Presente de Dilma azeda o Natal no Semiárido

Às vésperas das festas de fim de ano, o governo federal rompe a parceria com a organização que abalou os alicerces da indústria da seca ao implantar mais de 370 mil cisternas de alvenaria no sertão nordestino. E começa a distribuir cisternas de plástico

Parte do Brasil conhece o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Também conheceu o semiárido pela imprensa, nas constantes denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas em obras que deveriam combater a seca, mas estagnavam nas mãos privadas de coronéis. Nos últimos anos, porém, a paisagem do sertão estava mudando, graças a um movimento iniciado em 2003. No primeiro ano do governo Lula, a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, procurou o presidente para propor uma parceria para a construção de cisternas de alvenaria no sertão nordestino. Seus interlocutores eram Frei Betto e Oded Grajew, então no governo. Assinalado pela sua origem de retirante, de menino pobre do semiárido que migrou com a mãe e os irmãos de Caetés, em Pernambuco, para São Paulo, Lula acolheu a ideia. Ele conhecia bem a aridez geográfica e a imutabilidade dos desmandos políticos que faziam da sua terra um lugar brutal. O resultado deste esforço entre governo federal e sociedade civil organizada foram 371 mil cisternas de cimento, envolvendo 12 mil pedreiros e pedreiras das comunidades e beneficiando mais de 2 milhões de brasileiros em 1.076 municípios. Algo grande, muito grande, para quem acompanha a história do Nordeste brasileiro. Basta andar pelo semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres de gente. A presença da água, com a implantação coletiva de uma simples cisterna, tem mudado não apenas a economia, mas a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.

Tudo ia muito bem até este mês de dezembro, quando a coordenação da ASA foi informada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que suspenderia o pagamento dos recursos para o “Programa Um Milhão de Cisternas”. O governo anunciou que pretendia mudar os arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria e ampliaria os convênios com os estados – sinalizando o afastamento das organizações não governamentais do processo. A ASA foi aconselhada a negociar com os estados e municípios.

O que isso significa? Muito.

A ASA fará uma manifestação em Petrolina (PE) na manhã desta terça-feira, 20/12, para protestar contra a ameaça ao Programa Um Milhão de Cisternas e para denunciar que a sociedade civil organizada está sendo excluída do governo de Dilma Rousseff.

Milhares de sertanejos partirão de diferentes estados nordestinos para se reunir em Petrolina e alertar o país para uma possível volta às velhas práticas do passado, quando a indústria da seca era a única coisa que vicejava no semiárido brasileiro e qualquer arremedo de solução era usado como moeda eleitoral.

O rompimento da parceria com a ASA é anunciado no momento em que a opinião pública está predisposta a considerar qualquer ONG fraudulenta. Como foram denunciados muitos “malfeitos” nos convênios entre algumas organizações não governamentais e ministros demitidos, como Orlando Silva e Carlos Lupi, não há melhor hora para romper com a sociedade civil organizada. E fazer parecer que as ações são um esforço de moralização dos recursos públicos. Esquece-se – talvez por conveniência – que o surgimento das ONGs é resultado direto da redemocratização do país. E também que uma parcela significativa delas não apenas é honesta, como tem operado uma grande transformação nas relações e nos resultados em várias áreas cruciais.

A sociedade civil organizada tem – e para parte dos políticos é aí que mora o incômodo – impedido que as verbas públicas sejam interceptadas e manipuladas por grupos instalados em setores estratégicos. E assim, impedido governos, em todos os níveis, de agradar aliados com a possibilidade de administrar uma parcela polpuda das verbas públicas. É claro que há ONGs corruptas, que se aliaram a políticos corruptos, para lucrar com o dinheiro do povo. Mas demonizar todas elas é uma esperteza de quem está doido para voltar ao modelo antigo – e é também má fé e desrespeito com o avanço conquistado pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Em novembro, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou que o governo separaria “o joio do trigo”. Disse mais: “As organizações sérias não têm nada a temer”. Pesquisei, então, em que lugar se situa a ASA na paisagem da sociedade civil organizada. Descobri que, na opinião do governo federal, a ASA é “trigo” da melhor qualidade.

Pela seriedade e competência da sua atuação, a rede já recebeu uma dezena de prêmios. Entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos do governo federal, na categoria “Enfrentamento da Pobreza”, entregue pelo próprio Lula no final de 2010. E também um prêmio da ONU, que a considerou “uma referência de gestão e inclusão social no campo do acesso à água e do direito à segurança alimentar e nutricional das famílias carentes do semiárido”. Em entrevista à TV Brasil, em novembro, Luiz Navarro, secretário-executivo da Controladoria Geral da União (CGU), disse que algumas organizações não governamentais apresentavam mais condições de realizar determinadas ações do que o Estado. Entre os exemplos, afirmou que haviam acabado de avaliar o Programa Um milhão de cisternas, da ASA: “Nossa avaliação é extremamente positiva. Não sei se o Estado teria o mesmo dinamismo para fazer o que essas ONGs têm feito”.

Sendo esta a opinião do próprio governo federal e de seus órgãos de fiscalização, por que o governo decidiu suspender a parceria com a ASA?

“O governo rompeu a parceria com a ASA. Mas os ladrões não estão no nosso meio”, afirma Naidison Baptista, coordenador da rede. “Nós não somos construtores de cisternas apenas, nós somos uma rede de organizações da sociedade civil que influencia na política para o semiárido como parte do processo democrático. Temos orgulho de ter pautado o governo federal para a construção de cisternas e de políticas de convivência. Se você voar hoje sobre o semiárido, vai ver os pontinhos brancos. São as cisternas. As pessoas não entram mais na fila da água em troca de voto. Cortamos a raiz do coronelismo do Nordeste. Então perguntamos: por quê?”.

A ASA atua usando o conhecimento da comunidade e estimulando que as pessoas se apropriem coletivamente do processo de construção de cada cisterna. É a comunidade que decide em conjunto quem vai receber a cisterna primeiro, a partir de critérios como pobreza, número de crianças e de idosos, se a mulher é a chefe de família etc. Cada família participa da construção da cisterna, que dura cerca de cinco ou seis dias, e fornece a água para a vizinha enquanto não chegar a vez dela. Para a construção é usada a mão de obra da cidade ou povoado e o material das lojas dos pequenos comerciantes, movimentando a economia local. É também a agricultura produzida em cada região que fornece a alimentação. Para a ASA, a implantação de uma cisterna é mais do que uma obra: é a construção de um espaço social de onde tem emergido novas lideranças e uma juventude ativa. Mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias em que sempre coube aos sertanejos ou se submeter a algum “painho” – ainda que com pinta de moderno – ou migrar para o centro-sul. “A água estava concentrada na mão de poucos”, resume Baptista. “Com as cisternas, a água foi repartida.”

