Vagina

Será que a revolução sexual falhou? Não é curioso que, neste ponto da aventura humana, o órgão feminino ainda ameace tanto? Evelyn Ruman, Casey Jenkins e Naomi Wolf são algumas das artistas que questionam a naturalização da violência contra o desejo das mulheres

 

Evelyn Ruman conta que desembarcou no Vaticano sentindo-se uma espiã da Guerra Fria. Ela tinha se imposto uma missão arriscada, subversiva. Dentro do bolso da sacola de equipamento fotográfico havia um vidrinho com um líquido vermelho e um tanto viscoso. Evelyn se agachou, abriu a tampa e jogou seu conteúdo no chão. O fluido se espalhou sobre a calçada, as pedras. Ela sacou a câmera fotográfica e começou a documentar sua transgressão. Desenrolou a imagem de uma mulher nua, de costas, e a estendeu no chão. O vermelho agora escorria de interiores femininos. Nenhum guarda apareceu para impedi-la, nenhum turista a perturbou. Missão cumprida. Evelyn acabara de jogar sangue menstrual no centro do poder católico.

– Por que você quis fazer isso?, pergunto a ela. “Porque a Igreja Católica representa tudo aquilo que vem oprimindo as mulheres por séculos, tornando a vagina algo feio e fazendo do sangue menstrual uma coisa nojenta.”

Era janeiro de 2012 e Evelyn participava da Bienal Internacional de Arte de Roma. Durante dois anos ela armazenara seu sangue menstrual na geladeira de casa, em São Paulo, para realizar a exposição que chamou de Sangro, logo existo. Seu casal de filhos, hoje com 23 e 18 anos, brincava que era o “carnição da mamãe”. Ao fazer esse percurso artístico, Evelyn se preparava para um momento doloroso para uma mulher: ter seu útero arrancado devido a um mioma. “Sempre gostei muito de menstruar”, diz ela.

Evelyn Ruman/Divulgação

Evelyn Ruman (Divulgação)

Quando foi a Roma, Evelyn percebeu que sua menstruação estava atrasada. Para consumar seu objetivo, precisou pedir um pouco de sangue a uma feminista italiana, Sara Sacerdócio. Fez sua performance com sangue emprestado. A foto (acima) é uma das 27 imagens exibidas no EG2O (Escritório Galeria 2Olhares), na cidade histórica de Paraty, no litoral fluminense, até 6 de janeiro. Cinco delas ilustram esta coluna.

Evelyn trabalha desde 1988 com a autoimagem de mulheres. Presidiárias, internas de manicômios judiciários e instituições psiquiátricas comuns, camponesas de origem indígena, meninas com síndrome de Down, soropositivas para o vírus da Aids, ameaçadas por violência doméstica, velhas. Mulheres que a maioria prefere não enxergar. Nunca teve dificuldade para expor seu trabalho, premiado e reconhecido internacionalmente. Mas, quando tentou exibir sua obra moldada em sangue menstrual, encontrou as portas fechadas. Para mostrar o rosto de mulheres condenadas à invisibilidade, foi acolhida. Para mostrar seu corpo que sangra pela vagina não havia espaço. Talvez porque, ao expor o que se prefere escondido e envergonhado, a vítima tivesse virado o jogo. Em vez de compaixão, agora provocava medo.

Evelyn descobriu-se sozinha. Mesmo outras mulheres, amigas fotógrafas, em todo o resto libertárias, classificaram suas fotos como “nojentas”. “Só consegui fazer a exposição porque abri minha própria galeria”, diz Evelyn. “Dá vontade de botar uma câmera para filmar a reação de nojo das pessoas, muitas delas mulheres, quando veem as fotos e percebem que é sangue menstrual, sangue que saiu de uma vagina, a minha. Se o sangue saísse de um pinto, será que teriam tanto nojo?”

(Estou presumindo, claro, mas acredito que parte daqueles que leem este texto, a esta altura já soltaram alguns “que noooojo!”. Acertei? Ao comentar com alguns amigos que pretendia escrever sobre o tema, a reação foi: “Mas por quê?”. Por causa desta tua cara, respondi.)

