Uma defecou, outra filmou: a vida sem recalques

Uma reflexão sobre barbárie e civilização a partir de um vídeo da internet

A cena diante da câmera:

Desde a semana passada circula um vídeo na internet em que uma mulher, totalmente nua, defeca em uma agência bancária de Aracaju. Em seguida, ela se atira no chão, de costas, como se sentisse um grande prazer. Alguém, talvez um funcionário da agência, a cutuca. Ela reage com agressividade, levanta-se e empunha a calcinha suja de fezes como uma arma ao caminhar pelo hall. Depois, volta, limpa as fezes no chão com a roupa. E sai, nua e altiva. A porta da agência é rapidamente fechada. E lá fora ela parece proferir alguns xingamentos.

Isso é o que se vê no vídeo. Mas há algo menos explícito, que não pode ser visto, mas que vale a pena enxergarmos.

A cena por trás da câmera:

Desde o início da gravação, ouvimos uma risada feminina, talvez de quem filma a cena ou está ao lado de quem filma. Não parece ser aquele riso nervoso, que às vezes nos sucede diante de algo inusitado. Parece mais uma risada de alguém que se diverte com a cena. A risada vai aumentando. Ao final, quando a mulher já está fora do banco, a dona da risada faz um comentário: “Está com o demônio no corpo.”

Isso não se vê no vídeo. Apenas ouvimos.

Ao assistir às imagens, senti incômodo. Mas fiquei tão incomodada com a mulher nua e defecando quanto com a mulher filmando a cena. (E aqui vou tratá-la como mulher, por causa da voz, mas não faz a menor diferença se for um homem.) Ao investigar a razão do meu incômodo, percebi que estava diante de dois atos pré-civilizatórios: um óbvio e escancarado, o outro menos visível, mas não menos chocante.

O que é uma mulher nua defecando em uma agência bancária? Somos nós, quando ainda estávamos na natureza – e antes de nos tornarmos cultura. Naquele momento, ela era como um bebê que sente vontade de fazer cocô e faz. Vira-se no chão com visível prazer e alívio. E então é alcançada pelo homem – a Lei – que a cutuca dizendo que ela não pode fazer aquilo. Lembrando-a, portanto, do contrato social. A mulher reage ainda como natureza, ameaçando o homem com suas fezes. E, de repente, algo que também está nela retorna. Ao limpar as fezes no chão, ela volta a se inscrever na cultura.

Não é possível afirmar se a mulher está vivendo algum tipo de surto, mas me parece mais delírio do que protesto. Por que os atos dessa mulher chamam atenção é óbvio. A grosso modo, nos tornamos civilizados no momento em que sacrificamos a nossa natureza, recalcando nossos instintos mais primitivos, para garantir a vida em sociedade. Não podemos mais sair por aí fazendo o que bem entendemos, como defecar nus no meio de uma agência bancária quando sentimos vontade. É preciso procurar um banheiro, chavear a porta, usar papel higiênico, lavar bem as mãos depois e, quem sabe, até aplicar um spray para mascarar o mau cheiro. A repressão de nossos instintos, em todas as esferas do humano, tem um custo alto. Mas, em troca, ganhamos a segurança proporcionada pelo contrato social. A mulher que defeca na agência bancária quebra o contrato que garante a vida em sociedade (na nossa, pelo menos) e por isso se torna perturbadora.

O que me parece é que a mulher que a filma também quebra, mas isso não é interpretado desse modo nem por quem está presenciando a cena nem por quem assiste ao vídeo. Por que não podemos estuprar quem desejamos ou matar quem odiamos? Porque isso nos devolveria a um estado de natureza. Temos de reprimir nossos instintos e, assim, abrir mão de nossa liberdade. Nesse processo, é necessário enxergar o outro como uma pessoa, um semelhante, alguém com direitos, para que o pacto se torne possível. Por que, então, é aceitável que alguém filme a cena de um ser humano em total desamparo e a dissemine na internet? Por que esse ato não é visto como um rompimento do contrato social?

Quem filma a cena e muitos dos que a assistem, a julgar pelos comentários, não reconhecem mais na mulher nua que defeca em público uma semelhante – uma humana. Esse estranhamento os autorizaria a desnudá-la de uma forma muito mais profunda, para além das roupas, diante não apenas dos clientes da agência bancária, mas do mundo inteiro. Ou talvez a reconheçam tanto como uma igual, ao invejar sua liberdade selvagem, defecando no banco enquanto eles esperam na fila para pagar alguma das muitas contas sempre chatas, caras e burocráticas da vida em sociedade, que precisam imediatamente se afastar dela. E afastam-se filmando e expondo o que consideram sua diferença.

Ao filmar a cena e ao difundi-la na rede, embora exponha a mulher por completo, aquela que a filma não a enxerga de fato nem por um segundo. Porque para enxergar é preciso se identificar com o outro. Se em algum momento a mulher que filma tivesse conseguido se identificar com a mulher filmada, acredito que a teria protegido – e não a exposto mais.

