Vagão rosa, para não ser encoxada

O que faz das mulheres ainda hoje uma ameaça tão grande que, mesmo quando vítimas, são julgadas culpadas?

 

Alô, mulheres. Se pegarem trem ou metrô em São Paulo, prestem atenção às orientações do sistema de som: “Se você estiver com vontade de ser violentada, ou ao menos receber uns apertões na bunda e nos peitos, siga para o vagão comum. Se estiver cansada, introspectiva, teve um dia difícil, está com TPM, vá para o rosa e viaje tranquila”. Uma excelente semana a todas.

Poderia ser uma piada ou um filme de horror futurista. Mas é sério e não é ficção distópica. Na prática, essa é a mensagem do projeto de lei aprovado em 4 de julho pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. De autoria do deputado Jorge Caruso (PMDB), ele cria um vagão exclusivo para mulheres no metrô e nos trens. Algo similar já existe no Rio de Janeiro. A lei poderá ser vetada ou sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, nos próximos dias. Na sexta-feira (18), feministas reuniram-se no centro da capital paulista para um ato em protesto contra a criação do “vagão rosa”.

Não é muito, mas muito estranho mesmo?

Estamos em 2014, há uma mulher na presidência do Brasil. Mas acredita-se necessário criar um vagão só para mulheres nos trens de transporte público da cidade mais cosmopolita do país. Por quê? Porque, se ficarem misturadas aos homens, as mulheres serão encoxadas, apalpadas, abusadas e até estupradas. E é verdade, tudo isso acontece. Tanto que um grupo feminista fez recentemente uma campanha distribuindo alfinetes para as moças enfiarem nos abusadores do metrô.

É bizarro. Diante de uma mulher, num espaço apertado, atulhado de gente, alguns homens sentem-se autorizados a abusar dela. Isso diz de cada indivíduo e, claro, diz também dessa sociedade. Seria importante escutar esses homens para entender qual é a questão de cada um com seu próprio pênis. Talvez vivam um sentimento de impotência avassaladora, para muito além da ereção que conseguem ou não ter. Mas é só uma hipótese para tantas que só podem ser compreendidas na história de cada um.

Mais bizarro do que o ato individual, porém, é o ato público. Mais perigosa é a “solução” que o poder público, nesse caso o parlamento paulista, deu para a violência. Comete-se violência sexual contra as mulheres nos trens, segrega-se as vítimas. Seguindo essa lógica, em breve poderia se propor que, nas ruas e espaços coletivos, as mulheres passassem a usar burca. Assim, os homens não seriam “tentados” a cometer crimes sexuais.

Se o “vagão rosa” (o apelido já é duro de aguentar!) vingar, é um retrocesso muito maior do que pode parecer a um primeiro olhar distraído. É alarmante que os protestos não sejam mais numerosos e barulhentos, dada a seriedade do que está em jogo. Em nome das supostas boas intenções de “proteger as mulheres”, o que se faz, de fato, é reforçar duas ideias do senso comum, interligadas, que persistem há séculos e estão na base da violência sexual.

A primeira delas é que a culpada é a vítima. Seja porque usou “roupas sensuais”, seja porque “se expôs” a uma situação potencialmente perigosa. Nesse caso, apenas por existir. Por ser mulher, precisa ser colocada num “vagão especial”. Sua condição, em si, despertaria sentimentos incontroláveis em alguns homens. Então, nada de ficar perto desses espécimes ou eles não poderão resistir e cometerão a violência. Como se esses homens não fossem responsáveis pelos seus atos, como se fossem incapazes de se controlar, como se fossem animais, eliminando a cultura da equação e deixando restar uma ideia tacanha de natureza.

No conceito do “vagão rosa” as mulheres são colocadas na posição de objetos de desejo ou objetos de posse. E os homens são vistos como vítimas do próprio desejo, sem a necessidade de se responsabilizar por ele. Acho curioso que homens não façam protestos contra o “vagão rosa”: a ideia nele embutida sobre o que é ser um homem é ofensiva ao extremo.

Se o “vagão rosa” virar lei, o próximo passo será: se uma mulher não quis ocupar o vagão especial e foi sexualmente abusada no comum, conclui-se o de sempre: “Ela pediu. Se não quisesse ser encoxada, apalpada, estuprada teria entrado no vagão dela”.

A outra ideia fincada no imaginário de homens (e também de mulheres) é mais interessante. As mulheres é que são a ameaça. (E não aqueles que abusam de seus corpos e de suas almas.) Confina-se, cobre-se, esconde-se aquilo que nos envergonha e aquilo que nos coloca em perigo. Quando se propõe – e se aprova – um vagão especial para as mulheres, o que se está fazendo, de fato, é isolar o elemento desestabilizador. Colocar em ambiente controlado quem teria o poder de revelar, expor algo que deve continuar oculto. O segredo, nesse caso, está naquele que esconde – e não naquela que é escondida.

O “vagão rosa” é mais uma tentativa de sujeitar os corpos femininos, ao determinar que só podem ser “transportados” em sistema de segregação. Uma prova de que, ainda hoje, a imagem social das mulheres difere pouco da visão medieval em que eram compreendidas como “más e impuras”. Não custa lembrar do recente linchamento de uma mulher como “bruxa”, no mesmo estado de São Paulo. (Escrevi sobre isso aqui).

O que há de tão ameaçador nas mulheres?

A buceta, ainda ela. O desembargador Francisco Batista de Abreu, da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ajuda a explicar. Em acórdão publicado no final de junho, ele expõe uma linha de raciocínio fascinante ao justificar por que o valor de 100 mil reais de indenização, determinado pela justiça de primeira instância, deveria ser reduzido para 5 mil reais, como de fato aconteceu no julgamento em segundo grau. O caso refere-se ao que tem sido chamado de “vingança pornô”.

Um homem e uma mulher namoraram, em cidades diferentes, por cerca de um ano. Depois do término da relação, ainda conversavam e trocavam imagens íntimas pela internet. Na descrição do desembargador, as dela eram “ginecológicas”. O ex-namorado, seguindo o roteiro bocejante dos imbecis, quebrou a confiança estabelecida entre eles e tornou público o que era privado. As imagens, que eram consensuais, foram expostas de forma não consensual. Um ato sujeito à punição legal, portanto.

O desembargador Abreu concluiu, porém, que esta seria uma oportunidade para fazer um julgamento moral da vítima, expondo a profundidade do seu entendimento sobre como uma mulher deve lidar com sua vagina e com seu corpo. Depois da divulgação do caso, o processo foi colocado em “segredo de justiça”, limitando o acesso aos autos. Mas o segredo de quem, àquela altura, deveria ser protegido? Da mulher, do homem ou do desembargador?

A seguir, alguns trechos do voto do desembargador Francisco Batista de Abreu publicados na imprensa:

“Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida. Irrelevantes para avaliação moral as ofertas modernas, virtuais, de exibição do corpo nu. A exposição do nu em frente a uma webcam é o mesmo que estar em público.”

“As fotos em momento algum foram sensuais. As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam. Fotos sensuais são aquelas que provocam a imaginação de como são as formas femininas. Em avaliação menos amarga, mais branda podem ser eróticas. São poses que não se tiram fotos. (…) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro. Não para um ex-namorado por um curto período de um ano. Não para ex-namorado de um namoro de ano. Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério.”

É possível desenvolver uma tese de doutorado na área de psicanálise e direito a partir do voto do desembargador mineiro. Mas, atendo-se a apenas um ponto de seu raciocínio, percebe-se o que é assustador para o magistrado: “As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam (…) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro”.

Para o desembargador, a vagina não é sensual. O que é sensual, segundo ele, não agride nem assusta. É coerente depreender dessa afirmação que a imagem da vagina não só agride o magistrado, como também o assusta. Assim, só pode ser exibida “no escuro”, de forma que não possa ser vista. E para um namorado “verdadeiro”.