Neste exato momento, a australiana Casey Jenkins realiza a performance que intitulou de Casting Off My Womb (em tradução livre, Tricotando o meu útero). A cada manhã, ela enfia um novelo de lã clara na sua vagina e tricota um cachecol. Ao menstruar, o tricô ganha rajados de vermelho sanguíneo e molhado. (vídeo aqui). O objetivo da intervenção, conforme ela declarou à imprensa, é tornar a vagina da mulher “menos chocante ou assustadora”. Casey queria mostrar que “a vagina não morde” ao ligá-la a um ato acolhedor e “quentinho”, identificado com avozinhas clássicas, como o de tricotar uma manta. O cachecol uterino que passa sensualmente pela vagina de Casey, acaricia seus grandes e pequenos lábios e faz cócegas no seu clitóris estará concluído ao final de 28 dias.

(Mais nojo?)

O que, afinal, Casey está tricotando, lá no outro lado do mundo? O que Evelyn está tentando nos dizer com seu sangue, no lado de cá do mundo?

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

É provável que a escritora americana Naomi Wolf, autora de Vagina: uma biografia, que acaba de ser lançado em português pela Geração Editorial, tenha razão ao dizer que “a revolução ocidental sexual falhou”. Ou, pelo menos, “não funcionou bem o suficiente para as mulheres”. A própria trajetória do livro é a prova de que a vagina segue sendo ameaçadora – como corpo, como imagem, como palavra. Me arriscaria a dizer que até mais ameaçadora do que em décadas passadas. Quando a obra foi lançada, em 2012, no mercado de língua inglesa, a loja virtual da Apple colocou asteriscos no título: V****a. A velha vagina, censurada pela marca que representa o ápice do avanço tecnológico do nosso tempo, foi quase uma performance da denúncia contida no livro. Mas involuntária, o que torna tudo mais interessante. Me parece que o episódio fala mais de um momento de potência da vagina do que de vitimização.

Em seu livro, Naomi Wolf compreende a vagina como “o órgão sexual feminino como um todo, dos lábios ao clitóris, do introito ao colo do útero”. Esse todo forma uma complexa rede neural, na qual há pelo menos três centros sexuais – o clitóris, a vagina, o colo do útero – e possivelmente um quarto – os mamilos. Naomi defende que a vagina não é apenas carne, mas um componente vital do cérebro feminino, ligando o prazer sexual amoroso à criatividade, à autoconfiança e à inteligência da mulher. A conclusão é óbvia e não é nova, nem por isso menos importante: massacrar a vagina – ignorando-a ou tornando-a algo sujo, proibido e chulo, seja pelas palavras ou pelas ações – massacra as mulheres na inteireza do que são. Ao aniquilar a vagina, aniquila-se a mulher inteira, sequestra-se a sua potência. “Ao contrário do que somos levados a crer, a vagina está longe de ser livre no Ocidente nos dias de hoje”, diz Naomi. “Tanto pela falta de respeito como pela falta de entendimento do papel que ela exerce.”

Criticada até mesmo por parte das feministas, a biografia da vagina faz um percurso bastante curioso. Mesmo quem a elogia tem sempre uma graça para dizer, uma piadinha, algo que garanta um distanciamento desta escritora que a certo momento chega a falar em “dança da deusa”. Parece continuar obrigatório ser engraçadinho com qualquer menção à palavra vagina. Adultos maduros se expressam como se fossem adolescentes soltando risadinhas, o que em si já diz bastante coisa. Ao anunciar que escrevia o livro, Naomi foi recebida para um jantar entre amigos com um cardápio temático: massa em forma de vaginas e grandes (bem grandes mesmo) salsichas. Como finalização, filés de salmão, referindo-se ao cheiro de peixe relacionado ao órgão sexual feminino. Para aqueles homens intelectualizados de Nova York, a obviedade, um tanto bocejante, parecia muito divertida. Depois da “homenagem”, Naomi amargou um bloqueio criativo: por seis meses não conseguiu escrever uma palavra do livro. “Senti que havia sido punida – tanto no nível criativo quanto no físico – por ir a um lugar aonde as mulheres não deviam ir”, conta.

Se o livro de Naomi Wolf apresenta generalizações e pode ser questionado em alguns ou vários aspectos, como todos os livros, aliás, acho difícil que alguém, seja homem ou mulher, não tenha a vida ampliada por questões mais interessantes depois de ler Vagina: uma biografia. Se não fosse por mais nada, pelo simples fato de que, para muitos, demais, a vagina ainda é uma fenda, uma ferida, um buraco.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

A pergunta que Evelyn, Casey e a própria Naomi nos propõe, a partir da expressão de cada uma, é por que, no século 21, no Ocidente, a vagina ainda provoca tanto antagonismo. E que efeito isso tem sobre a experiência cotidiana das mulheres, principalmente, mas também a dos homens. Ou sobre como isso empobrece enormemente a nossa vida sexual e afetiva, assim como a nossa vida como um todo. O maior mérito de cada uma delas ao se arriscar ao escárnio público – e, neste caso, sempre se pode contar com ele – é o de questionar a naturalização de um olhar sobre a vagina e as mulheres que nos viola a todas. E talvez a todos. Ao naturalizá-lo, oculta-se a trama histórica e não linear em que esse olhar foi sendo tecido, assim como as relações de poder que o determinam.

