Na pele do outro

Como compreender o mal numa cena de shopping

O cotidiano parece se repetir conforme o previsto até que você é empalado por uma cena. Eu saía da loja de um shopping de São Paulo, na tarde de sábado, quando ele passou por mim. Não sei se era a forma como o ar se deslocava de outro jeito ao redor dele, mas eu ainda não o tinha visto e minhas mãos já se estendiam no ar para ampará-lo. Ou talvez fosse só impressão minha, uma vontade estancada antes do movimento. Era um homem velho. Mas mais do que velho, era um homem doente. Cada um dos seus passos se dava por uma coragem tão grande, porque até o pé aterrissar no chão me parecia que ele podia retroceder ou cair. Mas ele avançava. E porque ele avançava na minha frente eu pude ver aquilo que outras partes de mim já haviam percebido antes. Sobre a sua cabeça havia uma peruca tão falsa que servia apenas para revelar aquilo que ele pretendia esconder. E de uma cor tão diferente do seu cabelo branco que parecia descuido de quem o amava ou não amava. Aquilo doía porque havia uma vaidade nele, a preocupação de ocultar a nudez da cabeça. E a peruca mal feita a expunha como um fracasso. A cada um de seus passos de epopeia sua camisa subia revelando um largo pedaço da fralda geriátrica. E assim ele avançava como uma denúncia claudicante da fragilidade de todos nós. Atravessando o corredor do shopping, lugar onde fingimos poder comprar tudo o que nos falta, consumidos pelo medo dessa vida que já começa nos garantindo apenas o fim.

Eu o seguia nesse balé sem coreografia quando ouvi os risinhos. Olhei ao redor e vi as pessoas se cutucando. Olha lá. Olha lá que engraçado. Ele tinha virado piada. Aquele homem desconhecido deixara a sua casa e atravessava o shopping. Para isso empreendera seus melhores esforços. Tinha vestido a peruca para que não percebessem sua calvície. Tinha colocado a fralda para não se urinar no meio do corredor. E caminhava podendo cair a cada passo. E as pessoas ao seu redor riam. E por um momento temi uma cena de filme, quando de repente todos começam a gargalhar e há apenas o homem em silêncio. O homem que não compreende. Até enxergar seu reflexo no olhar que o outro lhe devolve e ser aniquilado porque tudo o que veem nele não é um homem tentando viver, mas uma chance de garantir sua superioridade e sua diferença.

Quando entrevisto algum escritor costumo perguntar: por que você escreve? Alguns me respondem que escrevem para não matar. Eu também escrevo para não matar. Acho que na maior parte das vezes a gente escreve, pinta, cozinha, compõe, costura, cria, enfim, porque não sabe o que fazer com as pessoas que riem enquanto alguém tenta atravessar o corredor do shopping sem ter forças para atravessar o corredor do shopping.

O que me horroriza, mais do que os grandes massacres estampados no noticiário, são essas pequenas maldades do cotidiano. E só consigo compreender os grandes massacres a partir dos pequenos massacres de todo dia. Os risinhos e dedos que apontam, os cotovelos que se cutucam.

Quem pratica os massacres miúdos do dia a dia é gente que se acha do bem, que não cometeu nenhum delito, que vai trabalhar de manhã e dá presente de Natal. Gente com quem você pode conversar sobre o tempo enquanto espera o ônibus, que trabalha ao seu lado ou bem perto de você, e às vezes até lhe empresta o creme dental no banheiro. É destes que eu tenho mais medo, é com estes que eu não sei lidar.

Entrevistei muitos assassinos sem sobressalto, porque estava tudo ali, explícito. Era uma quebra. O que me parece mais difícil é lidar com o mal rotineiro e persistente, difícil de combater porque camuflado. O mal praticado com afinco pelos pequenos assassinos do cotidiano que nenhuma lei enquadra. E quando você os confronta, esboçam uma cara de espanto.

O pequeno mal está por toda parte. Possivelmente sempre esteve. Apenas que cada época tem suas peculiaridades. E na nossa somos cegados o tempo inteiro por imagens que nos chegam por telas de todos os tamanhos. E cada vez mais escolhemos as cenas que veremos, com quais nosso cérebro decidirá se comover. E as dividimos com os amigos no twitter, enviamos por email e parece até que há uma competição sobre quem consegue enviar mais rápido as imagens mais impactantes. Mas não sei se isso é ver. Não sei se isso nos coloca em contato de verdade.

Penso nisso porque acho que o mundo seria melhor – e a vida doeria um pouco menos – se cada um se esforçasse para vestir a pele do outro antes de rir, apontar e cutucar o colega para que não perca a chance de desprezar um outro, em geral mais vulnerável. Antes de julgar e de condenar. Antes de se achar melhor, mais esperto e mais inteligente. Vestir a pele do outro no minuto anterior ao salto na jugular.