Nesse sentido, embora seja a mulher filmada que esteja sem roupas, é a mulher que filma a mais nua entre as duas. É isso, no meu ponto de vista, o mais interessante desse vídeo e o que me faz trazê-lo para esta coluna: ele revela mais da mulher que filma do que da mulher filmada. Mas, em geral, não chama atenção o fato de alguém filmar uma pessoa em total e visível desamparo. Isso é visto como “normal” e aceitável. Minha hipótese, porém, é de que é um ato de barbárie, na medida em que deixa de reconhecer o outro como humano. Ao apontar e amplificar a barbárie que acredita estar na outra mulher, é ela que se torna bárbara.

Assim, ambas – a mulher filmada e a mulher que filma – se igualam ao eliminar o recalque e dar vazão aos seus instintos sem se identificarem uma com a outra. Uma não se reprimiu ao defecar em público, a outra não se reprimiu ao filmar a cena. A primeira exibiu as próprias fezes no ambiente de uma agência bancária, a segunda exibiu as fezes da outra para milhares de pessoas no ambiente da internet. Por que uma causa espanto e a outra não?

Pessoalmente, acho mais ameaçadora ao pacto civilizatório a mulher que filma do que a mulher que caga.

(Publicado na Revista Época em 12/12/2011)

A vida dos mortos

O que os mortos podem nos contar sobre a vida: quem prefere esquecer a morte, corre o risco de não lembrar que está vivo

Sempre que posso, faço uma visita aos meus mortos no dia de finados. (Acho finados, aliás, uma daquelas palavras perfeitas, que dispensariam verbos e objetos, ela mesma uma sentença inteira.) Sei que possivelmente os mortos não estão em lugar algum além da nossa memória, mas talvez por eu ter nascido bem antes da internet e da existência virtual, preciso apalpar os túmulos com as mãos para senti-los mais de perto. A maioria dos meus mortos mora no cemitério rural de um povoado cada vez mais despovoado no interior do município gaúcho de Ijuí, chamado Barreiro, onde há mais gente estendida debaixo da terra do que saracoteando sobre ela. É uma paisagem com as cores da Toscana que nessa época está coberta pelo dourado dos trigais sob um céu azul e um vento de primavera que bota as folhas secas a dançar como na cena clássica do “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone. (Quando eu tenho a sorte de visitar a Toscana, digo por lá que a paisagem tem as cores do Barreiro, e os brasileiros ficam me olhando com ironia e os italianos com descrença, mas assim é que é.) Gosto do silêncio dos cemitérios e, em todas as minhas viagens pelo mundo, visito os mortos para compreender como vivem os vivos naquela geografia virgem para os meus sentidos. Mas, para mim, não há nenhum como o do Barreiro, porque ele é habitado por algumas das histórias que fazem de mim o que sou.

Talvez a explicação para minha alegre visita aos mortos esteja na minha tia Nair. Finados, para ela e para todas as donas de casa da zona rural, era um dia de muito trabalho e de muita festa. Mal chegávamos e ela se punha a correr porta afora esfregando as mãos no avental e uma na outra, com um sorriso de orelha a orelha. Era na sua casa que os parentes vinham de toda a região para honrar os falecidos lembrando suas histórias ao redor da galinha com polenta da tia Nair, antecipada por voltas e mais voltas de chimarrão. Para mim era ainda melhor, porque ela me chamava de canto e me carregava para o bolicho na parte da frente da casa, onde penetrávamos na escuridão ainda desabitada dos bêbados que chegariam mais tarde, porque também eles tinham mortos para chorar ou amaldiçoar. Naquela caverna de Ali Babá, onde o silêncio cheirava a couro, salame e fumo, tia Nair enfiava suas duas mãos bordadas pelos calos de uma vida de roça e colhia do baleiro doces de mil e uma noites. Era um momento de suprema felicidade, como os do filme do Jabor.

Quando agora vou chegando pela estradinha poeirenta do Barreiro, avisto tia Nair correndo para nos dar as boas vindas, com seu sorriso pendurado pelas orelhas, e sei que nunca mais serei tão bem recebida por ninguém. Tia Nair já não está mais lá, é apenas na minha memória que ela vive, mas mesmo assim a criança que mora em mim também como memória enche as mãos de balas que só existiam lá. Depois sigo meu caminho para deixar uma palma na porta de sua casa no cemitério.

E de lá começa nossa visita, eu, meu pai e minha mãe, minha mãe sempre apressada, meu pai querendo se deixar ficar para fazer suas homenagens. E eu tentando ajeitar as flores nos vasos com meu desajeito, porque sempre fui uma destra com duas mãos esquerdas e nenhuma delas se entende com a outra. Está lá Pietro Brum, o meu trisavô italiano (meu pai me disse que o pai do meu bisavô não é tataravô ou tetravô, mas trisavô, que todo mundo erra e seria bom que eu acertasse), que veio da Itália fugindo com o filho Antônio, que aponta sua cara do além-túmulo com o mesmo ar topetudo que devia ter quando embarcou clandestino no navio para o Brasil, fugindo de mais uma guerra. Mas basta um olhar para minha bisavó Carlota, com sua mirada de faca, para eu ter certeza de que ela o fazia andar no miúdo. Mas essa história já contei aqui há algumas semanas, em A perna fantasma, e sigo adiante.

