Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

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(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

O Povo do Meio

Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte

Eliane Brum (texto) e Maurilo Clareto (fotos)

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R.Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, rasos de letras, plenos de paradoxos. São analfabetos ou, como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fins de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.

Descendentes de soldados da borracha, nordestinos levados para os confins da selva pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, por lá ficaram e multiplicaram-se formando uma só família com menos de duzentas pessoas entrelaçadas em intrincada teia de parentescos. Vivem como os índios viviam antes de terem contato com o que se chama de civilização. Caçadores e coletores, comem o que a floresta lhes dá. E ela lhes dá muito. Castanha no inverno, caça, pesca e óleo das árvores de copaíba e andiroba o ano todo.

Assim seguiriam com a vida em seu país sem moeda, não fosse terem sido descobertos pelos homens que são chamados de grileiros. Esses predadores da floresta são velhos conhecidos da Amazônia. Enviam seus pistoleiros carregados de armas e licença para matar. Empunham títulos de terra forjados numa rede de corrupção que começa nos cartórios e chafurda em intermináveis caminhos da Justiça. Apregoam-se donos de milhares, milhões de hectares de floresta. Poucos aparecem como o que são. A maioria vive nas grandes cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, usam testas de ferro para cometer seus crimes enquanto sentam-se com as unhas polidas para assistir a concertos de música clássica.

Como no tempo de Pedro Álvares Cabral, os representantes dos grileiros ofereceram primeiro espelhinhos aos Raimundos: no caso, um punhado de reais para deixar a floresta. Depois, exibiram o cano da espingarda. Hoje, o Povo do Meio está jurado de morte. Só o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, um dos poucos rostos conhecidos, disputa na Justiça uma área que pode chegar a 7 milhões de hectares – um território com o tamanho da Holanda e da Bélgica somadas. Se conseguir, vai obrigar todo o Povo do Meio a abandonar suas terras.

“Só me arrancam daqui com uma arma na cabeça”, diz Raimundo Belmiro, 39 anos, nove filhos. Raimundo, um dos líderes da comunidade, é um homem quieto, com a coragem de quem faz o que o caráter manda apesar do medo. “Um dia eu voltei do mato e os homens de fora estavam na minha casa. Depois vieram outros e não pararam mais de chegar. Me ofereceram 10 mil reais pela minha terra. Eu disse não. Eles então começaram a cercar meu lugar por todos os lados. Passam no rio em rabetas cheias de pistoleiros armados. São armas garantidas, de repetição, não como a minha espingarda de caça que tem 23 anos. Querem me botar medo. E conseguem. Sou um homem jurado de morte.”

Raimundo e sua família acordaram naquela manhã sem nada para comer. Cada um embrenhou-se num ponto cardeal da mata em busca de alimento. Antes do meio-dia, Fernando, de treze anos, caçou uma anta de quase trezentos quilos e Francisco, de catorze, trouxe duas queixadas. Raimundo explica: “A floresta é assim, rica de um tudo. Por isso tô marcado pra morrer, mas fico”.

O país dos Raimundos

Raimundo reedita a história de Chico Mendes, promovido a herói nacional depois de um assassinato anunciado que ninguém impediu. Seu mundo, porém, fica ainda mais longe. Com quase 8 milhões de hectares, a Terra do Meio transformou-se numa das derradeiras possibilidades de preservação da Amazônia. Encravada no estado do Pará, tem esse nome porque fica entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri. Cercada por territórios indígenas e florestas nacionais, seu paradeiro geográfico acabou protegendo-a por muito tempo da devastação: a oficial, representada pelas várias tentativas desastradas de ocupação da selva, especialmente pelos governos militares; e a privada, liderada por predadores disfarçados de empreendedores, usando a palavra bonita do agronegócio. Terra de ninguém, é reivindicada por muitos.

Nos anos noventa, o assalto dos grileiros a suas fronteiras recrudesceu com a operação da máfia do mogno. Nos últimos meses, a notícia do asfaltamento da Transamazônica e da Cuiabá – Santarém multiplicou a pressão. A sudeste, em torno de São Félix do Xingu, a região se transformou num faroeste. É lá que acontece a maioria dos flagrantes de trabalho escravo, extração ilegal de madeira e mortes por conflitos de terra que alimentam o noticiário nacional. Na fronteira nordeste, cuja porta é Altamira, a invasão avança em ritmo apressado. É a noroeste, à beira de um igarapé chamado Riozinho do Anfrísio, que vive a população de Raimundos – cada casa a horas, até dias, de canoa de distância uma da outra.

