Escutem o louco

O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vivido pelo Brasil

 

De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.

Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.

Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”

O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.
Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.

O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.

Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.

No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.

Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.

Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.

Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.

Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.

É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.

Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.

(Publicado no El País em 03/03/2014)

Nós, os humanos verdadeiros

Quem estava nu além do menino negro acorrentado a um poste por justiceiros?

 

Precisei escutar o discurso do bem. O que dizem aqueles que acorrentaram um menino negro a um poste com uma trava de bicicleta no Flamengo, no Rio, em 31 de janeiro. Aqueles que cortaram sua orelha, aqueles que arrancaram suas roupas. O que dizem aqueles que defendem os jovens brancos que torturaram o jovem negro. Eu sei que os homens e as mulheres que evocam o direito de acorrentar adolescentes negros em postes, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas porque se anunciam como homens e mulheres de bem – e homens e mulheres de bem podem fazer tudo isso – estão ao meu redor. Eu os encontro na padaria, os cumprimento no elevador, agradeço a eles quando me permitem atravessar na faixa de segurança. Eles estão lá ao ligar a TV. Mas o que eles dizem que é preciso escutar?

O discurso do bem cabe em poucas frases. O Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. Diante desses fatos, e todos os fatos são sempre inquestionáveis no discurso do bem, acorrentar jovens negros em postes com trava de bicicleta, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é um direito de legítima defesa dos cidadãos de bem. Se quiserem torturar o menino negro, como fizeram, eles podem, assegura o bem. Se quiserem matá-lo, eles podem, também. E alguns o fazem. Meninos negros não são meninos. Não é preciso investigação, não é preciso julgamento, não é preciso lei. Os cidadãos de bem sabem, porque são a lei. Também são a justiça. O menino é um marginalzinho, é também um vagabundo, diz o bem. E bandido bom é bandido morto, garante o bem. Se você não pensa assim, o bem tem um pedido a lhe fazer: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. Simples, direto, objetivo. O discurso do bem orgulha-se de ser simples, orgulha-se de só ter certezas. A dúvida atrapalha o bem. E o bem não deve ser perturbado. E como duvidar que acorrentar um menino negro a um poste pelo pescoço, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é o bem?

Encontro uma explicação definitiva no discurso dos justiceiros amplificado nas redes sociais. Quem acorrenta um jovem negro a um poste, corta um pedaço da sua orelha e arranca suas roupas – e quem defende o direito de fazer tudo isso – são os “verdadeiros humanos”. E também os “humanos verdadeiros”.

Adolescente amarrado a um poste com uma trava de bicicleta. / Yvonne de Mello (Facebook)

Adolescente amarrado a um poste com uma trava de bicicleta. / Yvonne de Mello (Facebook)

É uma guerra, descubro, entre humanos verdadeiros e humanos falsos.

Neste ponto, tenho uma dúvida. Talvez eu não seja uma humana verdadeira – ou uma verdadeira humana –, porque além dessa dúvida sobre a veracidade de minha humanidade, eu ainda tenho outra. O que os humanos verdadeiros – ou verdadeiros humanos – viram ao arrancar a roupa do menino negro? O que eles enxergaram ao se deparar com sua nudez? Será que foi por isso que arrancaram suas roupas, para provar que ele não era humano? O que aconteceu quando descobriram que seu corpo era igual ao deles? Ou não era? Será que foi nesse momento que cortaram a sua orelha, para marcá-lo como um humano falso, já que Deus ou a evolução não haviam providenciado essa diferença no corpo? Ou basta a cor, como já disse um pastor evangélico dedicado aos direitos humanos? Que perturbadora pode ter sido a nudez do menino, ao se tornar espelho dos justiceiros e os deixar nus, enquanto batiam nele com seus capacetes.

Quem estava nu nessa cena?

As dúvidas não fazem bem ao bem. Por associação eu concluo que há também os jornalistas falsos e os verdadeiros. Os falsos tenderiam a acreditar que, no jornalismo, uma opinião só pode ser dada com informação, pesquisa e investigação da realidade – ou não é uma opinião para o jornalismo, só um vômito de palavras. Os falsos pensariam que, para falar das ruas, seria preciso ir às ruas. Os falsos mostrariam que, quem mais morre por violência, no Brasil, são os jovens negros e pobres como aquele que foi acorrentado a um poste pelo pescoço. Mostrariam também que as maiores vítimas de violência de todos os tipos estão nas periferias e nas favelas – e não no centro, muito menos nos condomínios fechados. Os falsos se preocupariam em esmiuçar o contexto em que o fato foi produzido, explicar as raízes históricas que fazem com que as maiores vítimas de violência sejam os negros e os pobres, a começar pela abolição da escravatura que não se completou. Os falsos se esforçariam para revelar a complexidade de uma cena que remete à escravidão se repetir mais de 125 anos depois da Lei Áurea. Os falsos buscariam analisar como a violência é uma marca de identidade nacional, presente ao longo da constituição da sociedade brasileira – e que aquele que diz punir, de fato se vinga. Os falsos saberiam que uma imagem não desvenda tudo nem é toda a verdade. Os falsos suspeitariam que defender o linchamento, ainda que de humanos falsos, e abrir espaço para o incitamento ao linchamento em veículos de massa e na grande mídia poderia ser considerado uma irresponsabilidade que desqualifica o jornalismo e reduz a imprensa.

Mas esse é o problema dos falsos. Eles acham que a realidade não cabe em meia dúzia de frases repetidas de forma diferente. São falsos e são fracos porque duvidam das verdades absolutas. Os jornalistas verdadeiros não têm dúvida nenhuma, nem mesmo uma bem pequena. O mundo acaba nos limites do seu próprio mundo, mesmo que este seja um condomínio fechado e que nas poucas vezes em que saiam de casa seja em carro blindado, de um lugar protegido por seguranças a outro lugar protegido por seguranças. Os jornalistas verdadeiros conquistaram, porque são verdadeiros, o direito de estabelecer os limites do mundo e de falar apenas a partir dele. A alteridade, assim como o movimento de escutar o outro e experimentar o seu argumento, faz mal ao bem e também ao jornalismo verdadeiro.

Divaguei. E divagações não fazem bem ao bem. A questão maior, a que abarca todas as outras, inclusive a dos jornalistas, é a dos verdadeiros humanos – ou dos humanos verdadeiros. Também conhecidos como cidadãos de bem.

Aqui, exatamente aqui, eu tenho outra dúvida. Essa me perturba mais. Percebo que, se estes são os humanos verdadeiros, os que acorrentam jovens negros a postes com travas de bicicleta, cortam a sua orelha e arrancam suas roupas – assim como os que defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso –, minha tendência é me alinhar aos humanos falsos.

A distinção, porém, permaneceria. Com o tempo, eu poderia sucumbir à tentação de considerar que os falsos são os melhores. E, em seguida, talvez ousasse dizer que os falsos, na verdade, são mais humanos do que os outros. E, logo, aqueles que não acorrentam jovens negros em postes, não cortam sua orelha, não arrancam suas roupas – e aqueles que não defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso – seriam os verdadeiros humanos – ou os humanos verdadeiros. E eu me colocaria ao lado deles, como uma apaziguada companheira de manada.

Mas seria fácil demais.

Difícil seria compreender não a diferença, mas a igualdade. Difícil não é me diferenciar, mas me igualar, perceber em que esquinas minha humanidade se encontra com a do menino negro preso ao poste e também com a humanidade dos jovens brancos que acorrentaram o jovem negro ao poste. Para isso, eu preciso perceber que aqueles que arrancaram as roupas do menino ficaram nus, sim, mas também me deixaram nua. Nos deixaram nus. Nós, que não compactuamos com quem acorrenta jovens negros em postes, somos aqueles que estavam na cena, mas não aparecem na imagem. E por isso podem se esconder melhor.