Na tecnologia social da ASA, a implantação das cisternas não é vista como favor do governo, mas como direito. Não é assistencialismo, mas política pública. As pessoas são estimuladas a exercer a cidadania e a tomar suas próprias decisões, coletivamente – tornando o voto de cabresto cada vez mais difícil. Bem diferente, portanto, de um modelo assistencialista/populista que forma gerações de eleitores agradecidos a um pai ou mãe magnânimos. Seria isso que estaria incomodando o governo federal e seu amplo e heterogêneo espectro de aliados às vésperas das eleições municipais de 2012? Espero – sinceramente – que não.

No mesmo período em que a ASA foi informada de que não receberia os recursos para os próximos meses, o Ministério da Integração Nacional anunciou e comemorou a instalação da primeira de 300 mil cisternas de polietileno, em meio a campanhas de protesto das comunidades do semiárido que rejeitam o equipamento de plástico. O governo alega que as cisternas de polietileno podem ser produzidas em grande escala e assim atingir um número maior de famílias com mais rapidez. Segundo o governo, não se trata de substituição de uma tecnologia por outra, mas de complementação.

A ASA apresenta argumentos convincentes para condenar as cisternas de plástico. “Elas custam mais do que o dobro do valor das cisternas de alvenaria. Enquanto a nossa custa R$ 2.080, a de plástico custa R$ 5.000. Ou seja: se fosse só o dobro, com o mesmo valor as empresas fazem 300 de plástico – e nós construiríamos 600”, diz Baptista. Pelos cálculos da ASA, para cada 10 mil cisternas de alvenaria instaladas, há uma injeção de R$ 20 milhões na economia local. Com as de plástico, a maior parte dos recursos públicos ficará nas mãos dos empresários. Na mesma lógica, a população se tornará para sempre dependente das empresas para a manutenção e a reposição, já que não dominará a técnica. Quando existe qualquer problema com as cisternas de alvenaria, o pedreiro da comunidade resolve de forma simples.

“Em vez de construir, as pessoas vão receber as cisternas de presente. Das mãos de quem? É o que vamos ver. E a gente sabe que, como simples beneficiárias, do meio para o fim do processo as famílias não cuidam mais. Temos vários exemplos de cisternas que foram entregues prontas e que hoje não funcionam mais porque as comunidades não se envolveram em sua construção, não tem o sentido do pertencimento”, diz o coordenador da rede. “É a volta da indústria da seca, com grandes obras nas quais a população fica à margem, e o dinheiro na mão de grupos.”

É possível ter uma ideia de quem vai ganhar com a mudança. Mas, por quê?

Por que um trabalho que funcionava tão bem, a ponto de ser elogiado e premiado pelo governo federal, está sendo descartado pelo governo federal? Se funciona bem, por que mudar? Seria porque funciona bem demais? Espero, sinceramente, que não.
A seguir, reproduzo parte da nota divulgada pela ASA:

“Após oito anos de parceria com o Governo Lula, a decisão do governo federal, expressa pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de não mais renovar os Termos de Parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), pode levar ao fim uma das ações mais consistentes de garantia de água para as famílias do meio rural semiárido: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Sem dúvida, o maior programa com apoio governamental de distribuição de água e de cidadania, em uma região onde antes só existia fome, miséria e a indústria da seca. (…) A argumentação é de que a partir de agora o governo federal vai priorizar a execução do Programa, que integra o Plano Brasil Sem Miséria, apenas via municípios e estados, excluindo a sociedade civil organizada. A sugestão dada pelo MDS é que a ASA negocie sua ação em cada um dos estados contemplados. Para além da parceria com estados e municípios, o governo também anuncia a compra de milhares de cisternas de plástico/PVC de empresas que começam a se instalar na região. Ou seja, o governo não apenas rompe com a ASA, mas amplia a estratégia de repasse de recursos públicos para as empresas privadas. Consideramos isso um retrocesso, o que pode gerar um retorno claro e nítido a velhas práticas da indústria da seca, onde as famílias são colocadas novamente como reféns de políticos e empresas, tirando-lhes o direito de construírem sua história”.

Reproduzo também a nota divulgada pela Assessoria de Comunicação do MDS diante das primeiras manifestações de surpresa e protesto contra a decisão governamental. O título da nota é: “O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) reafirma que não existe ruptura na parceria estabelecida com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para a construção de cisternas”. Mas o texto não diz isso. Reproduzo-o na íntegra para que algum leitor possa encontrar o que eu não encontrei. O texto refere-se apenas – e de forma pouco clara – à “reavaliação e ampliação do arranjo institucional” e à “importância de todos os parceiros”. Com relação à ASA, limita-se a reconhecer e elogiar o trabalho já realizado:

“Uma das prioridades do Governo Federal é garantir que os brasileiros das áreas rurais tenham acesso à água para consumo e para a produção de alimentos. No Plano Brasil Sem Miséria, o programa Água Para Todos definiu a ambiciosa meta de atender 750 mil famílias rurais com água para beber no semiárido, até 2013, e de assegurar água para a produção agrícola de outros milhares de famílias. Atingir este objetivo exige a reavaliação e a ampliação do arranjo institucional vigente até então, incluindo a formação de novas parcerias estratégicas entre diversos ministérios, órgãos públicos, estados, municípios e organizações da sociedade civil. O MDS reafirma a importância de todos os parceiros no sucesso desta agenda, visando ao atendimento integral das famílias que hoje não têm acesso à água de qualidade para manutenção de sua condição de vida. O MDS está empenhado na preparação das condições de atuação para o próximo exercício, no menor prazo possível, dentro das novas regras que orientam a atuação de todas as unidades do Governo Federal no próximo exercício. Em relação à AP1MC/ASA, o MDS reconhece e valoriza os resultados alcançados na construção de mais de 300 mil cisternas, numa parceria exitosa ao longo dos últimos nove anos”.

Para terminar, reproduzo também o texto escrito por um integrante da Comissão Pastoral da Terra sobre o presente natalino de Dilma Rousseff aos nordestinos. A ironia do texto, como se verá, não é opcional. Quem fala agora é Roberto Malvezzi, o Gogó:

“O presente da presidente Dilma ao povo do semiárido neste Natal já está decidido: uma cisterna de plástico. A presidente é uma excelente gerente, pessoa íntegra e acima de qualquer suspeita. Quando criou o ‘Água para Todos’ nos encheu de alegria. Afinal, agora iríamos acelerar a construção das cisternas para beber e produzir. Mas a presidente preferiu doar centenas de milhares de cisternas de plástico para os nordestinos. Descartou o trabalho histórico da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e vai trabalhar exclusivamente com os estados e municípios. Claro que essa decisão está acima de qualquer interesse eleitoreiro, ou dos coronéis do sertão, ou dos 10% das empresas fabricantes do reservatório. Dilma é uma mulher honrada. Claro que os empresários enviarão junto com as cisternas pedagogos, exímios conhecedores do semiárido, que farão a educação contextualizada realizada a duras penas por milhares de educadores da ASA. Esses pedagogos evidentemente conhecem o semiárido, o regime das chuvas, a pluviosidade de cada região, como se deve cuidar dos telhados, das calhas. Irão pelo sertão, pelas serras, pelos brejos, gastarão dias de suas vidas em meio às populações para realizar com um cuidado sacerdotal as tarefas que a questão exige. Claro que os políticos farão, antes de entregar as cisternas, uma crítica ao coronelismo nordestino, ao uso da água como moeda eleitoral, afinal, já superamos os períodos mais aberrantes da política nordestina. Quando a cisterna quebrar, os pedreiros capacitados saberão reparar os estragos, sem depender da empresa, e as cisternas de plástico não virarão um amontoado de lixo no sertão. As empresas também enviarão agrônomos para dialogar com as comunidades como se faz uma horta com a água de cisterna para produção, uma mandala, uma barragem subterrânea, uma irrigação simples por gotejamento. Claro, o interesse das empresas e dos políticos é continuar o trabalho pedagógico da ASA tão premiado no Brasil e em outros lugares do mundo. Não temos, portanto, nada a protestar. A presidente e a ministra (Tereza) Campello são exímias conhecedoras do Nordeste, mesmo tendo nascido no Sul e Sudeste. Conhecem cada palmo da região, dessa cultura, cada um de seus costumes. Claro que não nos enviarão mais sapatos furados, roupas rasgadas em tempos de seca, como acontecia antigamente. Até porque o trabalho da ASA eliminou as grandes migrações, a sede, a fome, as frentes de emergência e os saques. Mesmo não sendo nordestinas, nem jamais tendo vivido aqui, conhecem a região melhor que o povo que aqui nasceu ou aqui habita. Portanto, gratos por tanta generosidade. Vamos conversar com os milhões de beneficiados envolvidos na convivência com o semiárido. Eles vão entender as razões da presidente e da ministra e vão retribuir com a generosidade que lhes é peculiar. O povo do semiárido jamais esquecerá que, no Natal de 2011, ganhou como presente da presidente Dilma Roussef uma cisterna de plástico”.

De minha parte, chego ao fim deste ano perplexa. Cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro, mas não podia acreditar porque passei a infância e a adolescência numa ditadura que torturava gente como a então jovem Dilma Rousseff. Participei dos comícios das “Diretas Já” e cobri como jornalista as primeiras eleições da redemocratização. Muito mais tarde, testemunhei e escrevi sobre a eleição de Lula e o comício da vitória, em 2002. Nos últimos anos, já madura, ouço que o futuro chegou. E estava começando a acreditar, pelo menos em alguns aspectos. E não é que agora, às vésperas de 2012, anunciam com eufemismos que podemos estar voltando ao passado também no sertão nordestino? Não há de ser por saudades da literatura de Graciliano Ramos e de João Cabral de Melo Neto, porque esta é a única que com certeza não voltará.

(Publicado na Revista Época em 19/12/2011)

Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney

Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também é para você.

Como tenho escrito com frequência sobre a megausina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.

Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal.

Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadão denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.

Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas, entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”.

Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país.

Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense.

No momento histórico em que recursos como água e biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.

– Por que o senhor, assim como outras pessoas que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa?
Célio Bermann – A política energética do nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões. Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de informação, já que governo e empresas não o fazem.

– Sim, mas por que o setor energético tem sido uma caixa preta por décadas?
Bermann – A governabilidade foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo “democrático popular” do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em Brasília.

– E qual era o seu papel?
Bermann – Era apagar fogo, este era o meu papel…

– Mas, oficialmente…
Bermann –  O meu papel era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo.

– E como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo?
Bermann – É um horror. É uma lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre os chamados “ministérios fins” e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da definição de “pontos comuns”, de procurar verificar onde poderíamos estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram assinar em 31 de março de 2004.

– Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas intenções… mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era uma questão de veleidade… não sei. No final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas hidrelétricas que não devem ser construídas.

“Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico”

– Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da Dilma Rousseff…
Bermann – É, foi uma coisa meio… difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte… e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).

– O José Antonio) Muniz (Lopes O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte… Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá… Depois de deixar a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás…
Bermann – Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte.

– No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir daí?
Bermann – A pergunta é: tirou mesmo?

– E qual é a resposta?
Bermann – Naquele momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era oposição. Vamos conversar… E aí se reacomodam as questões. Eu não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora.

– O senhor está falando do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão?
Bermann – Edison Lobão.

– E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann – É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que era um novo projeto.

“O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público”

– A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de 2006?
Bermann – Não tenho a mínima ideia. Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora.

– Por que fictício?
Bermann – Fictício porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões…

– Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$ 20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.

– Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite… É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento.

“Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível”

– Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann – Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: “É obra minha!”. É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.

– O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho chamado de “Síndrome do Blecaute” conduz à legitimação de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que utilizam a “Síndrome do Blecaute” para se viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose.

– As chamadas indústrias eletrointensivas…
Bermann – Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto oficialmente.

– O que poucos parecem perceber e menos ainda questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar, passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: “Não, nós não vamos fazer isso”.

– E depois esses produtos retornam para o Brasil, via importação, com valor agregado…
Bermann – É. Eu sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70.

“Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional”

– Houve acentuação desse processo no governo Lula e agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece a partir de Lula é o que eu tenho chamado de “reprimarização da economia”. Nós já tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois, tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo: “Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.

– Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras… Essa obstinação se dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann – Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos)

– Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai ser a única…”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em cartório e assinado: Deus”.

– O senhor não acredita que será a única usina do Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato.

“O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada”

– O senhor está dizendo que o governo federal está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é totalmente ilógico construí-la.

– E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.

– Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a elas?
Bermann – Não podemos olhar a questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a “Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada.

– Para o senhor, a questão de fundo é outra…
Bermann – Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado com a ideia de que vai faltar energia.

“Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos”

– Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será dividido por todos…
Bermann – Isso. Os recursos naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.

– Uma das piores distribuições de renda e uma das piores distribuições de eletricidade do mundo…
Bermann – Eu chamo o programa de universalização de “Luz para quase todos”. Não é para todos, é para quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de autonomia energética.

– O senhor poderia explicar melhor quais são as alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann – Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão… Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde.

– O que o senhor diria para a parcela da população brasileira que faz afirmações como estas: “Ah, se não construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa”, ou “Ah, esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho”. O que se diz para essas pessoas para que possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas…”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos beneficiarmos com essas “comodidades” que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos.

“Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo”

– O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann – Ela é muito cabeça dura.

– Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei…
Bermann – É, mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão postas.

– Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann – Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é a “Brasilite”. A “Brasilite” se compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.

– O senhor participou da elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me definem como: “Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão chateados…”. Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado!

– Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann – Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos.