Para mim é imediato me colocar na pele do homem que atravessa o corredor sem saber se vai chegar até o fim sem tombar. Mas é mais difícil me enfiar na pele das pessoas que riem, porque sinto raiva. E tenho a pretensão de não ter nada a ver com gente assim. Incorro então no mesmo erro, ao me pretender tão diferente daquele que me horroriza. É certo então que também eu cometi e cometo meus pecados de soberba. Por coerência – e eu valorizo a coerência – preciso me forçar. E eu me forço porque acredito nesse ato.

Quais são as razões delas, então? Por que ao testemunhar o homem que atravessa o shopping em passos trôpegos elas riem, se cutucam e apontam? Fiquei pensando se estas pessoas estão tão cegas pela avalanche de cenas em tempo real que para elas é apenas uma imagem da qual podem se descolar. É só mais uma cena que, como tantas a que assistimos todos os dias, não sabemos mais se é realidade ou ficção. Não é que não sabemos, apenas que parece que não importa, agora que os limites estão distendidos. Por que apenas assistimos às cenas – não as vemos nem entramos em contato.

E é esta a grande diferença num mundo de tanta visibilidade e tão pouco contato real. E o real aqui não é uma oposição entre o real e o virtual, mas o real real. Eu vejo você, eu toco em você, eu sinto a sua dor e me sujo com o seu sangue, ainda que seja pelo computador. É um jeito de estar no mundo e se relacionar com o outro disposto a se deixar tocar e a assumir os riscos de se deixar tocar. Me parece que estamos cada vez menos dispostos a isso – apesar de termos uma possibilidade grandiosa de acesso ao outro por conta da internet. Será que é isso? Dezenas de amigos no facebook e nenhum contato real, no sentido de se deixar transtornar e transformar pelo outro, para além das amenidades e da persistente troca de informações?

Será que era por isso que podiam rir? Por que não tinham nenhuma conexão com aquele outro ser humano? É curioso que agora o verbo conectar é mais usado para nos ligarmos a uma máquina que nos leva instantaneamente para a vida dos outros. Pela primeira vez somos capazes de nos conectar ao mundo inteiro. O que é mais fácil do que se conectar a uma só pessoa – ao homem doente que atravessa o corredor do shopping diante de nós. É curioso como agora podemos nos conectar – para nos desconectarmos.

E se, ao contrário, riam porque se sentiam tão conectadas a ele que precisavam rir para suportar? Pensei então que talvez pudesse ser esta a razão. Aquelas pessoas realmente enxergavam aquele homem – e por enxergar é que precisavam rir, se cutucar e apontar. Porque a fragilidade dele também é a delas, a de cada um de nós.

Nada nos garante que em algum momento da vida não estaremos nós também tentando atravessar o corredor do shopping por onde hoje caminhamos sem sentir. Nada nos assegura de que um dia não seremos nós a quase cair a cada passo. Se tivermos sorte e não morrermos de bala perdida ou de chuva, como afirmar que não usaremos fralda geriátrica ou tentaremos cobrir nossa calvície ou as marcas de uma quimioterapia com uma peruca que apenas denuncia aquilo que queríamos esconder?

Talvez seja esta a razão, pensei. Essas pessoas precisaram rir, cutucar e apontar para ter a certeza – momentânea e ilusória – de que ele não era elas. Não seria nunca. Só apontamos para o outro, para o diferente, para aquele que não somos nós. E quando apontamos para alguém é justamente para denunciar que ela não é como nós.

Neste caso, teria sido para se certificar. Elas diziam: Olha que peruca ridícula. Ou: Você viu que ele está de fralda? Mas na verdade estavam dizendo: O que acontece com ele nunca acontecerá comigo. Ou: Ele não tem nada a ver comigo. Por que deixam gente assim entrar num shopping?

Riam, cutucavam e apontavam por medo do que viam nele – de si mesmas.

São hipóteses, apenas. Uma tentativa de entender – de pensar e escrever em vez de responder com violência à violência que presenciei. E que me aniquila tanto quanto um massacre reconhecido no noticiário como massacre.

Talvez não seja nada disso. No Natal minha filha me deu de presente uma camiseta em que a Mafalda, a personagem do cartunista argentino Quino, dizia: “E não é que neste mundo tem cada vez mais gente e cada vez menos pessoas?”. Talvez ali, no corredor do shopping, não fossem pessoas – só gente. Porque nascemos gente – mas só nos tornamos pessoas se fizermos o movimento.

(Publicado na Revista Época em 17/01/2011)

A vida se faz nas marcas

Vivemos por causa de nossas marcas – e não apesar delas

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.

Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.

Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.

Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.

Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.

Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.

Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.

Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.

Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.

Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

(Publicado na Revista Época em 09/08/2010)

Cartas de amor

Por que sempre adiamos o momento de dizer o que sentimos?

