Os Silva são diferentes

Lula e Marina, os dois fenômenos políticos mais fascinantes da história recente, são filhos de Brasis que se desconhecem

 

Há uma ideia no Brasil de que os pobres são todos iguais. É uma visão de senso comum, mas que assinala a análise também de intelectuais. Ela explica a afirmação de que Luiz Inácio Lula da Silva e Marina Silva têm biografias parecidas – e a de que Marina teria sido a sucessora mais natural de Lula, não fossem as divergências que a levaram a deixar o Ministério do Meio Ambiente e depois o PT. Para chegar ao poder num país desigual como o Brasil, Lula e Marina fizeram uma travessia impressionante, uma espécie de jornada de herói. Mas as semelhanças acabam aí. Há enormes diferenças entre a trajetória de um filho de sertanejo que fez o caminho de São Paulo e se tornou operário e depois líder sindical, na região mais industrializada do país, e a trajetória de uma filha de seringueiro, seringueira ela também, na floresta amazônica, que iniciou sua carreira política em um estado como o Acre. Para alcançar a riqueza desse momento histórico do Brasil é preciso compreender que os Silva são diferentes.

Lula e Marina são ambos filhos do Brasil, mas de Brasis bem diversos. E é exatamente por causa de diferenças fundamentais de visões de mundo que, a certa altura, Marina não encontrou mais lugar no projeto do “lulismo”, usando a expressão do cientista político André Singer. A explicação para que a inserção de milhões de brasileiros, no governo Lula, tenha se dado pela via do consumo, é complexa. Mas pelo menos uma parte dela pode ser encontrada no desejo de Lula. No que significa para um operário ascender na escala social. Casa melhorada, roupa boa, geladeira nova e cheia, TV de tela plana, um carro na garagem.

Lula não encarna o sertanejo com uma relação íntima com o sertão, entendido aqui como natureza e cultura. Mas o movimento de transição de um mundo decodificado como passado, para um outro que é futuro. Ele é filho de uma família retirante que queria primeiro fugir da fome, depois subir na vida pelo ingresso na fábrica, pela via do “progresso” e da industrialização. Vencer na vida no mundo do Outro, apropriando-se dele e tornando-o seu pelo acesso aos seus signos. É esse universo de sentidos que ele compreende e com o qual dialoga, talvez como nenhum outro político da história do país. E é para estes pobres que seu governo significou inclusão social.

Marina, não. Ela se cria na floresta e é moldada por ela. Seu pai, migrante nordestino, tinha naquela região amazônica um ponto de chegada. Mesmo quanto a família tentava sair, era para o seringal que acabavam voltando. A iniciação política de Marina se dá nos “empates”, uma tática de resistência na qual homens, mulheres e crianças se dão as mãos para fazer uma corrente em torno da área ameaçada e impedir o seu desmatamento – e, com ele, sua expulsão daquele mundo. O mentor de Marina é Chico Mendes e a luta ali, naquele momento, é expressão de uma relação profunda com a mata, na qual um não se reconhece sem o outro. É uma luta por permanência, não por partida.

O conhecimento que funda Marina, analfabeta até os 16 anos, está contido nessa cultura em que é preciso saber a vocação de cada pé de pau para dominar a tecnologia complexa que permite a sobrevivência, na qual a terra não é mercadoria, mas vida. Sua capacidade de fazer a ponte entre esse saber, transmitido de geração em geração pela oralidade, com a palavra escrita, os livros e a produção acadêmica, é um dos capítulos mais bonitos da sua biografia. Marina só vai chegar ao centro-sul aos 36 anos de idade, já como senadora. Seu movimento pelo mapa se dá com o objetivo de levar ao coração do poder político o universo de sentidos do mundo que deixou não como passado, mas para que possa ser futuro. Se para Lula a possibilidade de ascender está na inclusão no mundo do Outro, para Marina o Outro é aquele que se experencia para alcançar a si mesmo.

Não se trata de dizer que Lula é melhor do que Marina – ou Marina melhor do que Lula. Apenas assinalar que Lula e Marina, os fenômenos políticos mais interessantes da história recente do país, carregam experiências diferentes de brasilidades. Às vezes, as necessidades imediatas da disputa eleitoral borram as nuances mais fascinantes. Se a ascensão de Lula ao poder já produziu no Brasil, só pelo fato em si, uma enorme mudança simbólica, a de Marina ainda é potência e incógnita. A incógnita aqui não colocada como um defeito, mas como possibilidade.