Não é tremendamente instigante que, neste ponto da aventura humana, a vagina das mulheres ainda assombre tanto que a violência contra ela parece ter recrudescido? Na época em que as revistas femininas ocupam uma parte considerável de suas páginas com lições para melhorar a performance sexual das mulheres, a vagina, aquela que parece não caber neste discurso atlético, vive tempos de escândalo. No mesmo período em que a Apple censurou a vagina como palavra no título do livro de Naomi Wolf, no Brasil o crítico de arte Jorge Coli teve interrompida a transmissão pela internet de sua palestra pela Academia Brasileira de Letras. Foi censurado no momento em que pronunciou a palavra “buceta” e mostrou A origem do mundo, o famoso quadro do francês Gustave Courbet, que retrata uma vagina entre coxas abertas. Ao longo de sua acidentada trajetória, o quadro esteve coberto por um véu, fosse uma cortina ou mesmo uma outra pintura. Só foi exposto sem nada ocultando-o depois que a família de seu último dono, o psicanalista Jacques Lacan, o doou ao Museu D’Orsay. Em fevereiro deste ano, a revista francesa Paris Match anunciou um “furo de reportagem”: a descoberta do suposto rosto da vagina famosa. Desta vez, o rosto que tentaram lhe impor, como uma parte faltante, teria a função de um véu definitivo. (Escrevi sobre isso aqui e aqui.)

Evelyn, Casey, Naomi, assim como outras artistas mundo afora, têm corajosamente tentado nos chamar a atenção para o fato de que tanto a censura quanto a piada ocultam algo que precisa ser enfrentado. Enfrentado porque estreita a nossa vida psíquica, afetiva e sexual, mas também porque é gerador de violência. Nas universidades brasileiras, os trotes às calouras têm se transformado nos últimos anos em episódios chocantes de agressões contra mulheres. Na Universidade de Brasília (UnB), em 2011, calouras tiveram de lamber leite condensado numa linguiça encapada com camisinha. Em 2012, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), duas estudantes foram amarradas a um poste. Os veteranos vestiram-se de policiais militares e colocaram camisinhas na ponta de cassetetes, obrigando-as a chupar os bastões. Em 2013, na UFMG, uma estudante com o corpo pintado de preto carregava um cartaz que dizia “caloura Chica da Silva”, em alusão à famosa escrava com este nome. As mãos estavam presas por uma corrente, que era controlada por um veterano. Também neste ano, uma caloura da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia denunciou à polícia ter sido obrigada a lamber pênis e testículos de bois. Ela desmaiou, sua boca sangrava. Na Universidade de São Paulo, no campus de São Carlos, realizou-se o concurso “Miss Bixete”, no qual as calouras são obrigadas a fazer um “desfile de beleza” repleto de situações humilhantes. Durante o trote, veteranos tiraram a roupa e simularam fazer sexo com uma boneca inflável.

Distribuíram ainda um panfleto parodiando o best-seller Cinquenta Tons de Cinza, com os seguintes dizeres: “Cinquenta golpes de cinta – a cura para o fogo no rabo dessa mulherada mal comida”. A série de violências sexuais contra as calouras torna-se ainda mais espantosa – e é preciso se espantar muito – se pensarmos que foram perpetradas por homens jovens e escolarizados, nascidos pós-revolução sexual, filhos de mulheres que usam anticoncepcionais e trabalham fora de casa.

Na semana passada, o radialista Fabiano Gomes, da Rádio Correio, da Paraíba, afirmou no programa Correio Debate que a polícia não deveria perder seu tempo investigando os casos em que homens divulgaram na internet imagens de mulheres nuas ou em relações sexuais. Ele se referia a um caso ocorrido na cidade paraibana de Pombal e ao recente suicídio de Júlia dos Santos, de 17 anos, no Piauí. Júlia e a gaúcha Giana Fabi, de 16 anos, enforcaram-se em outubro depois de sofrerem linchamento moral por terem fotos e vídeos íntimos postados nas redes sociais. Algumas das frases usadas pelo radialista: “Sem-vergonha é quem manda foto nua para o namorado”, “Foram pro espelho mostrar o chibiu”, “A cocotinha tirou foto nua pro namorado bater punheta”.