(Publicado na Revista Época em 31/10/2011 e atualizado em 16/11/2011)

A pequenez do Brasil Grande

A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

No início deste ano, Sheyla Juruna viajou pela Europa para levar sua voz contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Em agosto, durante uma entrevista em Altamira, no Pará, eu perguntei a ela o que tinha achado do que viu. Ao fazer a pergunta, imaginava escutar sobre o assombro de uma indígena criada na Amazônia diante da arquitetura e da arte que povoam as ruas e os museus das principais capitais europeias. Afinal, deslumbramento é a reação habitual de quem viaja a países como a França. Ao me responder, uma sombra passou pelo rosto de Sheyla, uma bela mulher de 37 anos com os traços bem marcados de sua etnia e olhos e cabelos bem pretos. A sombra passou e não foi embora. Para meu espanto, Sheyla assim respondeu à minha pergunta:

– Eu estranhei. Fiquei triste e oprimida. Não consegui enxergar beleza. É um mundo de concreto. Terrível. Só conseguia pensar no que havia antes que foi destruído para que aquilo tudo pudesse existir. Só conseguia pensar nos povos que viviam lá antes e viraram História.

Vários filósofos já escreveram sobre a importância essencial do espanto para alcançar o outro e construir conhecimento. E nós, jornalistas, aprendemos isso na prática. O melhor costuma nos chegar pelo espanto. Pelo menos, foi assim que me senti diante de Sheyla Juruna. Bem espantada, porque a beleza arquitetônica das capitais e cidades históricas da Europa sempre me elevaram – jamais me oprimiram. E ali estava aquela mulher, com uma sombra instalada no rosto bonito, me desvelando outro jeito de ver o mundo, nascido de uma experiência totalmente diversa. Para Sheyla, forjada na lógica da destruição, ao deparar-se com as capitais europeias o que ela vê é o que não mais está lá. Então, ela diz:

– Nós, indígenas do Xingu, não queremos virar História. Nós queremos permanecer vivos, nós queremos continuar.

O mais eloquente para Sheyla Juruna ao conhecer a Europa é a ausência. Porque a experiência de Sheyla mostra que, para que um mundo possa ser construído, outro tem de ser destruído. E o mundo destroçado, ontem como hoje, é sempre o dela. E é por conta desta nova tentativa de destruição que Sheyla fez o caminho inverso dos navegadores portugueses e desembarcou na Europa. E ali se sentiu oprimida pelo que não enxergou.

Quem é Sheyla Juruna, que nos enriquece com o olhar do avesso? Ela é uma indígena cuja cultura foi tão dilacerada que hoje, para alertar o Brasil e o mundo da devastação que Belo Monte vai causar, precisa fazer isso na língua dos dominadores, já que a sua lhe foi roubada. Quando sua bisavó tinha nove anos, seu povoado foi incendiado pelos brancos que ocuparam a Amazônia no ciclo da borracha. Para não ser morta junto com sua família, passou a noite escondida numa castanheira, na floresta. Quando amanheceu, continuou fugindo pela mata até deparar-se com um seringal. Foi então “amansada” pelo patrão. Proibida de falar a língua do seu povo, seu nome também foi apagado. E este silêncio foi sendo transmitido de geração para geração de mulheres. Até Sheyla.

Sete anos atrás, à beira do caixão da avó, filha desta primeira vítima da ocupação da Amazônia, Sheyla jurou lutar pela floresta que representa toda a possibilidade de vida para ela e sua comunidade.

– O espírito nos escuta, e nós escutamos o espírito. Então eu disse a minha avó: “Eu prometo que nunca vou deixar de lutar. Tudo o que a senhora não conseguiu conquistar, eu prometo que vou tentar conseguir. Nunca vou desistir dessa luta, nunca vou desistir de lutar por nossos direitos”.

Sheyla chora agora. E me explica que a vida não está apenas nas árvores e nas flores, no rio que corre livre e cristalino nem nas espécies de peixes, pássaros, animais e insetos, mas num modo de ver e de estar no mundo. Num modo de ser – no mundo. É isso que Sheyla nos dá ao nos espantar com seu olhar sobre a Europa.

Em setembro, contei a história dela e deste olhar para europeus, numa palestra no Festival de Literatura de Mântova, na Itália. Muitos rostos na plateia se iluminaram no início, antecipando o maravilhamento de Sheyla diante da cultura europeia, acostumados que estão a serem admirados. E foi ainda mais evidente a confusão estampada em suas faces quando contei da resposta de Sheyla. Nas horas e dias que se seguiram, aqueles que me encontravam nas ruas da cidade e nos eventos do festival comentavam sobre como foi ao mesmo tempo chocante e rico aquele olhar inusitado sobre a sua cultura. E foi aquele olhar que fez com que compreendessem o que estava em jogo naquele momento na Amazônia brasileira.

Em nossa conversa, os olhos de Sheyla escureceram ainda mais depois de seu relato de viagem. Percebi que se alagavam como acontecerá com a floresta se sua luta for em vão. Mas é de água salgada – e não da água doce do Xingu – que os olhos de Sheyla se inundam quando fala na avó e no futuro próximo. Sheyla dói. Ela é o tipo de mulher que chora também de raiva. Ela diz então:

– Eu odeio a palavra “desenvolvimento”. O Estado sempre usou esta palavra para justificar a destruição. Não deveria ser assim, né? O desenvolvimento deveria dar condições para as pessoas viverem na sua própria forma de ser, na sua cultura. Mas, na prática, o desenvolvimento é usado para nos destruir. Porque o desenvolvimento não existe para sustentar a vida, mas para o lucro das empresas e de quem faz as políticas. Em nome do desenvolvimento meus antepassados perderam até a língua que falavam. E agora poderemos perder também a vida. De novo, em nome do desenvolvimento. O que é Belo Monte? A destruição da Amazônia e da vida dos povos que vivem lá em nome do desenvolvimento. Eu detesto, detesto essa palavra.

Sheyla Juruna tem o dom precioso do estranhamento. Ela não aceita fácil o que lhe dizem. Tampouco sai repetindo os discursos dos que defendem o mesmo que ela. Numa região em que parte das lideranças indígenas foi corrompida por cestas básicas, combustível e até isqueiros, como nos tempos em que se trocava ouro por espelhinhos, Sheyla se destaca com sua lucidez. Talvez por ter perdido o idioma, com tudo o que o idioma carrega, ela tenha um respeito profundo pelas palavras, ainda que sejam as palavras da língua de quem assassinou o seu povo.

Alguém já disse que as estatísticas oficiais costumam torturar os números até que eles confessem. Sheyla mostra que, com o discurso do desenvolvimento, se passa o mesmo. Se “bem” torturado, pode servir – e tem servido – para quase tudo. É assim que Sheyla nos ajuda a estranhar não só a Europa, mas também o Brasil. Nos ajuda a ver o que não está também aqui. E, neste momento, mais do que em qualquer outro período histórico, esperávamos que estivesse.

Nesta segunda-feira, 17/10, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, deverá julgar a ação civil pública que pede a interrupção de Belo Monte com base na exigência constitucional de que os índios sejam ouvidos. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, as comunidades indígenas deverão ser consultadas previamente no caso de aproveitamento hidrelétrico que afetem as populações. No momento em que esta coluna é publicada, o julgamento ainda não ocorreu. Sheyla Juruna é uma das que reivindica que seu povo seja escutado.