Quando o voto se tornou público, lamentou-se em alguns espaços da internet a escuridão em que vive o desembargador Abreu. E até a suposta indigência de sua vida sexual. Mas não se trata de julgá-lo. Como indivíduo, seu Abreu pode até ter medo da vagina. Pode achá-la feia e assustadora. Pode preferir só vê-la no escuro ou não vê-la nunca. É possível ter compaixão por seu Abreu, mas ninguém tem o direito de julgar como seu Abreu se relaciona com a sexualidade do outro e com a sua própria. Isso diz respeito só a ele.

O problema é com o desembargador Abreu, servidor público, investido da Lei. Com a sua pretensão de determinar, como verdade única e universal, registrada nos autos, o que é sensual, o que é erótico, o que é amor “verdadeiro” e quando, como e onde uma vagina pode ser exibida. Assim como determinar que uma mulher que mostra a sua vagina não tem autoestima. O problema é que, ao assim manifestar-se, o desembargador Abreu está representando a Justiça. Seu ato tem efeito direto sobre a vida da vítima – e também sobre as vidas na sociedade brasileira.

A tal “vingança pornô”, em que imagens feitas em âmbito privado são divulgadas contra a vontade de quem é retratado, num ato de quebra de confiança, já levou ao suicídio adolescentes brasileiras que não suportaram o julgamento moral da família, amigos e sociedade. Ao manifestar-se nesses termos, o desembargador está reeditando, para um fenômeno contemporâneo, ligado às novas tecnologias, o velho “ela pediu”. E isso é inadmissível.

O relator do caso, desembargador José Marcos Rodrigues Vieira, defendeu reduzir o valor da indenização dos 100 mil reais determinados em primeira instância para 75 mil reais. Afirmou em seu voto: “Isentar o réu de responsabilidades pelo ato da autora significaria, neste contexto, punir a vítima”. Seu colega, o desembargador Abreu, porém, preferiu julgar a “moral” da vítima, acompanhado pelo terceiro desembargador, Otávio de Abreu Portes. Ao final, determinou-se que 5 mil reais seria um valor suficiente. É possível concluir que, simbolicamente, essa já não é mais uma indenização, mas um pagamento.

O “doutor” enxergaria a vítima como uma “puta”. No sentido de que a prostituta, na sociedade brasileira – e esta é outra enorme violência – é vista como aquela que não tem direito nem ao próprio corpo, nem à Lei. Isso ficou de novo muito claro em junho, quando o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo inocentou um fazendeiro preso em flagrante ao estuprar uma menina de 13 anos. A justificativa: ela seria prostituta, o que teria levado o criminoso a errar sobre a sua idade. Em resumo: com prostituta se pode tudo. O que as coloca fora do corpo e fora da Lei, de várias e complexas maneiras, com consequências sempre aterradoras.

Como afirmam organizações de prostitutas, infelizmente muito pouco escutadas, não existe prostituição envolvendo menores de idade. Com crianças e adolescentes só existe estupro e abuso sexual. Mas esse não foi o entendimento dos desembargadores paulistas. Assim como, ao reduzir em 95 mil reais a indenização devida à mulher que teve imagens do seu corpo divulgadas contra a sua vontade, o que o tribunal mineiro fez foi: não mais determinar ao réu uma indenização pelo dano causado, mas dar um valor à mulher.

É o que se compreende da justificativa contida no voto, em especial nesse ponto: “Mas, de qualquer forma, e apesar de tudo isso, essas fotos talvez não fossem para divulgação. A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima”. À vítima, que foi quem passou a ser julgada e enquadrada como alguém que não se dá valor, é concedido um valor aviltantemente mais baixo do que aquele determinado em primeira instância como indenização pelo ato do réu.

Mas qual é o valor de uma mulher? Como diz Renata Corrêa, em um texto bonito no Biscate Social Club:

“Por essa e por outras que para uma vida livre todas as mocinhas, garotas, meninas, mulheres, cidadãs do mundo não deveriam valer nada. Eu particularmente não valho um centavinho furado. Ninguém pode me medir, me pesar, me trocar ou me comprar: não tenho preço, código de barras, cifrão ou vírgula. Quem tem o direito de dar preço para minha alma? E pro meu corpinho? Nobody, baby. Não valho nada. Não me atribuo valor algum. Não tô a venda: tô vivendo sem conta, sem mercantilismo amoroso, fraterno ou sexual. E também não tô comprando. Mas isso é outra história”.

De volta ao “vagão rosa”, que leva as mulheres a uma viagem sem movimento algum, na qual estão estacionadas no mesmo lugar, para que não exista deslocamento nem nada se altere. O “vagão rosa”, destinado ao transporte das mulheres para que não sejam encoxadas, bolinadas ou até estupradas, é o mesmo lugar simbólico destinado à vagina em visões como a do desembargador mineiro. O corpo feminino, a vagina como sua máxima potência, deve ser oculto. Se for exposto, está subentendido que as mulheres assumirão o risco – e a responsabilidade – de serem violadas, de terem seus corpos (e suas almas) destruídos.

Resta se perguntar que vagão é esse, o que exatamente ele transporta de um lado a outro e qual é o seu destino.

(Publicado no El País em 21/07/2014)

Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”

Os xingamentos ao colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a abolição da escravatura jamais foi completada

 

O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas. Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades. Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num colombiano a expressão racista.

Não deveria acontecer, mas aconteceu. E aconteceu no dia em que os capitães dos times que disputaram uma vaga para a semifinal leram um manifesto da campanha contra o racismo: “Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça, orientação sexual, origem ou religião. Através do poder do futebol, podemos ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar nesta luta”. Depois do hino, brasileiros e colombianos posaram para fotógrafos e cinegrafistas com uma faixa: “Say no to racism” (“Diga não ao racismo”).

E então a jogada bruta do campo expôs a brutalidade infinitamente maior fora do campo, aquela que trespassa a sociedade brasileira há séculos – e atravessa o futebol que encantou o mundo. O futebol é fascinante também porque, ao mesmo tempo em que suspende as tensões ao criar sua própria linguagem, as revela pela mesma razão. De repente, a “Copa das Copas” expôs o Brasil dos linchamentos, o Brasil que botou a polícia militar para barrar a entrada de jovens das periferias nos shoppings na virada do ano, o Brasil em que um adolescente negro foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.

Não tenho instrumentos para medir o alcance dessa reação racista. Torço para que seja minoritária. Mas é significativo que se destaque nos sistemas de busca. A palavra que se escolhe para agredir alguém não é casual, ela sempre diz muito mais de seu autor do que daquele que ele pretende ofender.

A certa altura, na noite após o jogo, pessoas no Twitter começaram a postar: “Por favor, não coloquem as palavras ‘Zúñiga’ e ‘preto’ no buscador. É pelo bem de vocês”. Ao escrever as duas palavras, aparecia o pior. Em uma foto postada no Instagram do jogador, sua filha pequena escreve na areia: “Papi te amo”. A menina e sua mãe são ofendidas, até de estupro se fala, como costuma acontecer com as mulheres.

Esses torcedores parecem esquecer dos tantos negros da seleção brasileira, assim como do maior de todos eles, Pelé. Ou mesmo de Neymar, já que, se a questão é de “cor”, o herói abatido está longe de ser branco. Parecem esquecer de olhar para si mesmos. Para eles, possivelmente, seja difícil ver. Ver e reconhecer-se.