Se houve reação formal de repúdio ao episódio, vale a pena prestar atenção também na gravação, para escutar a opinião dos ouvintes, homens e também mulheres, ao apoiar as agressões do radialista. Se os comentários são uma amostra do senso comum, as meninas que mostraram seus corpos nus a homens em quem confiavam são “vagabundas”. É aterrador constatar que, às vésperas de 2014, depois de todas as conquistas feministas, num país governado pela primeira vez por uma mulher, duas adolescentes tenham sido tão humilhadas por terem seus corpos e seu desejo sexual expostos que preferiram morrer. Ao sacrificarem-se (ou serem sacrificadas), seguem sendo humilhadas. Na segunda década do século 21, no Brasil associado ao mito da liberação sexual dos trópicos, o corpo e o desejo feminino são tão ameaçadores que a morte não basta.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

A violência contra a vagina é disseminada no cotidiano, dentro de casa, no trabalho, no percurso entre a casa e o trabalho, em todos os espaços, mesmo os de lazer. As mulheres estão tão habituadas a ela desde que nascem que já a internalizaram como “normal”. Ou reagem muito menos do que deveriam, resignadas por uma vida inteira de agressões tão corriqueiras que fingem não ligar. Que neste contexto ainda consigam ter desejo sexual e prazer com suas vaginas é um tanto impressionante.

Como ilustração, um resumo de alguns – só alguns – momentos da minha trajetória pessoal. Na primeira vez em que fui tocada por um homem, eu era criança. O homem era um menino ainda menor do que eu. Ao passar por mim na rua da cidade pequena, deu um tapa forte na minha vagina e disse: “bucetuda”. Foi meu primeiro contato. Voltei para casa chorando, mas me sentia tão envergonhada por ter uma vagina que não contei a ninguém. Adolescente, ao caminhar no centro de Porto Alegre de minissaia, um homem cuspiu nas minhas coxas. No ônibus lotado da faculdade, tentaram se masturbar na minha bunda mais de uma vez. Num Dia das Mães levei minha filha de nove anos ao cinema. Um homem sentou-se ao nosso lado e começou a se acariciar. Adulta, no trabalho, nas redações por onde passei, ouvi de tudo sobre a vagina, assim como minhas colegas. A melhor de todas: “A mulher é a parte chata da buceta”. Era dita por um homem inteligente e realmente gentil, que acreditava estar fazendo uma graça com colegas “sem frescura”. Nós ríamos para não sermos “a parte chata – e ainda por cima sem humor – da buceta”. Toda vez que escrevo algo que contraria algum grupo, como determinada polícia, recebo ameaças como: “vou te estuprar” ou “quero ver tua buceta”. Quando um líder evangélico discordou de um artigo que escrevi sobre as mudanças no Brasil provocadas pelo crescimento das igrejas neopentecostais, ao dar uma entrevista para o New York Times, entre todas as palavras disponíveis para me definir, ele escolheu esta: “tramp”. E lá estava eu, tomando café tranquilamente num sábado pela manhã, na minha casa, com minha família, quando o telefone começou a tocar: “Você viu que foi chamada de vagabunda no Times?”.

Assim é. Hoje, agora. E não me parece que a resposta para a violência naturalizada contra a vagina e o desejo sexual feminino seja transformar-se numa atleta sexual com orgasmos performáticos. Este é possivelmente um padrão para o consumo e para o mercado, muito mais à imagem, também estereotipada, do que seria um comportamento masculino na cama. Soa como uma resposta à repressão histórica, mas na prática está mais para uma embalagem palatável e enganadora para a mesma repressão, na medida em que não deixa de ser mais uma tentativa de controle sobre o corpo e o desejo feminino. A imagem da atleta sexual, determinada e agressiva, pode ser só uma outra prisão para as mulheres. A vagina e o desejo feminino, diferentes em cada uma, são muito mais complexos e potentes do que isso. Vale a pena lembrar que, na pornografia, a mulher que expõe sua vagina, seu ânus, sua nudez em cada detalhe e em close é aquela da qual menos sabemos.