É bastante claro por que Dilma Rousseff, uma mulher urbana, de classe média, com tendência desenvolvimentista, tenha sido, para Lula e o conjunto de valores que o constitui, uma opção muito mais lógica como sucessora. Dilma é alguém com quem Lula tem muito mais afinidades do que Marina, apesar das evidentes diferenças entre eles. É nos sucessivos embates com Dilma, quando esta era ministra de Minas e Energia e depois ministra-chefe da Casa Civil, e Marina ministra do Meio Ambiente, que a ex-seringueira vai perdendo espaço dentro do governo do ex-operário e, em seguida, do Partido dos Trabalhadores. É óbvio que as opções de Lula e do PT se devem a questões de ordem política e econômica, a maioria delas bem pragmáticas, mas não se pode nem se deve esquecer a influência do universo de sentidos que forma o homem e do lugar a partir do qual ele enxerga o país. Para ser objetivo é necessário jamais perder de vista as subjetividades.

A partir do final do segundo mandato de Lula, algumas das lideranças históricas dos movimentos sociais na Amazônia, como por exemplo Antonia Melo e o bispo Dom Erwin Kräutler, ambos do Xingu, começam a perceber que o ser/estar no mundo dos povos da floresta, se antes pelo menos em tese tinham lugar no governo, já não têm mais espaço. E, a partir de Dilma Rousseff, nem mesmo interlocução. Para eles, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se a prova definitiva de que o projeto para a Amazônia de Lula e de Dilma guardava semelhanças com o da ditadura civil-militar: a floresta seguia sendo um corpo para exploração, e os povos da floresta um entrave a um tipo de desenvolvimento que nega sua existência e seu modo de vida. Nesse olhar, a Amazônia, para virar futuro, precisa tornar-se passado.

Lula – e Dilma ainda menos do que ele – pouco entendem dessas outras formas – e é importante assinalar que elas tampouco são homogêneas – de perceber o Brasil e de viver no Brasil. Mas, talvez mais grave do que não compreender outras maneiras de ser brasileiro é não achar que é preciso compreender. Compartilham essa ignorância com uma parte significativa da população, para a qual a Amazônia é longe demais em múltiplos sentidos, o que torna mais fácil perpetuar os crimes contra povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Assim como continuar ignorando, apesar dos sinais inequívocos que já marcam a vida cotidiana, que a mudança climática e as questões socioambientais nela implicadas são, senão o maior, um enorme desafio para qualquer governante desse tempo. Para essa parcela da população, o sonho de todo índio ou ribeirinho é ser pobre na periferia de uma cidade grande. E a pauta socioambiental é coisa de idealistas, sonhadores ou “ecochatos”, incapazes que são de perceber tanto a crise do planeta quanto o fato de que questões como saneamento básico, escassez de água e proliferação da dengue são socioambientais.

Em 2011, quando se começava a implantar o canteiro de Belo Monte, na região de Altamira, no Pará, passei um dia com o chefe de uma das famílias que seriam obrigadas a deixar a terra onde viviam para a construção da maior obra do governo. A certa altura, ele abraçou uma castanheira e desandou a chorar. Tentava me explicar por que ele não podia ser – sem ser ali. Ou a impossibilidade de habitar um mundo sem aquela árvore específica. De repente, o choro estancou e sua voz se encheu de raiva. Ele disse: “Fico revoltado quando Dilma diz que somos pobres. Por que ela pensa que somos pobres? De onde ela tira isso? Essa é a maior mentira”.

Aquele homem quase nada tinha de bens materiais, nem os desejava. Sequer os conhecia e, se conhecesse, não teriam lugar no seu cotidiano. Seu conceito de pobreza e de riqueza era totalmente outro, incompreensível para os fazedores de política do momento. E taxarem-no de pobre, no discurso de Brasília, o ofendia, porque se considerava rico. Não como um discurso bonito e um tanto abstrato, mas porque era de fato como rico que se enxergava, na medida em que a floresta lhe dava tudo o que precisava. Não só no nível concreto, mas também no simbólico. Para ele, a vida que ali tinha era boa.

Me parece que esses ricos e esses pobres Lula – e Dilma menos ainda – jamais conseguiram, ou mesmo quiseram, entender. Embora, como já foi dito, Lula tenha compreendido e dialogado com outros pobres – e com outros ricos. Quando Marina Silva afirma, no primeiro debate entre candidatos à presidência, na Rede Bandeirantes, que o líder seringueiro Chico Mendes, assassinado por sua resistência, era elite, é a partir dessa outra visão de mundo que ela também fala.