Quem chama Zúñiga de “macaco” nas redes sociais demonstra uma enorme ignorância, em todos os sentidos do que é ignorância – e também sobre o futebol do Brasil. Em seu belíssimo livro, “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil” (Companhia das Letras), José Miguel Wisnik recorda que, ainda nos anos 30 do século 20, Gilberto Freyre dizia que o modo brasileiro de jogar convertia o “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, incorporando à sua técnica “o pé ágil mas delicado” do capoeira e do dançarino de samba. Freyre disse também que o futebol europeu, reto e anguloso, ganhou, no Brasil, contornos sinuosos e curvilíneos que arredondam e adoçam o jogo. Era a celebração da mestiçagem do país que ganhava – talvez – sua melhor expressão na linguagem dos pés.

O futebol começou no Brasil com os brancos, em clubes de elite. Sobrava aos negros as bolas de meia ou de qualquer material que se arredondasse, nos campinhos e nas ruas, nas margens. E foram nestas sobras que se agigantaram, subverteram o futebol dos ingleses, criaram uma poética. Demoraram a ser primeiro recebidos pelas portas dos fundos, depois tolerados e por fim aceitos e aclamados. Mas a tensão persiste apesar das décadas. Expressa-se como um corte no momento em que, seja na arquibancada ou na arena de vale-tudo das redes sociais, um jogador negro é chamado de “macaco”.

Então, por um rasgo no tempo, lembramos que o racismo ainda é uma marca terrível, escavando abismos na sociedade brasileira. Abismos que também se desvelam na brancura da torcida dentro dos estádios da Copa, contrastando com os negros que recolhem as latinhas na parte externa, restos de uma festa em que sobram nas margens. Ou limitam-se a assistir ao desfile da elite de seu país pelos portões das “arenas”, reafirmando o seu lugar no lado de fora.

É cheia de drama e de vergonhas a entrada dos negros nos clubes de futebol do Brasil. Alguns, como o grande Friedenreich, o mulato com sobrenome alemão, esticava o cabelo, usava gorros. Esbarrou sempre no preconceito da elite, preocupada com a imagem do país no exterior, empreendendo grandes esforços para esconder os negros do futebol brasileiro. Em 1920, quando a seleção visitou Buenos Aires, um jornal local provocou o elenco brasileiro chamando os jogadores de “macaquitos”. É possível, mas não há certeza, que esta tenha sido a primeira vez que a palavra foi usada para expressar a discriminação racial no campo do futebol brasileiro.

Outro que demonstrava a força dessa violência era o mulato Carlos Alberto, ao encher a cara de pó-de-arroz. “Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção”, descreve o cronista Mario Filho. “O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz. Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto: ‘Pó de arroz! Pó de arroz!’”.

Depois que os negros passaram a jogar nos clubes, pela razão irremovível de que eram melhores, tinham espaço no campo, mas não na vida construída ao redor do futebol, como os saraus dançantes das casas finas. A certa altura, os negros eram chamados na crônica esportiva de “colored”, porque “preto” era um palavrão. A palavra inglesa buscava escamotear o que ainda envergonhava os brancos chiques: depender de negros para colecionar vitórias.

Toda essa saga de resistência, invenção e talento está lindamente contada no livro seminal de Mario Filho, “O negro no futebol brasileiro” (Mauad X), que todos os brasileiros deveriam ler, assim como qualquer pessoa que se interesse pelo país ou pelo futebol ou por ambos. Quando Leônidas da Silva, o famoso Diamante Negro, e Domingos da Guia se tornaram fenômenos de popularidade, carregavam com eles toda uma história brutal e fascinante que, ainda hoje, está longe de acabar. E que ficaria marcada depois no “Maracanazo”, o suposto trauma que ainda persistiria no Brasil atual, por ter perdido a Copa para o Uruguai, em 1950. Jogadores negros e especialmente Barbosa, o goleiro, foram escolhidos como culpados pela derrota, numa vitória que foi comemorada antes do jogo. Pagaram uma enormidade por algo que avançava muito além deles e do Maracanã. Com a vida para sempre assinalada, Barbosa apontado na feira, na praia, na rua como aquele que “tinha feito o Brasil chorar”.

O futebol festejado nesta Copa do Mundo de 2014 no Brasil é este, em grande parte moldado por negros que “roubaram” a bola e subverteram a narrativa. É também por este futebol que parte do país suspira, ansioso para tê-lo de volta. O futebol da ginga e do encantamento que também nos fez quem somos – mas sem saber hoje se ainda somos. Para Mario Filho, Pelé completou a obra da Princesa Isabel, (que assinou a abolição da escravatura). Mas a cada dia a realidade insiste em reeditar a certeza de que a abolição no Brasil jamais foi completada.

É o que acontece quando Zúñiga é chamado de “macaco” ou de “preto safado” por torcedores brasileiros porque entrou forte em Neymar, numa partida toda ela forte. Aqui, aparece ainda mais ignorância, sobre uma outra narrativa brutal, a do futebol na Colômbia. Essa geração, a de James Rodríguez, Cuadrado e Zúñiga, assinala uma travessia em curso no seu país, ainda com imensas fraturas. O presidente recém reeleito, Juan Manuel Santos, que estava no Castelão para assistir ao jogo, ganhou apertado com a bandeira de continuar negociando com as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A geração anterior de futebolistas entrava em campo sob os gritos das torcidas, que os chamavam de “narcotraficantes”.

James, Cuadrado e mesmo Zúñiga encarnam uma possibilidade, um novo, na simbologia em construção de uma Colômbia que tenta fazer do futuro um presente. Quando ignorantes pedem a morte de Zúñiga – ou “a ele o mesmo destino de Escobar” – estão incitando um crime. Há 20 anos Andrés Escobar foi assassinado em Medellín dias depois de ter feito um gol contra na Copa do Mundo nos Estados Unidos. Vomitar a ignorância, também de um processo histórico, clamando pela morte de Zúñiga nas redes sociais – esta sim, uma maldade explícita – é uma covardia monumental.

Talvez não saibam o que fazem, mas deveriam saber. Está na hora de a “pátria de chuteiras” entender mais de futebol.

(Publicado no El País em 07/07/2014)

Dilma, a vaia e o feminino

As brasileiras poderiam passar sem as manipulações rasteiras sobre o que é ser uma mulher (também na presidência)

 

Eu estava no estádio do Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo, e ouvi as vaias e a torcida xingando: “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. Não posso afirmar onde as vaias começaram, essa me parece uma certeza muito difícil de garantir num estádio de futebol. Concordo, em parte, com os que alegam que estádios são lugares de palavrões, basta lembrar das mães dos juízes. Mas também discordo, em parte, porque o público da Copa é totalmente diverso do torcedor típico, aquele que vai ver o seu time jogar como uma rotina tão presente na vida quanto trabalhar e namorar. Na Copa, o público é outro, leva para dentro das “arenas” outra expectativa e outra relação com o futebol. Mandar uma pessoa tomar no cu, qualquer pessoa e não só a presidente, é não só grosseiro, como violento. O Brasil é uma sociedade violenta, para muito além da tipificada no Código Penal. Essa violência atravessa o cotidiano. Dito isso, há algo que me incomoda nas narrativas construídas nesse episódio e que valeria a pena prestar mais atenção: a manipulação dos femininos.

Logo depois das vaias, surgiu a interpretação de que Dilma só foi xingada nesses termos porque é mulher. É uma hipótese possível, basta lembrar, de novo, que são as mães dos juízes as ofendidas. Basta lembrar das repórteres beijadas ou agarradas enquanto cobrem a Copa, assim como da eleição das gostosas de sempre. O Brasil (e não só o Brasil) é machista e por vezes misógino, há poucas dúvidas sobre isso. Mas não é possível afirmar que Lula, Fernando Henrique Cardoso ou outro presidente não seria xingado se estivesse ocupando o lugar de Dilma na abertura desta Copa. Alega-se que Lula foi vaiado várias vezes na abertura do Pan-Americano, em 2007, mas xingado nenhuma. Existe, porém, o Brasil de antes de junho de 2013 e existe o Brasil depois de junho de 2013. Naquele momento, algo se rompeu e passou a vazar desde então. Assim, afirmar que um presidente homem dificilmente seria xingado, hoje, nesse mesmo contexto e conjuntura, é temerário. Não sabemos. E é preciso ter respeito pelo que não sabemos.