É para isso que também serve o discurso do bem. Ou o discurso do ódio, se preferirem. Para que possamos nos contrapor a ele e nos assegurarmos não só da nossa diferença, mas principalmente da nossa inocência. Para que possamos continuar vivendo na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não sejam acorrentados em postes pelo pescoço. Na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não se tornem, caso alcancem a vida adulta, homens e mulheres que ganham menos que os brancos, que têm menos educação que os brancos, que têm menos saúde que os brancos, que sejam a maioria nas casas sem saneamento. Na ilusão de que fazemos algo para que as mulheres negras não sejam as que mais morrem no parto nem seus filhos os que preenchem as estatísticas de mortalidade infantil. Na ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não tenham a entrada banida em shoppings, exceto para trabalhar. O discurso do ódio também serve para que possamos nos contrapor a ele e manter intacta a ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não sejam os que morrem mais e mais cedo.

É preciso encarar nossa nudez nesse espelho em que a imagem, sempre incompleta, mostra apenas o menino negro nu. E abrir mão de uma certa soberba que faz com que, no fundo, acreditemos que somos nós os cidadãos de bem – os civilizados contra os bárbaros. E que dizer isso basta para um sono sem sobressaltos.

A maioria (79%), pelo menos no Rio de Janeiro, segundo pesquisa do Datafolha, é contra acorrentar jovens negros a postes. (O maior índice de aprovação aos justiceiros é encontrado entre os brancos, os mais ricos e os mais escolarizados, e este é um dado importante.) Mas o poste/tronco é apenas a imagem extrema, hiper-real, do que a maioria convive, dia após dia, sem perceber que deveria ser impossível conviver com o fato de que uma parte da população brasileira tem menos tudo, inclusive vida. A abolição incompleta da escravatura está em todas as horas do Brasil. Se não fosse mais conveniente ser cego, enxergaríamos jovens negros presos a postes pelo pescoço o tempo todo. O que a quadrilha de jovens brancos, de classe média, fez ao acorrentar o jovem negro a um poste foi uma interpretação literal da realidade cotidiana. Porque seu pensamento é simplista, direto, objetivo, escancararam o que se expressa no dia a dia de formas menos explícitas. O que os brutos realizaram, porque esse também é o papel dos brutos, é a materialização de uma realidade simbólica com a qual convivemos sem pruridos. Ao fazê-lo, os justiceiros nos dão, de novo, a chance de exaurirmos nossa omissão em ruidosa revolta, e voltar esgotados de imagem para o sono dos justos.

Os brutos não são a maioria, pelo menos nesse caso, pelo menos no Rio. A maioria é contra acorrentar jovens negros a postes, cortar sua orelha e arrancar suas roupas. Então, por que a abolição da escravatura ainda não se completou no Brasil? Porque nossa cumplicidade encontra caminhos para se convencer inocente.

Somos os “sonsos essenciais”. O termo é de Clarice Lispector, no melhor texto que li sobre a cena do menino negro acorrentado a um poste pelo pescoço. Com o detalhe que foi escrito na década de 60 do século passado. “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. (…) E eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem”.

Para fazer a diferença é necessário se diferenciar. Mas só se diferencia aquele que antes se iguala. Levanta os olhos e encara, no espelho que é o outro, a enormidade de sua nudez.

(Publicado no El País em 17/02/2014)

“Preencha todos os meus buracos”

Em ‘Ninfomaníaca – parte 1’, o polêmico diretor dinamarquês Lars Von Trier faz um filme delicado e de extrema beleza sobre o mistério da sexualidade feminina. E entedia parte da plateia. Por quê?

 

(Se você não assistiu à Ninfomaníaca e prefere não conhecer detalhes do filme antes de vê-lo, pare por aqui.)

“Preencha todos os meus buracos” é a penúltima frase do final de Ninfomaníaca, o mais recente filme de Lars Von Trier. Do final da primeira parte, já que a segunda está prevista para estrear nos cinemas brasileiros somente em março. A versão completa, sem cortes, com cinco horas de duração, será exibida neste mês no Festival de Berlim. Joe, a protagonista, pela primeira vez faz sexo com amor. Quando ela iniciava sua busca (pelo quê?), começando uma ininterrupta série de relações sexuais com homens variados e aparentemente aleatórios – no trem, no escritório dela, no deles, no hospital onde seu pai morre, em qualquer lugar, até na cama –, sua melhor amiga havia lhe sussurrado: “O amor é o ingrediente secreto do sexo”. Joe não acredita na frase, ela despreza o amor. Joe e suas amigas fazem uma guerrilha contra o amor, é proibido transar com o mesmo homem mais de uma vez. Mas, em algum ponto de sua busca incansável, ela ama. E, ao fazer sexo com o homem que ama, Joe pede: “Preencha todos os meus buracos”.

Lembrem-se. Esta é a penúltima frase. Ela é seguida de outra, mas essa só alcançaremos mais adiante.

Ninfomaníaca é um filme delicado, de extrema beleza, sobre a sexualidade feminina. O que Joe busca, ao se deixar penetrar por tantos pênis diferentes? Mais do que se deixar dominar, ela acredita dominá-los. Os pênis de todas as cores, formatos e tamanhos são objetos que fazem o que ela quer quando se enfiam dentro dela. Fazem o que ela quer inclusive quando ela permite que façam o que querem. Indiferente, ela os manipula, os engole e os cospe. Por quase duas horas de filme a vemos se mover com o membro de tantos dentro de si, mover-se mecanicamente.

No marketing esperto que antecipou Ninfomaníaca, os atores apareciam em cartazes com os rostos contorcidos pelo orgasmo. Era uma esperteza, mas também uma ironia. Quem vai ao cinema para se estimular com cenas excitantes, em geral decepciona-se e entedia-se. Ninfomaníaca não é nem pornográfico nem erótico, o sexo feminino está como aquilo que não pode ser apreendido nem decifrado. Ao identificar-se como “ninfomaníaca”, Joe não diz nada sobre si. Dizer que ela é obcecada por sexo é continuar não dizendo nada.

Vivida na juventude pela bela atriz Stacy Martin, com seu corpo esguio, seios pequenos e perfeitos, Joe seduz como uma Lolita. Mas, para provocar tesão naqueles que a espreitam da poltrona do cinema, ela precisaria fingir que está se divertindo. Mais do que isso. Joe precisaria fingir que está completa, que aquele pênis a satisfaz inteiramente e que nada lhe falta. Mas no filme, onde a vida se dá para além do marketing, ela é aquela que tem um pinto enfiado na vagina, nove, dez vezes por dia, mas não está lá. Isso talvez seja bem desestabilizador para quem está na plateia, ao ser obrigado a lembrar que, com mais frequência do que admite, seu parceiro/parceira não está lá. E às vezes somos nós que não estamos lá.

Joe, linda e jovem, parece reeditar a cada relação sexual a impossibilidade do encontro. Ela se deixa penetrar para provar que não pode ser penetrada. Cada pênis a encontra vazia. A seu comando preenche a sua vagina. Mas, se a toca concretamente, no mais fundo de seu corpo, ao mesmo tempo não a toca. O pênis escorrega para fora de cada um de seus buracos sem deixar marca de sua passagem. E Joe segue, em abissal solidão, uma mulher não marcada.

Dia após dia, por anos. Dezenas, centenas de vezes, ela repete esse ritual iniciado quando era uma menina de colégio. Ao alcançar a puberdade, a virgindade perturba Joe. Ela precisa se livrar dessa porta fechada que dá acesso ao seu lado de dentro. Um hímen é também um aviso de uma barreira que pode ser transposta. E, ao ser transposta, lançá-la no incontrolável do encontro com o outro. Ao mesmo tempo que Joe não acredita nesta possibilidade, ela também a teme. Teme tanto que precisa se livrar logo dessa ameaça. E então provar que sua inviolabilidade não depende de um hímen.