Essa ponte entre os vários Brasis, ainda inédita no comando da nação, Marina é a mais apta a fazer. Se de fato o fará, não há nenhuma garantia. Nem Lula foi um operário na presidência, nem Marina é hoje uma seringueira, ambos acrescidos e transformados por outras experiências vividas no curso de trajetórias bem extraordinárias. Mas, assim como Lula levou pela primeira vez ao poder uma visão de mundo muito diversa dos que antes haviam ocupado o Planalto, Marina poderá, caso for eleita, ser a primeira a carregar para o centro das decisões a experiência de quem vive na floresta e a compreensão de que o futuro pode não existir se essa experiência não for incluída no projeto de país. Nesse sentido, ela é muito mais século 21 do que sua principal rival na disputa pela presidência.

Uma curiosidade. Na campanha de 2002, quando Lula se elegeu pela primeira vez presidente, depois de outras três tentativas, havia um encantamento com sua presença vestida em ternos de grife nos salões de parte do PIB paulistano. Recebido pelo casal Eleonora (psicanalista) e Ivo Rosset (empresário, dono da Valisere, entre outras marcas), amigos de Marta Suplicy, Lula era uma espécie de operário que havia chegado ao paraíso. No poder, sua mulher, Marisa Letícia, logo fez plásticas, aplicou botox, mudou o figurino e adotou Wanderley Nunes, um dos cabeleireiros da moda. Muito antes, ainda em 1979, quando despontava como líder sindical nas greves do ABC paulista, Lula assim respondeu aos ataques por ter ido jantar no Gallery, a boate dos ricos e famosos da época, a convite da revista Manchete: “Eu quero que todo operário ganhe o suficiente para frequentar o Gallery”. Desde essa época ele já repetia que “pobre gosta de se vestir bem”.

Marina, a “seringueira, empregada doméstica e negra”, circula de outro modo nos salões paulistanos. Suas roupas são sóbrias, com detalhes étnicos, como a usada na entrevista do Jornal Nacional. Os adereços usam materiais naturais, como sementes da Amazônia, o batom é feito por ela mesmo, com suco de beterraba, já que tem alergia a produtos industrializados. O cabelo é um coque. Marina é vista como chique e moderna, dona de seu próprio estilo, em especial por um tipo de rico que vê na ostentação uma vulgaridade. Sua principal interlocutora nesse mundo é a socióloga Maria Alice Setúbal, mais conhecida como Neca Setúbal, acionista do Banco Itaú, mas também fundadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), uma das organizações mais respeitadas na área educacional. Se Lula era “pop”, Marina é “cool”. Vale a pena prestar atenção em como são decodificados aqueles que até há pouco tinham outro lugar nessa geografia para, de novo, não perder as nuances.

É preciso ter cautela com os fundamentalismos. Quem acusa Marina de ser “fundamentalista” está pasteurizando diferenças. Marina não é uma fundamentalista ambiental, como a acusam setores do agronegócio. Para uma parte do movimento socioambiental, o defeito de Marina é justamente ser menos radical do que os desafios do momento histórico exigem. O “desenvolvimento sustentável” que ela defende, para muita gente respeitável é apenas um conceito vazio, palatável para conversas bem comportadas, mas que oculta contradições profundas.

Marina tampouco é uma fundamentalista evangélica. Dizer isso é acreditar que Marco Feliciano, o deputado-pastor que barbarizou a comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, e Marina Silva são iguais. É confundir denominações religiosas que estão sob o mesmo guarda-chuva, mas que guardam diferenças bastante substantivas entre si. Compreender o Brasil evangélico, em toda a sua complexidade, é um desafio dessa época.

A quem interessa chamar Marina Silva de fundamentalista? A muitos, em especial a lideranças ruralistas, no que se refere à discussão socioambiental, e aos religiosos de fato fundamentalistas, no que diz respeito a questões como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao fazê-lo, rebaixam o debate, na tática mais do que conhecida, e forçam mudanças que beneficiam seus interesses e fortalecem seu lugar de representantes de seus respectivos públicos.