O nome vem de Anfrísio Nunes, um sergipano que, como outros tantos, recebeu autorização do governo para explorar os seringais da Amazônia. Seus descendentes também reivindicam a posse da terra. “O Anfrísio levou mais de duzentas famílias de arigós do Nordeste para cortar seringa no Riozinho”, conta sua enteada e nora, Vicencia Meirelles Nunes, de 74 anos. “Naquele tempo os índios dizimavam famílias inteiras de arigós. O Anfrísio criou dezoito órfãos de gente morta pelos caiapós e pelos araras.”

Os Raimundos são justamente os descendentes dos “arigós”. Abandonados à própria sorte quando a borracha deixou de ser lucrativa, moldaram seu destino à revelia do Estado: sem escola, sem saúde, sem registro de nascimento. Não querem a posse da floresta, só querem viver nela. Sua concepção de mundo não inclui cercas.

A travessia de Herculano

Herculano Porto

Herculano Porto

Para mostrar ao Brasil que seu povo existe, um homem miúdo chamado Herculano Porto, de sessenta anos, foi escolhido para empreender uma viagem à cidade de Altamira. Único chefe de família com documento, só ele estava apto a realizar a travessia. Tornou-se o presidente da comunidade. Depois de um dia remando na sua canoa, esse homem com perfil de passarinho e olhos de gato alcançou a boca do Riozinho do Anfrísio. De lá, pegou um barco a motor. No caminho, chegou a topar com uma onça que atravessava o rio. “A gente achou que era um veado e botou o barco por cima”, conta.

Era 7 de setembro quando Herculano iniciou a viagem de volta. Havia cumprido sua missão: carregava duas bolas de futebol e um documento elaborado pela Comissão Pastoral da Terra no qual a comunidade pedia ao governo federal a criação de uma reserva extrativista. Abaixo da reivindicação, seu povo teria de gravar os polegares para valer como assinatura.

Entre Herculano e seu país acessível somente por água estendiam-se 328 quilômetros de rios. Sua saga só terminaria dias mais tarde, ao final de uma trama fluvial que conduz sempre para dentro. Depois do Xingu, o Iriri aprofunda-se na Terra do Meio sobre um labirinto de pedras. É preciso vencer meia dúzia de corredeiras, cada vez desembarcando e subindo a pé para depois içar o barco com cordas em meio à correnteza. Na empreitada, as mãos arrebentam até sangrar.

Homem alfabetizado na língua da água, Herculano não temia as armadilhas do rio. Só era assombrado pelos conselhos do proeiro, Benedito dos Santos, que em 62 anos de vida amazônica foi seringueiro, garimpeiro, cafetão, caçador de onça e jagunço. Não tem história contada por ele em que não morram uns dois ou três. “Já botei muita gente pra fora de terra pros doutor nesta Amazônia. Tem mais facilidade tomar conta com agressão. Essa história já se repetiu tantas vezes e nunca vi posseiro ganhar. Sempre vai ter essa briga de terra no mundo”, ia desfiando rio afora. “Homem, vende logo seu pedaço antes que lhe joguem fora.” Herculano esboçava um sorriso falhado de dentes, mas farto de persistência.

Para alcançar a boca de sua terra na estação da seca são sete dias num barco de linha. Isso se tudo correr bem. É comum os passageiros terem de acampar numa passagem mais difícil por semanas até conseguir vencê-la. Pelo caminho, homens como Herculano vão sondando o rio e a mata em busca da comida – em especial um tipo de quelônio chamado tracajá. Eles têm a selva por restaurante. Para ganhar tempo, só fazem uma refeição ao final do dia, depois que o sol se deita e as pedras do leito do rio tornam-se invisíveis e fatais. Banham-se arrastando os pés no fundo, cuidando para não pisar nas arraias, com seu ferrão de punhal. A alguns metros os jacarés perscrutam com seus olhos de lanterna, à espera de um incauto que se aventure mais longe. Herculano e os seus não arriscam. Pertencem a esse mundo, são natureza. Atam a rede nas árvores e deitam-se para uma noite de sono sussurrado.