Aparece diante do garoto mais velho e popular, um que tem uma moto, com suas meias soquetes e roupa de colegial. Jerome, precisamos lembrar esse nome. Pede-lhe que tire sua virgindade. O garoto é o primeiro a provar a veracidade da crença de Joe: para além da barreira do hímen, há apenas buracos, buracos que jamais poderão ser preenchidos. Não apenas a vagina, mas também a boca e o ânus. Ele a trata como uma portadora de buracos nos quais ele pode meter seu pênis. Oito estocadas – ela registra o número. Três na vagina, cinco no ânus. E está tudo terminado. Só que nem começou.

Em seguida, Jerome (Shia LaBeouf) volta para a moto, e Joe sai cambaleando, tão sozinha como sempre e agora também machucada. Ela pediu, ele fez o que ela pediu.Ofereceu-se a ele como um buraco que ainda tinha uma incômoda barreira, ele a tratou como a portadora de um buraco e eliminou a incômoda barreira. Uma negociação honesta, nem por isso menos terrível, já que nenhum encontro é possível nesses termos. Mas Joe o odeia por isso, odeia o garoto da moto porque ele foi o primeiro a obedecê-la. Ainda assim, deve restar uma dúvida dentro de Joe, porque ela precisa renovar a certeza de não ser tocada dia após dia, com todos os homens que puder. Uma dúvida ou, quem sabe, uma esperança.

Lars Von Trier é mais uma vez brilhante ao construir a narrativa de Joe enxertando razão e cultura nas cenas de sexo. Joe fazendo sexo oral, Joe sentada sobre um pênis após outro, Joe fingindo o maior de todos os orgasmos. Uma obra de Bach, uma história de Edgar Alan Poe, a fórmula de Fibonacci nas oito estocadas que supostamente lhe tiram a virgindade. Números para contabilizar o desempenho de Joe. Razão e cultura como o que também são: tentativas de normatizar o inormatizável da sexualidade feminina, o incontrolável que escapa. Ao longo de toda a primeira parte do filme, razão e cultura aparecem como contrapontos às pulsões, a sexual e a de morte. Como uma tentativa de enquadrar a sexualidade, explicá-la e dar-lhe limites. Mente e corpo, a falsa dicotomia que a modernidade ocidental acolheu com tanto prejuízo para todos nós.

Esse embate alcança seu ápice quando Joe testemunha o morrer do pai, em uma das cenas mais belas do filme. Ela amava o pai, um médico, um homem da razão. Na primeira conversa entre os dois, na cama do hospital, o pai está sereno. Ele já testemunhou muitos morrerem, ele sabe o que acontece com a fisiologia do corpo, ele sabe quais são as etapas até a sua morte, ele sabe de que drogas seus colegas dispõem e quais usarão. Ele sabe. Está preparado, está no controle. O pai de Joe (Christian Slater) recita Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte. E, quando existe a morte, não existimos mais”.

É bonito, talvez seja até sábio. Mas o corpo se impõe. Joe assiste ao pai desesperar-se com a morte, debater-se em agonia e medo e, por fim, encher de fezes o lençol. É a realidade inescapável do corpo. É o que Joe teme mais do que tudo. Ela desce correndo as escadas do hospital e procura até achar. Faz sexo nos porões com mais um estranho (para não ter de estranhá-lo). Ali ela está de novo no controle dos sentidos, uma ilusão da qual ela não pode prescindir.

Joe e o pai compartilham da mesma crença. Ele pensa saber tudo sobre a morte, ela pensa saber tudo sobre o sexo. Nenhum dos dois sabe nada. Joe compartilha sua crença com todos nós, encarna um fenômeno cultural do nosso tempo. A ilusão de saber tudo sobre o corpo e sobre o sexo. De falar tudo sobre o corpo e sobre o sexo. De experimentar tudo, poder tudo. De fato, não sabemos nada. De fato continuamos virgens.

Quando volta ao quarto do pai, a mãe, com quem ela não se dá, está lá. Diante do pai morto, ao lado da mãe fria, Joe excita-se. No líquido branco e denso que escorre pelas suas pernas o controle se esvai, mais uma vez. Agora órfã da razão, Joe precisa continuar renovando, com ainda mais afinco, sua crença na impossibilidade de ser tocada.

Não é um acaso que, ao arrumar um emprego e reencontrar Jerome, seu primeiro homem obediente, o que lhe tirou a virgindade ao seu pedido, ela acabe o amando. Pela primeira vez, ela ama. Talvez exista em Joe uma esperança de que ele a desobedeça e a toque, acabando com o vazio que a faz cambalear sobre os pênis do mundo. Neste momento, são três os seus amantes principais. Um homem que a trata como uma princesa, banhando-a e acariciando-a, preocupado apenas com o seu orgasmo. Outro homem que se move como um leopardo, perigoso e silencioso, que só faz o que ele mesmo quer. Joe gosta de ambos esses amantes, já que ainda está no controle. E há o homem que ama, Jerome.

O que muda o amor? Será o amor “o ingrediente secreto do sexo”, como sua amiga garantiu?

Chegamos aos minutos finais da primeira parte do filme. Joe pede: “Preencha todos os meus buracos”. E Jerome tenta. Ele realmente tenta. Enfia o pênis na sua vagina, a língua na sua boca, os dedos no ânus de Joe. Por um momento, bem fugaz, Joe está completa, preenchida, íntegra. E, então, no segundo seguinte, a tragédia. A segunda frase, a última: “Não sinto nada”.

E com ela vem os créditos do filme, letras na escuridão.

Quando o filme começa, Joe, que ainda não conhecemos, resta no chão. Está mais velha, sabemos pela divulgação do filme que ela tem 50 anos. A atriz agora é a sempre perturbadora Charlotte Gainsbourg. Resta no chão desacordada, o corpo arrebentado, o rosto sangrando. É resgatada dali por Seligman (Stellan Skarsgard), um velho homem que gosta de pescar. Ele a pesca, a instala na cama de seu apartamento, cuida de seus ferimentos e a alimenta. Ele a pesca, mas, ainda que sangrando e fraca demais, Joe pode ser uma daquelas iscas artificiais que simulam a agonia do orgânico, debatem-se nas águas enganando o peixe, que rapidamente se transforma de algoz em vítima. Quem é o pescador? Quem é o peixe na relação que se estabelece entre os dois? Ainda não sabemos.

A Joe madura sente-se pecadora, anuncia-se em uma das primeiras frases como “uma pessoa ruim”. Seligman estranha que ela deixe o pecado, “o pior da religião”, sobreviver na sua vida em espaços para além da religião. Ela começa a contar sua história, e ele a escuta. Quase como um psicanalista. Pontua a fala da mulher com a razão, é ele que vai pinçando os exemplos da música, da literatura, da matemática. Razão X Pulsão, esse é o diálogo aparente.

É importante perceber que, quando Joe se apresenta como uma pessoa ruim, ela ainda quer estar no controle. Joe quer ainda ter a última palavra sobre si mesma. O que parece ser uma expiação de pecados talvez seja apenas soberba. Joe continua no jogo. Ao transformar sua vida em narrativa, ela quer também o controle do seu corpo de palavras. Essa é a tensão entre os dois, ainda em aberto nessa primeira parte. Seligman, o decifrador de sentidos, talvez seja apenas mais um homem que a obedece. E Joe, aquela que se autodeprecia como estratégia para não perder o controle da identidade, continua com muito menos domínio do que acredita ter.

