Palmada na lei

Ao propor a proibição da palmada, o Estado infantiliza os pais

Tento me mover pela vida a partir das dúvidas. Mesmo quando acho que tenho uma razoável certeza sobre algum tema, me pergunto várias vezes: “será?”. E guardo uma parte de mim sempre aberta para mudar de ideia diante de algum fato novo ou argumento bem fundamentado. É o caso da lei da palmada, que me parece desde sempre um total disparate. Ao constatar que o projeto de lei enviado pelo presidente Lula ao Congresso em 14 de julho é apoiado e defendido em entrevistas e artigos por pessoas cuja inteligência e atuação pública tenho grande respeito, me forcei a um questionamento ainda maior. Será que palmada é crime e eu não estou percebendo algo importante?

O projeto, que ficou conhecido como “lei da palmada”, se propõe a alterar o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nele, fica proibido o uso de castigos corporais de qualquer tipo na educação dos filhos. O castigo corporal é definido como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”. Li, pesquisei, estudei e continuo achando um total disparate. Não encontro um único argumento que me convença de uma lei proibindo palmadas.

Antes de seguir, quero deixar muito claro que, obviamente, espancamento é crime. Seja dos pais ou de quem for. Palmada não. E nada me convence de que precisamos de mais uma lei, já que a legislação existente pune o espancamento e demais agressões físicas. Nada tampouco me convence de que o Estado deve interferir neste nível na vida privada, na maneira como cada um educa seus filhos. Não por uma postura liberal, mas por algo bem mais sério que vou abordar mais adiante.

Um dos argumentos em defesa da nova lei é de que as pessoas não saberiam a diferença entre uma palmada e um espancamento. Acredito que a maioria das pessoas sabe muito bem a diferença entre dar um tapa na bunda de uma criança e espancar uma criança. Não vale como estatística, mas nunca conheci ninguém que não soubesse, exceto pessoas com distúrbios muito graves, que também não sabiam a diferença entre quase tudo. Quem espanca não acha que está dando uma palmada. Tem certeza de que espanca e quer espancar.

Outro argumento é de que a suposta violência começaria com uma palmada e evoluiria para um espancamento. Não me parece que temos provas de que isso seja um fato verídico. É verdade que temos, infelizmente, um número elevado de crianças espancadas no país – no caso de crianças espancadas, queimadas e agredidas de todas as formas qualquer número acima de zero é elevado e vergonhoso e seus autores devem ser punidos com as penas previstas nas leis que já existem. Mas não é a maioria nem é uma regra evolutiva. Não vejo pais dando palmadas nos primeiros dois anos de vida e no terceiro e no quarto espancando. E no quinto e sexto matando? O espancamento de uma criança quebra tanto o consenso social que provoca horror e espanto.

Me parece muito perigoso tachar de criminosos pais que dão palmadas. Por vários motivos. O primeiro deles é a injustiça da afirmação. Crime é algo muito sério e algo com que o Estado e todos nós precisamos nos preocupar porque rompe e ameaça o tecido social, portanto a sobrevivência de todos. Não pode e não deve ser banalizado. Chamar de criminoso um pai ou uma mãe que dá uma palmada na criança na tentativa de educar é, além de um equívoco, um flagrante abuso.

Me preocupa muito, por exemplo, o fato de demorarmos a agir no caso das denúncias de espancamentos e de agressão sexual. Assim como me preocupa a falta de instrumentos de proteção efetivos para amparar as crianças violadas de todas as formas. Quem trabalha com a prevenção da violência contra crianças sabe que há escassez de assistência. Isso resulta em traumas físicos e psicológicos para as vítimas e impunidade para os agressores. Quando o Estado coloca a palmada e o espancamento no mesmo nível, como se fosse a mesma coisa, todas as lacunas de prevenção, assistência e repressão podem se tornar ainda mais largas.

Se o Estado se propõe a entrar na casa das pessoas e fiscalizar se todos os pais do Brasil estão dando ou não palmadas em seus filhos, em vez de concentrar seus recursos e esforços naquilo que é importante – a prevenção do espancamento e a punição dos espancadores, assim como dos abusadores de todo tipo – temo que o tiro possa sair pela culatra, com o perdão do clichê. Acho que na vida, seja para um governante, um legislador ou um cidadão comum, é importante ter foco.

Este tipo de debate é rico porque todos têm suas próprias experiências. E eu acredito muito na experiência. Vivemos numa época em que a tradição foi desmoralizada e a maioria corre para especialistas de todo o tipo para saber como deve agir ou pensar. Não confia nem na soma de experiências próprias e dos que acertaram e erraram antes – nem em seus próprios instintos. Uma pena, porque perdemos muito. Todos nós perdemos muito. E, talvez, mais que todos, nossas crianças.

Espancamento, ouso dizer que a maioria de nós não experimentou. Mas palmadas quase todos conhecem na pele. Eu nunca fui espancada pelos meus pais, mas recebi várias palmadas. E todas elas, na minha percepção, foram atos de amor e de educação. Eu nunca espanquei minha filha, mas dei várias palmadas nela. E também foram atos de amor e de educação.

Quando eu era criança, só conheci um colega que era espancado pela mãe. Numa ocasião, esta mulher entrou na escola onde estudávamos com um pedaço de pau e deu uma surra pública no meu amigo. Para nós aquilo foi algo totalmente apavorante. Tínhamos oito anos e não sabíamos que os pais eram capazes de tal violência. Sabíamos perfeitamente a diferença entre aquela surra sangrenta que testemunhamos e o que acontecia dentro da nossa casa quando aprontávamos alguma arte. Lembro que nos reunimos para conversar. Estávamos assustados e precisávamos explicitar e assegurar a diferença para termos certeza de que nossos pais nunca fariam algo assim. A forma que encontramos foi cada um contar como os pais procediam quando faziam algo errado. Rememorar os limites era a única maneira de nos tranquilizar diante daquela cena de horror.