Nessas madrugadas, o silêncio da selva é feito de ruídos. Herculano Porto conhece cada um deles pelo nome. Tem a floresta dentro da cabeça. Os animais não atacam. Como o ecossistema ainda é equilibrado, há comida para todos e o homem é um predador que nem as onças desafiam sem um motivo forte. Nas águas, apenas as sucuris devoram pessoas como seres de um mundo quase perdido. Logo depois de Herculano passar, uma delas matou um homem quando ele nadava. A cobra triturou seus ossos. Depois o engoliu.

Enquanto Herculano singrava os rios de seu mundo primitivo, parte de sua terra era oferecida na internet por 6 milhões de reais pela imobiliária Sofazenda, de Varginha, em Minas Gerais. A oferta anunciava as maravilhas do Riozinho do Anfrísio: “Dezenas de qualidades de madeiras de lei, em densas florestas, ricas em mogno…”. Assim como “grande reserva de minério, cassiterita, ouro, diamante e outros”. Procurado pela repórter, o corretor Aldamir Rennó Pinto explica que a área foi tirada do catálogo “porque estava enrolada”. Oferece outra, de 390 mil hectares, por 27 milhões de reais. “Inclusive, a outra terra estava dentro dessa que estou lhe oferecendo. Ela pertence aos herdeiros do Anfrísio Nunes e já estou com os títulos, tudo certinho.”

Analfabeto, Herculano enfrenta a golpes de dedão o universo da grilagem cibernética. Quando finalmente desembarcou em casa, descobriu que seu castanhal havia sido posto abaixo. Faltava apenas a derrubada das árvores maiores. E depois o fogo. Para Herculano, um castanhal contém o passado, o presente e o futuro. É quase o reflexo do homem. Também marcado para morrer, Herculano havia cumprido sua missão. Mas, quando o documento com as digitais de seu povo alcançar o país oficial em Brasília, ninguém terá a dimensão do tamanho da odisseia.

A disputa das almas

Até a chegada dos invasores, a Terra do Meio havia girado sem dinheiro. Os grileiros levaram moeda e cobiça. Foram penetrando pelas frestas das almas, dividindo para semear a discórdia. Francisco dos Santos, o homem que mais conhece o rio e suas manhas, foi o primeiro a ser assaltado por tentações. Chico Preto, como é chamado, vendeu-se por vinte reais ao dia para botar e tirar peão e pistoleiro do interior do Riozinho do Anfrísio. “Eu luto pela reserva, mas eles pagam em dia e aqui é difícil ganhar dinheiro de outro modo”, diz Chico. “São pessoas alegres, prestativas, nem parece que matam gente.” Seu enteado, mais um Raimundo, tornou-se o homem de confiança de um grileiro conhecido por Goiano, cujas atrocidades já viraram lenda. Opera na boca do rio o rádio que denuncia a chegada de estranhos. “É melhor vender a terra porque vão tomar de qualquer jeito. Aí botam a gente pra fora sem nada”, defende esse Raimundo dissidente.

Os grileiros aproveitam-se do abandono para oferecer o que o Estado não dá. “Quero levar melhorias para aquele povo. Escola e posto de saúde. Já botei um carro à disposição deles”, diz Edmilson Teixeira Pires, 51 anos, que reivindica a posse de algumas dezenas de quilômetros quadrados. Já riscou uma estrada a partir da Transamazônica, onde instalou mais de uma casa e dezenas de peões. Só não chegou ao rio porque encontrou em seu caminho Luiz Augusto Conrado, 51 anos, conhecido como Manchinha por conta de uma mecha de cabelos brancos que ostenta desde bebê. “Pode recuar. Na minha terra vocês não entram”, avisou.

Manchinha conhece bem a caridade dos doutores. Antes de casar com Francineide, parteira do Riozinho do Anfrísio, foi escravo em fazendas no Pará por mais de dez anos. Depois virou garimpeiro em Serra Pelada. Viu de tudo, menos ouro suficiente para mudar a sina. Sabe muito bem de que matéria é feita sua resistência: “A floresta é o único lugar que tem fartura pra pobre. Os homens vão nos cercando e a gente precisa da castanha, da caça, da pesca. Vão nos matando porque encolhem a terra. Quando uma das estradas, das tantas que tão cortando por aí, chegar ao rio, acaba nós e o mato”.