Estacionamos nossos pés diante do túmulo de meus avós paternos, José e Victoria, minha avó que nunca deixou ninguém sair do seu portão sem uma cuca, um pão, um queijo, um salame ou um presunto, e por isso recebia mais visitas do que sua azáfama diária permitiria. E que nas noites de tempestade carregava todos para o porão, por causa da tia Maria Henriqueta que morreu de raio quando, ao dormir entre duas de suas irmãs, era a única encostada na cama de ferro. Ao lado dela, no túmulo vizinho, brinca tia Lídia, que mudou de mundo ainda na infância depois que uma vizinha deu a ela uma dose de querosene para curar uma dor de barriga.

E mais uma vez xingamos um tio-avô que teve o péssimo gosto de tomar veneno justo no dia do casamento de minha tia Iolanda, sem o menor respeito pela alegria alheia. Espalhamos mais umas flores aqui e ali, como para a minha tia Cristina que me emprestou seu nome para botar no meio do meu. Acabei banindo-o assim que pude porque ela, quando ainda era uma alma encarnada, já era lembrada como uma mulher tão boa que a tudo suportava, coisa que não me caía muito bem. Mas eu adorava a tia Cristina que me esperava com doces de leite e cuidou das duas galinhas que eu criava como filhas e cuja educação repassei a ela depois que não couberam mais na minha casa de cidade. Tia Cristina zelou pelas minhas filhas de penas até a morte de uma e depois de outra, e mesmo quando a branca engoliu a sua corrente de ouro e todo o Barreiro insistiu que aquela franga desaforada estaria melhor na panela. Minha boa tia Cristina jamais magoou ninguém além de si mesma.

Para jamais esquecer que a vida é tecida com sentimentos contraditórios e gentes mais ainda, é diante do túmulo da minha tia Cristina que ofereço um buquê de comigo-ninguém-pode para minha tia A., esta pelos lados da minha mãe. À distância, porque essa tia se encontra em um cemitério da capital, a quase 400 quilômetros dali. Apesar do nome de querubim, que aqui estou proibida de mencionar por decreto familiar, enquanto viveu, tia A. urinou no túmulo do falecido que a havia traído com tanta assiduidade. Por causa desse péssimo hábito, meu bem posto tio-avô deve ter negligenciado a parte da anatomia que tia A. passou a obrigá-lo a enxergar em seu duvidoso descanso eterno.

Minha avó materna não visito em túmulo, porque a sinto tão presente que é quase como se estivesse ainda por aqui. Tenho sua máquina de costura bem ao lado da minha escrivaninha-xerife e, enquanto escrevo, ela alinhava capas de chuva feitas de saquinhos de leite, porque sempre achou as embalagens industrializadas uma maravilha. Muito antes de qualquer conversa ecológica, vó Teresinha afirmava que algo tão bonito não podia ser descartado como lixo e tratava de transformar logo em alguma utilidade. Sempre proseamos enquanto escrevo e, quando estou triste além da conta, ela me bota a cabeça em seu colo com cheiro de bolacha Maria e me conta uma história de Pedro Malasartes. Vó Teresinha, que viveu como uma santa, tinha outra por dentro. E ainda hoje, nas manhãs desmaiadas dos domingos, nós duas lamentamos que esta outra não tenha saído para botar ordem no seu mundo enquanto o tempo ainda era vivo.

Enquanto passeamos pelo cemitério, pausando para visitas aqui e ali, meu pai, minha mãe e eu sabemos o que nos espera logo adiante. Meu primo Gilberto, o Beto, e a Mana, sua mulher, nos aguardam logo na descida da lomba com o melhor churrasco da região e cucas recheadas que desmancham na boca. Beto é filho da minha tia Nair e, na companhia querida da Mana, mantém a tradição de acolher os parentes que vêm de longe e de perto para honrar os mortos. Na ocasião, meu primo também recolhe as ofertas para a festa da padroeira, quando eu divido com meu pai e meu irmão mais velho a doação de uma vaca. Com uma pontada de culpa porque sei que a malhada vai virar churrasco, mas não com culpa suficiente para me converter em vegetariana.

Mas o percurso dos finados ainda não acabou. E, para mim, a visita mais importante é a última, ao alcançar uma mulher que não conheci, mas que permitiu que eu tudo conhecesse. Ela se chama Luzia de Figueiredo Neves e nasceu no ventre de um romance. Seu pai, Sabino Andrade Neves, era sobrinho-neto do General Andrade Neves, cujos feitos à frente da cavalaria na sangrenta Guerra do Paraguai o alçou à posição de Barão do Triunfo. Enquanto do pai de Luzia se conhece o nome e todos os sobrenomes, da mãe não restou nenhuma letra. Era uma escrava da estância do pai de Sabino, e Luzia nasceu deste amor. Que era amor mesmo e não a violência tão comum naquela época, praticada contra as negras por filhos de estancieiros – e pelos próprios. Para dar nome e criar a filha, Sabino abriu mão da herança e do conforto de sua bem-nascença. Tornou-se professor pelas lonjuras do Rio Grande e fez da filha mestiça também professora. Da mãe, só se sabe que partiu jovem.

