuridão nada mais poderá ser feito.

Enquanto tudo isso acontece, Valdeci agoniza.

Os vizinhos chegam para o velório em rabetas ou remando suas canoas. Ser vizinho na Terra do Meio é estar a horas de distância, quando muito perto, a um dia quando perto, a alguns dias quando meio perto. Para Valdeci tudo está longe demais, especialmente Altamira, nesta época do ano a dois dias de rio na voadeira, o barco mais veloz, a cinco dias na seca. Longe demais para Valdeci viver. Mas Antonio da Rocha ainda é um homem de sorte, embora possivelmente ele não ouse mais se definir deste modo. Um dia antes haviam passado pela região uma procuradora da República, Thais Santi, que investigava as condições de saúde e de educação na Terra do Meio, e dois pesquisadores a serviço da Associação de Moradores do Riozinho do Anfrísio, Maurício Torres e Daniela Alarcon. Ainda estão nas redondezas, a quatro horas de rabeta, quando são avisados do acontecido. Testemunham o que Maurício assim definiria: “o triste dia a dia de uma gente para quem não morrer é um golpe de sorte”.

Ao descobrir que um menino já tinha morrido e o outro morreria em breve, Thais e Daniela tentam contato com Altamira por rádio, em busca de socorro aéreo. Mesmo para uma procuradora leva horas para se conseguir um helicóptero, que pousa sobre um campo de futebol na terra indígena de Cachoeira Seca, no rio Iriri. É muitas vezes aos índios, que com muita luta conseguiram uma unidade de saúde capenga, que os ribeirinhos extrativistas vão pedir ajuda.

Antonio da Rocha nunca tinha se separado de um filho. Ele é como o seu barco que batizou de “Pai e filhos”, um todo indivisível navegando em águas brutais. Agora um homem-barco partido. Finca seu olhar bem dentro dos olhos de Maurício antes de entregar-lhe Valdeci. Não é um olhar que pode ser descrito. As palavras para descrever esse olhar ainda não foram inventadas.

No alto do barranco homens, mulheres e crianças choram na despedida como se fosse morte. Com Valdeci vai Lindomar, encarregado de representar a família no mundo estrangeiro da cidade. Com um filho nas águas, o outro na terra, Antonio da Rocha soçobra. No velório as conversas dão conta do seu fracasso. “Deu Específico Pessoa para o filho errado”, diz um. “Deixou molhar”, emenda outro. Antonio parece só sentir uma culpa, e esta vai arrastar consigo verde afora. A de não ter braços em número suficiente para carregar dois filhos. Como ele poderia escolher que filho carregar em seus braços de pintura de Portinari? Como ele pôde deixar um enquanto carregava o outro? Como se vive depois de descobrir que apenas dois braços faz do pai um aleijado?

Quando Valdeci alcança primeiro a Cachoeira Seca, depois o hospital de Itaituba e por fim o de Altamira, um médico ri ao saber que ele tinha recebido uma dose de Específico Pessoa. “Isso não adianta nada, é uma bobagem”, gargalha. Há um mundo inteiro que não se mede em quilômetros entre o médico e Antonio. Um mundo em que Específico Pessoa é a medicina possível, porque os médicos que riem das suas crenças preferem não ir tão longe. Lindomar traz uma lista de precisões para comprar na cidade e levar de volta para casa junto com Valdeci vivo, depois de três dias de internação. Nesta lista, uma tese de antropologia inteira: dois antibióticos e um anti-inflamatório, aguardente Alemã (que livra de todo mal), Pílula Contra tudo (contra tudo o que é ruim), Pílula de Vida. Específico Pessoa.

E velas para Francenildo achar seu caminho.

(Publicado na Revista Época em 08/04/2013)

 

O capeta do porcelanato

A vida que se desenrola sem alarde, nas frestas das notícias

Sempre me pareceu que a tragédia humana, assim como a beleza, se mostra mais nos pequenos gestos do cotidiano do que nos grandes acontecimentos. É no esforço de alcançar o dia seguinte ainda suficientemente inteiro, no medo de só conseguir aos pedaços, na ânsia por algo além do pão para alimentar uma vida, que se faz o movimento da história. Quando logo cedo pela manhã me deparo com as paradas de ônibus lotadas, o metrô cheio, as pessoas caminhando com passos apressados que parecem conhecer o rumo, mas que são desmentidos pelos olhos perdidos, sinto que estou diante de uma obra de arte viva, que me conta de um momento histórico, um pulsar. Tento adivinhar as pequenas grandes epopeias de cada um para entender a trama maior. Com o que as pessoas que se preocupam com o preço do pão se preocupam além do preço do pão? O que as faz rir ou chorar? Será que percebem que se abriria um vazio doloroso no quadro se sumissem de repente?