Ameaçados de extinção

Se os invasores vencerem essa que é uma das últimas guerras da Amazônia que ainda é possível ganhar, com a selva desaparecerão 346 espécies de árvores, 1.398 tipos de vertebrados, 530 qualidades de peixes. Boa parte dessas variedades são endógenas – ou seja, só existem na Terra do Meio. O mundo ficará mais pobre em biodiversidade, que é o tipo de miséria irrecuperável. Mas, além da perda de milhares de espécies, o planeta estará também menos sortido de gente. O Povo do Meio é um dos últimos de sua estirpe, ceifada junto com a floresta. O isolamento – e o abandono – construiu nos confins do Brasil a extravagância de uma cultura sem imagem que ainda persiste no século XXI.

É por isso que se tornou uma terra de Raimundos. Sem TV, eles nunca batizaram filhos de “Maicon” ou “Dienifer” – nem ficaram sabendo que João e Maria viraram nomes chiques. São consagrados a São Raimundo Nonato, que, por ter sido extraído do útero da mãe morta, ao tornar-se santo virou protetor das parteiras. Todo o imaginário é costurado de ouvido. As cenas são formadas a partir de fragmentos da Rádio Nacional da Amazônia, o único contato com o Brasil. É assim que reinventam as jogadas de futebol a partir dos lances escutados – e jamais vistos.

Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho são ídolos sem rosto, cujas façanhas são reinterpretadas na cabeça de cada Raimundo. É no futebol que esses homens da floresta forjam seu RG de brasileiro. A identidade é a bola, trocada por duzentos quilos de castanha no Regatão, espécie de shopping fluvial que passa meia dúzia de vezes por ano para o escambo da produção local pelos artigos da cidade.

Raimundo Nonato da Silva, o brasileiro que não sabe quem é Lula, tem um campo de futebol diante de sua casa de pau a pique coberta de babaçu. Nos domingos, seus meninos trocam a faquinha da seringa pela bola. É nesse cartório de chão batido que registram seu nascimento. “Era bom saber o nome do presidente do Brasil por saber, mas diferença não faz”, afirma.

Quem não conhece a sina de Raimundo poderia achar que ele é variado das ideias. Desde que nasceu, herdeiro de um soldado da borracha que caiu morto no seringal – “Meu pai se chamava Zuza, sobrenome Zé” –, viveu uma vida sem Estado. Sabe apenas que para além do rio há um lugar chamado cidade, que concebe, enigmaticamente, como “um tipo de movimento”. Para ele, tanto faz mesmo o nome do presidente. A ideia de país não pertence ao seu imaginário. É o Brasil que precisa descobrir Raimundo, antes que seja tarde.

Reportagem publicada na Revista Época

Ao amigo presidente

Eleitor gravou todas as promessas de Lula e fez o próprio balanço do primeiro ano do governo

O brasileiro Hustene Pereira terminou o primeiro ano do governo Lula sem emprego e, a suprema ironia, com bursite. Foi o que o médico do plantão lhe disse depois de examinar as radiografias: ‘Tá com doença de presidente’. Não era exatamente essa a herança que ele esperava do homem que ajudou a eleger. Doía mais o coração que o braço direito quando, nos últimos dias de dezembro, Hustene trancou-se no único dormitório da casa e só saiu depois de assistir a seis horas de fitas gravadas em vídeo. Nelas, ele tinha registrado todas as promessas de Lula para que pudesse fazer seu balanço pessoal do governo. Saiu do quarto constrangido.

Desgostar do governo mas não conseguir xingar o presidente é o que há de realmente novo em sua vida. Ele acha que o país não mudou, mas continua tendo uma empatia enorme por Lula. Ao preencher quatro páginas em letra corrida numa carta endereçada ao Planalto, Hustene reclamou do desemprego, que joga gente como ele no abismo, do Fome Zero, que parece atolado no marketing, de que Lula saracoteou muito no estrangeiro quando os problemas estavam bem aqui, em sua barba aparada. ‘Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir’, diz. Assim mesmo, despediu-se com um ‘forte abraço ao amigo Lula’.