Quando estou diante do túmulo de Luzia, me certifico mais uma vez que a vida é desatino. Porque não fosse essa trágica história de amor e de preconceito, que obrigou um Sabino formado para ser general, ou pelo menos advogado na capital, a ser tornar professor e a criar uma filha, e talvez tudo tivesse se desacomodado de outro jeito na minha pequena história. Por isso, quando a vida se desentende com o destino e descarrila em desgoverno no rumo do imprevisto, eu penso: talvez seja uma boa coisa… e eu acabe em lugares mais interessantes.

Em minhas andanças pelo Brasil, ouvi de homens e mulheres das mais variadas geografias uma expressão que atesta a finura da linguagem do povo brasileiro: “Sou cego das letras”. Era como expressavam, em voz sentida, sua condição de analfabeto. Pois foi Luzia, com esse nome tão profético, quem arrancou meu pai da cegueira das letras. E, com ele, todas as gerações que vieram depois. Caçula entre os homens de uma família de 12 filhos criados no cultivo da erva-mate, Luzia iluminou primeiro o nome do meu pai. Quando lá chegou na escolinha do Barreiro, com os pés descalços e os largos olhos que desde pequeno carrega como faróis, meu pai não sabia como se chamava, já que em casa e por todos era conhecido pelo apelido. Quando Luzia chamou – “Argemiro” –, meu pai, então um guri de sete anos, não se mexeu. Só na terceira ou quarta chamada, descobriu-se. E com o nome veio um mundo inteiro.

Aos 12 anos meu pai foi assaltado por uma pneumonia dupla e, enquanto lutava pela vida numa época e numa paisagem em que era mais fácil sucumbir do que escapar da doença, meu avô sentiu-se mal depois de uma sequência de noites no soque da erva-mate e logo mandou buscar, a cavalo, o médico e também o padre. Quando meu pai despertou, em território dos vivos, não sabiam como contar a ele que, naquele soluço do tempo, tornara-se órfão. Foi chamado um homem de nome Pacífico para dar a notícia, mas o mais perto que ele chegou de cumprir sua missão, destituído que estava de toda paz, mas não de sutileza, foi avisar ao meu pai de que dali para frente veria os irmãos com um traje de cor diferente. Uma tia então deixou escorregar com dedos tímidos o jornal aberto sobre a mesa na página do obituário.

Meu pai descobriu ali que saber ler podia ser uma maldição. E naquele momento aceitou o custo às vezes por demais elevado de compreender as letras, em algumas ocasiões com revelações brutais, como naquele pedaço de jornal, em outras, como descobriria mais tarde, torcidas pelo cinismo e pela má fé, com o veneno escorrendo das entrelinhas e a mentira encarapitada nas vírgulas. Arrisco-me a dizer que meu pai escolheu ali, quando recuperava a vida para descobrir que o pai havia perdido a sua, que existiria com verdade.

Aprendi com meu pai a honrar o presente de Luzia. E a tirar meu chapéu invisível diante de Sabino, uma raridade de homem que, nos finalmentes do século XIX, deixou posição e riqueza para criar uma filha sozinho e lançou-se nos interiores do Rio Grande para educar os rebentos dos colonos europeus que desembarcavam com quase nada além de esperança e do preconceito com gente de pele mais escura, como a própria Luzia. Era ele e não seu tio-avô que deveria ser nome de rua na capital e por todo canto se o mundo fosse justo.

Desde que me entendo por gente meu pai coloca flores no túmulo de sua primeira professora. Não sei dizer em que altura do caminho eu comecei a segui-lo nesse gesto, a ponto de ter se tornado uma estrelinha no meu calendário pessoal. Não necessariamente no dia de finados, mas em algum dia do ano eu preciso agradecer a Luzia pelas letras. Sento-me à beira do seu túmulo e, depois de dizer obrigada, me enfio dentro de mim e começo a pensar em minha vida de palavras.

É um momento de vestir minha própria pele, eu, que como repórter, estou sempre tentando me emburacar na pele do outro. Penso se estou usando com verdade o que Luzia me deu. Investigo se tenho sido digna e se tenho sido honesta no meu percurso, não só com os outros, mas comigo mesma. Se tenho amado bem não só os de perto, mas também os de longe. Apaziguo-me com as batalhas que talvez não ganhe, mas que nem por isso a luta deixa de valer a pena. Encaro o medo que muitas vezes me perfura e tento usá-lo para me tornar mais atenta às armadilhas. E refaço meus votos de contar histórias usando o melhor que tenho em mim. De alguma forma, acredito que Luzia sempre encontra um jeito de me responder.