Isso não significa que o eleitor deva deixar de prestar – grande – atenção ao fato de Marina Silva ter posição contrária às pesquisas com células-tronco embrionárias, já ter se declarado “pessoalmente não favorável” ao casamento gay, ter defendido na eleição de 2010 um plebiscito para o aborto e, principalmente, ter cometido na semana passada o ato lamentável, para dizer o mínimo, de voltar atrás no seu programa de governo, um dia depois de tê-lo lançado, no que se refere às políticas para a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

Com Marina Silva com chances de ganhar, o que se desenha para o Brasil é uma eleição muito mais desafiadora e complexa. É legítimo afirmar que seu discurso é “difuso”, assim como a “nova política” que diz encarnar pode ter ecos de um passado perigoso. Mas é preciso perceber que esta é a sua força nas urnas, não sua fraqueza. A tal “pauta difusa”, uma das fragilidades que setores da sociedade e da mídia viram nas manifestações de junho de 2013, mobilizou multidões. Marina atua nas redes sociais há muito e sabe escutá-las. Circula por elas desenvolta, enquanto outros as frequentam apenas em épocas eleitorais ou em momentos estratégicos, fazendo uma paródia digital das tradicionais visitas de políticos às favelas para as quais não voltam depois, tão à vontade em um e outro lugar quanto bagres num shopping.

“Amadora” e “aventureira” é como Marina têm sido chamada por seus opositores. “Improviso” é outra palavra escolhida para atacar seu discurso. Sem entrar nem em juízos de valor nem na adequação ou não desses termos à Marina Silva, vale a pena lembrar a quem os esgrime, na tentativa de provocar rejeição à candidata, que eles deixaram de ser ofensas há algum tempo, para se transformar em virtudes. A “indefinição”, outra palavra usada para atacá-la, parece ter sido até agora a opção de parte dos eleitores, para os quais a “definição” de outros candidatos é sentida como insuportável. Tudo indica que, de várias maneiras, este é um momento em que, para muitos, os pontos de interrogação soam como possibilidades – e o risco parece ter se tornado uma alternativa melhor do que certezas que preferem rejeitar.

O que isso significa? A chance de começar a desvendar os tantos sentidos dessa eleição fascinante é devolver a complexidade aos protagonistas. Compreender, por exemplo, qual Silva é Marina.

(Publicado no El País em 01/09/2014)

 

O mundo da gente morre antes da gente

A vida que conhecemos começa a desaparecer lentamente, num movimento silencioso que se infiltra nos dias, junto com aqueles que fizeram da nossa época o que ela é

 

A expressão mais perfeita que conheço para explicar a brutalidade do acaso em nossas vidas é ainda a de Joan Didion. Ela disse, em simplicidade exata: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan, jornalista e escritora americana, escreveu essa frase em seu livro O ano do pensamento mágico, no qual narra a morte repentina do marido e a sua busca para compreender o incompreensível. Nos últimos dias, Renata, a mulher de Eduardo Campos, repetiria aos amigos: “Não estava no script”.

Não poderia estar no script. Poucos homens planejaram a sua carreira política de forma tão meticulosa quanto Eduardo Campos. E então, ele toma café com a família, embarca num avião para dar sequência à sua primeira campanha presidencial, aquela que poderia levá-lo à presidência do Brasil não agora, mas em 2018, e morre. O gesto largo de uma vida interrompido num instante. Antes do final da manhã ele já não está. E os brasileiros de qualquer ideologia, ou sem nenhuma, são atravessados pela tragédia. A do homem perdido, em seu momento de máxima potência, mas também a de ser atingido pela força do incontrolável. Penso que cada um de nós, ou pelo menos a maioria, sentiu a lufada de vento entre as costelas, aquela que está sempre ali, mas fingimos que não existe.

De fato, a morte – repentina ou penosa, como nas doenças prolongadas, precoce ou tardia – é, como sabemos, a única certeza do nosso script. Um dia, simplesmente, já não se está. Como na cena do documentário de João Moreira Salles em que Santiago, o mordomo que dá título ao filme, cita o cineasta Ingmar Bergman: “Somos mortos insepultos, apodrecendo debaixo de um céu cruento e vazio”.

Se fizéssemos um retrato agora, de todos os vivos, teríamos também um obituário: daqui a 100 anos estaremos todos mortos. Olhamos pela janela e todos os que vimos em seu esforço cotidiano, carregando-se para o ponto de ônibus, sintonizando a rádio preferida ao sentar-se no carro, puxando assunto na padaria ou desferindo seu ódio e seu medo em pequenas brutalidades serão finados (palavra de tanto simbolismo), em menor ou maior prazo. Assim como finado será aquele que espia a única paisagem que não muda numa vida humana, a de que, para o indivíduo, o futuro está morto.