O trailer da segunda parte nos faz prever como Joe seguirá seu caminho até sobrar sangrando nas pedras da rua. Ao amar, Joe é finalmente marcada. O pênis, os dedos, a língua de Jerome finalmente tocam a intocada para além do corpo. Há finalmente um encontro. Só agora, anos depois do rompimento do hímen, Jerome desvirgina Joe. Ao colocar o “amor como ingrediente”, Joe descobre a possibilidade transformadora de se sentir completa por um instante, aquele momento em que os corpos que se amam se marcam mutuamente. Essa realidade, se é do corpo, está também para além do corpo.
Em seguida, aquele que encontra o outro perde a si mesmo. O que Joe faz? Anestesia- se. “Não sinto nada, não sinto nada”, ela repete em desespero. Pela primeira vez ela está lá, mas quando está não sente. A experiência – sim, porque agora ela teve uma experiência – muda o curso da sua busca.

Pelo trailer podemos arriscar que Joe tornará ainda mais intensa a sua desesperada peregrinação. Agora ela precisa sentir mais e mais no corpo – e a cada vez será dramaticamente insuficiente. A cada vez mais um limite precisará ser superado e ainda assim continuará sendo insuficiente. Mais do que sentir o corpo, Joe possivelmente tentará construir um corpo próprio com porções cada vez maiores de violência. Joe talvez tentará marcar e marcar e marcar o corpo, porque não sabe como ser marcada de outra maneira. Joe não sabe como ser corpo e também além do corpo, ao mesmo tempo.

Nessa busca, uma noite ela cai nas pedras da rua onde Seligman a encontrará.
A Joe resgatada pelo pescador – que talvez seja o peixe – continua impenetrável. Chega até ele impenetrável. Talvez em algum momento Joe perceba que nenhuma violência será suficiente para lhe dar um corpo sem buracos. Nenhum pênis será tão poderoso, nem mesmo o pênis daquele que ama. Ela estará mais e mais arrebentada – e vazia. Para Joe a vagina, o ânus, a boca são buracos de carne. Ela é um buraco de carne. Depois de desejar ser preenchida por Jerome, em seguida descobriu seu corpo frígido. Para continuar impenetrável. A questão que a move não é mais a do início, deixar-se penetrar para ter a certeza de não ser penetrada. Agora, depois do encontro, Joe talvez se pergunte: “Qual é o pênis que finalmente vai me preencher?”. Sua tragédia é partir-se, como é também a tragédia das mulheres deste tempo, e buscar onde o que busca não pode ser encontrado.

Joe parece ainda não ter entendido a armadilha de sua identificação como ninfomaníaca. Ao apresentar-se como “ninfomaníaca”, ela se coloca como alguém que não consegue resistir a uma compulsão. Joe é viciada em sexo e, portanto, não tem controle. É a versão médico-patológica para a palavra “pecadora”, que é como ela também se apresenta a Seligman – e como Lars Von Trier a apresenta a nós. Mas o suposto descontrole de Joe é a forma que ela encontrou de exercer o controle, evitando a possibilidade do encontro, sempre desestabilizador e imprevisível. A tragédia de Joe não é ser “ninfomaníaca”, mas ter um medo tão paralisante de perder o controle, que a impede de viver a experiência do amor.Tudo o que Joe não quer é se perder no outro – tanto no corpo do outro quanto para além do corpo do outro. Para ela é mais fácil deixar-se arrebentar do que se entregar ao outro e, por um instante, perder a si mesma, o que só é possível no amor.

Joe parece buscar pelo sexo um corpo sem buracos, sem entender que é impossível. Joe ainda não compreendeu que o vazio nos constitui, precisamos dele. Pedimos ao nosso amante, ao homem que amamos: “Preencha todos os meus buracos”. Mas sabemos que pedimos o impossível. Ou o possível apenas por um momento em que nossos corpos respiram um no outro, para então nos descobrirmos de novo incompletas. E seguirmos por aí carregando nosso vazio não como ausência, mas como presença. Como movimento que nos mantém vivas e desejantes.

Joe não é a ninfomaníaca. Joe é cada uma de nós. Lars Von Trier nos deu uma bela chance para pensarmos sobre o mistério da sexualidade feminina. Desde que tenhamos a coragem de nos entregarmos à experiência do cinema. Ao encontro. E aguentarmos o vazio, sem confundi-lo com o tédio.

(Publicado no El País em 03/02/2014)

Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um

A lógica que criminalizou os rolezinhos é a mesma que levou a polícia a registrar a morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos como suicídio, antes de qualquer investigação

 

A morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos e os rolezinhos não coincidem apenas no calendário. Dizem de um lugar: onde é “natural” encontrar um jovem negro e pobre, onde não é “natural” encontrá-lo. A lógica que determina a criminalização prévia dos rolezinhos e a não criminalização prévia da morte de Kaique – acontecimentos que moveram São Paulo e parte do país nos últimos dias – é a mesma. Ela indaga por territórios e revela leis não escritas.

Primeiro, quem é Kaique, já que sobre os rolezinhos estamos bem mais informados. O adolescente foi encontrado morto no sábado (11/1), próximo a um viaduto da Avenida Nove de Julho, na região central de São Paulo. Os dentes e os dedos estavam quebrados, havia um ferimento numa perna. Para a família, uma barra atravessada, que depois teria sido retirada. Para policiais, uma fratura exposta. Tinha 16 anos – e são os jovens os que mais morrem por assassinato no Brasil. Era homossexual – as mortes por homofobia cresceram 11% em 2012, comparado ao ano anterior. Era negro, como mais de 70% das vítimas de homicídio no país. É razoável esperar que suas circunstâncias, assim como as circunstâncias em que seu corpo foi encontrado, motivassem suspeitas de que pudesse ter sido assassinado. Não foi, porém, o que aconteceu. A polícia de São Paulo registrou no boletim de ocorrência: “suicídio”.

Não há, neste momento, como afirmar se Kaique foi assassinado ou se suicidou. Para afirmar, tanto um homicídio quanto um suicídio, é preciso uma investigação. E séria. Há suicídios que, pelas circunstâncias e pelas evidências, são facilmente comprováveis. Não parece ser o caso de Kaique. A questão que se impõe é: por que foi registrada como suicídio uma morte que até hoje, mais de uma semana depois, não foi esclarecida?

Na sexta-feira (17/1), centenas de pessoas fizeram um ato contra a homofobia, no centro de São Paulo, exigindo esclarecimentos sobre a morte de Kaique. Entre os cartazes, um referia-se à manutenção, sem qualquer alteração, do papel da polícia da ditadura civil-militar na atual democracia: “Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado”. A verdade – ou pelo menos parte dela – é que, não fosse a inconformidade da família, a divulgação pela imprensa e, principalmente, a revolta massiva nas redes sociais, a morte de Kaique jamais seria investigada. Ainda que a polícia possa negar que funcione assim, “suicídio”, no boletim de ocorrência, significa, na prática, caso resolvido. Encerrado, portanto, sem investigação.

Pressionada pela família de Kaique e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato, como repetia desde o momento em que policiais botaram os olhos no corpo do garoto e concluíram por suicídio. A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à presidência da República, enviou para São Paulo o coordenador de Promoção dos Direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) para acompanhar o caso. Em nota, afirmou: Kaique foi “brutalmente assassinado” e há indicação de que “se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado pela homofobia”.

Neste momento, há uma ministra do PT (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos) desmentindo a polícia do PSDB em ano de eleição. Nem assim, as provas irrefutáveis que poderiam respaldar o registro de suicídio apareceram. Ainda que, contra as aparências e a crença da maioria, a polícia paulista consiga provar que Kaique se suicidou, a questão crucial dessa história continua rigorosamente a mesma. Não se trata apenas de saber se a morte de Kaique foi assassinato ou suicídio, o que está perto de virar um FlaXFlu político-partidário, mas sim questionar aquilo que já está provado: não havia como saber a causa da morte de Kaique quando a polícia a registrou como “suicídio” no boletim de ocorrência.