Estava nesse ponto de minhas perambulações internas, neste último 2 de novembro, quando ouço a voz da minha mãe discutindo com o responsável do cemitério, que não encontrava meus últimos pagamentos em seu caderno. Minha mãe insistia que as taxas estavam em dia, um despropósito de 15 reais por ano (!!!) para que eu tenha o direito de lá ser enterrada quando o único acontecimento previsível da vida chegar. Eu já tinha dado uma vistoriada na minha futura casa, reservada embaixo de uma árvore, e agora peleava para me manter concentrada em minha conversa com Luzia, mas já começava a achar o debate divertido. De repente, eu escuto: “Mas a Eliane é falecida há muito tempo?”. E minha mãe, rapidíssima: “Está bem viva, sentada ali naquele túmulo”.

Abanei para ele e, toda faceira, lembrei: sim, eu estou beeeeeem viva.

Foi uma lembrança importante.

(Publicado na Revista Época em 07/11/2011)

A prisão da identidade

Prefiro me desinventar do que assinar minhas certezas em três vias

Antes, a pergunta que determinava nosso lugar no mundo era: “De que família você é?” ou “Qual é o seu sobrenome” ou “Você é filho de quem?”. Depois, a pergunta migrou para: “O que você faz?”. Tanto que, junto ao nome, em qualquer matéria jornalística, segue a profissão e, de preferência, a filiação profissional. Não é mais a filiação paterna, mas sim a filiação da instituição ou da empresa que confere legitimidade a um indivíduo e o autoriza a falar e a ser escutado. “O que você faz?” ou “Onde você trabalha?” é também a segunda ou a terceira pergunta que você escuta de quem acabou de conhecer em uma festa ou evento social. Só não é a primeira porque ainda faz parte da boa educação se apresentar pelo nome antes, ou fazer algum comentário sobre a qualidade da comida ou qualquer outra banalidade. A questão que se impõe, antes ou agora, é a mesma: a partir de que lugar você fala. A partir do lugar de onde alguém fala, prestamos atenção ou não naquilo que diz. O lugar de onde falamos é, portanto, o que nos confere identidade. E a identidade é uma exigência do nosso mundo.

Escrevo sobre isso porque tenho tentado escapar da prisão da identidade. Ou da prisão de uma identidade imutável como a impressão digital do meu polegar. E esbarro no funcionamento do mundo. Há um ano e meio vivo sem emprego. Por opção. A pergunta que mais escuto é: “Por que você deixou de ser repórter?”. Respondo que nunca passou pela minha cabeça deixar de ser repórter. Eu apenas deixei de ter emprego, o que é muito diferente. “Então você está frilando?”. Não exatamente. Não foi apenas uma troca de cadastro, de pessoa física para jurídica. Foi uma mudança mais profunda.

Explico que, a partir de uma investigação sobre a morte, compreendi que precisava me reapropriar do meu tempo e, desde então, venho fazendo uma mudança radical no meu jeito de viver. “Mas então você nunca mais vai ter emprego?”. Sei lá. Como saber? Não tenho nenhum interesse em assinar qualquer declaração de intenções em três vias. “Mas você agora trabalha mais do que antes!”, é o comentário seguinte. Sim, mas eu não mudei para trabalhar menos, pelo contrário. Eu adoro trabalhar e não me sinto oprimida pelo trabalho, porque, para mim, trabalhar é criar. Eu mudei para experimentar outras possibilidades de me expressar e de viver, o que para mim é quase a mesma coisa. “Mas você não separa trabalho da vida pessoal?” Não. Trabalho é bem pessoal para mim. “Mas você trabalha mais e ganha menos?”. Sim. “Hum.”

Eu faço várias coisas que quero fazer, tento explicar. “Então você se tornou documentarista?”, é a próxima pergunta, quando descobrem que estou no meu terceiro documentário. Às vezes, mas é mais como uma experiência de contar histórias do que como uma profissão. “Mas por que você decidiu parar de contar histórias reais para escrever ficção?”, é o questionamento mais recente, desde o lançamento do meu primeiro romance. Eu não deixei de contar histórias reais, apenas senti necessidade de escrever ficção. É mais uma voz na tentativa de dar conta do que me escapa (e continuará escapando) – e não minha única voz. “Mas então agora você é ficcionista?”. Sim e não. Sou várias coisas ao mesmo tempo. “Hum.”

Estes são diálogos frequentes no meu cotidiano. A partir deles – e da necessidade persistente do mundo de me encaixotar em alguma identidade fixa e fácil de compreender – comecei a me indagar sobre isso. Afinal, o que as pessoas perguntam é: “Quem você é?”. E antes era fácil dizer: “Sou jornalista”. Só que isso dizia muito pouco sobre mim, já que ser jornalista é só o começo da resposta sobre quem sou eu. Assim como ser pedreiro, enfermeiro, morador de rua ou CEO é o começo superficial de uma resposta sobre quem é qualquer pessoa. Mas ter uma resposta simples para algo complexo deixava todo mundo satisfeito. Agora, minhas respostas sobre quem sou eu não satisfazem ninguém. Porque o melhor e mais honesto que posso oferecer ao meu interlocutor são mais pontos de interrogação. E, definitivamente, pontos de interrogação não são populares. O mundo exige respostas com pontos finais e, de preferência, exclamações peremptórias.