Evelyn Ruman (Divulgação)

Evelyn Ruman (Divulgação)

Por tudo isso Evelyn, Casey e Naomi são tão importantes. O livro de Naomi costuma peregrinar por diferentes seções das livrarias, da pornografia a assuntos gerais, já que parece não haver lugar para encaixar a vagina. Evelyn precisou abrir uma galeria para conseguir expor suas fotos com sangue menstrual. E as matérias sobre Casey, na internet, em geral são colocadas em seções da vida “bizarra”, misturada a outras “bizarrices” como, por exemplo, vender carne de rato. A revista Time, que teve a clarividência de colocar sua performance como “arte”, decidiu fazer um título engraçadinho: Not Available on Etsy: This Woman Knits With Her, Uhhh Yeah (em tradução livre: “Não disponível na Etsy: esta mulher tricota com sua, hããã… Isso mesmo”) Sim, a vagina parece continuar impronunciável.

Quem escreve sempre tem um desejo. O meu é que talvez, em vez de dizer “que nojo!”, ao ler este texto você contenha a agressão ou a piada, sempre mais fáceis porque calam a possibilidade de reflexão. E comece a pensar sobre a vagina e o papel que cada um de nós desempenha, tanto nos atos quanto nas palavras quanto nas omissões, mesmo naqueles comentários que você acredita ser apenas uma mostra de humor, na reprodução de uma cultura de estupro e morte das mulheres. Morte física, mas também psíquica e criativa. Morte do desejo. Uma cultura que tem se ampliado e alcançado parâmetros novos com o poder de difusão da internet.

Se a violência contra a vagina tem aparecido – e em alguns casos aumentado – em diferentes espaços da sociedade, é legítimo pensar que o ímpeto de fortalecer a resposta repressiva ao desejo feminino possa revelar que as mulheres estejam assumindo um controle maior sobre seus corpos e a sua sexualidade. Neste sentido, a necessidade de fazer vítimas seria uma reação ao fato de as mulheres se recusarem com maior veemência a ocupar o lugar de vítimas. Nesta hipótese, a “Marcha das Vadias”, que começou no Canadá e ganhou o mundo e também o Brasil, é um exemplo contundente de uma ação feminina que desloca o imaginário, ao se apropriar da palavra da violência e transformá-la numa afirmação de potência, embaralhando a lógica machista. Mais uma vez, a vagina vive tempos turbulentos. Que são tempos de violência, já sabemos. Que sejam tempos de libertação, depende de nós.

(Publicado no El País em 09/12/2013)

 

Dois Josés e um Amarildo

Em seu gesto e na sua reivindicação, José Genoino e José Dirceu demonstraram não compreender o Brasil dos protestos: desde que as manifestações tomaram as ruas, presos políticos são os comuns

 

Havia algo de melancólico no braço erguido dos dois Josés, Genoino e Dirceu, ao serem presos por corrupção. E na afirmação: “Sou preso político”. O punho cerrado é o gesto de resistência de uma geração que lutou contra a ditadura, pegou em armas, foi presa, torturada e assumiu o poder na redemocratização do país. É também o gesto que não mais encontra destinatário para além de seus pares e de parte da militância do PT. É, principalmente, o gesto que não ecoa na juventude que se tornou protagonista dos protestos que mudaram o país. No Brasil que reconheceu Amarildo, o pedreiro, como mártir da democracia, a evocação vinda de José Genoino e de José Dirceu para ocupar esse lugar não encontra ressonância. Desde as manifestações de junho, os presos políticos são os comuns. Para um partido tão hábil em esgrimir simbologias, não compreender o Brasil forjado no ano que não terminou é uma tragédia talvez maior do que a prisão por corrupção de duas de suas estrelas históricas.

Mártir político é Amarildo de Souza. Favelado, negro, analfabeto, 43 anos, o ajudante de pedreiro conhecido como “boi” pela sua capacidade de carregar sacas de cimento desapareceu em 14 de julho ao ser levado a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de Janeiro. Amarildo, o homem comum vítima da política de criminalizar, torturar e executar os pobres. Uma política que atravessa a história do Brasil, persiste na redemocratização e se manteve nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Não era o primeiro a desaparecer depois de entrar num posto policial, não foi o último. Mas, pela primeira vez, um homem comum, carregando em si todas as marcas da abissal desigualdade do Brasil, foi reconhecido como um desaparecido político da democracia, lugar destinado a ele pela convulsão das ruas. Esta pode ter sido a maior transformação colocada em curso pelos protestos.