– Durante todo o processo de Belo Monte, nunca houve uma consulta específica aos indígenas. Ficamos esperando que acontecesse, mas não aconteceu. O governo federal apenas mente que nos escutou. E nós lutamos para mostrar que não fomos escutados e, sim, queremos e temos o direito de sermos ouvidos.

Eu lembro bem da ditadura militar. Era pequena, mas ela marcou a minha vida de várias maneiras. Quando cresci, li tudo o que pude sobre esse período histórico, porque queria adquirir maior conhecimento. E, quando me tornei jornalista, escutei muitas vítimas do regime. Quando criança, porém, ao folhear as revistas dos anos 70, não conseguia evitar um certo fascínio ao deparar-me com a propaganda do governo militar sobre a Amazônia, naquele tempo tão distante de mim quanto a Lua. “Uma terra sem homens para homens sem terra”, “Integrar para não entregar”, “Deserto verde”… eram alguns dos slogans e expressões que povoavam a ocupação da floresta pela ditadura. Só quando cresci eu soube que sempre tinham existido muitos homens, mulheres e crianças na Amazônia – e que parte deles havia sido vítima de genocídio na ocupação promovida pelo Estado brasileiro. E que não havia deserto, só verde. O deserto veio depois, patrocinado pelo governo e financiado por dinheiro público.

Depois de tudo, agora me espanto com a sensação de estar revivendo algo fora de época. O PAC para a Amazônia do governo Lula e agora do governo Dilma é um grande projeto de ocupação baseado em obras faraônicas, financiadas por dinheiro público, com a mesma lógica predatória e imediatista do passado. E, principalmente, com o mesmo o discurso do desenvolvimento. Não o desenvolvimento sustentável, que mobiliza o planeta, mas aquele surrado desenvolvimento dos velhos tempos. Só não se fala – muito – em “progresso”, porque esta palavra realmente até os mais obtusos teriam dificuldade de engolir na segunda década do século XXI.

Tenho virado as páginas de jornais e revistas da democracia e lido coisas que me remetem a uma época em que a imprensa vivia sob censura. Pego na porta de casa o exemplar dominical de um dos maiores jornais do país. E lá está a manchete: “Amazônia vira motor de desenvolvimento”. Tive uma sensação estranhíssima. Me lembrava de muitos títulos parecidos, mas nos anos 70. A certa altura da reportagem, leio lá: “Para acelerar a implantação dos projetos, o governo federal estuda uma série de mudanças legais. Entre elas estão a concessão expressa de licenças ambientais, a criação de leis que permitam a exploração mineral em áreas indígenas e a alteração do regime de administração de áreas de preservação ambiental”.

Ou seja: o governo federal pretende anular as conquistas democráticas das duas últimas décadas na área socioambiental. Em nome do mesmo tipo de desenvolvimento pregado na ditadura, com consequências amplamente documentadas: devastação, genocídios, conflitos e assassinatos que seguimos testemunhando. Como se 40 anos não tivessem se passado desde a década de 70 – e como se nesse período o povo brasileiro não tivesse reconquistado a democracia e as melhores cabeças do planeta não tivessem compreendido que a grande riqueza natural e estratégica para o futuro é a água e a biodiversidade.

Sim, o “desenvolvimento” está de volta. Não que algum dia tenha abandonado as mentes ávidas de alguns, arcaicas de outros, mas o surpreendente agora é que nem mesmo existe a preocupação de disfarçar o dinossauro com um modelito mais fashion. Repetem por aí que se as obras não saírem vai faltar luz na casa dos pobres e este é todo o respeito (não) demonstrado pela inteligência do povo que os elegeu. E, o mais inusitado: as velhas ideias sobre a ocupação da Amazônia saem do papel para a floresta concreta justamente nos governos do primeiro presidente operário e da primeira mulher presidente – em cuja biografia está o combate à ditadura militar a um custo pessoal bem alto.

Não é espantoso? O Brasil segue sendo um país assinalado pelo absurdo. E, como diria Sheyla Juruna, estranhar é preciso.

(Publicado na Revista Época em 17/10/2011)

Devemos ter medo de Dilma Dinamite?

As mulheres que a primeira presidente prefere não escutar

Antonia Melo é uma mulher forte, reta. O Brasil não sabe, porque ela vive bem longe do poder central, mas todos nós temos uma dívida histórica com Antonia que há décadas luta pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento sustentável em uma das regiões mais conflagradas da Amazônia. Hoje, Antonia é uma das principais vozes contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte – a maior e mais controversa obra do PAC. É neste ponto que a história de Antonia Melo cruza com a de Dilma Rousseff, que mesmo antes de ser presidente era chamada por Lula de “mãe do PAC”.

Em 2004, as lideranças da região do Xingu, na Amazônia, foram surpreendidas pela informação de que os boatos eram verdadeiros: apesar do compromisso assumido no programa do candidato Lula e contra todas as promessas de campanha, o projeto de Belo Monte estava na mesa de Dilma Rousseff, ministra de Minas e Energia. O deputado federal Zé Geraldo (PT-PA) convidou então um grupo de lideranças para uma audiência com a ministra, em Brasília, onde poderiam expor suas preocupações. Lula havia sido eleito com o apoio maciço do movimento social do Xingu e, neste momento, era fácil acreditar que seriam bem recebidos. E, principalmente, escutados.

Antonia Melo preferia declinar do convite porque, naquele período, estava em curso o julgamento do caso dos meninos emasculados de Altamira, no Pará. E ela havia dedicado mais de uma década da sua vida à luta para que os assassinos fossem descobertos e punidos. Mas a insistência foi grande, e Antonia viajou a Brasília para compor o grupo de lideranças que se encontraria com a ministra. O que aconteceu ali eu escutei da sua boca, recentemente, quando estava na sua casa, em Altamira, para entrevistá-la. Os olhos de Antonia se encheram de lágrimas e sua voz embargou. Fiquei pensando no que poderia causar tanta dor àquela mulher que enfrentava grileiros de peito aberto, já havia sido ameaçada de morte e perdera vários companheiros assassinados por pistoleiros. Só depois de ouvir o relato compreendi que, para alguém com a dignidade de Antonia Melo, o sentimento de ser traída poderia ser devastador. Foi isso que ela me contou, enquanto um dos seus netos pequenos dormia no quarto.

– Quando chegamos à audiência, a Dilma demorou um pouco para aparecer. Aí veio, com um cara do lado e outro do outro, como se fosse uma rainha cercada por seu séquito. Nós estávamos ali porque, se era desejo do governo estudar esse projeto, queríamos ter certeza de que seria um estudo eficiente, já que sabíamos que todos os estudos feitos até então eram uma grande mentira, sem respeito pelos povos da floresta nem conhecimento do funcionamento da região. Então, já que o governo queria estudar a viabilidade de Belo Monte, que o fizesse com a seriedade necessária. A Dilma chegou e se sentou na cabeceira da mesa. O Zé Geraldo nos apresentou e eu tomei a palavra. Eu disse: “Olha, senhora ministra, se este estudo vai mesmo sair, queremos poder ter a confiança de que será feito com seriedade”. Assim que eu terminei essa frase, a Dilma deu um murro na mesa. Um murro, mesmo. E disse: “Belo Monte vai sair”. Levantou-se e foi embora.