Hustene não é petista, é lulista. Sem ser filiado ao PT ou militante, ele votou em Lula em 1989, em 1994, em 1998 e finalmente em 2002. E votaria mais ä quatro vezes se fosse preciso. ‘Eu assisti à posse chorando. Tinha certeza de que voltaria ao mercado de trabalho’, cobra. ‘A gente não está pedindo absurdos. Um homem não quer esmola, vale-isso, vale-aquilo. Quer salário. A dignidade do homem é levantar, sair para trabalhar e pagar as contas.’

O último trabalho registrado na carteira de Hustene terminou em 17 de outubro de 2001. Em fevereiro do ano seguinte, ele ilustrou uma reportagem de ÉPOCA sobre desemprego. Dava rosto à estatística de milhões de pais de família que se descobriram do lado de fora da porta – depois de experimentar o gosto das ofertas nas prateleiras do consumo e de prometer aos filhos que se estudassem mais venceriam na vida. Ele sempre havia trabalhado no escritório de empresas, orgulhoso de sua datilografia e escrituração fiscal. Passou dos R$ 1.000 de salário. Em mais de dois anos de desemprego conseguiu fazer dois bicos como trabalhador braçal. No segundo, já completa um mês. Acorda às 4 horas para ajudar na carga e descarga de bebidas e alimentos. Ganha R$ 15 por dia quando há serviço. Em média, R$ 200 por mês sem benefícios.

‘Aos 44 anos de idade, estou no zero’, conclui. Ele não é do tipo que se entrega. Hustene é do gênero esperneante. Cansado de ouvir que não conseguia trabalho porque só tinha a 7ª série, bateu na porta do supletivo. Em dois anos de desemprego se formou no ensino fundamental, e faltam três matérias para ganhar o diploma do ensino médio. No meio, fez um curso de computação. Na escola, copiava tudo o que ouvia. Não perde documentário ou noticiário da TV e assim vai complementando a educação. Fez questão de escrever a carta a Lula para se certificar de que ele, Hustene, existe.

Acha que um homem precisa de futebol, fé e ideologia para não perder a sanidade. Fincou três pilares no assoalho de sua brasilidade: Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. O que sente pelo presidente é próximo do que nutre pelo Timão. Tanto um como o outro o decepcionaram no ano que passou. ‘Lula e o Corinthians empataram em 2003’, diz. ‘Jogaram para não cair.’ Mesmo assim, continuará torcendo por ambos. Não por um amor incondicional, mas por pertencerem ao reduzido rol de escolhas que definem o caráter de um homem.

Ao usar uma das metáforas preferidas do presidente, Hustene não está confundindo futebol com política. Está dizendo que perder a esperança tanto em um como no outro lhe custaria mais do que pode pagar nesta altura da vida. ‘A esperança que eu tive nestes anos todos era a de um trabalhador no governo. Se ele falhar, o que me resta? Rezo a Nossa Senhora de Fátima que ele não chute o pênalti para fora.’

Hustene escreve à noite na cozinha para não se sentir só, a mulher, a neta e dois filhos dormem no quarto, os dois mais velhos no chão da sala. Em forma de diário, manteve o ‘camarada Che’ informado. ‘Che, hoje o Brasil tem alguém digno dele’, na vitória. ‘Que o espírito guerrilheiro acompanhe o Lula nesta batalha’, na posse. ‘Aos 40 anos somos nós reserva do passado’, em junho. ‘Somos sufocados por uma herança neoliberal’, em julho. ‘Falta pulso’, em outubro. ‘É quase um ano de um governo com que tanto sonhei e não vi coisas concretas, mas espero ver ainda’, em dezembro. ‘Olha, Che, não desabafarei mais este ano. Estou preocupado com o Lula.’

No primeiro ano do governo, o Natal de Hustene passou sem peru nem presentes. O nome continuou sujo no SPC. A carteira de trabalho seguiu em branco. Hustene prometeu manter sua esperança em Lula por mais três anos. Só espera que, ao final, não lhe dêem para a vida a mesma solução que o médico deu para a bursite: ‘Não tem cura, só nascendo de novo’.

(Publicado na Revista Época em 05/01/2004)

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