E por que o fez?

Há várias hipóteses, inclusive a de reduzir as estatísticas da violência, uma preocupação constante das autoridades, que se acirra em períodos pré-eleitorais. Mas há uma explicação que pode nos ajudar a refletir sobre esse momento agudo que o Brasil vive e que é marcado pelos rolezinhos, o fenômeno mais interessante do momento, pela riqueza (inclusive contraditória) de seus significados.

É nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.

No primeiro caso, se Kaique foi de fato assassinado, o crime ficaria impune, não fosse a pressão das redes sociais. No segundo caso, puniu-se um crime que não aconteceu, ao se indiciar jovens que não fizeram nada além de zoar. Discriminou-se centenas de outros, que foram coagidos a se retirar de shoppings por conta de sua cor e de sua aparência, e barrou-se a entrada de outras centenas, também por causa de sua cor e de sua aparência. Sem esquecer daqueles que, como é mostrado em vários vídeos, levaram gravatas, chutes, socos e empurrões da polícia por ousar entrar num shopping.

Por quê?

As respostas são muitas e não tenho a menor chance de esgotá-las aqui. Mas há uma que vale a pena refletir com bastante atenção num momento em que o apartheid do Brasil é escancarado pelo fenômeno dos rolezinhos, independentemente do fato de esta ser ou não a intenção dos meninos que os promovem. O que une o caso Kaique e os rolezinhos é não só, mas principalmente, o lugar. A naturalização do lugar de cada um numa sociedade cindida, como continua a ser a brasileira.

Debaixo de um viaduto, um jovem negro morto não chama a atenção. Se for possível perceber pelas roupas, cabelo e acessórios que é gay, menos ainda. Não é estranho o suficiente para que a polícia acredite que precise estranhar. É, talvez, onde parte da polícia e parte da sociedade espera – e muitos até torcem, como provam os comentários homofóbicos e racistas que também proliferam na internet – que acabe um adolescente negro e homossexual que saiu de uma balada gay do centro de São Paulo. Para tanto, basta tascar no boletim de ocorrência, já que é preciso dizer alguma coisa: “suicídio”. E despachar o corpo para o Instituto Médico Legal como indigente, já que Kaique teria perdido os documentos e o celular. Vale registrar ainda que, devido à “superlotação do IML”, o corpo ficou “fora da geladeira” por dias, alcançando um estado de deformação que tornou impossível para a mãe dar um velório ao filho morto. Kaique, portanto, estava no lugar naturalizado para adolescentes com a aparência de Kaique.

Já dentro de um shopping, um grupo de jovens pobres e, em sua maioria negros, está fora de lugar para essa mesma polícia e a sociedade que a gesta, evoca e respalda. O deslocamento, por si só, passa a ser interpretado como um crime, na medida em que essa mobilidade é criminalizada por leis não escritas, mas profundamente introjetadas. Tão introjetadas que o aparato de segurança pública e o judiciário são acionados para mantê-los do lado “certo” – o lado de fora. Tão introjetadas que o fato de não existir crime tem sido espantosamente insuficiente para impedir a criminalização de um movimento de meninos e meninas que querem se divertir e dar uns beijos, mas que, ainda que estejam usando grifes, jamais são reconhecidos como “iguais”, como tendo a “aparência certa”, o cartão invisível que garante a entrada pela porta da frente.

Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora. Para Kaique, não havia suspeita de crime, porque, para uma parcela da polícia e da sociedade que a legitima, ele estava no lugar previsto (embaixo de um viaduto) e na condição prevista (morto). Para Kaique e para os rolezeiros há um lugar naturalizado para a morte, há um lugar naturalizado para a vida.

Simbolicamente, é o mesmo policial que bota “suicídio” no boletim de ocorrência, diante do corpo flagelado de um menino negro, e aquele que,como contou a jornalista Vanessa Barbara na Folha de S. Paulo, repetia no ouvido dos garotos no Shopping de Itaquera: “Vou arrebentar vocês. Vou arrebentar vocês”, e logo desferiu um chute num menino. Ainda que, por estrato social, a maioria dos policiais esteja mais próxima dos rolezeiros do que dos frequentadores habituais dos shoppings, como mostra a brilhante charge de Angeli, na qual um dos garotos, encostados na parede pela polícia durante um rolezinho, olha para trás e diz ao PM: “Pai?!”. Ainda – ou talvez por causa disso.

Nossa polícia é muito doente. Porque nossa sociedade é muito doente. Apodrecemos em praça pública, a maioria, outros em seus bunkers privados. Mas acredito que vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado. E nunca saberíamos o que houve porque não existiria pressão suficiente para que a polícia fizesse, de fato, uma investigação. Até poucos anos atrás a decisão dos meninos e meninas da periferia de zoar em massa nos shoppings talvez produzisse só repressão, mas não questionamento e reflexão sobre o Brasil. Ainda que os mesmos de sempre tentem desqualificar e reduzir a importância do fenômeno, pelos motivos óbvios, o embate hoje conta com mais narradores e o nível se elevou. Por paradoxal que pareça, acho que melhoramos porque começamos a sentir o quanto cheiramos mal. Antes, o cheiro estava lá, mas não o reconhecíamos como nosso.

O ano de 2014 começou apressado, com ritmo de meio. Me aparece um bom augúrio. Se há alguma esperança, ainda frágil, delicada, de que alcancemos um estágio civilizatório minimamente aceitável, ela está na capacidade de nos espantarmos com o boletim de ocorrência de Kaique e com a reação violenta e discriminatória contra os rolezinhos. Com a não criminalização prévia da morte de um e a criminalização prévia da vida de outros. Há momentos – e este é um deles – que só o espanto salva.

(Publicado no El País em 20/01/2014)

 

A maldição do amianto

Vítimas lançam uma ofensiva internacional para cassar os títulos e prêmios do bilionário Stephan Schmidheiny, ex-dono da Eternit suíça. No Brasil, miram na Ordem do Cruzeiro do Sul, dada a ele pelo presidente Fernando Henrique Cardoso

 

Se depender das vítimas do amianto, 2014 poderá ser o pior ano da vida do bilionário suíço Stephan Schmidheiny. Elas preparam-se para abrir mais uma frente na luta pelo banimento da fibra cancerígena. Desta vez, miram em algo talvez mais valioso do que a própria fortuna do empresário cuja família fundou a Eternit suíça. Durante o século 20, o grupo industrial plantou fábricas pelo mundo e semeou com elas doenças fatais como asbestose (conhecida como “pulmão de pedra”) e mesotelioma (o chamado “câncer do amianto”). Agora, o alvo de doentes e familiares é o patrimônio imaterial ao qual o suíço dedicou muito dinheiro, batalhões de marqueteiros e os melhores esforços: sua biografia.

No Brasil, os advogados da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA) pretendem cassar a prestigiosa Ordem do Cruzeiro do Sul, concedida ao suíço pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996. A ofensiva faz parte de uma estratégia internacional das vítimas, liderada pela Itália. Desde o ano passado, a organização italiana AFEVA (Associação de Familiares e Vítimas do Amianto) pressiona a Universidade de Yale, nos Estados Unidos, para revogar o título de doutor “honoris causa” em letras humanas concedido a Schmidheiny também em 1996. Na Venezuela e na Costa Rica, iniciativas semelhantes começam a ser articuladas para pressionar instituições que o premiaram. A meta é apagar um a um os títulos e prêmios exibidos pelo bilionário em sua biografia oficial. Para cada uma das honrarias há um grupo de vítimas se organizando para pressionar pela sua anulação. “Nós não estamos interessados na destruição de um ser humano, mas na busca da verdade. E a verdade é que não há ‘honra’ na conduta do senhor Schmidheiny”, escreveu Bruno Pesce, coordenador da AFEVA, à direção da Universidade de Yale.

