Tropa de elite

Que tipo de povo queremos ser?

Em geral, não gosto de voltar ao tema da coluna anterior. Mas os comentários da última merecem uma reflexão. O fascinante da internet é que o texto continua a ser escrito pelos leitores. Quase sempre tenho a sorte de ter leitores de bom nível, que fazem suas críticas com educação, compartilham suas experiências, enriquecem o debate. Vez ou outra, porém, alguns manifestam sua falta de educação, protegidos pelo anonimato. É triste, porque é uma oportunidade perdida de dizer e ouvir algo que nos faça ir além. Mas, mesmo estes leitores pobres de ideias e de espírito nos dizem algo com sua agressividade. Embora possamos ignorá-los, talvez seja importante pensar não no que dizem, já que sua violência busca encobrir a falta de argumentos, mas no que seu comportamento revela sobre o país que construímos.

Para quem não leu a coluna anterior, em “Vizinhos de praia” eu contava minha má experiência com a vizinhança, ao visitar minha família no final do ano. Carros com porta-malas aberto e som ensurdecedor a qualquer hora do dia e da noite, cachorros (muitos) que não param de latir, barulho ininterrupto de cortador de grama. Decidi contar meus percalços praianos por apostar na hipótese de que o que aconteceu comigo também havia ocorrido com muitos leitores que, como eu, se sentem impotentes diante de uma convivência cada vez mais ditada pela violência. Os comentários, narrando experiências do gênero, algumas bem mais difíceis e perigosas que a minha, comprovaram que minha hipótese estava correta.

Antes de chegar aos – felizmente poucos – leitores agressivos, queria apontar outra reação que a coluna motivou. Fiquei surpresa ao perceber que alguns fizeram uma relação imediata entre a falta de educação/respeito e a ascensão social. Em nenhum momento, no texto, eu afirmo que o grupo que tocava funk e outros gêneros musicais num volume que impossibilitava a conversa dentro da minha casa eram pessoas economicamente pobres que haviam subido de escala social. Pelo contrário. Eu conto que eles tinham dois carros, uma moto e um buggy, bens materiais em geral incompatíveis com quem vive ou saiu recentemente das favelas, mesmo com a comprovada ascensão das classes C e D no governo Lula.

Eu já havia ficado curiosa com a relação entre falta de educação/respeito e ascensão social quando comentava nossas dificuldades com outro vizinho da praia. “Este comportamento é coisa de negrada. Eles saem das vilas e vêm pra cá fazer baderna”, ele disse. Fiquei chocada com o elevado índice de preconceito em apenas duas frases. Este vizinho fez tal afirmação olhando para os vizinhos violentos. O que havia diante dos olhos dele, quando fez o comentário, era o seguinte: proprietários da casa de praia, com seus familiares e amigos, todos brancos, alguns com olhos claros, descendentes de italianos e moradores da serra gaúcha, uma das regiões mais prósperas do Rio Grande do Sul. O preconceito era forte o suficiente para que ele precisasse transformar descendentes de europeus, visivelmente de classe média, em “negrada de vila”. Vila, para um morador do interior do Rio Grande do Sul, é o equivalente à favela.

Ao acompanhar os comentários da coluna, vi que esta inferência se repetiu. Acho importante tentar compreender por que pessoas inteligentes manifestaram preconceito, consciente ou inconscientemente. Eu não acho que todo pobre é bonzinho nem todo rico é malzinho. Sou amiga e acompanho o trabalho de pessoas pobres de grande valor e conheço outras que só prejudicam a comunidade em que vivem. Assim como conheço ricos que tentam repensar suas ações para construir um mundo melhor e outros que são sonegadores de impostos, patrões da pior espécie e péssimos cidadãos. Nem a pobreza nem a riqueza dão atestado de boa conduta para ninguém – nem justificativa para o inverso. Do mesmo modo que a cor também não dá, a priori, diploma de dignidade para alguém.

O fato de meus vizinhos tocarem funk de madrugada, com o porta-malas do carro com caixas de som no volume máximo, talvez possa ter contribuído para a ilação – jamais para o preconceito, que é sempre inadmissível. Afinal, o funk surgiu nas favelas do Rio. Mas, pensar que isso demonstra a classe social de quem ouve, é ignorar que o funk, assim como o rap, se difundiu entre a as classes A e B há muitos anos. Se eu não estivesse tão irritada na ocasião, seria instigante pensar por que jovens de classe média do interior gaúcho, cujos pais ainda falam dialeto vêneto, sentem-se poderosos ouvindo funk carioca. Fiquei imaginando o insólito encontro entre aquelas “cachorras” do interior gaúcho e os funkeiros das favelas do Rio. O que eles têm em comum? Nada, imagino. Mas, com certeza, esta apropriação deve nos contar alguma coisa. E pode ser interessante saber o que é para entender um pouco mais do mundo onde vivemos.