Nesta coluna, conto quatro pequenas histórias reais que jamais seriam notícia, quatro encontros desencontrados ocorridos nas águas de março de São Paulo, quatro janelas de humanidade, quatro nadas que tudo contêm. Apenas os nomes dos protagonistas são fictícios, para proteger as dores. São diálogos que duraram não mais do que um, dois minutos. São insurreições que ninguém viu ou viu sem ver. São esquinas onde a luta de classes se revela pelo minúsculo. São fissuras de um Brasil ainda tão partido. São pontes ainda incompletas, gestos interrompidos.

São desacontecimentos.

Dor de sonho (terça-feira, 26 de março):

Maria acordou com dor nas pernas. Mas tão feliz que nem queria acordar, desejando segurar o sonho entre os dentes, com ganas de perder o trem, o ônibus, as horas. Trabalha de segunda a sexta na casa de alguém, cada dia da semana um alguém diferente. E gosta de pensar que as casas ruiriam entre poeira, fuligem e limo se ela não estivesse lá esfregando furiosamente. E quando volta para a casa dela também varre, lava, desinfeta, certa de que o marido, o irmão e o filho morreriam de imundície e fome se ela não estivesse por perto. Maria por toda a vida acreditou que com um bom desinfetante na mão era capaz de superar qualquer obstáculo. Mas ultimamente uma tristeza que ela não consegue remover nem com o mais potente dos químicos se entranhou na sua carne, fazendo peso no seu coração. E às vezes ela chora escondida quando passa roupa, as lágrimas molham camisas sociais, calças jeans e até um vestido, e ela se apressa a secar com o ferro para que ninguém suspeite que esteja salgando o que não deve. Maria agora se sente presa entre tantas casas, naqueles mesmos destino de trem e ônibus, ônibus e trem. Não é que desgoste, ela só sente que não basta. E ela, que preencheu todas as casas, não sabe o que fazer com essa casa vazia que agora mora nela.

Não naquela manhã. Naquela manhã, ela só sentia dor nas pernas. Uma latejante e deliciosa dor nas pernas, uma alegria que nem lembrava que existia.

– Andei de limusine a noite inteira com a patroa – anunciou ao marido e ao filho logo cedo, quando já pegava a bolsa para pegar o primeiro trem. – Me pegavam aqui na porta de casa, até buzinavam. E a gente andava São Paulo toda. A gente ia até a 23 de Maio. E a gente abanava pelo buraco no teto. Foi bom demais!

Caminhou até o portão, se despediu do cachorro, que saltava nas suas pernas, fazendo festinha atrás das orelhas do bicho. Um minuto depois estava de volta, meio esbaforida.

O que foi, mãe?, perguntou o filho.

– Tô com muita dor nas pernas. Fiquei sentada tempo demais naquela limusine, não tenho esse costume. Voltei pra tomar um dorflex.

Engoliu um comprimido e despencou rua abaixo atrás do trem, onde nunca encontra lugar para sentar. Já estava medicada para dor de sonho.

A palavra-caroço (quinta-feira, 28 de março):

Antonio falhou a quarta-feira de trabalho, ele que nunca falha. Reapareceu na quinta, meio abatido, na janela da portaria. Entregou correspondência, recebeu encomendas, avisou de chegadas, não avisou de partidas, espiando, torcendo para que uma moradora específica do prédio aparecesse, uma que sempre encomendava livros, toda hora um pacote da livraria, uma mulher que devia entender das letras, segundo lhe garantiram. A certa hora da manhã ela finalmente se materializou:

– Tava doente, Antonio? Melhorou?

– Ainda não. Tenho um caroço aqui (e apalpou o pescoço). A médica mandou fazer um exame pra ver o que é, mas não tem vaga. Fui ver o preço pagando particular, é oitocentos reais. Não tenho condição de pagar. Vou conseguir bater um elétrico, mas esse outro é muito caro.

– Nossa, Antonio. Mas e agora, precisa fazer esse exame, né? Caroço não dá pra esperar.

– Pois então. Precisa. Vou lá nas Clínicas hoje pra tentar passar no médico, ver se eles dão um jeito de me encaixar. Mas antes, eu precisava que a senhora me ajudasse.

A moradora pensou que era dinheiro, pensou que não sabia o que fazer, pensou no tanto que um caroço podia ser, na pressa que ela teria se tivesse um caroço, começou a fazer contas, se atrapalhou.