Quando Antonia Melo terminou seu relato, compreendi que sua emoção se devia à lembrança da humilhação sofrida e à descoberta do autoritarismo do governo que ela tinha apoiado. Mesmo assim, Antonia só se desfiliaria do PT cinco anos e muitas decepções depois, em 2009.

Lembrei-me deste episódio ao ler a reportagem da revista americana Newsweek, da semana passada, que tem Dilma Rousseff na capa, fato amplamente comemorado como um triunfo feminino. Na chamada de capa, o título é: “Dilma Dinamite: Onde as mulheres estão vencendo”. Dentro, o perfil da presidente brasileira tem o seguinte título: “Não mexa com Dilma”. Ao ver Dilma Rousseff discorrendo na ONU, em Nova York, sobre as vantagens da ascensão das mulheres ao poder, pensei imediatamente nas mulheres que a presidente não escuta no Brasil. Entre elas, as mulheres do Xingu.

Sobre Dilma Rousseff, a editora-chefe da Newsweek, Tina Brown, disse à coluna de Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo. “Dilma, e não Lula, é hoje o político alfa do Brasil”. Como mulher, esse papo de “alfa” me dá um pouco de sono. É tão masculino, não no sentido dos homens interessantes que estão surgindo nesta época, mas no sentido John Wayne dos trópicos. Na cultura colaborativa que está nascendo, nada menos moderno do que achar inovador uma mulher alfa. Quando as empresas e também os governos têm o desafio de se horizontalizar, valorizar os aspectos autoritários de uma liderança, seja ela um homem ou uma mulher, é manter o debate em marcha a ré.

Reconheço o valor de Dilma Rousseff ser a primeira mulher na presidência do Brasil e a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas como líder de uma nação. Mas este fato só ganha densidade se o discurso abandonar os velhos chavões sobre o feminino – e a prática se afastar do autoritarismo no país que essa mulher governa. O que se passou foi o contrário disso. As partes interessantes do discurso de Dilma – como puxar as orelhas das nações que geraram a mais recente crise econômica global e a defesa do estado palestino – nada tem a ver, pelo menos diretamente, com o fato de Dilma ser mulher.

Já quando a presidente se refere ao protagonismo feminino, desde a campanha o discurso é uma coleção de clichês distanciados da realidade. Por exemplo. “Na língua portuguesa, palavras como vida, alma e esperança pertencem ao gênero feminino. E são também femininas duas outras palavras muito especiais para mim: coragem e sinceridade”. Truque pobre de retórica, já que as palavras morte, tortura e violência, assim como covardia e mentira também pertencem ao gênero feminino na língua portuguesa. E todas essas palavras pertencem de fato aos homens e mulheres encarnados na vida, independentemente do gênero.

Antes, em evento na ONU sobre a participação das mulheres na política, ao lado de Hillary Clinton e Michelle Bachelet, Dilma afirmara: “As mulheres são especialmente interessadas na construção de um mundo pacífico e seguro. Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Com todo o respeito que Dilma merece como presidente legitimamente eleita, assim como por várias qualidades e aspectos de sua trajetória, isso é uma enorme bobagem. Alguém acredita que as mulheres são menos violentas que os homens?

Podem ser, por questões históricas e culturais, violentas de uma forma diferente. Mas até isso não é muito preciso. E mais estranho soa quando é dito por uma mulher conhecida por destratar seus subordinados a ponto de levar alguns às lágrimas e dá murros na mesa como qualquer chefe bruto que ninguém quer ter não por ser exigente, mas porque berrar com alguém é desrespeitoso – e, como as empresas já começam a aprender, improdutivo. E, neste caso, pouco importa se o destempero seja praticado por um homem ou uma mulher. Há um bom tempo, esse tipo de comportamento deixou de ser confundido com firmeza e autoridade, independentemente de gênero.

Outro aspecto raso dessa afirmação sobre as mulheres e a geração da vida se evidencia no fato de que vivemos um momento histórico onde os homens estão sendo chamados a ocupar seu lugar na educação e no cuidado dos filhos. Neste momento, valorizar a biologia na gestação da vida como algo que tornaria as mulheres mais aptas a governar apenas por serem mulheres é um tanto arcaico. Gerar a vida vem ganhando significados mais profundos no mundo complexo e com fronteiras menos definidas em que temos o privilégio de viver.

É bonito quando Dilma Rousseff diz no seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU o seguinte: “O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo”. Dilma refere-se à crise econômica global gerada pela Europa e pelos Estados Unidos. Mas seria importante que olhasse para dentro do país que governa e percebesse que não há nada mais velho do que a sua política para a Amazônia, muito semelhante à política da ditadura que ela combateu, tanto nas obras monumentais quanto na maneira autoritária como têm sido impostas à população brasileira e aos povos diretamente atingidos.

A maior obra do PAC, a hidrelétrica de Belo Monte, financiada em grande parte por dinheiro público, está a anos-luz de qualquer exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Isso dito não por mim, mas pelos maiores especialistas brasileiros na área. Sem contar que Belo Monte tem sido imposta não só aos povos da floresta, mas a todos nós, ameaçando uma das mais ricas biodiversidades do planeta, estratégica para o futuro da humanidade, e também condenando à destruição a cultura e a vida de indígenas, ribeirinhos e agricultores.

A truculência no trato de Belo Monte está mais próxima das práticas do “velho mundo” do que das “novas formulações para um novo mundo”, para usar a expressão da presidente. A política do governo tem um bom exemplo neste vídeo em que o atual presidente do Ibama, Curt Trennepohl, deixa claro o modus operandi do Planalto – seu antecessor, Abelardo Bayma, aliás, pediu demissão por não suportar a pressão da Eletronorte para liberar Belo Monte sem o cumprimento das exigências da lei. Vale a pena assistir ao vídeo: é curto e contundente.

Quando estive na região que será alagada pela hidrelétrica, na Volta Grande do Xingu, deparei-me com a cena abaixo, protagonizada pelo Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), formado, convém não esquecer, por estatais como Eletrobrás, Chesf e Eletronorte, fundos de pensão e de investimento, como Petros, Funcef e Caixa FIP Cevix, construtoras como OAS, Queiroz, Galvão e Mendes Júnior, entre outras. Até a Vale entrou no consórcio por pressão do governo. A foto abaixo seria cômica, não fosse trágica. Revela a ideia que o Consórcio faz da nossa inteligência. Sim, sim, a Norte Energia destrói a floresta amazônica, mas recicla lixo.