Temos a primeira mulher na presidência. E, desde a campanha de 2010, versões do feminino têm sido manipuladas conforme a conveniência. Agora não é diferente. Assim que o xingamento foi consumado, de imediato instalou-se a disputa sobre interpretações que repercutirão nas eleições bem próximas. Para o candidato Eduardo Campos (PSB), num clichê pobre, “na vida a gente colhe o que a gente planta”. O candidato Aécio Neves (PSDB) apressou-se a tirar proveito, afirmando que Dilma estaria “sitiada”: “O que fica para a história é que temos uma Copa do Mundo em que o chefe de Estado não se vê em condições de se apresentar à população”. O PT virou o jogo e conseguiu vencer a disputa narrativa, com a ajuda de parte do movimento feminista. Dilma agora é a vítima da elite mal-educada – e há sempre um lugar de vítima reservado para as mulheres.

Mas será que isso é bom para as brasileiras?

Acho particularmente irritante o argumento do “não se pode dizer isso a uma mulher” ou “não se trata uma mulher assim”. Se é grosseiro xingar – e é –, é grosseiro com qualquer pessoa, independentemente de sexo e gênero. Culmina com Lula dando uma rosa branca à Dilma. Claro, porque as mulheres devem ser tratadas com rosas. Profundo bocejo. Acho complicado quando Dilma afirma: “Não vou me deixar atemorizar por xingamentos que não podem ser sequer escutados pelas crianças e pelas famílias”. Há uma lista de violências cotidianas sofridas pelas crianças no Brasil, inclusive nos últimos 12 anos, e ouvir alguém mandando outro tomar no cu é desnecessário, mas não é uma delas. A visão de família parafusada nessa frase está mais para “marcha da família” do que para as variações contemporâneas de família que têm enriquecido a vida brasileira. Dilma ainda disse: “O povo brasileiro é civilizado e extremamente generoso e educado”. Se Dilma governasse o país acreditando no que disse, seria preocupante. A elite brasileira é violenta, o povo também é violento. Basta andar nas ruas do país para constatar a “civilidade”. A sociedade brasileira é violenta de cima abaixo, com raízes históricas e omissões contemporâneas bem conhecidas, a começar pela desigualdade de renda e pela péssima educação pública, que condena milhões a uma vida estreita de possibilidades.

O risco dessa disputa rasteira, com olhos na eleição logo ali, é que se deixa de pensar seriamente sobre os sentidos do que é o Brasil hoje. E até mesmo sobre os significados das vaias e xingamentos. Tudo é reduzido a slogans publicitários, chapinhando propositalmente em poças d’água. Como a visão do feminino manipulada pela primeira campanha de Dilma. Nela, se lembrarmos, Dilma foi apresentada como “a mãe do PAC”. Ao dizer quais eram as vantagens de uma mulher na presidência, ela enumerou: “Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger”. O próprio Lula afirmou que a palavra não era “governar, mas cuidar”. E Dilma acrescentava: “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”.

Ao aceitar essa estratégia de marketing, que possivelmente representa muito mais a visão de Lula do que a sua, Dilma reduziu os sentidos dos muitos femininos possíveis ao clichê mais tacanho. Sem contar o lugar de “filho” – e não o de cidadão autônomo, com direitos e deveres – reservado ao povo. Dilma foi eleita. Ao governar, irritava-se porque a acusavam de truculência no trato com subordinados e interlocutores. Disse, mais de uma vez, que, se fosse um homem na presidência, ninguém estranharia seu estilo ou cobraria meiguice. Ao mesmo tempo, sempre que alguém tratava a presidente com mais dureza, Lula era o primeiro a protestar pela “falta de gentileza com uma mulher”.

Em um governante, assim como num candidato, seja ele homem ou mulher, pouco importa. O que é preciso avaliar é o que faz. E fez. No que diz respeito às mulheres, assim como a questões de sexualidade e de gênero, Dilma recuou. Recuou na questão do aborto, para obter o voto religioso. Recuou ao cancelar a distribuição do kit anti-homofobia nas escolas. Recuou ao tirar do ar uma campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis porque uma prostituta dizia que era feliz. Dilma recuou várias outras vezes, recuou demais.

Não gosto de xingamentos contra qualquer pessoa. Gosto de rosas. Mas, destas, que confinam as mulheres a uma verdade única e tosca, é melhor manter distância.

(Publicado no El País em 23/06/2014)

A não vítima

Um golpe na Internet reflete tanto o crime da sociedade contra as mulheres que envelhecem quanto a natureza complexa do amor

 

Primeiro, o golpe.

Um homem se apresenta no Facebook dela, psicanalista e escritora. Ele mora nos Estados Unidos, mas é irlandês com mãe brasileira. É viúvo, tem dois filhos, um adotado, já adulto, de 25 anos, e uma adolescente de 13. Trabalha com geologia e faz negócios com petróleo. Tem 60 anos, sente-se sozinho, faz seis anos que se tornou viúvo e busca um amor para dividir a vida. Por inspiração da mãe, começou a buscar perfis de brasileiras no Facebook. Chegou até ela, explica, pelo sorriso da foto. Eles conversam em inglês. O inglês dele é melhor do que o dela, ele a corrige com carinho, a ensina. O inglês dela melhora a cada dia. Tornam-se presentes um para o outro, apesar da distância. Pelo Facebook e, cada vez mais, pelo viber. Ele acompanha o dia dela, ela acompanha o dele. Ele quer saber o que tem para o jantar, como foi o dia de trabalho, como ela dormiu, qual é a crocância do pão no café da manhã, o que a deixa triste ou feliz, do que ela tem medo. Ela, viúva também, com mais de 60 anos, filhos adultos com suas próprias famílias, descobre que se sentia só antes dele. Que, apesar de gostar do seu trabalho, de conviver com vários bons amigos, de ter uma vida rica de sentidos, faltava algo da ordem do essencial. Antes dele, ela tinha aceitado com demasiada facilidade que o amor e o sexo estavam encerrados para ela. Antes dele, tinha sido obediente demais ao sujeitar-se ao padrão social que impõe o envelhecimento da mulher como o fim do desejo – ou como a impossibilidade de despertar paixão. Percebe que lhe faz falta compartilhar o que chama de “o comum da vida”. E agora, a cada noite, ela diz: “Me acolhe nos seus braços”. E ele a acolhe. Ela dorme entre braços imaginários, mas tão reais. E a cada manhã, ele divide com ela o pão com manteiga, o croissant, a geleia de pêssego. Divide também as dúvidas, os sonhos dele de se aposentar em breve para viver outro tipo de vida, o passeio ao zoológico que ele faz com a filha, as demandas da bela casa em que ele vive e que ela já conhece por fotos. Conversas comezinhas, conversas tão importantes. Em determinado momento, ele faz um comentário picante. Gostaria de vê-la preparando o jantar de calcinha. Ela dá uma resposta seca. Ele recua, nunca mais faz nenhuma alusão. É um homem sensível, às vezes é possessivo, ela gosta. É como se ele a conhecesse por dentro, como se a tivesse conhecido desde sempre, porque a compreende. Mas não é um galã. As fotos que ele envia para ela, muitas, são fotos de gente comum, nem tão bem enquadradas, nem tão bem focadas, sempre posadas, como são as fotos de gente comum. Ele é um homem da sua idade, sem barriga tanquinho, sem músculos jovens, com as marcas do tempo, os cabelos brancos, entradas que anunciam a calvície. Como ela, que é bela, mas carrega todas as suas marcas. Ela surpreende-se consigo mesma. Não imaginava apaixonar-se por alguém tão “real” assim. Alguém que envelhece como um homem comum, sem nenhuma excepcionalidade, exceto a de estar presente, de compreendê-la tão bem, de querer estar com ela. E ele quer. Pergunta se ela estaria disposta a mudar-se para os Estados Unidos para tentar uma vida com ele, se seria capaz de ajudá-lo a terminar de criar a filha adolescente. Como ele poderia adivinhar que ela sempre quisera uma filha, mãe de meninos que era? Ela busca algo físico nele, encontra as mãos. Acha as mãos dele lindas, fortes. Mãos de homem. Quer as mãos dele sobre o corpo dela. Agora é mais sério. Ele virá ao Brasil só para vê-la, para descobrirem se o romance virtual realiza-se no concreto dos dias, se a pele responde ao toque, se é possível sonhar com uma vida juntos sem a mediação da tecnologia. Ela conversa com a filha dele pelo telefone. A menina diz: “Eu amo você porque você ama o meu pai”. Ela vai para Paris visitar um dos próprios filhos, e ele já conversa com a sua nora pelo celular. O filho dela está preocupado, questiona, duvida, aponta as incongruências da história. Ela não quer escutar. Cobre os buracos do roteiro com seu desejo de continuar vivendo um romance. Pesquisa hotéis no Brasil, peregrina com as amigas por lojas de lingerie. Ela sabe que a pele já não tem a elasticidade da juventude, que os músculos são flácidos, mas sente-se linda. Abre o provador mal coberta por rendas, sem pudor – onde foi parar o pudor? Pergunta: “Como eu estou?”. Ela sabe como está. Linda. Emagrece quase 10 quilos, já não sai na rua de qualquer jeito, sente-se desejada quando passa. As pessoas já não acreditam que ela esteja na fila certa quando se posta junto aos idosos no banco. Ela está ansiosa. Muito. Antes de vir ao Brasil, porém, ele fará uma viagem rápida à Nigéria, junto com o filho. Vão tratar de negócios de petróleo. Em seguida, virá vê-la. Ela prepara-se para a chegada dele. Imagina várias vezes por dia o momento em que ele emergirá da sala de desembarque do aeroporto. Se ele vai dar um sorriso quando a enxergar. Se arrancará sua calcinha, acertará o fecho do sutiã. Imagina o sexo. Não lembra quando foi tão feliz, tão inteira. No dia da viagem para a Nigéria, ele manda fotos dele de terno, roupas de viagem, uma pasta elegante de trabalho. Envia fotos de vários momentos, ela o acompanha quase em tempo real.