A verdade, que talvez nem todos percebam, é que se morre aos poucos. Não apenas pela frase clássica de que começamos a morrer ao nascer. De que cada dia seguinte arrasta o cadáver do dia anterior. De que cada amanhã é um dia a mais – mas porque é um dia a menos. Ao entrevistar os que envelheceram, descubro-os surpreendidos pelo drama menos nítido, aquele se infiltra lentamente nos interstícios dos dias: o de que o mundo da gente morre antes da gente.

Esse é o susto de quem alcançou a promessa da nossa época, a de uma vida longa. A de morrer só, mesmo quando cercado por filhos e netos. Só, porque aqueles que sabiam dele, aqueles que compartilharam o mesmo tempo, morreram antes. Aqueles que conheceram o menino, o levaram embora ao partir. Os que o viram jovem carregaram a sua juventude em lembranças que desapareceram porque já não há quem delas possa lembrar. Só, porque um certo modo de estar no mundo acabou antes. A solidão de estar vivo numa vida que já morreu.

Pouco antes de lançar O ano do pensamento mágico, Joan Didion perdeu a única filha. Depois do marido, a filha. Era a dor não nomeável da inversão da lógica, a de sepultar aquela que deveria sepultá-la. Mas era algo ainda além, o de se tornar a mulher que restou. Seu livro seguinte, Noites Azuis, fala dessa condição, a de ter sobrado viva ao envelhecer. A de se descobrir só e frágil, atenta aos degraus para não cair. Para mim, é um livro melhor do que o primeiro, mas diz de algo ainda mais duro do que a perda do companheiro de uma vida. Talvez tenha feito menos sucesso por falar dessa dor insuportável, em que viver mais do que os seus afetos é ter de viver a morte que ultrapassa a morte.

Pensava que essa era uma condição restrita à velhice. A surpresa final de que o melhor cenário, o de viver mais, era também o de perder mais. Mas descobri que esse morrer começa muito antes. E de forma ainda mais insidiosa. Esses meses de 2014 têm nos mostrado isso com uma força talvez maior. É uma coincidência, claro, não uma confluência escrita nas estrelas ou em qualquer profecia. O mundo da gente, em especial das gentes com mais de 40 anos, porque é nessa altura que sentimos que já temos um passado e o futuro é uma segunda metade incerta, tem morrido muito. E rápido, às vezes um sobressalto por dia, às vezes dois.

Cada um tem seu susto. Acho que o meu foi com Nico Nicolaiewsky, que levava junto com ele momentos em que fui completamente feliz – e são tão raras as vezes em que somos completamente felizes – assistindo a Tangos &Tragédias no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Morreu cinco dias depois de Eduardo Coutinho e Philip Seymour Hoffman, dois gigantes. Cada um com sua tragédia, abriram um buraco na paisagem do mundo. Depois, José Wilker um dia não acordou. E não haveria Vadinho para me assombrar.

Não parou mais. De repente o mundo já não tinha mais Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart, Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plinio de Arruda Sampaio, Lauren Bacall. No espaço de seis dias de julho, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna desapareceram. Rubem Alves, que desfazia anos nos aniversários e dizia que “a hora para comer morangos é sempre agora”. De repente o mundo já não tinha Vange Leonel. Como é possível? Eu a tinha lido no Twitter um instante atrás. E Nicolau Sevcenko se foi horas depois de Eduardo Campos.

Nenhuma dessas pessoas convivia comigo, eu não frequentava a casa de nenhuma. A maioria delas nunca sequer vi. De fato, o que delas vive em mim independe de sua existência física. Algumas são apenas flashes de um cotidiano em que por décadas elas apareceram, seja em novelas, na narrativa de um jogo de futebol, num debate político. Outras, me constituem. Seus livros e músicas não têm idade, nos filmes ainda são jovens e belas. Concretamente, deveria fazer tão pouca diferença estarem ou não aqui, na miudeza dos dias, numa rotina que de qualquer modo não faria parte da minha, quanto Sófocles, que morreu mais de dois mil e quatrocentos anos atrás, ou Shakespeare ou Beethoven ou Picasso. Ou Machado de Assis. Ou mesmo Garrincha. Estes, que conseguiram transcender sua vida ao proporcionar transcendência pela grandeza de sua obra, para as sucessivas gerações, ao infinito, são imortais. É um fato, todo mundo sabe, mas descubro que não é bem assim.