Meu pai fez 80 anos. Queríamos dar a ele um presente que fosse mais do que algo que ele pudesse usar. Um que não servisse para nada, a não ser para a vida. Decidimos fazer um livro com cartas de amor. Não as cartas do passado, trocadas entre ele e minha mãe, mas as cartas do presente, que todos escreveriam. Cartas de amor dos filhos, dos netos, da companheira de toda uma vida. Dos sobrinhos mais próximos, dos amigos mais queridos, dos alunos e companheiros de trabalho com quem compartilhou seus ideais mais caros. Cartas de amor, enfim, escritas por quem havia testemunhado sua vida – e se transformado pela sua vida. Só havia uma regra para as cartas de amor: elas tinham de ser ridículas.

Para que ninguém se sentisse desconfortável com o desafio de escrever cartas de amor ridículas, ficamos na companhia ilustre de Fernando Pessoa, com a poesia famosa de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor./ Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas./ Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas (…)”.

Encomendar cartas de amor ridículas era um jeito de escapar das cartas laudatórias e de estimular os mais ariscos na demonstração de sentimentos a escrever com o coração ou mesmo com o fígado. Não era um campeonato de quem escrevia mais bonito, mas uma oportunidade imperdível de dizer para o meu pai o quanto cada um o amava, do jeito único que cada um podia dizer, numa história com o meu pai que era só sua.

As reações foram as mais diversas – e bem divertidas. Enquanto uns se desincumbiram bem rápido da missão, outros tinham certeza de que não conseguiriam até o último instante. Meu sobrinho, o mais jovem da família, achava que carta não era coisa da geração dele, para a qual até email já era ultrapassado. Acabou descobrindo que é do tempo das cartas e escrevendo uma bem bonita. Meu irmão do meio, que é físico, sofreu e sofreu e sofreu – e quase na prorrogação enviou uma criativa carta com duas vozes. Fez até desenhos! Finalmente a gente descobria que aqueles mais xucros, os que cumprimentam meu pai com um aperto de mão e uns tapas nas costas, porque homem que é homem só abraça mulher, deixariam Fernando Pessoa orgulhoso.

Conto essa história para que, quem sabe, mais gente se decida a escrever cartas de amor ridículas. Acho que a maioria de nós tem muito a dizer para as pessoas da sua vida, mas adia para algum momento que talvez nunca chegue. Cumprimos horários para tudo, inclusive para o que é bem supérfluo, mas parece que sempre podemos deixar para amanhã dizer às pessoas importantes que, sim, elas são importantes para nós, que trazemos um pouco delas em nossos gestos, nas nossas escolhas, na porção imaterial de nossas células. Só que é arriscado adiar, porque o amanhã é incerteza, só o que temos é o hoje.

Dá para deixar para amanhã a academia, a manicure, a balada com os amigos, a compra de um jeans, um sapato, um computador ou um carro novo. Dá para deixar quase tudo para amanhã, menos dizer a quem amamos – que amamos. Não apenas no caso do amor romântico, mas em todo tipo de amor. Se pararmos para pensar, muito do que achamos inadiável é passível de prorrogação ou até mesmo desnecessário. Já o essencial, tanto protelamos, perdidos nos muitos supérfluos, que um dia pode ser tarde.

Tenho feito o exercício de reconhecer no traçado da minha vida as pessoas que me tornaram o que sou. Não apenas meus pais, mas gente que nem imaginava que tinha sido tão substantiva para mim, como a moça da livraria de Ijuí, para quem escrevi uma de minhas primeiras colunas – A história de Lili Lohmann.

Não somos em si. Somos para o outro. Só sabemos quem somos porque alguém nos reconhece. Quando olham para nós, mas não nos enxergam, é destruidor. Este olhar é violento porque nos atravessa. Já o olhar que nos reconhece faz com que nos tornemos melhores do que somos, para estar à altura de quem já nos vê melhores. Quando dizemos a alguém que é importante, que nossa vida é mais viva porque esta pessoa existe, ela também se redescobre pelo nosso olhar amoroso. E estas redescobertas de si mesmo são transformadoras – para quem vê e para quem é visto. Acho que vale a pena identificar quem são as verdadeiras celebridades da nossa vida – aquelas que podem ser anônimas para o mundo inteiro, mas não para nós.

Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Mesmo hoje, quando tantos escrevem na internet, em blogs e outras ferramentas, ainda que se fale por meio de símbolos gráficos, é uma fala – não uma escrita. Em muitos casos, a mesma verborragia para ninguém. Por isso acho importante que reabilitemos as cartas. Escrever é um exercício profundo de elaboração dos sentimentos e das ideias. Quando começamos, nunca sabemos para onde a escrita vai nos levar. Vamos nos descobrindo em letras, nos constituindo em palavras. E sempre, sempre mesmo, nos surpreendemos com o que escrevemos.

As cartas são sempre para alguém. Para existir uma carta é preciso que haja um endereçamento, é necessário nomear aquele para quem escrevemos. Ainda que em certo sentido sempre escrevamos para nós mesmos, a carta é obrigatoriamente para um outro. Pressupõe um diálogo. E é um diálogo de reconhecimentos mútuos.