O curioso é que, nervosos, cada um queria se exibir mais do que o outro. Minha mãe corre atrás de mim e me dá palmadas, a maioria dos meus colegas dizia, orgulhoso. Tinha um que se gabava de que o pai lhe dava umas cintadas na bunda. Me senti um pouco inferiorizada porque apanhava pouco. Então exagerei dizendo: “Minha mãe me dá muitas chineladas e dói bastante”. Pronto. Todos nós reafirmamos que éramos amados. Não éramos e não seríamos espancados, mas éramos amados o suficiente para que nossos pais se preocupassem de nos punir por coisas erradas que fazíamos. Confiávamos que nossos pais nunca superariam este limite. E, depois desta sessão espontânea de terapia coletiva, fomos convidar nosso machucado colega para brincar.

Passei a infância com uma inveja manifesta dos meus irmãos que um dia apanharam de cinta do meu pai. Meu pai explicou calmamente porque eles apanhariam, perguntou se tinham entendido bem as razões e as circunstâncias e começou a bater pelo meu irmão mais velho, por causa de outra regra muito clara: como ele era o mais velho, deveria dar exemplo aos mais novos. Como eu nasci muitos anos mais tarde, meu pai já tinha delegado esta tarefa à minha mãe e perdi esta parte. Seguiu mantendo uma autoridade que nos impunha tal respeito que bastava cravar em nós “aquele olhar” para pararmos a traquinagem no meio do movimento. Mas eu me sentia roubada – e desconfiava secretamente que meu pai me amava menos. Meus irmãos até hoje rolam de rir desta surra ritual de cinta nos encontros familiares – e eu não tenho nada para contar. Lembro de um dia ter me enchido de coragem e perguntado ao meu pai: “Por que eu nunca apanhei de cinta?”. Não lembro a resposta.

Quando chegou a minha vez de ser mãe, busquei as referências na minha própria educação. Minha opinião era a de que eu tinha apanhado pouco e deveria ter sido mais reprimida sob certos aspectos. Não havia a menor chance de que eu, como mãe, fosse permitir algumas petulâncias que meus pais engoliram de mim como filha. Fui uma mãe bem mais dura do que meus pais foram comigo, o que implicou em um número maior de palmadas e de regras. E, claro, me esforcei para desenvolver aquele olhar que emana da autoridade – e não do autoritarismo – no qual meu pai era mestre. Não fiquei traumatizada pelas palmadas que recebi dos meus pais – nem minha filha ficou traumatizada com as dadas por mim. Ainda ontem telefonei para ela, hoje com 28 anos, para me certificar. Não, ela definitivamente não ficou traumatizada.

Li num artigo de jornal a seguinte afirmação de uma psiquiatra: “Crianças que sofrem palmadas são induzidas a pensar que podem dar palmadas nos outros, que a violência é a maneira de resolver as coisas, e se tornam agressivas na escola”. Me parece um pensamento bastante inconsistente. Nunca achei que pudesse dar palmadas em ninguém nem permiti que outros que não fossem meus pais me dessem palmadas. Era muito claro que esta prerrogativa, a de me dar palmadas para me educar, era só dos meus pais. E que eu só as teria quando fosse mãe. Assim como era muito claro para mim e para meus irmãos que a violência não era a forma de solucionar conflitos. Possivelmente porque nós – e a maioria das crianças ao nosso redor – não decodificavam a palmada como violência. Nunca conheci nenhuma criança que saísse dando tapas nos outros porque recebia palmadas em casa. Vi, sim, especialmente em trabalhos de reportagem, crianças espancadas que se tornaram muito agressivas ou totalmente alheias. Garanto: é de outra ordem.

Outro argumento que aparece neste debate é o da desproporção. Não há comparação entre a força de um adulto e a capacidade de se defender de uma criança, entre o tamanho da mão que aplica a palmada e a mão de quem a recebe. É verdade. E não vejo como poderia ser diferente. Não compreendo como poderia existir um processo educativo que não parta de uma desproporção. Se eu tenho condições de ser mãe é justamente porque assumo a desproporção. Para me tornar mãe ou pai, eu preciso antes acreditar que tenho o que transmitir ao meu filho e tenho meios para educar. É minha esta responsabilidade. E dá um trabalho enorme – muito maior do que deixar para lá e não colocar limites, como se vê cada vez mais por aí.

É a consciência da desproporção que faz com que eu controle minha força se for dar uma palmada. E controle minha “força” também para não impor as minhas respostas e, assim, impedir meu filho de fazer sua própria busca pelo conhecimento. Com a minha orientação, sim, mas não com os meus dogmas. Ser pai ou mãe é se responsabilizar pelo seu poder, em todos os sentidos. Quando a gente se responsabiliza fica muito mais difícil se exceder em qualquer aspecto – seja físico ou psicológico.

Mas o aspecto que mais me preocupa se este projeto de lei for aprovado é o de reforçar aquele que me parece ser – este sim – um dos grandes problemas atuais: a dificuldade dos pais de educar seus filhos. Não me parece que o problema da maioria das crianças hoje seja a palmada que eventualmente recebe dos pais. Mas o fato de não receber limites de seus pais, de não ser efetivamente educada.

Boa parte dos pais me parece completamente perdida. As crianças gritam, as crianças querem porque querem, as crianças interrompem às vezes aos berros quando o pai conversa com outra pessoa, as crianças não cumprimentam ninguém nem na chegada nem na saída, fazem exigências como se o mundo e todos os adultos dentro dele existissem para servi-las, testam e testam para ver se alguém vai fazê-las parar, botar algum limite, e nada. Basta sair na rua para testemunhar cenas lamentáveis em restaurantes, shoppings, cinemas e lugares públicos protagonizadas por pequenos déspotas diante de pais infantilizados. Pais esvaziados, inseguros sobre sua capacidade de educar o filho que botaram no mundo e que parecem duvidar que têm algo a ensinar àquelas crianças. Pais sem nenhuma autoridade.

O que uma parte destes pais faz quando se torna insuportável viver com estes filhos? Leva para um especialista que diagnostica a criança como a mais nova portadora da epidemia da moda: a tal da TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. E dá-lhe medicamento cada vez mais cedo. Como boa parte das crianças ao redor já foi diagnosticada com a “doença” esta, ninguém acha suspeito. Imagino que, quando parte desta geração crescer, o rito de passagem vai ser apenas mudar o medicamento: aos 18 anos ganha um carro e sua primeira caixa de antidepressivos.