Qual é a diferença de Gabriel García Márquez estar vivo ou morto, se a chance de eu tomar um café com ele era remota e sempre vou ter meu O amor nos tempos do cólera na estante, para que ele possa reviver em mim? O que percebo é que há uma diferença. Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.

Suspeito que, naquele momento-limite em que a vida se extingue, a permanência da obra faça pouca diferença. Talvez o imortal que morre trocasse toda a sua imortalidade por dividir uma última vez uma garrafa de vinho com o melhor amigo ou por mais uma noite de amor lambuzado com a mulher que ama ou apenas para ler o jornal na mesa da cozinha no café da manhã. Talvez o imortal fique mortal demais nessa hora, fique parecido demais com todos os outros. Como disse Woody Allen: “Não quero atingir a imortalidade através de minha obra. Quero atingi-la não morrendo”. E desde então temo me confrontar com seu obituário numa manchete na internet.

De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente. Não apenas pela perda dos nossos afetos de perto, mas também pelo filme que Philip Seymour Hoffman não fará ou pelo livro que Ariano Suassuna não escreverá enquanto dividimos com ele o mesmo tempo histórico. Ou simplesmente por nenhum deles poder dizer mais nada de comezinho ou mesmo fazer alguma besteira, qualquer coisa de humano. Deles ficaremos só com o que foi grande, mesmo a bobagem terá de ser relevante para merecer permanecer na biografia. Ao mesmo tempo em que a morte os devolve de imediato à condição humana, os tira para sempre dela. E logo o boteco de João Ubaldo já não terá cheiro.

A primeira vez que senti a infiltração de algo irreversível no meu mundo foi a morte de Marlon Brando, dez anos atrás. A morte ainda não me bafejava como hoje, mas passei alguns dias prostrada por alguém que para mim já tinha nascido imortal. Percebi então que fazia diferença lembrar dele berrando “Steeeeeeeela” em Um bonde chamado desejo e, ao mesmo tempo, poder mencionar qualquer coisa boba como: “Nossa, como ele está gordo agora”. De repente, ele não podia mais engordar nem nos espantar com sua existência descuidada. Só restaria grandioso. E, portanto, fora da vida. (Da nossa vida.)

Marlon Brando, como García Márquez, como Ariano Suassuna, como tantos agora, não se sabiam meus, mas eram. Ao me deixarem, morro um pouco. Uma versão de nós morre sempre que morre alguém que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único. Uma parte de nós também morre quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é. E agora, fico esperando a cada momento uma nova notícia, porque sei que elas não mais deixarão de chegar.

Tive uma reação estranha ao saber da morte de Robin Williams. Quantos anos ele tinha?, perguntei primeiro. Sessenta e três. E me senti apunhalada com a resposta. Muito cedo, muito cedo. De que morreu? Parece que foi suicídio. E me senti de imediato aliviada. Pode parecer surpreendente, mas meu alívio se deu porque de que alguma maneira era uma escolha. Não era coração, não era câncer, não era AVC, não era avião. Por mais terrível que seja o ato de interromper a vida, ele pressupõe, em alguma medida, uma potência e um controle.

Pode-se argumentar que uma depressão ou um desespero impede a escolha, mas acho que essa não é toda a verdade. Nossas escolhas nunca são consumadas em condições ideais nem nosso arbítrio é totalmente livre. Só conseguimos fazer escolhas determinadas pelas circunstâncias do que vivemos e do que somos naquele momento. Por mais que nos surpreenda a escuridão do homem que nos deu tanta alegria, de algum modo ele elegeu a hora de morrer. O que para muitos foi razão para aumentar a dor pela sua morte, porque ela poderia ter sido evitada, para mim foi alívio por ele não ter sua vida interrompida à revelia. De algum modo, me soaria mais insuportável se Robin Williams tivesse morrido tão cedo por um infarto ou um acidente.