Outra qualidade das cartas é que são para todos. Podemos não saber escrever um livro, um artigo, uma tese de doutorado, uma reportagem, poesia. Mas quem se alfabetizou sabe escrever uma carta. Porque na carta, mais importante que a habilidade com as palavras, é a capacidade de ser verdadeiro. A carta que nos emociona não é aquela que tem o melhor estilo, mas aquela que expressou com mais sinceridade os sentimentos de quem escreveu. É aquela que nos faz identificar o cheiro, os gestos, a voz e também as palavras de seu autor. A melhor carta é a encarnada. Para isso, não é preciso tornar-se um mestre das palavras, mas talvez algo tão ou mais difícil, mas que depende apenas de uma decisão interna: é preciso ter a coragem de ser.

É curioso como há livros de cartas para todos os gostos. Trocas de cartas entre intelectuais, antologias de cartas de amor de todos os tempos, cartas de fulano para beltrano, até no primeiro filme baseado no seriado americano Sex in the city, as cartas de amor faziam parte do enredo. Se há tantos livros é porque as pessoas gostam de cartas. Então por que não as escrevemos? Será que preferimos continuar falando sozinhos?

O computador e a internet estão aí para tornar ainda mais fácil a operação mecânica do processo. Não a efêmera e loquaz troca de emails, mas aquilo que faz de uma carta uma carta: a disposição de se abrir para o outro. Não qualquer outro, mas aquele que escolhemos como alguém importante o suficiente para dizermos algo a ele. Não o supérfluo, mas o essencial. É possível escrever uma carta por email, como é possível escrever uma carta por qualquer meio. Mas, em geral, usamos o email para falar tudo e qualquer coisa. Nas cartas, só escrevemos aquilo que precisa ser dito. Enviamos emails para qualquer um – cartas só escrevemos para os inscritos na nossa vida.

Eu mesma, que ganho a vida escrevendo, me surpreendi com minha carta de amor para meu pai. Penso sobre a relação com ele desde que me entendo por gente. E estou sempre me questionando sobre tudo. Descobri, porém, que “desconhecia” vários de meus sentimentos – e havia me “esquecido” de histórias capitais. Elas estavam em algum lugar de mim, mas até então eu não havia tido oportunidade de trazê-las à superfície e torná-las verbo.

Escrever ao meu pai foi um reconhecimento de sua importância na minha vida. Não no sentido laudatório, mas em tudo o que há dele em mim. Inclusive naquilo que preferia não carregar, até mesmo naquilo em que quero ser diferente dele. Afinal, todos sabemos – ou deveríamos saber – que só nos tornamos adultos quando superamos nossos pais para nos tornarmos nós mesmos.

Nascemos pelo desejo de nossos pais – e crescemos para buscar nosso próprio desejo. Ou, dito de outra forma, existimos por causa do desejo dos pais, mas só alcançamos uma existência autônoma quando assumimos o risco de nossa própria busca. Estes são os bons filhos. E os bons pais são os que esperam ser superados – e não apenas imitados. Superados não no sentido de que os filhos tenham de ser mais bem sucedidos nisso ou naquilo, mas no sentido de que os filhos descubram e construam seu próprio caminho no mundo.

Em minha carta ao meu pai, reconheço tudo o que há dele em mim, a extraordinária importância dele em mim. Mas, ao mesmo tempo em que foi um exercício de reconhecimento, também foi um exercício de diferenciação. Este é você e amo o que você é, até mesmo seus defeitos. Esta sou eu, grata por tudo o que há de você no meu percurso, mas autônoma na medida em que criei outras possibilidades a partir do que aprendi com você. Só podemos ser diferentes – algo muito valorizado em nosso tempo – quando assumimos que viemos de um determinado lugar. Para sermos diferentes temos de admitir a referência, já que só é possível ser diferente em comparação a um outro. Quando identificamos a originalidade do que somos podemos identificar com mais serenidade e justiça a herança de nossos pais. E brigamos muito menos com eles.

Cartas de amor existem para isso. Para reconhecer o outro, elaborar nossos sentimentos pelo outro, dizer aquilo que é importante o suficiente para ser dito. Mas, como todo diálogo verdadeiro, é uma troca. Quando conseguimos dizer ao outro de sua importância numa carta, damos muito – mas também ganhamos muito. Ser capaz de amar melhor tem um efeito fabuloso sobre a vida.

Quando começamos a pensar numa festa para comemorar seus 80 anos, meu pai não estava certo de querer celebrar. Disse isso em uma frase profunda: “Quando eu olho para trás, fico feliz com o que vejo. Mas, para frente, é incerteza”. Ele tem razão. Amanhã é incerteza. Para todos, mais ainda para quem completa 80. Na verdade, acho que, no caso de todos, e também no de meu pai, o que dá medo não é a incerteza – mas a certeza. É por causa da certeza da morte que tecemos a teia de sentidos da nossa vida. É por causa da delicadeza com que teceu sua vida que meu pai vai para o amanhã com a certeza de que amou bem – e é amado com o melhor do que somos.