De repente, ele passa horas em silêncio. Ela preocupa-se, pede notícias. Quando ele finalmente responde, está arrasado. Foram assaltados no país africano. Os ladrões levaram cartões de crédito, dinheiro, documentos, tudo. O filho reagiu e está em coma num hospital. Ao final da mensagem, ele pergunta se ela poderia lhe emprestar dinheiro. Só 775 dólares para pagar o hospital e o transporte até o aeroporto. Ela então desconfia. Por que ele não procura a embaixada americana, por que não conversa com seus parceiros de negócios? Ela começa a achar a história mirabolante demais. Ele já tem o nome e uma conta de alguém que o ajuda, explica como ela pode fazer uma remessa de dinheiro do Brasil. Ela percebe que o tom dele mudou. Titubeia. Ele a pressiona, ela não gosta. Quanto mais ele pressiona, mais ela recua. A filha dele manda uma mensagem pedindo notícias do pai, preocupada com a falta de informações. Ela fica ainda mais desconfiada. Não dará o dinheiro, mesmo que isso signifique perdê-lo. O romance acaba. Ao voltar aos Estados Unidos, ele ainda diz para ela. Sua primeira crueldade explícita: “Você não respondeu para a minha filha. Você não tem condições de ser mãe”. Logo depois, o perfil dele desaparece do Facebook.

Ela faz o que poderia ter feito muito antes. Se quisesse. Se realmente quisesse. Pesquisa as fraudes do gênero na Internet. Descobre os blogs e sites brasileiros e internacionais sobre as quadrilhas que atuam no golpe cada vez mais comum. Vê supostas fotos dos criminosos. Vários homens amontoados num cubículo com seus lap tops no colo conversando com mulheres como ela. Mulheres como ela significando mulheres mais velhas e sozinhas, mulheres carentes e por isso mais frágeis, mais dispostas a acreditar no inacreditável. Mulheres já desacostumadas a serem desejadas. Enviando a elas fotos de outros homens, que possivelmente não saibam que são usados para seduzir. Imagens capturadas nas redes sociais, podem ser de qualquer um. Um golpe bem planejado, a vítima em potencial é contatada só depois de uma pesquisa na Internet. Inclusive de suas condições para manter um romance em inglês, o que no Brasil é um indício de pertencer pelo menos à classe média e, portanto, ter algum dinheiro guardado ou acesso à crédito. Para cada uma delas um perfil de homem, em imagens e história de vida, uma proposta que já sabem esperada por aquela mulher tão meticulosamente analisada. Para cada mulher uma abordagem, uma forma de se comportar, um rosto e uma personalidade correspondentes às fantasias dela, um enredo adequado àquela que expõe – pode ser mais ou menos, mas expõe – um pouco de si a cada dia nas redes sociais.

Ao seu redor, amigos e familiares não acreditam como ela, uma mulher tão inteligente, tão vivida, tão bem sucedida, tão conectada ao mundo, pode ter caído num golpe. Um golpe assim era para outras, não para alguém com seu perfil. Ela lê depoimentos de mulheres como ela que foram muito além dela, mulheres que perderam milhares de dólares que haviam economizado ou mulheres que se endividaram para manter o roteiro amoroso vivo. Lê entrevistas com supostos criminosos que contam como o esquema funciona. Naquela noite vê fotos dos quadrilheiros, que assume como reais – podem não ser, como as do amante não eram, mas ela acredita que sejam. Se antes acreditou no romance, agora acredita na fraude. Fica mal. Bem mal.

É a sua noite de vítima. “Eu os identifiquei com ratos. Parecia que ratos andavam sobre o meu corpo. Eu expus tanto a minha intimidade, e era para aqueles homens das fotos na Internet ou outros como eles. Um ao lado do outro, sentados no chão, falando com mulheres como eu. Me expus não com fotos da minha nudez, porque não faria isso, mas de forma muito mais profunda do que isso. Passei a noite encolhida, com os ratos sobre o meu corpo.”

É o segundo capítulo da vítima. A enorme vergonha de ter caído numa história como essa, que agora para todos aparece claramente como uma fraude desde sempre. E o discurso que corre por baixo, o discurso social. Nem sempre pronunciado, mas presente: “Então você achou que, aos 50, aos 60, um homem iria se apaixonar perdidamente por você?”. Agora é oficial, você não só é uma vítima, mais pobre e mais endividada depois do golpe, mas “uma mulher velha e burra”. E como espernear contra esse encaixotamento imposto às mulheres, depois de ter se entregado a um homem que jamais existiu? Depois de estar se sentindo uma “mulher velha e burra”? De intuir que se sentirá uma “mulher velha e burra” para sempre? É a aniquilação final.

Não necessariamente, porém. Pode ser. Ou não.