Pobres pais? Não! Pobres crianças que visivelmente estão cada vez mais infelizes porque ninguém nasce sabendo sobre seus limites e todo o resto. Um filho precisa que os pais sejam pais. Diante deste quadro, o que o Estado faz? Infantiliza e esvazia de autoridade ainda mais estes pais ao se meter na vida privada e dizer como eles devem educar. Ou que eles não podem tocar nos seus filhos para educar sob pena de serem tratados como criminosos ou párias. Ou, talvez o pior: tratados como maus pais.

Na escola, os professores já choram diante de crianças e adolescentes que desafiam sua combalida autoridade dizendo: “Você não pode me mandar fazer nada porque quem paga o seu salário é o meu pai”. A tradução é: portanto, eu mando em você e, portanto, não há educação possível a partir desta premissa. Se a lei da palmada for aprovada, é possível imaginar as variações dentro de casa: “Se me bater eu te denuncio para o conselho tutelar”.

Não estou fazendo aqui nesta coluna uma apologia da palmada. Há pais que educam sem bater – e conheço alguns. Há outros que educam dando palmadas quando outras tentativas se esgotam. Os que não batem não são melhores pais porque não batem – e vice-versa. Cada relação é uma relação. Cada filho é diferente do outro. E com cada filho seremos pais diferentes, porque cada um deles nos trará demandas diferentes. Quem tem mais de um filho sabe bem disso.

Não tenho dúvida de que os autores e apoiadores da lei são bem intencionados. Mas acho que se equivocaram e erraram o alvo. Uma lei como esta desautoriza os pais – e o faz numa época em que eles mesmos, por diversas razões, já desautorizam a si mesmos. Ao exercer sua autoridade de forma abusiva, o Estado esvazia de autoridade e infantiliza seus cidadãos. Isto é grave. Embora eu tenha poucos motivos para confiar neste Congresso que aí está, espero que vozes com bom senso se ergam para impedir este projeto de virar lei. Se virar, como todas as leis sem lastro na realidade, não será cumprida. E isto desmoraliza a democracia.

(Publicado na Revista Época em 26/07/2010)

Droga não é demônio

Então por que é tratada pela sociedade como se fosse?

É possível que nunca tenha se falado tanto em drogas como hoje, pelo menos como caso de polícia ou de saúde pública. Nos anos 60, quando as drogas faziam parte do movimento de contracultura, o olhar sobre elas e a função que desempenhavam era outro. E os “malucos beleza” eram vistos de forma muito diversa dos consumidores de crack de agora. A própria diferença de linguagem é reveladora, já que antes se “experimentava” drogas, com a ideia de ampliação de consciência – e hoje se “consome”, como tudo. Um verbo expressa uma vivência – outro o uso. O que mudou, para que o crack tenha se tornado tema de campanha eleitoral, assunto para candidatos à presidência do país?

Ao acompanhar o debate travado em várias instâncias, me parece empobrecedor que um tema tão amplo e cheio de nuances seja reduzido a apenas dois discursos, duas maneiras de olhar: ou é caso de polícia/segurança ou é caso de saúde pública – ou de ambos. Será que estas duas abordagens – repressão e cura – dão conta da complexidade da questão? Desconfio que não.

Por outro lado, me parece bastante curioso que o debate sobre as drogas ilegais atinja esse nível de decibéis justamente numa época em que há um consumo massivo de drogas lícitas, na forma de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos, receitadas por médicos das mais variadas especialidades. Drogas para ser feliz, para ficar calmo, para dormir. Sem contar as drogas para perder o apetite e aumentar o desejo sexual.

Por que algumas se tornam um problema e outras são vendidas como solução? Quem determina o que o indivíduo pode consumir? E com quais argumentos? E por que aquela que possivelmente seja a droga que causa mais estrago na nossa sociedade – o álcool – é abordada com muito menos estridência?

Ao acompanhar o debate, me chama a atenção o fato de a droga ser encarada como uma espécie de alienígena, desenraizada da sociedade em que é usada e produz sentidos. É como se ela fosse um demônio ou um vírus que entra no corpo à revelia de todo o contexto – desligada de tudo e de todos. E que bastaria ou exorcizá-la, do ponto de vista religioso, ou extirpá-la, no campo da medicina, para que o problema acabasse. Ou ainda reprimir, na visão policial.

Parece que não é tão simples assim – ou o problema já seria menor. Se os mais diversos tipos de drogas sempre foram usados por todas as sociedades, em diferentes momentos históricos, por que a nossa não consegue lidar com elas? Será que não valeria a pena, além de reprimir e tentar “curar”, pensar um pouco mais nos porquês?

É exatamente por ser uma questão que produz muito sofrimento é que acho importante refletirmos sobre ela com mais amplidão – e alargar nosso campo de visão. Em busca de respostas – não definitivas, mas possibilidades de respostas –, procurei o psicanalista Eduardo Mendes Ribeiro. Ele é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), mestre em Filosofia pela PUC/RS, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e consultor do Ministério da Saúde na Política de Humanização do SUS. Estuda o tema das drogas desde os anos 90 e tem vários artigos publicados sobre o assunto.

Nesta conversa, ele nos ajuda a pensar sobre uma questão tão crucial – para além dos estereótipos.

ÉPOCA – Hoje, as drogas ou são caso de polícia ou de cura. É como se toda a complexidade da questão coubesse nesses dois modos de ver e não existisse outra possibilidade de abordagem. Por quê?
Eduardo Mendes Ribeiro – Por ao menos duas razões: a primeira é a tendência à simplificação do problema, o que, em tese, ajudaria a entendê-lo e enfrentá-lo. Por essa via, elege-se a droga como a causa do mal e os traficantes como os agentes promotores deste mal. Ora, sendo assim, é fácil concluir que o que devemos fazer é, por um lado, tentar evitar que o mal nos atinja: repressão. E, por outro, se fracassarmos no primeiro intento, temos de extrair o mal de nossos corpos: desintoxicação e abstinência. Essa visão também nos poupa dos complexos e incômodos questionamentos acerca das razões pelas quais tantas pessoas decidem se drogar.