Preso político é Rafael Braga Vieira, 26 anos, catador de latas, morador de rua, negro. Ele foi preso em 20 de junho, durante uma manifestação na Avenida Presidente Vargas, no Rio. Já tinha sido preso por roubo em duas outras ocasiões e cumprido as penas completas. Desta vez, está encarcerado, sem julgamento, há cinco meses no presídio de Japeri. Seu crime: carregar uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária. E uma vassoura, mas esta não foi considerada suspeita. Seu caso foi relatado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Desaparecido político é Antônio Pereira, 32 anos, auxiliar de serviços gerais, negro. Sumiu em 26 de maio, em Planaltina, no Distrito Federal. Há suspeita do envolvimento de policiais militares no seu desaparecimento. Manifestantes marcharam até o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios para protestar pelo seu sumiço. A Comissão de Direitos Humanos do Senado passou a investigar o caso.

Morto político é Douglas Rodrigues, 17 anos, estudante do terceiro ano do ensino médio e atendente de lanchonete. Levou um tiro no peito de um policial numa tarde de domingo, 27 de outubro, quando estava diante de um bar com o irmão de 13 anos, na Vila Medeiros, em São Paulo. Só teve tempo de dizer uma frase, que se transformou num símbolo contra o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias do Brasil. Douglas fez sua última pergunta, um conjunto de vogais e consoantes onde cabia uma vida inteira, antes de cair morto: “Por que o senhor atirou em mim?”. Em protesto pela sua morte a população incendiou ônibus, carros e caminhões e depredou agências bancárias.

Estes – e muitos outros – tornaram-se os presos políticos, os desaparecidos políticos e os mortos políticos da democracia desde que os brasileiros redescobriram as ruas e deslocaram a política para fora dos partidos e das instituições. Por isso o braço erguido, o punho cerrado, dos dois Josés, Genoino e Dirceu, é tão melancólico. É o gesto que não se completa ao não encontrar o presente. Lula, o PT e a cúpula do governo concentram sua preocupação e seus esforços para reduzir o impacto das prisões de figuras históricas na eleição de 2014, na qual Dilma Rousseff é a favorita para um segundo mandato. Talvez devessem se dedicar mais a escutar as novas simbologias forjadas nos protestos.

Foi justamente Lula, com a enorme força simbólica de ser o primeiro homem comum a chegar ao poder no Brasil, que em 2009 compactuou com a desigualdade histórica e a política arcaica, em uma frase: “Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”. Ao pronunciá-la, protegeu o político oligarca que há décadas colabora para promover a miséria de milhões de homens, mulheres e crianças comuns no Maranhão, um dos estados mais pobres do país, e mostrou, como na frase famosa do clássico de George Orwell, hoje um clichê, que, quando convém, compartilha da ideia de que existem aqueles que são mais iguais que outros, tão iguais que merecem tratamento diferenciado.

A reivindicação de “preso político” por Genoino e Dirceu aponta para um cálculo que visa à biografia pessoal de cada um e à do próprio PT, assim como à disputa na construção da memória do país e do imaginário imediato. É também um apartar-se, na linguagem, do preso comum, uma impossibilidade de igualar-se a todos os outros detentos, que também declaram-se, em sua maioria, “inocentes”. Nos dias que antecederam à prisão, José Dirceu, aquele que anunciaria ser um “preso político da democracia por pressão das elites”, descansava num resort de luxo na Bahia que só as elites têm dinheiro para frequentar. Na primeira semana de prisão, foi citado, como exemplo de maus tratos, que Genoino estava tomando “água da torneira”. Isso num país em que “água da torneira”, mesmo depois de dois mandatos de FHC, dois de Lula e três anos do governo de Dilma Roussef, é sonho distante para muitos, uma realidade que o sertanejo Genoino conhece bem. Familiares de presos – estes comuns –, condenados sem crime e sem pena a noites de espera e humilhações para conseguir visitar pais, maridos e filhos na prisão da Papuda, em Brasília, revoltarem-se com o que definiram como “privilégio” daqueles que reivindicam o status de “presos políticos”.