Agora, o que dizem os leitores que pretendiam me ofender? Em geral, eles me acusam de manifestar um comportamento elitista e me taxam de “burguesinha”. Um deles defende que, com o texto, eu revelo meu desprezo pelo povo e também pelos leitores. Em geral, eu não ligo para tentativas de agressões, porque acho que elas são auto-explicativas. O autor, na tentativa de me desqualificar, revela mais dele mesmo do que de mim. Mas achei que estes mereciam ser escutados naquilo que diziam sem querer dizer. Em alguns casos, infelizmente, tive de eliminar os comentários, porque agrediam outros leitores com palavrões, me chamavam de “piranha” e me mandavam tomar no mesmo lugar para o qual o funk dos vizinhos já tinha me enviado várias vezes.

Ora, o que é um comportamento “elitista”? Boa parte dos problemas crônicos do Brasil se deve ao fato de que, ao longo da História, o país teve uma elite de última categoria. No geral, o comportamento da elite brasileira, em diferentes momentos (e também quando incluiu novos atores), norteou-se por se apropriar e usar os recursos naturais do país de forma danosa, explorar os trabalhadores, valorizar o que vem de fora e desvalorizar o que é produzido aqui, especialmente a cultura, garantir a impunidade de seus atos, não se sentir implicada na construção do país nem no bem-estar do seu povo. Para esta elite, só o seu bem-estar importa. Ela só descola os olhos de seu umbigo quando percebe seus privilégios ameaçados. E, muito significativo, historicamente a elite brasileira usa o público como se fosse privado. Para ficar num exemplo recente, basta observar o modus vivendi da recente elite política do país, refestelada no Congresso Nacional.

Em resumo: o comportamento padrão da elite se expressa por fazer o que bem entende sem responder pelos seus atos ou se importar com o bem-estar do outro. Exatamente, portanto, como meus vizinhos de praia. Como os vizinhos dos leitores que contaram seus percalços. E como os leitores que entram neste espaço não para fazer críticas ponderadas, das quais todos possam se beneficiar, mas para agredir, ofender, desrespeitar.

Ainda levando em consideração a “acusação” de que eu estaria manifestando um comportamento elitista, vejamos. Se havia uma relação entre elite e povo em meus percalços litorâneos, como estes leitores acreditam que existia, eu e minha família estávamos no lugar do povo que devia continuar aguentando calado os desmandos e abusos daqueles que se achavam no direito de ser mais importantes que todos os outros. E usavam o espaço público como se fosse privado. Do mesmo modo, quando a polícia apareceu, meus vizinhos estavam tão certos da impunidade, que ridicularizaram a polícia e a nossa crença na lei.

Dito isso, por que vale a pena pensar sobre isso? Porque estes pequenos casos da vida cotidiana, minha e de tantos leitores, são reveladores. E, embora possa não parecer, têm grande repercussão na vida do país. Se há avanços sociais significativos e muitos de nós têm ampliado o acesso a bens de consumo, é relevante pensar sobre que tipo de povo queremos ser. Será que queremos repetir o comportamento histórico de parte da elite brasileira e fazer o que bem entendemos sem nos importar com o bem-estar do outro? Será que nós também vamos privatizar o espaço público? Será que nós também rasgaremos a lei para nos mantermos impunes?

Será muito triste se, depois de uma História tão sofrida, quando o Brasil parece viver um momento pródigo em oportunidades, quando temos a chance histórica de nos reinventar, decidirmos nos construir à imagem e semelhança da elite que nos espoliou por 500 anos.

São pequenos casos cotidianos como este que explicam por que escolhemos e legitimamos com nosso voto um Congresso como o que parasita Brasília nesse momento, salvo honrosas exceções. Nossos pequenos atos, a forma como vemos o público e o privado, a escolha que fazemos entre respeitar e não se importar têm grandes consequências para o bem-estar de todos. Nós não estamos apenas cuidando da nossa própria vida, mas construindo um país.

Em homenagem aos leitores que fazem este espaço valer a pena a cada semana, com contribuições que o tornam mais rico, encerro com o comentário de um deles. Ricardo de Faria Barros, de Brasília, coloca uma questão fundamental para um país em que parte do povo, na primeira oportunidade, tenta imitar a elite no que ela tem de mais nefasto: “Meus pais repetiam, como um mantra, ‘seus direitos acabam quando começam os dos outros’. Mas, para este mantra funcionar, temos que nos perceber como parte de um grupo social, no qual co-existam OUTROS. E não como os únicos. Se nos vemos e percebemos como os únicos, ‘os caras’, se só vemos a nós próprios, como reconhecer onde acaba nosso direito e começa o do outro?”.

(Publicado na Revista Época em 18/01/2010)

Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

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(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

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