ÉPOCA – E quais seriam esses questionamentos tão incômodos? Afinal, por que tantos se drogam, legal e ilegalmente?
Ribeiro – São questionamentos relacionados aos conflitos psíquicos que cada um de nós vivencia: inibições, frustrações, angústias, etc. É muito mais incômodo enfrentar estes fantasmas do que usar uma droga que pode fazer nosso humor melhorar quase imediatamente. O problema é que os fantasmas continuam lá – e nem sempre em silêncio.

ÉPOCA – Em sua opinião, quem é mais drogado? O consumidor de crack do centro de São Paulo ou uma faixa significativa da população mais idosa – assim como muitos jovens – que consome tranquilizantes todo dia?
Ribeiro – Atualmente, há uma tendência de se avaliar o grau de gravidade de uma dependência não mais através de escalas quantitativas de intensidade e frequência, mas a partir dos efeitos que essa prática produz na vida de cada sujeito. Nesse sentido, é provável que aquelas pessoas que passam o dia fumando pedra vivenciem um empobrecimento maior de suas interações sociais, além de se manterem em situações de maior vulnerabilidade. Mas, por outro lado, não há razão para acreditarmos que aqueles que vivem uma vida entorpecida estejam em uma situação muito melhor.

ÉPOCA – Mas por que o crack incomoda e a população que vive uma vida entorpecida não?
Ribeiro – O usuário de crack, ao menos o usuário estereotipado, com maior visibilidade, é alguém que expõe tudo o que nossa sociedade quer evitar: descontrole, desamparo, vulnerabilidade, improdutividade, laços sociais frágeis, ausência de projeto de futuro, etc. O sujeito entorpecido é muito mais identificado com as crenças e valores que nos orientam: ele é visto como um doente em tratamento, ou seja, ele tem um problema que nossa sociedade, através de seus saberes e especialistas, está tratando. Está tudo em seu lugar…

ÉPOCA – Por que o crack virou, hoje, um tema da política, como podemos ver nesse início de campanha eleitoral entre os candidatos a presidente?
Ribeiro – Talvez porque o crescimento rápido do número de dependentes e sua visibilidade pública façam com que se concentrem nesse fenômeno os temores relativos à fragilização de nosso laço social. Os crackeiros espelham, paradoxal e simultaneamente, nossos maiores sonhos e pesadelos: ansiamos por prazer e descompromisso, mas sabemos que precisamos de um conjunto de relações sociais que nos sustentem enquanto sujeitos. Infelizmente, a maior parte dos discursos político-eleitorais é dirigida à promessa de medidas voltadas ao fortalecimento do aparato repressivo e à criação de mais vagas para internação/desintoxicação de dependentes, que é o que responde aos anseios imediatos dos eleitores.

ÉPOCA – E como ampliar a abordagem dessa questão, para além da repressão e da cura?
Ribeiro – Nenhum país do mundo resolveu o problema da dependência de drogas por uma razão muito simples: não se trata de um problema de drogas, mas, sim, dos efeitos do tipo de laço social que construímos. Acho que o que podemos fazer é aumentar o repertório de alternativas através das quais as pessoas possam produzir para si um lugar social. Isto pode se dar de várias formas: através da educação, do esporte, da arte ou mesmo da religião. Mas, é claro que precisamos também de políticas de saúde para acolher e tratar aqueles que não conseguem mais controlar seu uso de drogas. Nessa direção, é preciso avançar na implementação do que já está previsto na Reforma Psiquiátrica e na atual Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Quando recebo um usuário de drogas em busca de tratamento, costumo propor que falemos de qualquer coisa, menos de drogas. Acho que é disso que eles precisam: encontrar outras coisas capazes de lhes interessar. De drogas eles já falam bastante.

ÉPOCA – Praticamente todas as sociedades usaram drogas, mas parece que só na nossa elas se tornaram um problema. Pelo menos um problema nessas proporções. Por que nossa sociedade, diferentemente de outras, não sabe como lidar com as drogas?
Ribeiro – Na maior parte das sociedades conhecidas, as drogas eram consumidas com alguma forma de controle social. Isto não significa que havia mecanismos repressivos para coibir abusos. Ao contrário, significa que havia um conjunto de entendimentos compartilhados que orientava o uso, em determinadas situações e com determinadas finalidades. Isso poderia se dar em rituais de cura, de mediação com o sagrado ou mesmo com finalidades orgiásticas, para aliviar tensões e produzir prazer. O conhecimento que temos acerca do uso de drogas em outras sociedades nos mostra que, se ele ocorresse com alguma forma de controle social, não trazia problemas pessoais ou para a comunidade. Provocar alterações dos estados de consciência representava algo de extraordinário que acontecia em situações muito específicas. Em nossa sociedade, este tipo de uso ocorre, por exemplo, no Carnaval, quando muitas pessoas se autorizam a fazer coisas que não fazem em seu cotidiano, o que inclui um consumo maior de drogas. E depois voltam à rotina.

ÉPOCA – E o que aconteceu na sociedade ocidental moderna para que a droga passasse a se integrar ao cotidiano e ser usada para o gozo individual?
Ribeiro – O desenvolvimento do liberalismo político e econômico trouxe consigo a constituição de um ethos fortemente individualista. A modernidade rompeu com o passado, afirmando o poder de autodeterminação dos indivíduos. No início, ainda se manteve orientada por um ideal coletivo, representado pelo progresso da ciência. Acreditava-se então que a ciência seria capaz de nos revelar, cada vez mais, o que era real e verdadeiro. Entretanto, no decorrer dos últimos séculos, esse ideal não cumpriu com suas promessas, como tampouco o fizeram outros ideais sociais, como o socialista e aqueles propostos pelos movimentos contraculturais. É nesse contexto que os laços sociais construídos a partir da tradição – passado – ou de projetos coletivos – futuro – se encontram desgastados, produzindo um achatamento do tempo e a percepção de que o que há para ser vivido tem que ocorrer agora. Os interesses pessoais e a pressa são elementos presentes em nosso cotidiano. E é nessa realidade que proliferam diferentes modalidades de uso de drogas: ora para aliviar tensões, ora para potencializar desempenhos.