Encerrei minha carta de amor ridícula ao meu pai na esperança de que ele compreenda que todo ponto final é chegada, mas também é partida: “Use este livro como ponto de chegada, um itinerário amoroso de sua vida pelos olhos nossos. Mas, depois, esqueça-o numa gaveta. E, como Fernando Pessoa, nasça mais uma vez para a eterna novidade do mundo”.

(Publicado na Revista Época em 28/06/2010)

Socorro! Tem alguém aí?

Desventuras no admirável mundo novo

Não conheço uma única pessoa que tenha pronunciado alguma vez na vida: “Oba, o telemarketing da empresa tal me ligou oferecendo uma oportunidade maravilhosa!”. Ninguém.

Talvez exista, mas nunca testemunhei. Quase todos que conheço têm estratégias para não ser alcançado por ações desse tipo. E a maioria, quando capturado, é grosseiro com a voz do outro lado. Toda vez que um operador me liga, tento conter minha irritação e lembrar que há um ser humano ali, em algum lugar, ainda que seja num call center em Bangladesh. Esta pessoa possivelmente gostaria de estar fazendo outra coisa, quase certamente ganha muito mal e, mesmo que tenha sido treinada para agir como um robô, deve sofrer com as grosserias como qualquer humano.

Às vezes não consigo fazer esse exercício mental a tempo, sou ríspida e, assim que desligo, fico arrasada. Mas, em geral, consigo. E, já que fui pega de surpresa e não costumo desligar o telefone na cara de ninguém, tento conversar. Mas minha tentativa esbarra na impossibilidade de meu interlocutor entabular qualquer diálogo cujas perguntas e respostas não estejam no manual. Afinal, “para sua segurança, esta ligação está sendo gravada”.

Se, ao contrário, você precisa falar com alguém para reclamar de um serviço ou produto que não funciona ou funciona mal, a dificuldade é a mesma. Primeiro que, para chegar a um alguém, você aperta vários números antes. Você só vai falar “com um de nossos atendentes” se nenhuma das gravações anteriores conseguir resolver seu caso. Tudo desestimula você a isso. Os muitos números do menu principal levam a infindáveis menus secundários. Quando você chega àquele que o leva ao contato com alguém, o alguém demora uma eternidade para atender a ligação. E, quando atende, é como se você falasse com uma máquina.

Por tudo isso, fico pensando: como isso dá certo? De um jeito ou outro, deve funcionar. E ser lucrativo. Já que emprega milhares de jovens pobres que mal estrearam na vida e são treinados a anular sua singularidade para decorar um programa robótico de saudações, perguntas e respostas. Ainda vamos precisar responder pelo aniquilamento de uma geração nesses serviços de desumanização.

O mundo bem estranho em que vivemos nos coloca esta questão ética: como lidar no cotidiano com humanos que são treinados para se parecer com máquinas? Como é ser um humano que, para atingir a perfeição profissional, precisa se tornar o mais parecido possível com uma máquina? E, em seguida, se tornar obsoleto?

Vivemos (ainda) uma fase de transição entre as relações pessoais e as impessoais. Quando nos acostumarmos por completo a sermos atendidos por máquinas humanas, ninguém vai precisar de gente nesse tipo de serviço. Gente, por mais barata que seja, ainda é mais cara que qualquer sistema robótico. E se não faz diferença…

Vivemos uma espécie de versão pós-moderna do Tempos Modernos de Charles Chaplin. Não mais meros apertadores de parafusos de uma engrenagem, mas os próprios parafusos.

A tendência é que tudo se torne ainda mais desencarnado. Vivi um dia no admirável mundo novo neste início de mês, às voltas com o formato mais inovador de companhia aérea. Uma que você não vê, não toca, não alcança. Mas confia sua vida a ela. É considerada um dos maiores “cases” de sucesso da história da aviação europeia.

Foi assustador.

Eu estava em Madri, por razões profissionais, e queria conhecer Londres. Amigos disseram: “Aproveita, é barato viajar de avião dentro da Europa”. Eu pensei: “hum, boa ideia”. Entrei na internet e, especialmente para a volta, achei uma passagem muito barata. Voltar de Londres a Madri, onde pegaria o vôo de retorno para São Paulo, custaria quase o mesmo que viajar de ônibus de São Paulo à minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. É supostamente barato porque todo o contato, exceto o avião e a tripulação, é virtual. Eu acabava de embarcar no sistema low cost (custo baixo).

Na véspera de pegar o avião, a bordo dessa novíssima configuração empresarial, li as instruções que recebi por email. Eu deveria fazer o check-in pela internet. Se só pudesse fazer no aeroporto, pagaria 40 libras esterlinas (111 reais). Teria também de pagar pela bagagem, que não poderia passar dos 15 quilos. Se passasse, mais taxa extra.