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

Visão ambiental na Amazônia. (Foto: Eliane Brum / Arquivo Pessoal )

A mesma presidente que enalteceu as vantagens da liderança feminina na ONU não recebeu as mulheres do Xingu que, com grande esforço, viajaram até Brasília para levar a sua voz e as suas reivindicações. Para quem viaja de ônibus, o percurso do interior dos travessões da Transamazônica até Brasília é muito mais penoso do que pegar o avião presidencial rumo a Nova York. A história do encontro que não houve me foi contada pela principal liderança feminina de Cobra Choca, comunidade de agricultores da Volta Grande do Xingu que tem colaborado para transformar o Brasil num dos maiores produtores de cacau do mundo – e fazem isso mantendo boa parte da floresta em pé.

Ana Alice Santos migrou do Paraná, onde trabalhava como doméstica desde os 6 anos de idade, para a Amazônia, onde se tornou agricultora. Ela me contou sua experiência com Dilma Rousseff comendo um cacau diante de sua casa cercada por floresta. E em nenhum momento foi possível esquecer que, se a sociedade não se fizer ouvir, toda a vida ali será afogada em breve por Belo Monte.

– Eu votei na Dilma. E a maior decepção que eu tive foi o diálogo que ela não teve com a gente. Em março, no mês das mulheres, nós fomos até Brasília: 1.800 pessoas. E ela não nos recebeu. Mostrou que não dá importância nenhuma para as mulheres da Amazônia. Chamaram até a tropa de choque, mas a gente saiu pacificamente. Fomos para conversar, não para brigar. Saímos derrotadas, mas tentamos de novo entre o final de abril e o início de maio. E ela mandou alguém da Casa Civil pegar o documento que trazíamos. Viajamos três dias e duas noites. E a presidenta não nos escutou. Foi quando decidi não votar mais. Não compensa você votar em quem não te representa. Não compensa votar numa presidenta que é uma vergonha para as mulheres. Porque nós, mulheres, tínhamos de fazer a diferença. E como a Dilma está fazendo a diferença? Matando as mulheres da Amazônia? Matando os seres humanos que aqui sobrevivem? Matando a nossa floresta, as nossas espécies dentro do rio? Esta presidenta mulher está matando a nossa vida ao matar o Xingu.

Em seu discurso histórico na ONU, Dilma Rousseff afirmou: “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”. Ao ouvir essa parte do discurso, pensei que era de mulheres como Antonia Melo e Ana Alice que Dilma falava em sua retórica politicamente correta. E que deveria dar minha contribuição para que essas vozes que tentam alcançar Dilma, mas que por ela têm sido repelidas, pudessem ser escutadas – se não pela presidente, pelo menos pela sociedade brasileira.

Vozes das mulheres do Xingu, cuja vida, a cultura e o futuro dos filhos estão ameaçados pela política para a Amazônia da “mãe do PAC”. Como mulher urbana, moradora de São Paulo, que compreende que o que acontece na floresta repercute não só no Brasil, mas no planeta, diz respeito não só aos filhos e netos delas, mas também aos nossos, compartilho da mesma angústia ao testemunhar a imposição de Belo Monte e o início do rastro de destruição que ela já começou a provocar.

Gostaria que a primeira mulher presidente botasse em prática no Brasil o que disse nos Estados Unidos: “Quem gera vida não aceita a violência como meio de solução de conflitos”. Não por ser mulher, mas porque dignidade não depende de gênero.

(Publicado na Revista Época em 26/09/2011)

Cabul, Jane Austen e Harry Potter

Quando as palavras são a própria história

No momento em que o talibã agarrou com rudeza o braço do fisioterapeuta Alberto Cairo, no centro ortopédico da cidade afegã de Cabul, ele pensou: “Jane Austen não aprovaria”.

Em sua infância no Congo, o escritor Alain Mabanckou acreditava que sua mãe conhecia todas as línguas e os segredos do mundo. Não era assim. Ou era?

Enrico Varesco, o tradutor, fala cinco idiomas além do italiano. Mas teme perder a memória. Por quê?

Estas três histórias reais foram contadas no Festival de Literatura de Mantova, na Itália, no percurso de um dia pelas ruas da cidade. Elas falam da palavra, daquilo que nos faz humanos ao transformar nossa vida em narrativa. Participei na semana passada do festival que transforma por cinco dias a pequena Mantova numa biblioteca profana onde escritores e leitores se encontram em todos os espaços disponíveis, de igrejas a jardins.

Em uma praça, falei sobre “A palavra que falta”. Em um teatro belíssimo, inaugurado por Mozart quando ele tinha 13 anos, fui entrevistada sobre a vida cotidiana no Brasil, num evento intitulado “O gigante do sul”. Os italianos queriam saber principalmente sobre a nova classe média brasileira e a hidrelétrica de Belo Monte. Nos bastidores, perguntavam por que Lula tinha sido tão desrespeitoso com a Itália, ao libertar e acolher “o assassino Cesare Battisti”. Eu não soube responder.

Foi assim que conheci Enrico Varesco, um tradutor que traduz mais do que a palavra. Depois encontrei Alberto Cairo, um fisioterapeuta com uma aparência monástica que há mais de 20 anos vive em Cabul, no Afeganistão, trabalhando na Cruz Vermelha para dar novas pernas e braços a homens, mulheres e crianças que tiveram partes de seu corpo estilhaçadas na explosão de minas e bombardeios. E também Alain Mabanckou, um congolês – do Congo-Brazzaville, não da República “Democrática” do Congo. Alain é um negro alto e encorpado, que é possuído por ternuras quando fala de seu país, de sua infância e de sua mãe.

Mas chegarei à sua história daqui a alguns parágrafos. Primeiro, Alberto Cairo, um fisioterapeuta italiano mais parecido com a figura imortalizada de Dom Quixote do que com um personagem do Decamerão. Este homem com perfil de vírgula desembarcou no Afeganistão em 1989, com duas valises em que carregava os sete volumes do “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Uma amiga sempre insistia para que ele os lesse e Alberto pensou que, finalmente, nas noites solitárias de Cabul, teria tempo para empreender esta pequena epopeia literária.

Proust é raro, mas ler seu romance não é uma tarefa muito fácil. Nem mesmo para alguém que estava ali para dar dignidade em forma de próteses de pernas e braços a uma população devastada até hoje por habitar uma geografia que é ao mesmo tempo “riqueza e maldição”. Quem controla o Afeganistão, controla uma posição geopolítica estratégica. E Alberto já sabia o que os russos e depois os americanos descobriram a um custo incalculável de vidas: “Conquistar o Afeganistão não é difícil, controlá-lo é impossível”.

Enquanto tentava ler Proust, Alberto conheceu Mamud, um afegão que perdera as duas pernas e um braço sem jamais ter empunhado uma arma, como sempre acontece nestas guerras em que a população civil é a vítima de ambos os lados. E a perda de suas vidas é catalogada com um eufemismo: “danos colaterais”. Ah, como é preciso ter cuidado com palavras como estas, que se revelam mais ao mentir.