ÉPOCA – Hoje há uma satanização das drogas, como se elas possuíssem a pessoa à revelia. Como se o processo de se drogar fosse externo ao indivíduo – e não algo movido por questões e necessidades internas, que começou pela escolha daquela pessoa de usar determinada droga, ainda que depois possa ter perdido o controle. Por quê?
Ribeiro – Diante de certos efeitos indesejáveis da ordem social moderna, tendemos a produzir práticas e representações originadas nos tempos pré-modernos. Explicando melhor: mesmo considerando que nossa sociedade se constituiu em torno de uma ética da responsabilidade – temos autonomia para pensar e agir, mas precisamos responder por nossos atos –, a consagração da visão simplista que sataniza as drogas representa um retorno às velhas crenças animistas que atribuem poderes e intenções a substâncias inanimadas. Algumas interpretações antropológicas evolucionistas defendiam que, no campo religioso, haveria um processo de “evolução” das sociedades. Ou seja: em seu início atribuíam poderes sobrenaturais a seres ou forças da natureza, depois teriam vindo as sociedades politeístas e, finalmente, as monoteístas. Estas teses evolucionistas encontram-se desacreditadas no campo antropológico, mas é fato que muitas sociedades “simples” acreditavam no poder sobrenatural de certas substâncias naturais. É um pouco como alguns setores da sociedade enxergam as drogas hoje.

ÉPOCA – Em um de seus artigos, você diz que, no início, as igrejas viam as drogas, todas elas, como coisa do demônio. Já a ciência se contrapunha a esta visão, apostando na autonomia das consciências. Hoje, ambas parecem demonizar as drogas. O que isso significa?
Ribeiro – Na Idade Média, a Igreja condenava o uso de drogas por razões teológicas: “só Deus tem o poder de curar”. Mas também por disputas de mercado envolvendo fé e poder, pois não lhe interessava permitir o crescimento da influência de feiticeiras e curandeiros. Hoje, esse discurso mudou e a condenação que grande parte das igrejas faz ao uso de drogas é fundamentada em sua suposta associação a práticas libertinas, hedonistas e promíscuas. Assim como também é uma eficaz estratégia de marketing para algumas denominações. Basta observar que muitos dos pastores se apresentam como ex-usuários de drogas que, com a ajuda de Deus – e da igreja, através dos dízimos –, conseguiram se libertar. Esse trânsito, das drogas para a religião, é muito frequente.

ÉPOCA – E a ciência?
Ribeiro – O deslocamento operado no campo científico é mais sutil. Partiu da afirmação do direito de qualquer um poder usar a droga que quiser e de uma posição liberal, em que o direito de experimentação fazia parte do processo em que se dava o progresso da ciência. Vale a pena lembrar que até o início do século passado todas as drogas conhecidas eram vendidas livremente em farmácias. Partiu-se disso para uma pretensão de controle e prescrição de uso. Ou seja, as drogas são instrumentos importantes no combate a doenças e na produção de bem-estar, mas seu uso deve ser orientado pelo saber científico, o quer exclui, evidentemente, as modalidades de uso espontâneas.

ÉPOCA – A abordagem atual das drogas parece intimamente ligada à questão do poder e do controle. Como você vê essa relação?
Ribeiro – Atualmente, a forma hegemônica de abordar a questão é resultante de um conjunto de fatores que pouco ou nada tem a ver com os que determinam o consumo. As estratégias de controle e repressão social defendidas por grupos orientados por ideais religiosos e/ou totalitários é um deles. Mesmo considerando que vivemos em uma sociedade fundada a partir de uma ética da responsabilidade – somos responsáveis pelos nossos atos e respondemos por eles – ou justamente por isso, convivemos com grupos que temem os efeitos dessa liberdade. Em vez de uma multiplicidade de formas de pensar e agir, eles prefeririam que todos agissem conforme seus princípios e crenças. Essa posição não se manifesta apenas no campo estritamente religioso, podendo estar presente em diferentes segmentos sociais. Nesse sentido, combate-se o uso de drogas porque ele seria potencialmente subversivo, pouco controlável. Outro fator são os interesses políticos e econômicos de laboratórios e setores da corporação médica, que reivindicam a exclusividade do direito de manipular corpos e mentes. Com o passar do tempo, no contexto da modernidade, o uso de drogas passou a ser cada vez menos controlado socialmente, seja por rituais tradicionais e/ou religiosos, seja por saberes autorizados, como médicos, curandeiros, etc. Este uso “individual” e espontâneo foge ao controle, não podendo ser utilizado como instrumento de poder político ou econômico. Daí a insistência em manter a produção e autorização de consumo de drogas sob o controle de laboratórios e médicos, respectivamente.

ÉPOCA – Você não acredita que a repressão possa causar a redução do consumo?
Ribeiro –
Os conflitos oriundos da marginalização do comércio e consumo de algumas drogas acabam por produzir um senso comum que evita a complexidade da questão e produz a estigmatização dos usuários e a defesa de medidas paliativas – ainda que necessárias –, como a repressão do tráfico e o tratamento de dependentes. Basta lembrar o episódio da Lei Seca, nos Estados Unidos, para concluir que as estratégias repressivas pouco ou nada contribuíram para a diminuição do consumo. Pelo contrário, seu efeito foi de outra ordem: expansão da corrupção policial, aumento do número de problemas de saúde em função do consumo de drogas de má qualidade, criação de um mercado marginal e violento, etc. Essa avaliação foi feita pelo próprio governo dos Estados Unidos, por ocasião da promulgação do ato que aboliu a Lei Seca. Hoje, há um entendimento largamente difundido de que as drogas são a encarnação do mal em nossa sociedade. Trata-se de uma poderosa aliança entre os discursos religioso, científico e o da segurança pública. O mais produtivo seria abordar frontalmente o problema e reconhecer que o uso de drogas em nossa sociedade faz parte de nossa cultura, como fez de tantas outras. E que, em vez de lançar cruzadas antidrogas, hipócritas e inúteis, deveríamos discutir as diferentes modalidades de usos, lícitas e ilícitas, e encontrar formas de minimizar seus efeitos danosos, individuais e sociais. Acredito que essa realidade se constitui no campo das disputas simbólicas, onde se definem valores e sentidos.