Entre uma lembrancinha e outra para a família e meia dúzia de livros, eu precisaria despachar uma mala. Fiz as contas. Sim, ainda valia a pena. Entrei numa lan house, para resolver tudo isso com alguns cliques no computador. Nada. Havia três maneiras de fazer o check-in. Tentei todas elas. Em todas aparecia uma mensagem na tela. Em resumo, ela dizia: “Seus dados não foram encontrados”. Eu não existia no sistema, ao que parece, embora o desconto no meu cartão de crédito fosse bem real.

Procurei um telefone de contato. Havia dois. Um deles para prioridades. Se for prioritário, é mais caro. A chamada era tarifada em 1 libra por minuto. Entrei na cabine. Disquei. Tu-tu-tu. Nada. Nem mesmo uma gravação do tipo: “por favor, espere um minuto”. Depois de muitos tututus, desisti.

Mais tarde, tentei de novo. Tudo igual. O sistema não encontrava meus dados e o telefone não atendia. Eu não conseguia encontrar ninguém, nem mesmo uma voz, que me ajudasse a resolver o problema. Nesse momento, eu implorava pela voz impessoal do telemarketing. Nada. Eu estava entregue à virtualidade. Se o sistema online não funcionasse – como não funcionou – eu virava refém. Virei.

A única alternativa era perder o último dia em Londres e chegar bem mais cedo ao aeroporto para resolver tudo isso direto no balcão da companhia. Quando cheguei, procurei o nome da empresa. Não havia nenhum balcão. Só uma moça no check-in, o nome da companhia atrás. Expliquei o caso. Ela disse: “Sinto muito, não posso fazer nada. Eu aqui só faço o check-in”.

Me despachou para outro setor, responsável por cobrar os valores de check-in e bagagem. Expliquei tudo de novo. A moça afirmou: “Sinto muito, aqui só somos intermediários”. Eu insisti: “Mas eu não consigo fazer o check-in. Passei o dia de ontem inteiro tentando fazer o check-in”. Ela: “Ainda dá tempo de a senhora fazer o check-in pela internet”. Eu: “Mas eu já tentei mil vezes fazer o check-in pela internet”.

Ela devia ser nova no setor, porque exibiu reações humanas e fez o impensável: tentou ela mesma fazer o check-in no computador. Não conseguiu. Disse à colega: “Eu mesma não consegui fazer o check-in. O que a gente faz?”. A colega: “Nós somos apenas intermediários. Não temos nada a ver com isso. Se não fizer o check-in pela internet, tem de pagar”.

Constrangida, a moça pegou um pedaço de papel com o telefone da companhia aérea: “Liga para este número”. Eu: “Mas ninguém atende!”. Neste momento, o colega da moça gritou. Outra reação humana. Ele estava furioso porque a colega tinha saído do manual e uma fila atenta se formava atrás de mim. Quando disse a ele que não havia necessidade de ser rude, ele voltou a se tornar um robô. Do gênero “robô intermediário”.

Voltei para a moça do check-in, só para constatar que ela também era intermediária. “Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Ok, mas eu quero falar com alguém que possa encontrar uma solução! Não tem ninguém neste aeroporto inteiro que responda pela companhia? A moça voltou ao modo hibernação.

Eu havia deparado dezenas de vezes com esse comportamento pelos telemarketings da vida. Mas nunca tinha conversado com robôs humanos ao vivo. É chocante perceber que a pessoa olha para você com um olhar vazio. É a alienação do trabalho levada ao seu apogeu. Não há ninguém ali.

Ela só sabe repetir frases e não tem respostas que não estejam armazenadas no seu chip. Não tem autonomia para nada. Quando algo fora do roteiro acontece, ela fica repetindo a sua alienação como se esta fosse uma resposta. E parece não perceber o que faz consigo mesma. “Sinto muito, eu não posso fazer nada. Sinto muito, eu só sou uma intermediária. Sinto muito, eu não estou autorizada”. Sinto muito, eu não pertenço à companhia. Não pertence sequer a si mesma.

Todo o raciocínio humano, a capacidade de criar alternativas e resolver questões, todo o capital intelectual e simbólico que nos tornou o que somos de melhor é anulado. Nesse lugar de máquina humana, a pessoa competente é aquela que não faz nenhuma diferença. Será que, quando ela for definitivamente anulada, ou seja, substituída por uma máquina que não seja de carne e osso, mas de silício, vai se espantar?

É o único emprego que ela conseguiu, só está fazendo o que lhe mandaram fazer, não é responsável pelo modo como as coisas funcionam, alguém poderia ponderar. É verdade. Mas arrancar de uma pessoa a capacidade de resistir e criar alternativas para sua vida, ainda que seja difícil, é anulá-la por completo em tudo que é humano. É destituí-la de qualquer potência, é fazer a mesma sacanagem.