Na prisão, a estrela do PT, que simbolizou – e ainda simboliza para muitos – tanta esperança de igualdade, foi reduzida ao sentido original do jargão publicitário: os presos do “mensalão” ganharam na prática e no imaginário da população o status de gente diferenciada. Esta é uma perda importante para o patrimônio simbólico construído pelo partido a qual seus líderes parecem estar dando pouco valor. O espetáculo promovido pelo ministro Joaquim Barbosa, ao levar os presos algemados para Brasília no feriado da Proclamação da República, foi um excesso em um momento histórico que exigia serenidade e contenção. Deixar presos de regime semiaberto em regime fechado foi um abuso, a que milhares são submetidos por falta de vagas no cotidiano do sistema prisional. A saúde e a vida de José Genoino devem ser protegidas. Não por conta de sua história, mas porque é dever do Estado proteger todos os presos sob sua tutela.

Defender a proteção da vida em nome da “dignidade da biografia” é uma distorção. Só colabora para justificar atrocidades cometidas fora e dentro do sistema prisional contra aqueles cuja história é reduzida ao termo encobridor de “bandido”. Os mesmos que, com frequência escandalosa, são executados sem julgamento num país que não tem pena de morte. Crimes cometidos, por exemplo, por polícias como a Rota, a brutal tropa de elite da PM paulista, há quase duas décadas sob o comando dos sucessivos governos do PSDB. Mas é preciso lembrar que também faz parte da biografia de Genoino tê-la defendido em 2002, ao se candidatar ao governo de São Paulo, numa frase que obedecia ao pragmatismo eleitoreiro: “Uma política de direitos humanos não deve impedir a Rota de agir com energia e com força”.

O fato é que Genoino só teve seu direito assegurado por ser um preso privilegiado. Mas a distorção não é a de ele ter recebido assistência, mas a de que todos os outros presos continuem sem ela, a de que é preciso ser um preso “diferenciado” para ter seus direitos básicos garantidos pelo Estado. As vozes que se ergueram para denunciar os maus tratos a que ele era submetido jamais foram tão fortes para defender os presos comuns que adoecem de tuberculose e Aids no cárcere e morrem sem tratamento. É um passo atrás no processo civilizatório quando as pessoas gozam com o sofrimento de Genoino, como ficou explícito nos comentários das redes sociais, alguns torcendo até mesmo pela sua morte, como se não fosse de um ser humano que se tratasse. Mas é preciso escutar também os “bárbaros” para compreender que os mais pobres, sem nenhum problema com a lei, com frequência criminosa não encontram tratamento digno – ou mesmo tratamento algum – no Sistema Único de Saúde (SUS). E que cada vez mais é claro para todos que o dinheiro que se esvai na corrupção é também o que falta na saúde.

Do partido que diz falar em nome do homem comum esperava-se a grandeza de declarar que mártires são todos os outros. E que direitos de todos não podem ser privilégios de um. Ao demonstrar preocupação por Genoino, Dilma Rousseff demonstrou também omissão por todos os outros presos que vivem uma rotina de ilegalidades e desrespeitos aos direitos humanos mais básicos nas prisões do país que o PT governa há mais de uma década e que tem a quarta maior população carcerária do mundo. Sem esquecer que é dos estados o encargo de construir e administrar os presídios, assim como proteger os presos, obrigação em que todos, de diferentes partidos, falham. A responsabilidade ao perpetuar o que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso chamou de “masmorras medievais” é compartilhada. São mais de meio milhão de presos encarcerados em situação tão brutal que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a dizer que preferiria morrer a cumprir pena.

Assumir-se como preso comum teria sido um gesto simbólico mais forte para quem estreou na vida pública como preso político de uma ditadura, daquela vez sim sem julgamento. Aqueles forjados na luta armada contra um regime de exceção, ao assumirem o poder, lutaram menos do que deveriam pelos presos comuns que continuaram e continuam sendo torturados e mortos nas delegacias, cadeias e prisões do país. Ainda hoje a tortura dos presos políticos na ditadura, a maioria deles de classe média, recebe muito mais atenção do que a tortura sistemática dos presos comuns que perdura na democracia. Sem esquecer que a maioria dos presos torturados e confinados no sistema carcerário brasileiro é composta por negros e pobres.

É também de classe social que se trata. Não é um acaso que Manoel Fiel Filho, o operário assassinado pela ditadura, tenha muito menos ressonância na democracia do que Vladimir Herzog, o jornalista assassinado pela ditadura, embora a morte de ambos tenha impulsionado o movimento da sociedade pelo fim do regime militar. Quando Dirceu e Genoino levantam o braço e cerram o punho, declarando-se “presos políticos”, não estão denunciando apenas o que consideram um “julgamento de exceção”, mas colocando-se diante de todos os outros presos como “exceção”. É como dizer: “Eu estou aqui, mas sou melhor do que vocês”.