ÉPOCA – Como assim?
Ribeiro – O que faz com que o uso de drogas assuma determinado valor e determinada função para algumas pessoas? Como intervir nessa realidade? É evidente que não bastam campanhas publicitárias afirmando que “fumar é brega” ou que o “crack mata”. Não são mais os saberes tradicionais, passados de pai para filho, que orientam nossa compreensão do mundo. Vivemos em uma sociedade fragmentada e individualista, mas que se articula através de uma complexa rede de relacionamentos, presenciais e virtuais. É nesse universo que os sentidos vão se definindo e se modificando. Sendo assim, é possível afirmar que, quanto maior for a troca de idéias e experiências, menor será a possibilidade de um ou mais discursos assumirem uma posição de domínio. Acredito que ganharíamos muito se “gastássemos” essa discussão sobre as drogas, diminuindo sua importância, fazendo com que elas deixem de ser vistas como solução de todos os problemas ou como causadora de todos os males.

ÉPOCA – Vivemos numa sociedade onde se consome muitas drogas legais, parte delas receitada por médicos das mais variadas especialidades. A mesma sociedade que parece ficar um pouco histérica com o crack, por exemplo, não parece ver nenhum problema na massificação do uso de antidepressivos e ansiolíticos. Por que algumas drogas podem ser usadas e outras não? Umas são desejáveis e “terapêuticas” e outras são demonizadas? Qual é a diferença, afinal? Se tomamos drogas para dormir, para ficar feliz, para ficar calmo, para não sentir fome, para ter tesão, por que é ruim cheirar coca, fumar maconha e usar crack? Não estou dizendo que é bom, apenas questionando a lógica de que uma pode e a outra não, uma está incluída e a outra é marginal…
Ribeiro – Do ponto de vista do funcionamento subjetivo, não há nenhuma diferença entre cheirar cocaína, fumar maconha, usar crack ou beber cachaça, consumir antidepressivos, anfetaminas, ansiolíticos. É a mesma lógica: se faz uso de uma substância para produzir uma desejada alteração do estado de consciência e humor. É importante que se diga que as razões pelas quais algumas drogas são proibidas e outras não são proibidas não tem qualquer fundamento epidemiológico, médico, psicológico ou antropológico. Certas drogas são proibidas não por serem mais “fortes” ou “pesadas”, nem por terem maior potencial de criar dependência, ou por causarem mais problemas orgânicos. As origens da proibição podem ser buscadas em um conjunto de preconceitos morais e sectários do início do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proibição de algumas drogas esteve ligada à desconfiança que os puritanos manifestavam com relação à massa de imigrantes que chegava às grandes cidades americanas no início do século. Assim, diferentes drogas foram associadas a diferentes etnias: a condenação do uso de ópio resultou das acusações de corrupção infantil feitas aos chineses; a cocaína era associada à permissividade sexual atribuída aos negros; a maconha à “invasão” dos mexicanos; e o álcool às “imoralidades” de judeus e irlandeses. É evidente que, posteriormente, os interesses econômicos – indústria de bebidas alcoólicas, de cigarros e laboratórios – passaram a atuar fortemente com vistas à manutenção de sua reserva de mercado. É sabido que hoje o maior número de dependentes de drogas é alcoolista. E o álcool é uma droga legal.

ÉPOCA – Por que está tudo certo se as drogas são receitadas por médicos, mas tudo errado se não? O problema estaria no controle, as que são consideradas ilegais seriam aquelas que não podem ser controladas por ninguém?
Ribeiro – Os remédios vendidos apenas sob prescrição médica não são as únicas drogas legais, nem as mais usadas. As bebidas alcoólicas não estão sob controle e podem produzir efeitos da mesma intensidade que os provocados por outras drogas lícitas e ilícitas. Portanto, o “controle” se refere muito mais a questões relativas à produção, circulação e, evidentemente, acumulação de lucros. Neste sentido, as drogas ilegais estão “fora do controle”.

ÉPOCA – Qual é a aposta que se faz na droga? Como a droga se aproxima da sociedade de consumo na medida em que promete – e por um tempo realiza – a possibilidade de ser feliz ou do gozo pleno, tão caro à nossa época?
Ribeiro – Se considerarmos que o capitalismo produziu algo que seria da ordem de uma perversão no campo das relações sociais, na medida em que promoveu o que Marx chamou de “fetichismo das mercadorias”, poderíamos pensar que o aumento significativo de casos de dependência de drogas seria efeito de uma nova perversão, que se constitui como desdobramento da primeira. Ou seja: a lógica da sociedade de consumo se encontra orientada para um progressivo aumento na produção e consumo de bens, que, neste contexto, operam como mediadores das relações sociais, índices de prestígio e elementos produtores de identidades sociais. Entretanto, quando certas modalidades de uso de drogas fazem com que elas se tornem o objeto único de desejo, subverte-se a lógica capitalista. Paradoxalmente, a crença no poder dos objetos pode se constituir numa ameaça a um sistema alicerçado em torno do consumo. Na lógica capitalista, o prazer ou a felicidade que supostamente poderia ser alcançado através da posse de um objeto deve ser sempre parcial e efêmero, fazendo com que o desejo deslize para outros objetos, retroalimentando o sistema, que se constitui numa forma de laço social. O prazer derivado do uso de drogas, mesmo podendo ser intenso, também é parcial e efêmero. Mas, exatamente por sua intensidade e exclusividade, tende a deslocar o sujeito do contexto socialmente regulado de produção e consumo. Quando o sujeito passa a desejar um único objeto, ele deixa de consumir todos os demais. Além disso, dependentes de drogas também não costumam se manter atuantes em atividades laborais, o que faz com que ganhem pouco e consumam menos.