Se realizamos um trabalho pelo qual não nos responsabilizamos, aceitamos que nos reduzam a parafusos. E isso vale para qualquer trabalho. Talvez a grande diferença entre um humano e uma máquina seja a capacidade de fazer escolhas. Quando alguém abdica deste bem imaterial – ou reduz suas escolhas a qual marca de sopa industrializada vai comprar para o jantar – está abdicando de ser.

Segui minha desventura pela companhia virtual. Procurei um computador, tentei tudo de novo. Nada. Voltei ao check-in. Outra moça. Diante do meu relato, ela afirmou (adivinha!): “Sinto muito, não posso fazer nada”. Decidi pesar minha mala. Descobri que ultrapassava os 15 quilos. Como não pude pagar pela internet, fui informada de que despachar uma mala me custaria o equivalente a 35 libras (97 reais). Para cada quilo que passasse dos 15, cobrariam 20 libras (55 reais). Por sorte, eu não tinha uma segunda mala. Do contrário, teria de pagar mais 70 libras (194 reais): a segunda é o dobro do preço.

Pagar este valor pela bagagem me parecia absurdo, mesmo que eu tivesse conseguido pagar a taxa mais baixa, pela internet. Mas sobre isso eu havia perdido o direito de reclamar quando dei um clique com o mouse do computador. Quem mandou não ler as letras miúdas? Fiquei pensando em todos os “I accept” (eu aceito) que clicamos na internet, a cada programa baixado ou a cada compra consumada. O que será que eu já aceitei ou com quais absurdos concordei somente neste ano?

“Declaro que estou de ciente que o produto é cancerígeno e a empresa X não tem nenhuma responsabilidade sobre o melanoma que eventualmente desenvolverei no futuro”. Ou: “Declaro que estou ciente de que ao final do programa vou ser esquartejada e ter meus órgãos comercializados sem que meus familiares tenham qualquer direito a uma parte dos lucros obtidos com a transação”. Ou: “Declaro que tenho um desvio patológico de conduta e sou incapaz de gerir meus bens, que devem portanto ser transferidos para a empresa tal”.

Medo.

Paguei. Como eu continuava reclamando, a “intermediária” disse algo que, imagino, não estivesse no manual: “When you choose this company, you sign your life away”. O sentido, em português claro, é: “Quando você escolhe esta companhia, você vende sua alma”. Eu tinha assinado uma versão contemporânea de pacto com o diabo. E era assim que eu me sentia. A empresa era descarnada. Eu tentava alcançá-la, mas só agarrava fumaça.

Tive uma profunda sensação de irrealidade. E se o avião não existisse? E se não tivesse piloto? E se a manutenção da aeronave também fosse virtual? Eu não queria apertar cinto nenhum!

Passou. Apresentei no check-in o recibo da minha impotência. A fila tinha mais de cem pessoas. Quando chegou minha vez, o moço do check-in (outro intermediário) achou minha reserva no computador no primeiro clique. Sim, eu estava lá. Em algum lugar daquele mundo volátil havia um lugar para mim no avião.

Sentei-me aniquilada na sala de embarque. O que eu poderia fazer diante dessa criatura imaterial, mas que tinha ganhos bem concretos? A companhia não tem o menor interesse em resolver as panes eventuais de sistema em casos como o meu. Nem sequer me vêem como uma pessoa. Eu não sou um ser humano com nome, história, desejos. Sou apenas um número de cartão de crédito.

O cálculo é pragmático. Contratar funcionários capazes de resolver problemas numa estrutura própria é muito mais caro que acertar com uma empresa terceirizada, que faz serviços para ela e outras dez, e que se limita a faturar taxas e seguir o manual padrão de perguntas e respostas. Sem contar que qualquer prejuízo não será da companhia, mas do passageiro. Se X pessoas deixarem de viajar porque foram lesadas e não puderam sequer reclamar, tanto faz. Sempre haverá gente precisando viajar barato. Na ponta da calculadora virtual: custa menos dinheiro perder um número X de clientes do que estabelecer um escritório próprio. Pronto. A escolha está feita. Se tudo é fumaça, alguém espera que exista ética?

A companhia trabalha assim porque é má? Não. É a lógica do mercado. E o mercado, dirão os gurus de plantão, não é bom nem mau. Estes são atributos humanos. A longo prazo, o número de descontentes poderia colocar a companhia em risco? Esta é a parte que o marketing tem a missão de resolver.

A ausência física, com todas as violações aos direitos básicos do consumidor que acarreta, é transformada em “diferencial”. O que era ônus, em termos de imagem, vira bônus. Transforma-se num valor. “Usamos a internet para que você possa viajar pelo mundo pagando menos. Nós estamos pensando em você, que antes não podia viajar e, graças a nós, agora pode.” No final desse raciocínio, você quase agradece.

Mas por que tem de pagar pela bagagem? Também há uma sacada de marketing logo ali. É preciso fazer com que você não se sinta apenas um cidadão de terceira classe, viajando barato numa companhia que não responde pelos seus atos e que cobra até pela mala que você carrega. A médio prazo isso poderia trazer prejuízos significativos. Afinal, não se pode esperar fidelidade de clientes sem autoestima.