Ora, quem sou eu? Não sei quem sou eu. E, quando penso que sei, me escapo. Alguém já conseguiu responder a esta pergunta com alguma quantidade razoável de certeza? Ainda assim, por não ter uma resposta fácil para uma pergunta que define as relações do nosso mundo, tornei-me um incômodo. Mas, como a questão é legítima, tenho me aprofundado nela. E, nessa busca para compreender a questão da identidade, deparei-me com uma ótima história de Michel Foucault.

Em uma passagem pelo Brasil, em Belo Horizonte, Foucault foi questionado sobre o seu lugar: “Mas, finalmente, qual é a sua qualificação para falar? Qual é a sua especialidade? Em que lugar o senhor se encontra?”. Foucault ficou chocado com a “petição de identidade”. A exigência, constante em sua trajetória, motivou uma resposta de grande beleza em seu livro Arqueologia do Saber (Forense Universitari):

“Não estou, absolutamente, lá onde você está à minha espreita, mas aqui de onde o observo, sorrindo. Ou o quê? Você imagina que, ao escrever, eu sentiria tanta dificuldade e tanto prazer, você acredita que eu teria me obstinado em tal operação, inconsideradamente, se eu não preparasse – com a mão um tanto febril – o labirinto em que me aventurar, deslocar meu desígnio, abrir-lhe subterrâneos, soterrá-lo bem longe dele mesmo, encontrar-lhe saliências que resumam e deformem seu percurso no qual eu venha a perder-me e, finalmente, aparecer diante de quem nunca mais tivesse de reencontrar? Várias pessoas – e, sem dúvida, eu pessoalmente – escrevem por já não terem rosto. Não me perguntem quem eu sou, nem me digam para permanecer o mesmo: essa é uma moral do estado civil que serve de orientação para elaborar nosso documento de identidade. Que ela nos deixe livres no momento em que se trata de escrever”.

Lindo. Michel de Certeau que, como Foucault, foi alguém que conseguiu escapar dessa identidade de túmulo e, ao mesmo tempo, construir um sólido percurso intelectual, analisa essa questão em um dos textos de um livro muito instigante: História e Psicanálise – entre ciência e ficção (Autêntica). Certeau diz o seguinte sobre o episódio vivido por Foucault em Belo Horizonte:

“Ser catalogado, prisioneiro de um lugar e de uma competência, desfrutando da autoridade que proporciona a agregação dos fiéis a uma disciplina, circunscrito em uma hierarquia dos saberes e das posições, para finalmente usufruir de uma situação estável, era, para Foucault, a própria figura da morte. (…) A identidade imobiliza o gesto de pensar, prestando homenagem a uma ordem. Pensar, pelo contrário, é passar; é questionar essa ordem, surpreender-se pelo fato de sua presença aí, indagar-se sobre o que tornou possível essa situação, procurar – ao percorrer suas paisagens – os vestígios dos movimentos que a formaram, além de descobrir nessas histórias, supostamente jacentes, ‘o modo como e até onde seria possível pensar diferentemente’”.

A resposta de Foucault para a plateia de Belo Horizonte foi: “Quem sou eu? Um leitor”.
Quando me perguntam sobre o lugar de onde eu falo, tenho dito nos últimos tempos: “Quem sou eu? Sou uma escutadeira”. E agora posso até citar Foucault para a resposta ficar mais chique.

Na semana passada, participei de um debate na Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo (RS), com Edney Silvestre e Nick Monfort. Terminava minha apresentação dizendo:

“A vida é um traçado irregular de memórias no tempo. Quero que, como inventário do vivido, meu corpo tenha as marcas de todas as histórias que fizeram de mim o que sou. E, se meus netos e bisnetos forem me contar, espero que jamais cheguem a qualquer conclusão fechada sobre a minha identidade. Esta seria a maior prova de que vivi”.

Depois, a certa altura do debate, repeti que minha identidade era fluida. E que hoje estava mais interessada em me desinventar do que em me inventar, em me desidentificar do que em me identificar. À noite, quando me preparava para deixar a universidade, fui cercada por um grupo de garotas: “Obrigada pelo que você disse sobre a identidade”.

Percebi que, no mundo líquido em que a internet nos lançou, há algo sobre a compreensão do que é identidade que começa a mudar. É neste mundo novo que os mais jovens tentam dar passos de astronauta, mas a gravidade da antiga ordem os prende no chão. Ainda que por razões e tempos diferentes, eu e aquelas garotas, assim como muitos outros por aí, nos conectamos nas esquinas voláteis de um mundo que ainda é determinado por padrões de cimento.