Acredito mais na interpretação do jornalista americano Lee Siegel, quando ele diz que “talvez tenha sido a empatia que o matou – e não seu desespero com o diagnóstico recente de Parkinson”. A capacidade de Robin Williams para vestir a pele do outro, de todos os outros, levada por ele a patamares quase insuperáveis. “Sua necessidade passional de se transformar em todos que ele encontrava, qualquer que fosse sua origem étnica ou social – como se com isso pudesse vencer sua solitária e irreversível finitude humana.” Há algum tempo o lento morrer do seu mundo o assombrava, segundo os mais próximos Robin parecia incapaz de superar o desaparecimento do amigo e do homem que o inspirou, o comediante Jonathan Winters, que se foi em abril.

Seus fãs, as pessoas cuja vida a sua vida tornou melhor, deixaram flores nos lugares em que viveram seus personagens. Um banco de praça em que gravou cenas de O Gênio Indomável, com Matt Damon. A casa em que foi Ms. Doubtfire, a babá. Era ali que ele morria para nunca morrer. Era ali que ele jamais deixaria de estar. Não há lugar para a morte. Como haveria lugar para a morte? Mas é preciso dar um lugar à morte para que a vida possa continuar. É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora. A vida é também carregar os mortos no último lugar em que podem viver, em nossas memórias. E aos poucos nos tornamos um cemitério cada vez mais habitado por aqueles que só vivem em nós.

A morte de Robin Williams, Gabriel García Márquez, Ariano Suassuna e de tantos levou um pouco de mim. Minha morte levará um pouco deles e de tantos, como a lembrança das lágrimas que chorei ao ver Sociedade dos poetas mortos ou a imagem de Aureliano Buendía que só eu tinha ou a minha pedra do reino. Morro um pouco com cada um deles porque vivi um pouco com cada um deles.

É essa a morte silenciosa que vai se alastrando pelos dias. Conto meus imortais ainda vivos, os de longe e os de perto. Digo seus nomes, como se os invocando. Peço que não se apressem, que não me deixem só, que não me deixem sem saber de mim. O acaso, a vida que muda num instante, me assusta tanto quanto esse meu mundo que morre devagar. É essa a brisa quase imperceptível que adivinho soprando nos meus ossos. Muitas vezes finjo que não a escuto. Mas ela continua ali, intermitente, sussurrando para eu não esquecer de viver.

(Publicado no El País em 18/08/2014)

 

Limites da linguagem

Uma história em que faltam cada vez mais palavras

 

A entrevista estava marcada na casa dele, numa das favelas mais pobres de Fortaleza. Era o dia do jogo do Brasil contra o México, e o menino com nome de poeta fazia parte de uma seleção que jogou a Copa do Mundo dos Meninos de Rua. De manhã bem cedo, eu e o fotógrafo esperávamos, na porta de uma ONG ainda fechada, o educador que nos levaria até aquele emaranhado de endereços desencontrados, um território dividido por duas quadrilhas rivais do tráfico de drogas. O menino apareceu de repente, vestido com uma camiseta do Brasil. Sem olhar para mim, ele disse: “Na minha casa, não.” Não dizia o porquê. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa explícita. Ele era pequeno para os seus 15 anos, mas o seu “não” era enorme.

A porta da ONG abriu, e ele entrou. Sentou-se na cadeira da recepção e tentou ligar o computador. Me agachei ao lado dele e arrisquei algumas perguntas. Ele só me atirava monossílabos. Passou-se muito tempo, talvez quase uma hora de silêncios entre nós, interrompidos por uma ou outra palavra que servia ao menino apenas como demarcação do território. O território que ele não queria que eu alcançasse, as palavras curtas marcando que não haveria palavras longas. Eu não sabia se tinha o direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Mas ele também não ia embora. Ficamos os dois, eu tentando entrar, ele se esforçando para que eu não entrasse, o que era uma forma de conexão, já que nos mantinha ambos ali.

Então a cozinha da ONG abriu. E, de um salto, ele já estava lá. Como se eu fosse um vira-lata esquecido, me chamou com displicência. Mas continuava sem me olhar. Sentei-me diante dele e o vi devorar um pão em menos de um minuto. No segundo pão, ele me enxergou pela primeira vez. Me ofereceu um pedaço. A certa altura, parecendo com pena de mim, disse:

– Você entende só um pouco de português, né?

O menino tinha razão. Eu não falava o português dele, como conto na reportagem que escrevi. Não alcançava a riqueza da sua língua portuguesa, que dava conta de um Brasil diverso, com palavras nascidas ali mesmo. Expressões gestadas na necessidade de dar conta de uma realidade na qual era necessário, por exemplo, nomear o momento-limite em que o gatilho da arma é acionado, mas a bala não sai.