De fato, você está ali porque não consegue pagar a passagem de uma empresa com reputação, escritórios estabelecidos, onde você é atendido por pessoas que o ajudam a resolver eventuais problemas e viaja numa aeronave com o mínimo de conforto. O que você não sabia é que, ao escolher este inovador sistema de voar, abriu mão dos direitos mais básicos do consumidor.

De novo, é preciso transformar isso em atributo. Em vez de cidadão de terceira classe, você tem de ser convencido que é um cidadão do mundo. Com a ajuda do marketing publicitário, você finalmente compreende que viajar por esta companhia não é apenas pegar um avião, é embarcar num estilo de vida, um jeito despojado de estar no mundo. Se você for um de nós, você sabe que a principal bagagem que carrega está no seu cérebro. Ou no seu coração, para os mais românticos. Portanto, viaje leve. Você não é pobre, você é cool.

Estava neste ponto do raciocínio quando chamaram para o embarque. Chequei se o avião tinha o nome da companhia. Tinha. Achei melhor não investigar se o piloto era “intermediário”. Não tinha assento marcado, então era só dar cotoveladas, correr, saltar alguns obstáculos e sentar onde conseguisse. Se você quiser ser um dos primeiros a embarcar, precisa pagar uma taxa a mais. Claro. Os bancos não reclinavam, para que coubessem mais poltronas. Desconforto? Ganância à custa da sua coluna vertebral? Não. Estilo, claro. Banco reclinável é coisa de gente velha ou fora de forma.

Esta mesma companhia, em mais um lance inovador, vem estudando a implantação de um modelo em que os passageiros viajariam em pé, agarrados a barras de ferro e presos por cintos de segurança. Parece piada, mas não é. O termo usado para anunciar a possível “nova classe” ao público é primoroso: “sentados na vertical”. Numa enquete virtual, a opção foi aprovada por 60% dos participantes (!). A mesma companhia já estudou cobrar pelo uso do banheiro.

No início do vôo, recebi – de graça! – uma revista com os produtos em oferta, com a comodidade de poder comprar ali mesmo. Mais uma prova de que a companhia continuava pensando no meu bem-estar. Vi então a foto do big boss no editorial. Quase duvidei que existisse. Era a primeira imagem humana que eu tinha. Mesmo se fosse falsa, parecia uma pessoa, o que não deixava de ser um upgrade.

Estudei com atenção. A foto vendia o conceito. Nada de terno e gravata ou ambiente corporativo. Nosso “fellow” era um homem com o sorriso confiante do jovem empreendedor arrojado, exibia um bronzeado de surfista e parecia se divertir muito enquanto trabalhava e revolucionava o mundo com a ousadia de suas ideias. Afinal, não é qualquer feito. Ele havia inventado o primeiro pau-de-arara com asas da história da aviação.

Continuei lendo. Descobri que eu era muito importante para eles e que todos os clientes eram tratados como VIPs – very important persons. Os comissários de bordo eram todos jovens, descolados. Cantaram parabéns para um passageiro de aniversário. Xavecaram as meninas que viajavam sozinhas. Passaram o vôo inteirinho tentando vender produtos variados, na maior empolgação, como se fosse um programa de auditório. Parei de escutar quando anunciaram um cigarro que não fazia fumaça nem precisava acender, mas que podia me dar a dose de nicotina necessária para viver, ali mesmo no avião.

Os passageiros aplaudiam. Pareciam muito felizes viajando no desconforto. Porque, afinal, ao contrário de mim, eles sabiam que não era uma simples viagem. Estavam compartilhando e propagando um estilo de vida, um jeito despojado de voar. Tinham, visivelmente, uma sensação de pertencimento a uma tribo privilegiada (?!) de cidadãos do mundo.

Eu queria de verdade que o admirável mundo novo parasse para eu descer e embarcar no velho. Mas, pelo menos naquele momento, a sensação de estar no ar era bem real.

(Publicado na Revista Época em 10/05/2010)

Escrivaninha Xerife

Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes

Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar por aqui e pular para outra.

Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.

É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.

Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.

Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos – com uma vara que é sempre meio curta – e os expomos às intempéries do real.

Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.

Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que para os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.

Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que virá.

Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro – e fora de mim – há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em projetos paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.

Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.

Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais cedo ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.

Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma – e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.

Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer.

Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “olha”. Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.

Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.

O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.

Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de mim mesma.

Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.

Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo – e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo –, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.

Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos – e precisávamos – nascer de novo.

Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra comentou: “Se tem alma, não traz para casa!”.

O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.

Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.

O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.

Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo de reinventar minha vida.

Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e a de todos nós.

Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas.

Torçam por mim! (Por nós!)

(Publicado na Revista Época em 01/03/2010)

Página 28 de 29« Primeira...1020...2526272829