Essa é a parte mais interessante. Quando nos encontramos, ela queria denunciar o golpe sem se identificar. O desejo que me anuncia é o de que outras mulheres sejam alertadas para a fraude. É um desejo comum, eu o escutei muitas vezes. Há as vítimas que se calam por vergonha (ou por medo, no caso das que são violadas e espancadas). Essas ficam presas no lugar de vítima, precisam de ajuda para romper com o silêncio de algum modo e sair do lugar que as condena à imobilidade. Ou permanecem para sempre como estátuas aprisionadas num gesto que estanca a vida. Mesmo quando o ato que as vitima cessa, elas continuam vítimas, porque não conseguem dar sentido ao vivido e se inventar de outro jeito. Acreditam que só sabem ser vítimas, que vítima é tudo o que são. Agarram-se a essa identidade como se fosse a própria pele porque, por mais incômoda que seja, estão lidando com o conhecido.

E há aquelas que rompem com o lugar da vítima denunciando, seja à polícia, seja a outras mulheres, à imprensa, ao mundo inteiro. Criam um blog ou uma ONG, algumas passam a perseguidoras de seus algozes, outras ajudam mulheres que passam por experiências semelhantes a sair da paralisia. Essas deslocam sua posição no jogo. De certo modo, continuam identificadas com o vivido, que determina suas escolhas dali em diante, mas pelo avesso e de forma ativa. A pele de vítima já não as veste.

Conversamos por duas horas e meia. Conheço o seu nome e o seu trabalho, mas é nosso primeiro encontro ao vivo. Ao escutá-la, percebo que ela teve o seu momento de vítima, a noite dos ratos. Era necessário que assim se reconhecesse, porque foi efetivamente enganada. Era um fato. E não se nega os fatos. Mas, em seguida, é necessário dar sentido a eles. Sem isso, o lugar de vítima se cristaliza. Em vez de uma mulher complexa, com suas perdas e seus anseios, haverá apenas um arremedo dessa mulher, o da vítima que jamais supera sua condição. Sem criar sentidos que permitam seguir adiante, seria preciso acreditar na versão de quem tentou extorqui-la, a de que é uma “mulher velha e burra” que acredita em qualquer coisa, inclusive que pode ser amada e sexualmente desejada, apesar de não ser jovem nem ter um corpo de passarela.

Aceitar essa versão como a única verdadeira tem roubado algo muito mais importante do que dinheiro das mulheres que caem nessa fraude. Aceitar essa versão é cimentar o olhar social que permite que fraudes como essa aconteçam. É deixar-se enquadrar numa cultura que oprime as mulheres com o mito contemporâneo da eterna juventude. É acatar a ideia de que marcas e beleza não são compatíveis, de que desejo, paixão e sexo são prerrogativas limitadas pela idade.

Ela, não. Ela desfere um contragolpe.

Já não estou diante de uma vítima. Pergunto a ela: “Se você soubesse o que sabe agora, que esse romance é uma fraude, preferia não tê-lo vivido?”. Ela não hesita: “Preferia ter vivido tudo o que vivi. E ter parado exatamente onde parei. Ele me deu muito”.

Não é uma ilusão. Por paradoxal que pareça, ela ganhou muito. Enquanto viveu o romance, ele era real. O homem, que hoje sabemos que não existe, era real. Essa realidade a resgatou, dia a dia, de uma vida menos viva. “Eu precisava do olhar do outro. De um homem que não corresse quando eu dissesse a minha idade, que me lembrasse de que sou desejável, que me lembrasse principalmente de que quero compartilhar não o extraordinário, mas o comum da vida. Quero ter alguém comigo dividindo o café da manhã, compartilhando as experiências do cotidiano e também arrancando a minha calcinha. Estou aberta para isso e antes não estava. Ele me devolveu algo que estava anestesiado em mim. Às vezes era tão forte essa percepção que sentia como se tivesse voltado a ovular. De certo modo voltei, não biologicamente, mas de uma maneira mais profunda. Antes eu me sentia só um corpo mais flácido do que na juventude, um rosto marcado pela idade. O olhar dele foi o espelho onde eu pude me enxergar muito além disso, pude me enxergar como uma mulher, na inteireza do que é ser uma mulher. Ele não existe? Talvez seja um coletivo de pessoas conversando comigo para me extorquir depois? Mais um golpe sórdido? Não importa. Porque esse olhar sobre mim mesma ninguém pode me tirar, esse olhar agora é meu. Seja lá quem for, me despertou, me ajudou a resgatar a minha integridade como mulher, como pessoa, o muito mais que eu sou para além de um corpo que envelhece. Nesse sentido, sou muito grata.”

Para ela, talvez o conselho a outras mulheres seja: “Caia no golpe, acredite, mas não pague”. Mesmo os 700 dólares, que seria só o início da extorsão, seria um preço baixo a pagar pelo que recebeu, caso tudo se resumisse a uma troca de mercado. É uma brincadeira, claro. Para que ela possa manter a realidade do que viveu, mesmo depois de saber que se tratava de uma fraude, era preciso que fosse real em algum momento. O amor que viveu, mesmo depois de comprovado o golpe, é real no que nela produziu de realidade. Sob esse olhar, o maior lesado foi o golpista, que não viveu nem o amor, nem recebeu o dinheiro.

Se o golpe só funciona porque a sociedade ocidental determinou que mulheres deixam de ser desejáveis ao envelhecer, a maior perda seria não financeira, mas acreditar nessa construção social como uma verdade totalizante. Talvez essa seja a fraude maior, aquela que arranca dessas mulheres, dia após dia, algo muito mais caro do que dinheiro. Arranca-lhes uma dimensão da vida. Para esse crime não há polícia, não há quadrilha, não há materialidade. Para esse crime só existe a resistência, a não capitulação de cada uma.

Para esse crime há o que ela fez: o contragolpe. Ela mostra as fotos do homem que para ela agora é um ex-namorado, de uma história de amor que deu certo por algum tempo e acabou por razões bastante heterodoxas. Ela ainda está se despedindo dele, por isso as fotos continuam no celular. “Olha essas mãos, olha esse peito”, comenta. Eu não vejo nada que despertaria meu desejo, aquele homem não diz nada para mim. De certo modo, não é assim o amor? Uma verdade apenas para aquele que o vive, que vê no objeto do amor o que ninguém mais vê? O outro não é, em certa medida, uma construção, uma realidade particular daquele que ama, como mostra Ela, o brilhante filme de Spike Jonze?

Ela me parece bem. E uma mulher tão bonita.

Entre as mudanças que o romance produziu nela, está a de se descobrir capaz de se apaixonar por um homem possível. Não um padrão de beleza, não um cara mais jovem, um homem da sua idade, com sua bagagem particular de derrotas, perdas, desejos e sonhos. Passado, mas também presente. De novo o paradoxo: o homem que era uma fantasia a ensinou a acolher o homem real.

A cada vez que ela sai de casa, agora, arruma-se pensando que pode encontrar esse companheiro possível. Sem esquecer, jamais, que amar é um risco. Não só o da fraude, que ela acabou de viver, mas um risco ainda maior, que é o de não ser uma fraude. O de se arriscar ao outro, a ser alcançada por um outro. Um risco fascinante, que agora ela voltou a achar que vale a pena.

Quando nos despedimos, ela se preparava para pegar um avião para passar o dia com um velho amigo, um com o qual sabe que não viverá uma história cotidiana, mas que poderia abraçá-la naquele momento. Enquanto aquele, que ela ainda não conhece, estava atrasado para o café da manhã, depois de tanta expectativa ela achava que poderia ser bom ter um homem que simplesmente lhe arrancasse a calcinha. Ele havia lhe dito: “Venha, os ipês floresceram”.

Há alguns dias, recebi uma mensagem dela: “Os ipês, exatamente, não vi… Mas voltei florescida”.

 

(Publicado no El País em 09/06/2014)

É possível morrer depois da internet?