Todo dia Mamud atravessava o front sobre um carrinho, num malabarismo quase miraculoso na medida em que o empurrava com apenas um braço, o mesmo que dava a mão ao seu filho pequeno. Enquanto tentava devolver a Mamud o impossível em forma de duas pernas e um braço sem carne, Alberto descobriu Jane Austen. E se apaixonou perdidamente por ela, porque naquele mundo em que as pessoas falavam tão de perto, em que o inquiriam sem rodeios sobre tudo, em que não havia centímetros entre a pele do outro e a sua, em que o sangue, o suor e o cheiro de corpos arrebentados colavam no seu próprio, Jane Austen o carregava para uma Inglaterra onde o mal era consumado em frases cheias de voltas sem um único toque.

Depois de passar o dia lidando com feridos de uma guerra interminável, Alberto se refugiava na sutileza ao mesmo tempo precisa e asséptica de Jane Austen. E nem se importou quando sua casa foi assaltada, e um ladrão improvável levou dois dos sete volumes de Proust. Que ladrão seria este que roubou dois livros em outra língua, mas deixou outros cinco para que sua vítima não ficasse à deriva?

No dia em que um poderoso talibã o agarrou pelo braço com violência no centro ortopédico, Alberto achou que devia isso a Jane Austen. Com o braço livre, empunhou um dedo acusador e pronunciou com firmeza: “Que vergonha! Não vê meus cabelos brancos? Por acaso trataria assim o seu próprio pai? Vergonha!”. E viu o hirsuto talibã encolher-se diante dele, enquanto agradecia mentalmente a Jane Austen.

A vida seguiu. E para Alberto seguiu com “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers, livro de contos sobre o amor com enredos muito peculiares e personagens um tanto soturnos. O melhor deles dá titulo ao livro e conta a história de uma mulher de uma pequena cidade americana, Amélia, que acaba com o seu casamento dez dias depois da cerimônia. Em seguida, ela acolhe em sua casa um estranho que se diz seu primo e traz no corpo uma deformação. A mulher já se apaixonara por ele quando o marido reaparece. E desta vez é o estranho que se apaixona pelo marido. Envolvido pela história, Alberto cometeu a gafe de contá-la para uma companheira de trabalho afegã, uma sociedade em que as mulheres têm mobilidade restrita e o amor é um percurso acidentado de uma maneira diversa da que estamos acostumados. Ela esboçou seu escândalo com constrangidos “sim, sim, sim”… E em seguida, penalizada, o presenteou com outro livro.

Quando Mamud já tinha duas pernas e um braço artificial, procurou Alberto: “Você me ensinou a caminhar. Obrigada. Mas não quero mendigar e envergonhar meu filho na escola. Ajuda-me a não mendigar!”. Alberto não sabia o que fazer, temeroso de que na linha de produção Mamud pudesse atrasar o processo e se sentir humilhado. Sem contar que, como grande parte da população afegã, Mamud era analfabeto. Mas arriscou. E em uma semana colegas de trabalho começaram a reclamar que Mamud era rápido demais, e a produtividade aumentara em 25%. Nesse momento, Alberto estava lendo Harry Potter.

Alberto Cairo já implantou mais de 100 mil próteses de braços e pernas e foi cogitado para o Nobel da Paz. Mas ainda não terminou “Em busca do tempo perdido”. Abandonei-o quando começou a dar autógrafos e atravessei a rua. Pronto, tinha deixado Cabul e Alberto para trás. Diante de mim estava Alain Mabanckou e um mundo que eu só conhecera até então na literatura de Joseph Conrad. “Atravessei a infância com a certeza de que minha mãe sabia ler e conhecia todas as línguas do mundo”, disse o congolês depois de alguns goles de água. Quando voltava da escola, a mãe corrigia suas lições passando uma régua onde a caligrafia entortava e as palavras tinham invadido territórios proibidos. Alain declamava Victor Hugo, e a mãe, postada ao seu lado, o interrompia quando algum verso não soava bem. Só bem mais tarde, Alain descobriu que sua mãe era analfabeta. A mesma mulher capaz de explicar que o mar era salgado por causa do suor dos escravos não sabia nem ler nem escrever.

Desde seu primeiro romance, “Vermelho, branco e azul”, traduzido em várias línguas, Alain dedica seus livros a ela: “Mãe, tenho certeza de que você escreveria um livro melhor. Mas tenho feito o melhor que posso. E só faço isso porque sou seu filho”.

Em seguida, uma senhora da plateia perguntou a Alain por que ele escreve em francês e não em uma língua do Congo. Alain respondeu: “Eu respiro em sete línguas congolesas. Mas todas elas são orais. Então, para dizer por escrito que respiro em sete línguas, preciso do francês”.

Lembrei-me de colegas jornalistas afirmando que a linguagem poética não tem precisão nem objetividade suficientes para expressar a realidade e sorri como uma Mona Lisa. Mas, como nas madeleines de Proust, a frase de Alain me levou a Enrico Varesco, o homem que me deixou respirar dentro dele. Tradutor do português para o italiano nos dois eventos em que fui protagonista, Enrico apareceu sem alarde, como se estivesse se materializado das pedras da rua, e eu temi o que aquele homem descolorido faria com as minhas palavras tão escolhidas.

Não poderia estar mais enganada. Começamos lado a lado e, aos poucos, percebi que Enrico não apenas traduzia minhas palavras, mas eu inteira. Em instantes ele incorporou o ritmo da minha fala, assim como as minhas pausas, os meus arroubos e até os meus sorrisos ou o meu franzir de testa. Ele era eu em italiano. A certa altura achei até que, por causa de Enrico, em italiano eu soava melhor.

Quando se acabaram as palavras minhas nele, Enrico retornou ao silêncio e ao seu esforço bem sucedido de desaparecer dentro do próprio corpo. Só mais tarde descobri que falava cinco línguas além do italiano – português, alemão, francês, espanhol e inglês. E que temia perder a memória e não saber mais de si, ele que era sempre um outro. “Você jamais terá problemas na velhice com o cérebro tão afiado”, alguém comentou. E Enrico contestou com uma informação que eu jamais ouvira. “Há muitos casos de Alzheimer na nossa profissão. Treinamos e exercitamos a memória de curto prazo. Temos de lembrar rapidamente de trechos curtos. E precisamos imediatamente esquecê-los, para que outros possam ser memorizados e imediatamente esquecidos.” E se foi num passo intraduzível.

Não sei se a informação tem base científica, além da experiência concreta do mundo peculiar de Enrico. Mas os dias se passaram, e eu não consegui me esquecer do tradutor que se deixou possuir por mim. E que lembra para esquecer, lembra para esquecer, lembra para esquecer. Senti então que deveria lembrar Enrico por escrito para que ele não fosse esquecido. Nem desaparecesse como memória.

Assim é a palavra escrita. Uma geografia onde a memória é aprisionada para que o homem possa se libertar.

(Publicado na Revista Época em 12/09/2011 e atualizado em 12/10/2011)

Página 36 de 40« Primeira...102030...3435363738...Última »