Mas era mais do que isso. Eu demorei a lê-lo. Eu era analfabeta dele. O seu “não” da altura de um edifício, a postura do seu corpo, entre acuada e pronta para saltar no meu pescoço, o seu medo de mim, que às vezes beirava a raiva, era fome. Algumas vezes me deparei com essa fome, a fome que é um substantivo sem adjetivo possível. E em todas elas foi difícil para mim reconhecê-la, porque esse alfabeto, irredutível e irrepresentável, me é inacessível.

O menino me leu muito antes de eu a ele. Percebeu que eu era estrangeira ao seu Brasil. Estranhou a cor da minha pele, a tonalidade do meu cabelo, a forma e o som das minhas palavras. Estranhou que eu precisasse de tradução para algumas de suas frases. Estranhou porque havia que estranhar.

Contei essa história, na versão resumida de um parágrafo, em minha participação na FLIP (Festa Literária de Paraty), na semana passada. Penso que quem escreve está sempre nessa condição de estrangeiro. Não turista, jamais turista. Mas estrangeiro, aquele que estranha e que é estranhado, movimento duplo que nos torna capazes de escutar um outro ser-estar na linguagem – e também fora da linguagem. Ser capaz de estranhar para não cometer a traição de encaixotar o outro num escaninho seguro onde ele é reduzido a uma daquelas borboletas mortas presas por um alfinete.

A literatura é a experiência da alteridade, que só se completa na incompletude refletida no olhar do outro. Por isso demanda o movimento de abertura para o desconhecido, mesmo que o sentimento seja incômodo ou mesmo perturbador. Mesmo que não se possa nomear o contato com as palavras disponíveis, mesmo que seja preciso escutar no tempo do outro.

Depois que o menino com nome de poeta me dá um lugar, o de estrangeira, ele de súbito me aperta num abraço. Ele me acolhe com minhas faltas, ele completa com explicações as ausências que ainda tenho de sua língua portuguesa, na qual sou uma ouvinte aprendiz. Ele me reconhece como uma pessoa. A condição estrangeira que encontramos num e noutro nos torna, paradoxalmente, sem fronteiras. Como pessoas, transitamos entre um e outro. É por isso que nossos corpos podem se tocar para muito além da carne.

O menino então me leva à sua casa. Há nela um velho móvel-geladeira, o único lugar para guardar comida. Ele hesita em me mostrar. Ainda não sabe se pode abrir mais essa fechadura. Mas ele abre, porque eu insisto. (E não deveria ter insistido, porque não tinha esse direito.) Eu enfio a cabeça dentro da boca do móvel-geladeira e vejo. Eu faço o que costumo fazer quando enxergo mais do que deveria: baixo os olhos e garrancho anotações no meu bloquinho. Ele diz: “não”. Não conte. Eu não conto. E, porque não conto, não posso esquecer.

Às vezes acontece assim. Há pessoas que continuo lendo e lendo e lendo porque escrevi sobre elas e as palavras continuam faltando. E quanto mais escrevo, mais as palavras faltam. É uma vertigem, quase uma alucinação, em que as palavras avançam e o texto aumenta, mas o espaço em branco é maior, sempre maior. Por escrito, o menino com nome de poeta é assim.

Eu me equilibrava sobre as pedras de Paraty nos últimos dias, entre escritores e leitores, e o menino era o livro para sempre incompleto que carregava comigo. Há livros que não podem ser terminados, e isso é brutal. A vida avança no tempo, e com ela as páginas que jamais serão concluídas, as páginas que denunciam nossa impotência, vão ficando mais numerosas. De todas as páginas em branco que carrego comigo as da fome talvez sejam as piores. Porque só tenho uma palavra, fome, e ela tão pouco diz. E me faltam todas os substantivos que alimentam.

Num desses dias abri um livro de Octavio Paz. A epígrafe é um texto do poeta espanhol Antonio Machado. Evoca a resistência do “outro” diante das tentativas de torná-lo o “mesmo”.

“O outro não existe: essa é a fé racional, a crença incurável da razão humana. Identidade=realidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse que ser, absoluta e necessariamente um e sempre o mesmo. Mas o outro não se deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer no qual a razão humana perde os dentes”.

Um livro é como o móvel-geladeira do menino com nome de Poeta que me tratou como Pessoa. Se abrir, o risco é seu. E é para sempre.

(Publicado no El País em 04/08/2014)

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