ÉPOCA – Nesse sentido, a droga é antissocial, como nós mesmos o somos, preocupados apenas com a satisfação dos nossos desejos, independentemente do desejo do outro – e não de um projeto coletivo, mais amplo, que inclui o outro? A droga, portanto, se encaixa perfeitamente no modelo individualista, que não está nem aí para o que não é a sua vida ou a vida de uns poucos ao seu redor?
Ribeiro – Exatamente. Mas é importante que fique claro que não se trata de um entendimento fundado em algum tipo de imperativo moral de fraternidade. O risco do uso de drogas em uma sociedade individualista se dá em função de um equívoco, socialmente produzido, de pensar que somos – ou deveríamos ser – radicalmente livres. Segundo esse ideal, não deveríamos depender de ninguém. Por exemplo: deveríamos desfazer qualquer casamento, aliança ou sociedade no momento em que não mais nos conviesse. O problema é que só nos constituímos e nos sustentamos enquanto sujeitos a partir das relações que mantemos com outros sujeitos. Quanto mais frágeis forem estas relações, mais instáveis nos tornamos. E seremos mais dependentes de outras estratégias para nos prover de alguma consistência identitária. Nesse sentido, é possível afirmar que o uso de drogas pode passar a ser um problema para aqueles sujeitos que não assumem ou constroem relações sociais de dependência.

ÉPOCA – Para estes, a droga toma o lugar do que?
Ribeiro – Eles dependem da droga para não depender das relações com outras pessoas. É uma tentativa extrema e paradoxal de manter sua independência.

ÉPOCA – As drogas legais, que mantêm o indivíduo produzindo e consumindo, não parecem ser vistas como um problema. Já as ilegais tornam-se um problema de polícia e/ou de saúde pública. Como você vê essa dicotomia de abordagem?
Ribeiro – Creio ser disseminado um equívoco intencional na abordagem dessa comparação entre os efeitos produzidos pelas drogas lícitas e ilícitas. Não há na literatura especializada nem nos estudos epidemiológicos qualquer evidência que fundamente o entendimento de que as drogas legais mantenham os sujeitos engajados socialmente, enquanto as ilegais produzam improdutividade. As estatísticas demonstram que a droga que mais incapacita seus usuários é o álcool, cujo consumo é legal. Além disso, faltam estudos que investiguem o quanto a prescrição excessiva de psicofármacos, por parte de médicos de diferentes especialidades, condena um grande número de sujeitos a uma vida anestesiada, desvitalizada. Se o médico está apenas preocupado em eliminar o sintoma de seu paciente, este é um processo que pode ir muito longe, porque dificilmente o sujeito apresenta uma única queixa. E, muitas vezes, novas queixas surgem como efeito das primeiras medicações. Assim, passado algum tempo, não há mais como saber o que está se passando com essa pessoa: o que é produto de sua história, de seus conflitos, e o que é efeito desta profusão de remédios. Na maior parte das vezes, o objetivo dessa orientação terapêutica é que o sujeito não sinta nada considerado indesejável. E esse objetivo é alcançado: o paciente não sente mais nada. Por outro lado, basta analisar as pesquisas epidemiológicas e as estatísticas policiais para comprovar que apenas uma ínfima parcela dos consumidores de drogas ilícitas se torna um dependente, incapaz de manter seus laços sociais, incluindo aí os laborais.

ÉPOCA – Não é curioso que o mesmo médico que receita drogas legais para anestesiar o sofrimento, já que sofrer parece ter virado uma anomalia, pretende “curar” os viciados em drogas ilegais?
Ribeiro – Temos aqui duas perspectivas diferentes: a do sujeito que busca uma ajuda para enfrentar seus sofrimentos, que podem ter múltiplos determinantes; e a destes médicos, que tendem a ver apenas o sintoma. Se o sujeito está deprimido, prescrevem-lhe um antidepressivo, se está ansioso, um ansiolítico. E assim por diante. Isso ocorre nos mais diversos contextos clínicos, não apenas no tratamento de dependentes de drogas. Por outro lado, a estratégia de prescrição de drogas de substituição, para combater a dependência a uma determinada droga, é muito antiga e largamente utilizada, principalmente nos Estados Unidos. Ela costuma funcionar quando a dependência é produzida por circunstâncias específicas e episódicas, como a utilização de morfina em feridos de guerra. Nos demais casos sua eficácia é muito duvidosa, pois parte da suposição de que foi a droga que viciou o sujeito.

ÉPOCA – E não foi a droga que o viciou?
Ribeiro – Esta é a principal questão: nenhuma droga vicia. São as pessoas que, eventualmente, se viciam com alguma droga. Isso lembra aquelas advertências de nossas avós, para que não aceitássemos balas de estranhos na saída do colégio, porque elas poderiam conter maconha e nós ficaríamos viciados. Ao contrário do que é veiculado pela maioria das campanhas, qualquer um de nós poderia experimentar até mesmo o crack algumas vezes, sem se viciar. É sempre um sujeito que decide usar uma droga e pode, ou não, optar por levar essa relação mais longe. É claro que existem sujeitos cujas circunstâncias fazem com que eles corram um maior risco na relação com a droga, mas as drogas não fazem nada, são substâncias inertes.

ÉPOCA – As substâncias podem não ter poderes sobrenaturais, como acreditavam e acreditam algumas culturas, mas está provado que algumas substâncias causam dependência, em menor ou maior grau. O que você quer dizer, exatamente, quando afirma que a drogas não viciam?
Ribeiro – Ninguém questiona a existência da dependência de drogas, mas faz muita diferença quem é o sujeito da frase. Dizer que as drogas viciam é diferente de dizer que pessoas se viciam com drogas. O que afirmo é que, para se estabelecer uma dependência, alguém decidiu usar drogas. E é esta motivação, e a história da relação do sujeito com a droga, no contexto mais amplo de suas circunstâncias, que vai definir se ele se tornará um dependente – ou não. Também é importante observar que, no contexto do tratamento de uma dependência de drogas, a primeira etapa, a desintoxicação, é a mais rápida e fácil. Em duas ou três semanas já não há mais nenhuma substância com princípio psicoativo atuando no corpo do sujeito. E todos sabem que ele não está curado de sua dependência. Permanece uma espécie de “memória”, que não é exclusivamente orgânica, nem exclusivamente psíquica, e que se encontra associada a certas situações e sensações que fazem parte da vida do sujeito. Assim, diante de determinado conflito familiar, ou determinada frustração, ele pode voltar a sentir uma “necessidade” de usar a droga a que costumava recorrer.