Ao pegar o avião que me levaria de volta para São Paulo, olhei para a carteira de identidade descolada, parcialmente apagada e um tanto esfarrapada que apresentei no embarque. E finalmente entendi por que não consigo me convencer a substituí-la por uma nova. Enquanto me permitirem, é com ela que vou embarcar. Porque é nela que me reconheço. Quando me obrigarem a trocá-la, vou obedecer. Mas as autoridades jamais saberão que é em uma identidade que se desprende de si que reside minha verdade.

(Publicado na Revista Época em 29/08/2011)

A vida sugada por um ralo de piscina

Uma mãe leva ao Congresso sua luta pela proteção dos filhos dos outros

Sempre que viajo, seja em um ônibus ou avião, olho ao meu redor e penso no que leva cada uma daquelas pessoas desconhecidas para o mesmo destino que o meu. Sei que o destino apenas parece o mesmo no mostrador da sala de embarque, mas que é sempre diferente para cada um de nós. Assim como sei que cada pessoa de fato não carrega uma mala, mas sua história. E que algumas delas suportam um excesso de peso que não pode ser mensurado na balança do check-in. Na véspera de 9 de agosto, talvez alguém possa ter olhado para aquela mulher de olhos verdes, cabelos ondulados, calças pretas, bata estampada e salto alto, e pensado que ela era uma executiva ou mesmo uma assessora parlamentar no voo SP-Brasília das 15h51. Ela recusa a bebida e o lanche que a aeromoça oferece. Aceita uma bala. Gestos casuais, escolhas que nada dizem. Talvez a passageira da janela esteja fazendo dieta. Ou tensa demais para comer ou beber. Ou apenas enfastiada ou enjoada. Nem mesmo alguém com muita imaginação poderia supor que uma parte essencial daquela mulher não está ali, mas presa no fundo de uma piscina há 13 anos.

Odele Souza, este é o seu nome, embarcou naquele avião porque sua filha teve os cabelos, tão parecidos com os dela, sugados pelo ralo da piscina do condomínio em que a família vivia, em São Paulo. A sucção era tão forte que o irmão mais velho puxou a menina de 10 anos com toda a sua força e só conseguiu arrancar um punhado de cabelos. Desde então, Odele vive uma dor que ninguém pode medir: a de testemunhar sua filha crescer e se tornar mulher deitada em uma cama, sem consciência de si mesma. Flavia tem hoje 23 anos.

Em Brasília Odele se encontrou com um homem que também carregava um peso invisível à balança eletrônica. Ele vinha do Rio de Janeiro para encontrá-la. Com a mesma tragédia, ele difere de Odele porque sua dor ainda é carne viva. Este homem é pai. E perdeu sua filha mais velha, também com 10 anos, quando ela brincava numa piscina de fibra de vidro na casa de amigos numa festa de aniversário. Em certo momento, os amigos resolveram sair da piscina em busca de outra brincadeira. Ela ficou. Plantava bananeira quando teve os cabelos sugados pelo ralo. Só conseguiram tirá-la de lá depois de desligar a bomba da piscina. Muito tarde para a menina. Como Flavia, ela era excelente nadadora. Diferentemente de Flavia, ela morreu ali.

Era 12 de fevereiro deste ano. E esse pai não consegue falar de sua perda imensurável sem chorar. Ele é professor de educação física e começou a ensinar sua filha a nadar quando ela tinha três meses de idade. Odele sabe que o choro vai secar um dia. Para ela, foram dois longos anos em que as lágrimas se tornaram parte de seu olhar. Depois, elas foram estancando e agora aparecem em geral à noite, quando se sente muito só entre as paredes do seu quarto. Odele sabe que as lágrimas até podem secar, mas a dor não acaba nunca.

E é por saber disso que ela e esse pai estão ali. Junto com eles há um perito americano, Lawrence Doherty, que foi consultor das leis de segurança nas piscinas aprovadas nos Estados Unidos e na Colômbia, e o brasileiro Augusto Cesar Araújo, representante da Associação Nacional dos Fabricantes e Construtores de Piscinas e Produtos Afins. À noite, no hotel, eles alugam um projetor de slides e acertam os últimos preparativos para a exposição em PowerPoint que farão no dia seguinte para o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), relator da lei federal de segurança nas piscinas que tramita no Congresso.

Foi Odele quem reuniu aquele grupo na capital federal para propor uma emenda ao projeto de lei que possa garantir que nenhuma criança ou adulto morra porque seus cabelos ou membros foram sugados pelo ralo de uma piscina. Às vezes a pressão é tão forte que chega a sugar parte dos intestinos, como aconteceu com Abigail Taylor, uma menina americana de 7 anos. Uma ameaça real, que mata pelo menos uma pessoa por ano no Brasil, isso se forem considerados apenas os casos divulgados pela imprensa – uma minoria. O Brasil é um dos países com maior índice de mortes por afogamento no mundo – mas não há estatísticas oficiais de quantos deles são causados pela sucção dos ralos das piscinas.