Stephan Schmidheiny é um personagem trágico do mundo contemporâneo. Para parte da humanidade um vilão, para outra parte um herói. Durante a década de 90, ele foi extremamente cuidadoso ao construir uma biografia que pudesse apagar – ou pelo menos ofuscar – o seu papel de protagonista naquela que é conhecida como “a maior catástrofe sanitária do século 20”: as dezenas de milhares de mortes no mundo inteiro por contaminação de amianto (asbesto), uma parte significativa delas ocorrida dentro das fábricas da Eternit suíça, de sua família, ou no raio de alguns quilômetros do seu entorno.

Quase conseguiu.

A família Schmidheiny, uma das mais ricas da Suíça, fez fortuna explorando o amianto a partir do início do século 20. Em 1969, aos 22 anos, Stephan chegou a estagiar na fábrica da Eternit em Osasco, na Grande São Paulo, período em que conheceu alguns dos operários que acabariam morrendo pelas doenças causadas pela fibra. Em 1976, aos 29 anos, assumiu a direção dos negócios da Eternit suíça e, segundo sua versão, decidiu encerrar a produção e vender a empresa ao descobrir que o amianto causava doenças graves, algumas delas fatais. Mas a Eternit deixou as mãos da família somente em 1990. Não foi fechada, mas vendida, deixando para os novos donos a lucrativa produção, assim como o passivo humano e ambiental. Em seu site, o momento é descrito nos seguintes termos: “1988 – início da venda de todas as participações do grupo suíço Eternit, que concluiu no final da década de 1980. As participações foram vendidas para os sucessores legais com todos os direitos e deveres”. O grifo é meu.

É preciso compreender o contexto em que o clã Schmidheiny se retira do negócio responsável por grande parte da sua fortuna durante quase um século. Naquele momento, a Europa já enfrentava o “escândalo do amianto”, com milhares de vítimas. Estima-se que só na França morrerão 100 mil pessoas de doenças relacionadas ao asbesto até 2025. Os primeiros países europeus a vetar a matéria-prima foram a Islândia, em 1983, e a Noruega, em 1984. Progressivamente, o amianto foi sendo eliminado em diversos países até a proibição total pela União Europeia, em 2005. Hoje, o amianto está banido de 66 países, uma lista honrosa da qual o Brasil não faz parte.

Documentos provam que a indústria tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde o início do século 20. Nos anos 30, já havia estudos importantes atestando o potencial mortífero do asbesto, ao ser inalado, causando doenças que levavam anos e até décadas para se manifestar. Uma delas, a asbestose, mata a vítima lentamente por asfixia, ao endurecer o pulmão a ponto de impedir a ação de inspiração/expiração. Milhares de trabalhadores no mundo inteiro morreram asfixiados depois de dedicar sua vida à Eternit suíça e outras empresas de amianto. A maioria deles ainda lutando na justiça por indenização e assistência. No Brasil, empresas como a Eternit criaram um procedimento padrão. Quando os operários estavam perto da morte, quase sem conseguir falar, seus representantes apareciam no hospital oferecendo quantias irrisórias e um documento pronto para assinar, no qual eliminavam a possibilidade de qualquer futura reivindicação judicial pelos familiares. Desesperados, com dor, sem ar, muitas vítimas assinaram os papeis da vergonha.

No primeiro momento, a indústria do amianto negou o caráter tóxico da fibra. Depois, quando se tornou impossível abafar o crescente número de doenças e de mortes de operários, muitos deles por mesoteliomas e outros tipos de câncer relacionados à contaminação por asbesto, assim como pesquisas com resultados cada vez mais contundentes, mudou o discurso e passou a disseminar a ideia do “uso controlado do amianto”. Tentava convencer que, com precauções e proteção, era possível continuar produzindo sem arriscar a vida dos trabalhadores. Para isso gastou – e segue gastando – milhões de dólares para pagar marqueteiros, lobistas e cientistas com a missão de fazer essa ideia circular – e preponderar. O Brasil, país em que o amianto é proibido apenas em seis estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais), é um exemplo de como a estratégia tem funcionado à custa de vidas humanas, de contaminação ambiental e, em breve, de uma sangria considerável nos cofres públicos da saúde e da previdência.

Ao promover sua saída estratégica dos negócios do amianto, Stephan Schmidheiny passou a executar uma espécie de “lavagem de biografia”. O bilionário suíço cunhou o conceito de “ecoeficiência”, tornando-se um dos expoentes da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e criou as fundações Fundes e Avina. Esta última, bastante conhecida também no Brasil, financia projetos de redução da pobreza em diversos países. Colecionador e conhecedor de arte, circulou desenvolto na cúpula de museus como o prestigiado Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York. Como “empreendedor moderno e filantropo” fez conferências em universidades da Ivy League americana, como Yale. Em 2003, criou uma entidade chamada Viva Trust, a qual doou US$ 1 bilhão, para financiar os projetos sociais e ambientais da Avina. Neste ato, anunciou sua retirada do mundo dos negócios, distribuindo um cartão no qual, abaixo do seu nome, estava escrito: “piloto de helicóptero e mergulhador”.

A conversão da biografia, de príncipe do amianto para filantropo socioambiental, parecia ter sido concluída com enorme sucesso. Reportagens laudatórias em revistas internacionais – e também brasileiras – o estampavam na capa ou em páginas nobres. Tudo parecia correr muito bem para Stephan Schmidheiny, como havia ocorrido para muitos antes dele em áreas as mais diversas. Até 13 de fevereiro de 2012. Nesta data, ele foi condenado, pelo Tribunal de Turim, a 16 anos de prisão e ao pagamento de 100 milhões de euros pela morte de milhares de pessoas por doenças relacionadas ao amianto, contaminadas em plantas da Eternit na Itália. O crime foi descrito como “desastre ambiental doloso permanente e omissão dolosa de medidas de segurança para os operários”. Em 3 de junho de 2013, a sentença não só foi confirmada em segunda instância, como foi ampliada de 16 para 18 anos de prisão. Está prevista para 2014 a sentença final, em Roma. O outro réu, o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, morreu no ano passado. Durante o julgamento, ao qual Schmidheiny não compareceu, o homem que foi festejado na revista americana Forbes como o “Bill Gates suíço” teve seu nome coroado pela palavra “assassino”.

O comportamento da Eternit foi sendo descrito no tribunal, hora após hora, por homens e mulheres que, ou perderam seus pais, mães, maridos, esposas e filhos por doenças causadas pelo amianto, ou estavam na iminência de perder, eles mesmos, sua própria vida em processos cancerígenos dolorosos antes de o julgamento chegar ao fim. Gente como a italiana Romana Blasotti Pavesi, que perdeu o marido, a irmã, um primo, um sobrinho e, por fim, a filha de mesotelioma causado por amianto. Apenas o marido tinha trabalhado na fábrica. Cidadãos de Casale Monferrato, a cidade dominada por uma planta da Eternit durante quase todo o século 20, relataram o momento em que descobriram que não apenas os operários e seus familiares morriam, mas também pessoas de outras profissões (jornalistas, médicos, professores etc), que nunca haviam manipulado diretamente a fibra, mas tinham sido afetados pela contaminação ambiental.

Na sentença, afirma-se que, em 1976, diante das crescentes notícias sobre a relação entre asbesto e doenças crônicas e fatais, a indústria promoveu uma conferência na Alemanha para discutir estratégias para enfrentar o problema sem deixar de produzir com amianto. Stephan Schmidheiny estava presente neste encontro. Também enfatiza-se que ele participou de ações visando a confundir a opinião pública, ao desqualificar ou lançar dúvidas sobre as pesquisas científicas que comprovavam o efeito nefasto da fibra mineral para a saúde. Por fim, a corte concluiu: “Stephan Schmidheiny estava completamente consciente em 1976 dos estudos epidemiológicos para a relação causal entre aspirar as fibras de amianto e o estabelecimento de doenças”. Após a sentença, a mesma imprensa que por anos louvou o empreendedorismo, a caridade, a visão e o desprendimento do bilionário foi obrigada a recuar.