O espetáculo promovido por Joaquim Barbosa para o que chegou a ser interpretado, com um tanto de exagero, como uma “refundação da República” revelou mais do que estava programado. Mostrou esse lapso, esse corte no tempo, em que o braço erguido, o punho cerrado, se alienou das ruas. Quando as manifestações de junho começaram, a classe média conheceu a truculência da polícia sem perceber que estava diante de seu espelho. Nas quebradas de São Paulo, o poeta Sérgio Vaz ironizou: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando umupgrade para balas de borracha”. E logo as balas de chumbo acertaram dez (nove moradores e um policial), no complexo de favelas da Maré, no Rio, na sequência de um protesto. E então, em 14 de julho, ao desaparecer, Amarildo de Souza apareceu diante do Brasil.

Para a juventude que protestou – e em vários momentos expulsou das ruas os militantes de partidos, incluindo os do PT –, os presos políticos passaram a ser os manifestantes levados para a cadeia pela polícia do Estado democrático. Nesta apropriação simbólica – que se inicia antes, mas se consolida a partir dos protestos –, ao mesmo tempo retoma-se o conceito de preso político da geração de Genoino e Dirceu, forjado nos atos contra a ditadura, mas com um sentido próprio, na medida em que a democracia traz uma nova complexidade para as questões que envolvem o termo. No mesmo movimento, assume-se o nome e o rosto das vítimas anônimas e despolitizadas da violência racial e de classe e se dá a elas um conteúdo político. Como aconteceu com Amarildo – mas não só. Vale a pena lembrar que o estopim dos protestos foram 20 centavos – que muitos, em especial a classe média, acharam pouco para tamanha comoção, mas que se tratava da dor de milhões de invisíveis cuja vida é mastigada dia após dia em horas perdidas dentro de ônibus superlotados. Era uma escolha pelo homem comum – incorporando-o em cada um.

É importante perceber ainda que, para uma parte significativa dos manifestantes, os presos políticos são aqueles que a maioria dos partidos, assim como grande parte da imprensa, chamam de “vândalos”. Se os Black Blocs têm vários motivos para cobrir a face, há neste ato também uma escolha pelo anonimato, um fundir-se na multidão. Apoiando ou não suas ações, é preciso reconhecer que escolher se mostrar “sem rosto” é um gesto político de grande significado.

A cara desses movimentos sem líderes anunciados e com causas múltiplas é a da multidão. Mas, a cada momento, a multidão pode assumir a face de um anônimo, para lhe dar coletivamente um nome e uma história. Na hashtag do Twitter, #SomosTodosAmarildo. Ou somos todos aquele que é torturado, violado, morto. #SomosTodosUm. Esta é uma mudança profunda que os homens que levantaram o braço e cerraram o punho parecem não ter compreendido. Se ela parte dos protestos nas ruas, também os transcende para ocupar outros redutos. Enquanto a pequena saga de Genoino se desenrolava, na semana passada, Caetano Veloso e Marisa Monte cantavam no Circo Voador, no Rio, para levantar fundos para a família de Amarildo. A certa altura, a cantora pediu à plateia que vestissem a máscara de Amarildo que haviam recebido na entrada: “Vamos deixar registrado para a posteridade esse momento onde a gente incorpora o Amarildo e graças a isso consegue transformar tantas coisas. É assim que a gente consegue mudar esse país”. A máscara é a possibilidade de ser um e, ao mesmo tempo, todos os outros.

A mudança é um momento agudo de um processo histórico no qual Lula e o PT tiveram, mais do que qualquer outro político e partido, uma contribuição decisiva, no concreto e no simbólico de sua ascensão ao poder. Apartaram-se, porém, e parecem estar bem menos preocupados do que deveriam com seu divórcio com as ruas. O braço erguido, o punho cerrado, é um capítulo melancólico de um partido que parou de escutar. Em parte porque acredita conseguir manter o voto dos homens e mulheres comuns que recebem o Bolsa Família e ainda se contentam com o que, se por um lado é enorme, ao reduzir a miséria e a fome, também é pouco para a potência contida numa vida humana.

A tragédia dos dois Josés do PT não é apenas terem sido presos por corrupção, mas a impossibilidade de dizer #SomosTodosOsPresos.

(Publicado no El País em 26/11/2013)

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