Com sua festejada “vitória” sobre o Google, o espanhol Mario Costeja tornou-se um personagem trágico do mundo contemporâneo

 

O espanhol Mario Costeja encarnou o paradoxo dessa época ao conquistar o “direito ao esquecimento” e, por isso, ser mais lembrado do que nunca. Nascido em São Paulo, no Brasil, país onde viveu até os nove anos, o advogado reclamava que, ao digitar seu nome no Google, encontrava em destaque um texto que manchava sua reputação. Era uma página do jornal La Vanguardia, publicada em 1998, que relacionava seu nome ao leilão de uma propriedade por dívidas com o governo. Ele pediu que os links para a matéria fossem removidos, mas tanto o jornal quanto o Google recusaram o pedido. Em 13 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que buscadores como o Google deverão permitir que pessoas sejam “esquecidas” quando informações já superadas do seu passado forem consideradas lesivas ou sem relevância. O “esquecimento” seria consumado pela supressão de links na internet, exceto em situações nas quais existam razões específicas para serem mantidos, como o papel assumido na vida pública por aquele que reivindica o apagamento ou interesse público que se sobreponha ao interesse individual. A decisão só vale para a Europa. Mas abre um precedente, talvez perigoso, e uma discussão fascinante. Temos o direito de ser esquecidos? E, ainda que chegássemos a conclusão de que temos, como chegou o tribunal europeu, é possível ser esquecido?

Mario Costeja, 56 anos, possivelmente irá descobrir que não. Ele teve uma vitória inédita – não sobre qualquer um, mas sobre um gigante, o Google. Mas, ao ter garantido seu direito de ser esquecido, nunca foi tão lembrado, especialmente no Google. Desde a decisão do tribunal, quando seu nome é digitado no buscador o número de citações é muitas vezes maior. Por várias páginas há matérias na imprensa de diferentes partes do mundo sobre a sua vitória. O que ele queria que fosse esquecido é lembrado em todas elas, já que é a razão pela qual buscou a Justiça. Se antes esse episódio podia, eventualmente, ser recordado por um público interessado, ao acessar o Google, agora jamais será esquecido por um número muito maior e mais variado de pessoas, ao entrar para a história do direito digital, um campo em acirrada disputa.

Mesmo eu, uma brasileira que nunca tinha ouvido falar de Mario Costeja, muito menos de suas supostas dívidas em 1998, estou aqui a escrever mais uma página que será somada à lista do Google. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Costeja afirmou que estaria falando pela última vez com a imprensa: “Nunca pensei que podiam existir tantos meios de comunicação no mundo, me chamam de lugares cuja existência quase desconhecia. E recebo convites de TVs de todos os tipos. Mas desejo voltar à minha vida e ao anonimato”. Um desejo ingênuo, talvez, para alguns um golpe de marketing. Costeja será para sempre lembrado por conquistar o direito a ser esquecido.

Há várias implicações nessa decisão do tribunal europeu. Sem contar o debate complexo que tem oposto os direitos à informação e à liberdade de expressão ao direito à privacidade. Mas há uma, subjacente, que me interessa mais: a construção da memória depois da internet. Ou, sendo mais específica, não apenas se é possível ser esquecido, mas um pouco mais: é possível morrer?

Me parece que Mario Costeja queria não ser esquecido, mas controlar a narrativa da sua vida. Ele queria editá-la, cortando as partes que considerava vexatórias e mantendo as mais edificantes. Para ele, não bastava superar pessoalmente um mau momento, era preciso que ninguém soubesse que o tinha vivido. Costeja não está sozinho nesse desejo. Muitos fazem isso todos os dias na internet, esse campo em que cabe tudo, ao escolher o que postar no Facebook, no Twitter, em outras redes sociais, em blogs e sites pessoais, em forma de texto, vídeo, fotos e áudio. Só publicamos aquilo que acreditamos fazer bem para a nossa imagem – e, em última instância, para a nossa memória em construção.

Sabemos que as páginas individuais não são o que somos, mas o que queremos parecer que somos – o que também revela o que somos para além do que queremos mostrar. Nelas temos a possibilidade concreta de apagar, como uma ferramenta disponível, o que estimula uma ilusão de controle que a internet tornou ainda maior. Não se apaga, porém, o que de nós foi reproduzido ou guardado por um outro em seu próprio espaço ou num espaço coletivo, o que uma vez é publicado está para sempre além de nosso controle e de nossas senhas e de nosso limitado poder. Ainda que se apague dos lugares mais visíveis, restará um traço, um rastro, a ação que não pode ser revertida porque já consumada. Se o indivíduo dela não fizer uma marca com a qual possa viver, terá de enfrentá-la como um fantasma sempre pronto a assombrá-lo.

Como na internet tudo é rápido, instantâneo, imediato e, principalmente, “fácil”, há tanto a ilusão de controle como a tentação de controle. Nem me refiro ao embate político na construção da narrativa dos fatos pelos grupos interessados – na construção da história que, de certa forma, só pode existir como interpretação. Concentro-me na narrativa do indivíduo, de cada um de nós, sobre sua própria vida. O que se “esquece”, com muita frequência, é da permanência que a internet ampliou como nunca antes, ao mesmo tempo que se “esquece” da impermanência de nosso ser e estar no mundo. Esquece-se da constante descoberta de que, talvez daqui a alguns anos, podemos não querer mais ser aqueles que fomos – ou do nosso desejo de sermos outros na nossa constante recriação dos sentidos ao longo de uma existência. Temos tomado o instante como um tempo absoluto, sem perceber talvez que o corpo fluido da internet permite algo mais duradouro do que uma gravação em pedra: uma na nuvem.

Mario Costeja queria eliminar uma página de jornal, missão muito mais complicada. E impossível, apesar – e também por causa – de sua estrondosa e inédita vitória em tribunal tão importante. Nesse desejo ele expressa a ilusão contemporânea, que compartilha com todos nós, de poder apagar as marcas de uma vida para o olhar do outro – ou controlar como o outro nos vê. Enorme ilusão, na medida em que as marcas podem ser ressignificadas, mas jamais apagadas. Señor Costeja, a quem só uns poucos e os de perto talvez conheçam de fato, é um personagem trágico do nosso tempo.

Ainda mais trágico pela euforia demonstrada nas entrevistas à imprensa. “Lutar contra o Google é como ir contra Deus”, disse em 2013 ao EL PAÍS, com alguma razão. Senõr Costeja acredita agora ter vencido “Deus”, mas talvez descubra que a onipotência humana é uma batalha muito maior – e desde sempre perdida. Em algum momento, usando um termo psicanalítico, nos descobrimos “castrados”. E é melhor que assim seja.

Ainda assim, é importante perceber que, de forma enviesada, ele conseguiu substituir no topo da lista do Google a matéria específica que tanto o perturbava. Interferiu e produziu uma nova narrativa sobre si mesmo. Uma em que o “perdedor” de 1998 tornou-se o “vitorioso” de 2014. Não é pouco. Mas talvez ele descubra que as versões sobre sua vida estarão para sempre além do seu controle. É no embate narrativo, travado na esfera pública, mas também no interior dos conflitos privados ao longo de uma existência, que a memória de cada um é construída. Nesse movimento de constante criação e recriação de sentidos para o vivido, aquele que é só pode ser duvidando do que é.

É fascinante que nós, aqueles que lutam cotidianamente nos espaços da internet para “existir”, para “ser lembrados” e constantemente reassegurados de seu valor no mundo – “curtidos”, “retuitados”, “seguidos”, “compartilhados” –, numa eternidade que se absolutiza no instante, comecemos a desejar o esquecimento. De certo modo, é preciso ser “esquecido” para poder ser “lembrado” de outras maneiras. É preciso talvez esquecer-se de si por um momento para poder se inventar de um outro jeito, movimento constante e inerente a uma vida que se pretende viva.