Ao mirarem a biografia de Stephan Schmidheiny, as vítimas do amianto estão disputando a escrita da história. Mas num momento muito particular. Enquanto a maior parte do mundo desenvolvido já baniu a matéria-prima e lida com o passivo humano e ambiental, parte das potências emergentes, como o próprio Brasil, ainda é bastante permeável ao lobby da indústria, quando não conivente com o adoecimento e a morte de pessoas. O Brasil é hoje o terceiro produtor mundial de amianto, o terceiro exportador e o terceiro usuário de amianto. É interessante perceber que, no Brasil, enquanto o amianto rareia nas regiões mais nobres das grandes cidades, continua amplamente usado em favelas e periferias, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas, e nas casas de pequenos agricultores, inclusive – e talvez especialmente – na Amazônia.

Neste contexto, a disputa narrativa sobre a biografia de Stephan Schmidheiny torna-se estratégica para a luta pelo banimento do amianto. E poderá definir tanto a aceleração de alguns desfechos como a inclusão de novos capítulos numa história em construção. Não há dúvida de que o amianto é um thriller real que poderia dar um filme tão revelador sobre os métodos de sua indústria quanto foi O Informante para o ramo do tabaco. Ou mesmo um filme como Obrigado por fumar, sobre “os lobistas do mal”. Há poucas dúvidas de que passará para a história como um dos maiores escândalos trabalhistas e sanitários do século 20 – e 21. Mas a imagem e o lugar de personagens centrais como Schmidheiny ainda estão em disputa.

Ao empreenderem batalhas articuladas para cassar seus títulos, prêmios e honrarias, as vítimas do amianto desejam impedir que triunfe a narrativa de Schmidheiny, mais bem exposta numa versão antiga de sua biografia, contada em primeira pessoa, mas já substituída em seu site oficial: “A família Schmidheiny sempre vivera discretamente, afastada do olhar público. De repente, me vi nas primeiras páginas dos jornais, ligado aos efeitos nocivos do amianto, os mesmos efeitos contra os quais eu tentava proteger os meus empregados e o grupo. Isso foi muito difícil, não só para mim, como também para minha família e meus amigos. Naquele momento, concluí que era incapaz de calcular por mim mesmo o verdadeiro grau dos riscos envolvidos na fabricação de produtos de cimento-amianto. Nossos assessores achavam que os estudos científicos destinados a provar os efeitos nocivos desse material estavam cheios de contradições. Eu percebia que a falta de um consenso científico e técnico transparente em relação ao amianto e a imprevisibilidade dos seus efeitos impossibilitavam qualquer planejamento ou gestão de risco confiável. Concluí então que essa não era uma perspectiva muito promissora para estar envolvido. Ao mesmo tempo, tomei uma decisão radical. Sem ter a mais mínima ideia de como iríamos implantar a mudança, anunciei publicamente que o grupo interromperia a fabricação de produtos contendo amianto. Posso me lembrar muito bem das palavras de um dos gerentes técnicos depois do meu anúncio: ‘O jovem Schmidheiny está louco! Quer fabricar produtos Eternit sem amianto. É como querer encontrar água seca…’ Tomei a decisão de não utilizar mais amianto baseado nos problemas de saúde e ambientais associados a esse mineral. Mas também tive a impressão de que, em uma época de crescente transparência – bem como de preocupação com os riscos para a saúde – seria impossível desenvolver e manter um negócio bem sucedido baseado no amianto. Tal intuição fez com que eu começasse a considerar seriamente a relação entre os negócios e a sociedade. Foi um período doloroso, mas uma preparação de valor inestimável para minha posterior dedicação a uma posição de liderança em assuntos relacionados aos negócios e sociedade.”

No site atual, este momento é assim resumido na sua biografia, agora contada em terceira pessoa: “O jovem advogado licenciado ingressou na Eternit Suíça quando tinha somente 29 anos de idade, assumiu sua liderança depois de pouco tempo e imediatamente começou a impulsionar a saída do processamento de amianto, que foi considerado um logro pioneiro em nível mundial”.

Esta versão é considerada pelas vítimas e por seus advogados um produto do competente processo de lavagem de sua biografia. “Não vou entrar no mérito de sua vida posterior ou de seu dinamismo como empreendedor. Mas não há sentido purificador nesta venda. Schmidheiny fez uso econômico da Eternit, com frutos econômicos. Não foi uma doação. Ele a vendeu, fazendo com que os produtos de amianto continuassem a ser produzidos pelo novo comprador”, afirma Mauro Menezes, advogado da ABREA. “Não convém ao nosso país manter uma medalha concedida a alguém que posteriormente foi condenado criminalmente por omissão dolosa de proteção à saúde de milhares de pessoas.” Roberto Caldas, também advogado da ABREA – e hoje juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos – afirma: “Uma comenda é um sinal para a sociedade de que aquele indivíduo agraciado realizou um grande serviço ao país. A partir do momento em que se percebe que o indivíduo ‘fugiu’ do que se acreditava, nada mais natural que a honraria seja retirada. Não pode um criminoso continuar ostentando uma honraria como essa e comprometendo a imagem do país”.

No Brasil, a principal protagonista da luta pelo banimento do amianto é a engenheira Fernanda Giannasi. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho por 30 anos, ela aposentou-se em agosto para se dedicar em período integral à causa que já lhe rendeu ameaças de morte. “Lutar para retirar a Ordem do Cruzeiro do Sul dada a Schmidheiny é mais uma frente para passar a limpo a história desse crime social ‘quase perfeito’”, afirma. “Essa luta significa a desglamourização de um personagem que foi entronizado pelo movimento ambientalista no início da década de 90 como um guru, mas que faz parte do grande quebra-cabeça que é a extraordinária história desse crime corporativo industrial multinacional, que atravessou todo o século passado quase impune.”

A disputa pela biografia do bilionário suíço não será fácil. A aura de Schmidheiny se mantém em algumas esferas elevadas mesmo após a condenação no Tribunal de Turim. A troca de cartas entre o escritório de advocacia que representa as vítimas italianas e a Universidade de Yale é uma prova. Esta foi a resposta da direção de Yale ao pleito das vítimas: “Yale concedeu a honraria ao senhor Schmidheiny pela sua defesa em prol de um desenvolvimento e crescimento econômico sustentáveis. A decisão de premiá-lo foi tomada por um comitê que levou em conta todo o seu histórico: o de um filantropo que usou sua riqueza para destinar fundos ao crescimento sustentável na América Latina e em todo o resto, um pioneiro defensor internacional na mudança da forma como as empresas encaram a sustentabilidade ambiental e um empresário que herdou e desmantelou um processamento de amianto de décadas. Não há registro de Yale ter revogado alguma vez um título honorífico e nós não estamos considerando este passo no caso do senhor Schmidheiny”.

Christopher Meisenkothen, advogado que representa as vítimas italianas, retrucou: “Uma diminuição real do valor das honrarias de uma instituição ocorre quando o grupo de agraciados é afetado pela inclusão de personagens controversos. Eu gostaria de imaginar que uma instituição como a Universidade de Yale gostaria de manter e proteger a integridade de seus títulos honoríficos, assim como promover os altos padrões éticos com os quais reconhece os contemplados”.