Do interior do seu apartamento em São Paulo, de onde pouco pode sair porque Flavia está presa a uma cama e ela é refém dessa tragédia, Odele se conecta à internet e usa a tecnologia para mover uma campanha incansável para que os brasileiros saibam que, mesmo no fundo das piscinas mais rasas, pode haver perigo de morte. Um risco que poderia ser evitado com o uso de equipamentos simples de proteção, como tampas antiaprisionamento e dispositivos que desligam automaticamente a bomba em caso de obstrução ou bloqueio do ralo. Como, por ignorância ou descaso, não existe a atenção devida à segurança, Odele briga para salvar a vida dos filhos dos outros de ter o destino da sua.

Como Flavia teve a fala roubada, sua mãe criou uma voz para ela. No blog Flavia vivendo em coma, Odele narra sua luta cotidiana por um mundo onde crianças não percam o futuro apenas porque estavam brincando em uma piscina num dia quente de verão. E, para ela, é como se Flavia pudesse falar, e estivessem juntas nessa batalha por dignidade. Contei a história dessas duas mulheres em uma reportagem chamada Saudades de sua voz. E também em um texto nesta coluna, com o título de Deus e a Eutanásia. Desde 2009 tenho testemunhado a força de Odele Souza. E mais uma vez pergunto a ela: “Por que você briga tanto para que os filhos dos outros não morram?”. E ela me responde, com a inteireza de sempre e um olhar que queima, mesmo quando suas pupilas bóiam em água salgada:

– A luta por uma Lei Federal para Segurança em Piscinas, com ênfase na sucção dos ralos, significa muito para mim. Além da indiscutível importância pública, essa luta me ajuda a conviver com o fato de ter visto Flavia crescer numa cama sem possibilidade de se tornar uma jovem como qualquer outra de sua idade. Sem a chance de estudar, se divertir, namorar, enfim, viver a sua juventude de forma saudável. Essa luta me ajuda a conviver com o fato de ver Flavia crescer nessa “cama-casulo”, se tornando uma borboleta. Que essa minha luta possibilite à Flavia, mesmo presa e imobilizada em seu estado de coma, voar o mais alto que ela possa. Que Flavia voe alto e longe e que leve às outras vítimas desse tipo de acidente – e são muitas – uma mensagem de amor, de resistência e de cidadania por alertar para o perigo existente nos ralos de piscinas. Antes da tragédia ocorrida com Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas – se vendidos, instalados e mantidos fora dos padrões de segurança – podem prender embaixo d’água uma pessoa pelos cabelos, ou por qualquer outra parte do corpo. Antes do mergulho sem volta de Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas podem matar ou deixar uma pessoa em coma. Com minha luta tento compensar, se é que isso é possível, a dolorosa convivência com o silêncio ao qual Flavia foi condenada a viver. Diante da cruel imobilidade imposta à minha filha, eu não me permito ficar imóvel. Diante da imobilidade e do silêncio impostos à Flavia, eu preciso estar em constante movimento. E preciso gritar. Gritar por mim, por Flavia e por todas as vítimas que morreram afogadas enquanto nadavam em uma piscina sem segurança.

Odele é assim. Intensa e inteira, mesmo sabendo que para sempre lhe faltará um pedaço essencial de si. Quando penso nela, a enxergo ao lado de Flavia, que se tornou uma moça de beleza suave sobre a cama. Em seu coma vígil, ela abre os olhos durante o dia e os fecha à noite, e se sobressalta com qualquer ruído. Vejo Odele com seu inseparável lap top, sentada perto de sua filha, gritando por justiça enquanto em sua casa o silêncio a perfura. Pelas internet ela descobriu peritos em diferentes países do mundo, arregimentou aliados e fez amigos. E no dia 9 alcançou Brasília. Depois de duas horas de exposição e da entrega de um texto cuidadosamente elaborado ao longo de meses com a sugestão de emenda ao projeto de lei, Odele deixou a Câmara dos Deputados com a promessa de que sua proposta será incluída e que o projeto será votado o mais rápido possível – talvez até o final desse ano. Se alguém fez a Odele uma promessa que não pretende cumprir, mal sabe a encrenca que se meteu. Conheço poucos brasileiros tão obstinados quanto ela. Dia após dia, Odele acorda para gritar.

No voo de volta Odele estava ansiosa. Afastar-se de Flavia exige uma operação complexa. Ela não conta com nenhum familiar para ajudá-la. Na ansiedade, pergunta ao passageiro ao lado se ele tem filhos. Ele responde que tem. Odele tenta contar sobre a sua luta. O passageiro ouve, mas parece não escutar e nada diz. Quando chega em casa, é para Flavia que Odele narra mais um capítulo da história que constrói para ambas. Como ela diz: “Em minha eterna conversa com minha filha, onde só se ouve a minha voz”. É chorando que Odele diz à Flavia:

– Princesa, mesmo sem sair da cama e do seu quarto, você viajou comigo para Brasília. Você estava presente na reunião. Você voou, Flavia.

(Publicado na Revista Época em 15/08/2011)

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