O mundo pós-internet nos impõe uma dificuldade muito maior nessa tarefa de reinvenção de si. O excesso de registros que, em grande parte, nós mesmos produzimos, torna mais difícil deixar lembranças para trás, jogá-las na lixeira ou confiná-las numa caixa que podemos escolher quando abrir ou jamais voltar a abrir. Não é possível nem desejável negar o vivido, nem mesmo e especialmente em grandes tragédias, mas é preciso poder transformar aquilo que sangra em marca para poder seguir adiante. E agora que sangramos para sempre num lugar sem tempo, talvez seja mais difícil.

Lembro uma reportagem que li ainda nos anos 90. A internet não era uma realidade para a maioria, o que tornava uma fuga e um desaparecimento algo com mais chances de dar certo do que hoje, quando somos fotografados, filmados e registrados na rua, dentro dos prédios, em toda parte. A partir de uma lista de desaparecidos – aquelas pessoas que vão comprar cigarro na esquina e nunca mais voltam –, o jornalista tentou localizar esses personagens para descobrir o que tinha acontecido com cada um. Descobriu que, numa parte significativa dos casos, pelo menos de sua amostragem, os que desapareceram queriam desaparecer. Realizaram uma fantasia, que passa pela cabeça de muitos, de renascer em outras bases, ser um outro numa outra vida, sem ter de responder pela existência anterior. Tinham mulher ou marido, filhos, pai ou mãe doente, dívidas, prestações intermináveis da casa própria, um trabalho menos emocionante do que gostariam. Queriam se livrar de um passado que determinava o presente e assombrava o futuro.

O problema, como descobriu o jornalista, é que não é possível deixar as marcas para trás. Muito menos a si mesmo. O problema, talvez, é que nos carregamos em nossa fuga, com tudo o que somos, incluindo nossas cicatrizes e nossas neuroses. Na tentativa de desaparecer de uma vida para reaparecer em outra, que soava mais atraente e adequada a suas grandes expectativas, esses fugitivos fracassaram. A reportagem mostrava que aqueles que tentaram se reinventar na literalidade de uma fuga, morrendo para o mundo que os conhecia para renascer no desconhecido, supostamente sem passado e sem dívidas simbólicas e reais, acabavam por criar uma vida muito semelhante àquela que deixaram. O repórter os encontrou presos a uma existência em quase tudo igual à anterior. E já sem a ilusão de que haveria uma fuga possível. Ainda não tinham compreendido que, se quisessem viver várias vidas numa só, era preciso enfrentar a tarefa trabalhosa, constante e jamais terminada de criar e recriar sentidos para o seu estar no mundo.

Com a internet, como talvez descobrirá Mario Costeja, apagar o passado tornou-se uma ilusão ainda maior. Sites de busca como o Google hierarquizam nossas marcas por caminhos que nos são estranhos e a importância de nossos atos e dizeres se dá pelo que aparece em primeiro lugar, como tanto apavorou Costeja. Alguns de nós, que, como a maioria, sempre quis viver “para sempre”, viver para além da vida, começa a se preocupar em morrer para o mundo, ainda em vida. Mas, depois da internet, é possível morrer?

Esta é a pergunta que move uma peça de teatro muito original, concebida pelos libaneses Rabih Mroué e Lina Saneh. Assisti a “33 rpm and a few seconds” (33 rpm e alguns segundos) no Pen World Voices Festival deste ano, em Nova York, evento literário criado pelo escritor Salman Rushdie (que recentemente andou pelo Brasil), do qual participei como autora convidada. Não há previsão de o espetáculo ser exibido no Brasil, o que é uma pena. Os autores, Rabih e Lina, conseguiram realizar algo de enorme impacto sobre a plateia, sem colocar um único ator no palco, o que também é muito revelador dessa época em que encenamos nossa vida como realidade – e seguidamente acreditamos que realidade é.

No palco, não há nenhuma pessoa. Só objetos. Não há nenhuma pessoa porque a pessoa que havia naquele escritório dentro de uma casa acabou de se suicidar. Somos informados de que o morto que habitava aquele lugar, Diyaa Yamout, era um jovem ativista de direitos humanos que filmou a sua morte. Mas somos informados pelos objetos que continuam se movendo – “vivendo” e o mantendo vivo – depois de sua extinção física. A TV continua ligada, assim como o aparelho de som e o de fax. A tela do computador projeta a repercussão de sua morte no Facebook. Uma amiga (ou amante?) vai gravando recados na sua secretária eletrônica. Outra amiga (ou namorada?), que está viajando para encontrá-lo, deixa torpedos no seu celular. As narrativas sobre a sua vida e a sua morte vão sendo construídas, sobrepostas umas as outras, mas ele já não está. Ou está?

Nas redes sociais desenrola-se o que qualquer um que acompanha o Facebook ou o Twitter já está acostumado a testemunhar – e a participar. Ora o morto é um herói, ora um vilão. Ora é um covarde, ora um corajoso. Ora uma vítima, ora um algoz. Frases, ideais e intenções são atribuídos a ele por diferentes personagens. A partir dessas inferências se desenha um país que seria o Líbano, mas com clichês que costumam ser atribuídos ao Brasil e, imagino, também a outros países, como “república de bananas” ou “este país não tem jeito”. Logo há uma disputa nas redes sociais, violenta e ofensiva, pela memória do morto. Na tela, sentidos para sua morte e para sua vida são criados e recriados, em encarniçada contenda política, cultural e religiosa. Há os furiosos, há os líricos, há os que tentam transcender e os que tentam pacificar. Há uma enorme banalidade instantânea, previsível e repetitiva como só a banalidade pode ser.

Na tela da TV assistimos às costumeiras reportagens, sempre repetidas em casos como este. Entrevista-se os pais que choram, entrevista-se colegas e supostos amigos, ao final há sempre o “especialista”, na figura do psiquiatra ou psicanalista, que daria a interpretação final para o suicídio e para o legado do suicida. Conhecemos esse enredo, até o esperamos, como se não houvesse outra possibilidade, mais profunda e menos redutora, de olhar para uma vida – e para uma morte.

Enquanto isso, a mulher que tenta desesperadamente desembarcar no país do morto para encontrá-lo, sem saber que ele morreu, vai contando suas desventuras em lugar nenhum. Primeiro o avião tem problemas, depois as autoridades a retêm, são inúmeros os percalços e ela, uma palestina, encarna a própria terra ao nunca conseguir alcançar seu destino. Na busca por ele e por chão, ela permanecerá em trânsito. Nessa narrativa, ela radicaliza nossa condição de estrangeiros na própria vida, passageiros de uma existência em que o destino está sempre além, inalcançável, mesmo quando parece logo ali.

E o morto-vivo? Ou o vivo-morto?

O jovem ativista que escolhe se matar (é o que ele diz, foi uma escolha), escreve em sua carta-testamento: “A vida é uma prisão. A única liberdade possível é a não existência”. É nas mensagens da secretária-eletrônica, deixadas pela mesma voz feminina, por alguém que o conhece, no sentido profundo de conhecer, não no superficial que desfila na tela do Facebook ou nas matérias de TV, que o paradoxo dessa época se desvela. A certa altura, ela diz: “É possível estar fora do corpo, mas não fora da linguagem. Meu amigo, a única forma de morrer é estar fora da linguagem – ou nunca ter falado. Você falou muito, palavras demais. Para sempre estará preso na linguagem”.

Ele morreu, seu corpo não está lá. Mas, como nós, ele está vivo numa multiplicidade de narrativas em movimento que, com a internet e a tecnologia, tornou-se a eternidade que buscamos com tanto afinco – e finalmente alcançamos. Apenas para descobrir que a tragédia era outra.

Esta é a armadilha. Já não é possível morrer.

(Publicado no El País em 26/05/2016)

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