Antonio primeiro ficou vermelho , depois falou:

– É que eu não sei dizer a palavra pra explicar pro médico das Clínicas.

– Que palavra?

– O nome de onde fica o caroço. A doutora do posto falou, mas eu não consegui gravar. É meio como es…fgo.

E esperou que ela esclarecesse.

– Esôfago?

– Essa aí! Como é que é? Pode repetir?

– Esôfago.

– Es…ôfago. Esôfago. Esôfago! Aprendi. Agora vai dar tudo certo.

E deu um sorriso quase feliz.

A moradora ficou ali, sem palavras, com um caroço na garganta que não dava para apalpar porque invisível.

O capeta do porcelanato (três semanas atrás):

O moço é jovem, tem músculos de levantar tijolos, mulher bonita, filho pequeno e nome bíblico. Planejava tomar uma no boteco antes de voltar pra casa. Ia acabar o serviço naquele dia mesmo, era uma desculpa pra comemorar. Terminou de encaixar a última peça de porcelanato preto. E olhou a cozinha de classe média, achando bonito. Então o viu.

No andar de cima, Juvenal pintava a parede da suíte quando escutou o grito da dona da casa. Nem lembra como desceu as escadas, quase voou. Encontrou o amigo de infância, o compadre, o colega de trabalho, já que sempre se ofereciam em dupla, quebrando o porcelanato que tinha acabado de terminar a golpes de picareta.

– Tá doido, homem? – Juvenal tentou segurá-lo.

– Tá vendo não? Tem um capeta embaixo do piso.

Só parou quando conseguiu agarrar o capeta e enfiá-lo dentro da mochila de trabalho. Deixaram os dois a casa e a mulher histérica no meio da cozinha arrebentada, mas devidamente exorcizada, e foram caminhando até o ponto de ônibus. Lá, o moço de nome bíblico jogou a mochila no chão e começou a chutar o capeta dentro dela.

O capeta se foi, mas nas últimas semanas o moço não consegue mais serviço. E agora teme ele mesmo virar um capeta.

A casa não caiu (terça-feira, 19 de março)

Seu Mário é um homem de metro e meio, que veio da Bahia há dez anos pra fazer móveis em São Paulo. Nem sempre consegue, então quando falta mobiliário ele vira pedreiro. Mas quando arruma um serviço de marcenaria, ele se bota todo bonito e faz o milagre de chegar cheiroso mesmo depois de pegar dois ônibus e caminhar outro tanto para fazer o trajeto entre o Jardim Pantanal e o centro expandido de São Paulo. Adivinha os ônibus e o destino pelo desenho das letras, porque nunca aprendeu a ler, mas encarna um Pitágoras ao calcular as medidas de prateleiras, mesas, armários e cadeiras. Como, ninguém entende, nem mesmo ele. Chega com uns sapatos bem lustrados de graxa preta, parecendo estalando de novos apesar dos tantos aniversários. Vem puxando uma espécie de baú que ele mesmo fez, com madeira velha, e o abre como se fosse uma caverna de Ali Babá, expondo todas as ferramentas muito bem organizadas.

Naquela terça-feira ele instalava estantes aéreas nas paredes, e a mulher perguntou, aflita:

– Seu Mário, o senhor garante, o senhor tem certeza que dá pra furar a laje pra botar essas estantes? Eu morro de medo que o prédio desabe, como aquele do Rio de Janeiro.

E Seu Mário respondeu, com sua sinceridade doce, sem maldade na voz, com o firme propósito de tranquilizá-la com sua lógica pitagórica:

– A senhora não se preocupe. Na minha casa corre um rio de esgoto por baixo, comendo os alicerces. Essa chuva toda, barranco desbarrancando, gente morrendo, e ela ainda não caiu. Antes da sua casa cai a minha.

Naquele momento a mulher enxergou o abismo entre eles e quis estender a mão, alcançá-lo de alguma forma, pedir desculpas pela superficialidade de seus temores, mas seu Mário já tinha começado a furar a laje. (E ela ainda tinha medo que a casa caísse.)

– – – – – – – – – – – –

Uma amiga minha ensinou a empregada doméstica da casa da mãe a ler e a escrever. Faminta de letras, a cozinheira devorou o alfabeto com uma rapidez de prodígio. Ao final de três meses de aulas bissextas, a professora improvisada botou pedaços de papel com sílabas e vogais avulsas diante dela. A primeira frase que a mulher montou sozinha, as primeiras letras de uma vida inteira, aquilo que escolheu escrever entre todas as coisas do mundo, foi:

“Deus gosta da gente”.

(Publicado na Revista Época em 01/04/2013)

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