O advogado das vítimas pediu a relação de doações feitas por Schmidheiny à universidade. Numa primeira carta, Yale negou que tenha ocorrido qualquer aporte de recursos. Meisenkothen, então, enviou cópias de materiais de divulgação da própria universidade, nos quais consta uma doação feita pela Fundação Avina à Yale, pouco depois da concessão do título ao bilionário. A direção de Yale desculpou-se, explicando que tinha pesquisado apenas nas “bases digitais” e não nos “arquivos de papel”, razão pela qual acabou por fornecer uma “informação incorreta”. Mas, ainda assim, reiterou sua decisão de não revogar o título. Os familiares das vítimas prometem continuar pressionando a universidade e a opinião pública americana e internacional pela revogação da honraria.

Yale é uma instituição privada. No caso brasileiro é diferente. A Ordem do Cruzeiro do Sul é uma condecoração concedida pelo Estado, um reconhecimento dos serviços prestados por um estrangeiro ao país, envolvendo, portanto, o conjunto da população brasileira. Entre as estratégias planejadas pelas vítimas brasileiras do amianto, além de uma intensa campanha nas redes sociais, está a de que um parlamentar assuma a causa e a medalha seja cassada pelo legislativo. Há pelo menos um precedente tramitando no parlamento: o pedido de retirada da Ordem do Cruzeiro do Sul concedida a Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru, hoje condenado por graves violações aos direitos humanos.

A lavagem de biografia não é uma novidade histórica. Poderia apenas ser mais explorada por historiadores. Em geral há um caminho tortuoso e uma fileira de lacunas entre a pessoa de carne, osso, paixões e vilanias e o personagem “limpinho” que vira estátua nas praças de cada cidade. A diferença, do passado para o presente, e em especial do presente com internet, é que essa transição pode não ser completada com o sucesso habitual.

Se antes bastava poder econômico e político para criar uma nova imagem, hoje os obstáculos são muitos. A começar pelo fato de atores, até então sem voz, terem passado a gritar nas redes sociais e a organizar campanhas barulhentas com informações que o dono da biografia até então heroica preferiria apagar. Não gritos vazios, mas ancorados em documentação: as vítimas italianas entregaram à Universidade de Yale uma carta de apoio à sua causa com o nome de mais de 70 renomados cientistas do mundo inteiro, assim como as principais conclusões da Corte de Turim, retiradas de uma sentença com mais de 800 páginas. Conectadas pela tecnologia e articuladas nas redes sociais, as vítimas do amianto prometem enfrentar os marqueteiros e gerenciadores de crise do bilionário suíço e, com pouco dinheiro, mas muitos apoiadores pelo mundo, construir uma narrativa mais complexa para a vida de Stephan Schmidheiny. Disputam a escrita da história não no futuro – mas agora, no presente.

Stephan Schmidheiny não é o único magnata que, depois de uma vida turbulenta no mundo dos negócios, decidiu tornar-se um filantropo. Seja para expiar os pecados anteriores, seja por estratégia de marketing, seja para escapar de futuras condenações, seja por – improvável, mas não impossível – real arrependimento. Seja por tudo isso e mais alguma coisa. O mundo atual é movido por alguns destes homens que investiram ou doaram fortunas obtidas de forma questionável, para dizer o mínimo, em fundações que financiam causas “certas”. Como a própria Fundação Avina, de Schmidheiny, que está longe de ser a única.

Essa realidade traz alguns dilemas éticos a pessoas, até prova em contrário idôneas e bem intencionadas, que se beneficiam deste apoio para colocar em curso ações importantes de redução da pobreza, proteção socioambiental ou mesmo de democratização da informação. Parece uma equação simples, mas está longe de ser. Por um lado, o dinheiro obtido de forma questionável, ou mesmo ilícita ou até criminosa, é usado para projetos de importância comprovada. Por outro, aqueles que são financiados por este dinheiro ajudam a promover e a legitimar a lavagem da biografia do doador, ao colaborar para passar uma borracha sobre a história. Movimentos como o das vítimas do amianto, ao mirar na imagem de filantropo de Stephan Shmidheiny, abrem uma discussão espinhosa que poucos estão interessados em levar adiante. Mas que talvez fosse preciso ter a coragem de enfrentá-la, em nome da transparência, mas também porque ampliar a complexidade dos novos dilemas nos amadurece como sociedade.

Vilão ou herói? Stephan Schmidheiny possivelmente não é nem um nem outro, talvez ambos em momentos e plateias distintas. Entre os seus erros talvez esteja o de acreditar que poderia se absolutizar como um herói, o que, de fato, quase conseguiu. Mas a Eternit fabricou fantasmas demais, numa época conectada como nenhuma outra antes, para que isso se tornasse possível. Estes fantasmas falam agora pela boca de seus familiares ainda vivos. E falam em rede, para milhões.

Como ser humano, nem herói nem vilão, a tragédia de Stephan Schmidheiny é fascinante. Assumir os atos controversos de sua família por quase um século seria o mesmo que promover a destruição da memória familiar, o que não é fácil para nenhuma pessoa, rico ou pobre. Faz sentido acreditar que a única escolha ética possível teria sido revelar e admitir a parte sombria da história da Eternit, responsabilizar-se pelo passivo humano e ambiental, indenizando e apoiando os trabalhadores, assim como promovendo a descontaminação das cidades onde existiam fábricas. E doar o restante do dinheiro para a pesquisa de tratamento e cura para as doenças do amianto. Não por medo de ser preso, embora ele já tenha dito à imprensa que não ficará “preso em uma cadeia italiana”, mas porque é o moralmente correto, ainda que imensamente duro.

Mas esse caminho não é o dos heróis, só o dos homens. Estes precisam conviver com seus erros e covardias, quando não com as mãos manchadas de sangue, muitas vezes em praça pública. O caminho dos homens não rende títulos em Yale nem medalhas do Itamaraty nem lugar de honra em conferências mundiais de meio ambiente nem destaque em museus badalados de arte. Stephan Schmidheiny preferiu vender a empresa, transferir o passivo para outras mãos e se concentrar em investir na construção de uma imagem de benemérito. Ele, que segundo o Tribunal de Turim foi conivente com tanto mal, quis talvez demais: um lugar na história como herói. E então suas vítimas apareceram para lembrá-lo de que é um vilão – e de que os cadáveres permanecerão insepultos enquanto não houver justiça.

Em 19 de dezembro de 2003, João Francisco Grabenweger, operário da Eternit de Osasco, na Grande São Paulo, que, por falar alemão, foi uma espécie de intérprete e cicerone do jovem Schmidheiny em seu estágio na fábrica brasileira, escreveu uma carta ao bilionário. A seguir, um trecho: “Permita-me perguntar-lhe, senhor, você já leu algum artigo sobre as vítimas dos campos de concentração nazistas? Aquelas que sobreviveram recebem compensação financeira substancial com todos os direitos possíveis. Quando nós, ex-empregados da Eternit, fomos mantidos completamente ignorantes do fato de que trabalhávamos em um campo de concentração de amianto. Sendo bons funcionários, trabalhamos com o melhor que tínhamos, com completo orgulho e dedicação, para criar o império de cimento de amianto da família Schmidheiny. Mas o que recebemos da ‘Mãe Eternit’? O que adquirimos foi uma bomba com detonador de ação retardada que havia sido implantada em nossos tórax. (…) Peço-lhe que nos ajude a garantir a justiça com a qual temos sonhado para aqueles que deram suas vidas por você, senhor, e por sua família, e seus negócios.”

João Francisco Grabenweger morreu de asbestose, em dolorosa asfixia, em 16 de janeiro de 2008. Nunca recebeu resposta. A Eternit, em outras mãos, lhe ofereceu US$ 27 mil para abandonar seu processo judicial por indenização.

De algum modo sua carta, anos antes do julgamento no Tribunal de Turim, lembrava a Stephan Schmidheiny que, do destino humano, nem aqueles que se acreditam deuses escapam.

(Publicado no El País em 06/01/2014)

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