ÉPOCA – Hoje há uma droga legal, adquirida com receita médica, para cada sentimento humano de desconforto ou conflito. Em que medida o fato de nossa sociedade considerar qualquer sofrimento um sintoma que precisa ser abafado e anestesiado com drogas influencia no uso das drogas ilegais?
Ribeiro – É verdade que os sintomas podem produzir sofrimento, mas, ao contrário do que acontece com as dores orgânicas, em que na maioria das vezes não há razão para não tentarmos eliminá-las, as dores psíquicas cumprem uma função importante de sinalizar a existência de um conflito que está exigindo uma resposta. Eliminar esse sinal apenas nos condena à impotência frente à causa de nosso sofrimento. E ao inevitável deslizamento, com a formação de outro sintoma, com o agravante de termos ainda que suportar os efeitos colaterais da medicação. Um conflito psíquico pode produzir sintomas, inibições, angústias e outros desconfortos. Geralmente isso perturba nossa vida, fazendo com que soframos com coisas que, para os outros, parecem banais. Esses conflitos podem ser tratados, mesmo que nunca completamente eliminados. Isso faz parte da vida de todos nós, mesmo fora do contexto de um tratamento psicológico: a gente tenta superar certas dificuldades, consegue alguns sucessos, volta a deparar com limites e carências, e a vida vai andando. Dá certo trabalho e não nos poupa de vários momentos de mal-estar, mas é a forma como assumimos a direção de nossas vidas – e pode também produzir muita satisfação. Algo diferente ocorre quando se busca evitar esse trabalho psíquico e o mal-estar que o acompanha: sofremos menos em um primeiro momento, mas perdemos a possibilidade de superar aquilo que está nos aprisionando: contornamos nossos conflitos sem nunca conseguir fazê-los mudar de lugar.

ÉPOCA – Mas o quanto a visão contemporânea de que o sofrimento é sinônimo de fracasso e deve ser suprimido da vida tem a ver com o uso de drogas ilegais?
Ribeiro – Acredito que isso tem a ver com o uso de drogas em geral, e não apenas das drogas ilícitas. As estatísticas médicas e farmacêuticas indicam que vivemos em tempos de depressão. Nada de novo nessa constatação. Entretanto, chama a atenção o fato de outras avaliações de nossa sociedade apontarem para a direção oposta: cada vez mais percebemos a existência de uma cultura dinâmica, voltada para a busca de prazeres imediatos, que reconhece e valoriza quase todas as formas de gozo. Tornamo-nos maníacos e depressivos, mas não necessariamente ciclotímicos. Talvez seja mais preciso afirmar que uma sociedade maníaca tende a produzir subjetividades depressivas, pois se o ideal social que nos serve de referência preconiza que todo sofrimento deve ser superado, encontra-se desvalorizado todo aquele que não consegue se ajustar aos modelos de felicidade propostos. Não é difícil entender o quanto o uso de drogas se “encaixa” bem nesse contexto: ele pode tanto nos aliviar de nossas frustrações quanto nos ajudar a melhorar nossos desempenhos. Basta escolher a droga certa para o momento certo.

ÉPOCA – Você faz, em seus artigos, uma afirmação muito interessante – e bastante polêmica – sobre como o saber médico e o toxicômano veem a droga da mesma maneira. Você afirma que a teoria médica coincide com a do toxicômano, na medida em que procura isolar o aparelho psíquico para gozar dele como um órgão. Ou seja, com o auxílio de determinadas drogas pretende-se tanto curar um corpo doente como uma vida doente, sem problematizar as modalidades de relação com o outro. Como é isso?
Ribeiro – Tomemos o exemplo fictício, mas não incomum, de um adolescente que cotidianamente observa seu pai chegar em casa meio estressado e tomar umas doses de cachaça ou uísque; sua mãe consumir religiosamente seu ansiolítico; o médico da família, frente ao primeiro sinal de tristeza e abatimento, receitar um antidepressivo. Esse adolescente, diante das angústias próprias de sua idade, teria alguma razão para se recusar a fazer uso de um cigarro de maconha de vez em quando? Qual seria a diferença? Nesse exemplo, estamos longe de uma toxicomania, mas percebemos uma mesma lógica, que pode vir a ser acionada em situações extraordinárias, como a de uma dependência de drogas. Isso nos lembra do Millôr, que afirmava ter nascido com duas doses de uísque a menos, pois, quando as tomava, se sentia muito melhor. É a mesma coisa: se a psique é vista como um órgão, e se o remédio faz com que este órgão funcione melhor, deduz-se que era ele o que estava faltando. Ou seja, depois de procurar curar o corpo, o órgão doente, hoje se pretende curar a vida doente.

ÉPOCA – O crack é a droga do momento, a grande epidemia. Você acha que o crack é diferente das outras drogas e deve ter uma abordagem diferente?
Ribeiro – Mesmo que se faça uma crítica a muitas abordagens acerca do uso de drogas e às propostas hegemônicas para enfrentar o problema – e é importante que a crítica seja feita –, não há como deixar de reconhecer que se trata de um problema social que exige respostas urgentes. Entretanto, independentemente do tipo de droga utilizada, e mesmo que se reconheça a enorme diferença que existe entre os efeitos do consumo de maconha e de crack, por exemplo, não acredito que devamos nos dedicar à proposição de “estratégias para combate do uso de drogas” ou de uma “clínica da dependência de drogas”. Da mesma forma que não acredito em uma “clínica da depressão” ou uma clínica da “síndrome do pânico”. Em vez de reduzirmos o sujeito ao seu sintoma, ganharíamos mais diversificando nossas estratégias para operar uma “clínica do sujeito”, levando em consideração os contextos sociais em que essas subjetividades são produzidas.

ÉPOCA – E como seria uma “clínica do sujeito”?
Ribeiro – Parto do entendimento de que cada sujeito é absolutamente singular, o que faz com que o trabalho terapêutico também tenha que ser construído caso a caso. É nesse sentido que recuso a idéia de uma “clínica da toxicomania”, como se esses sujeitos compusessem um conjunto, com problemas e saídas semelhantes. Mas é possível propor algumas estratégias e linhas de ação. Nos casos menos graves, atendidos em consultórios e ambulatórios, entendo que o uso de drogas deva ser abordado no contexto da história e do conjunto de relações mantidas por cada pessoa. Não é o uso de drogas que define sua posição subjetiva e o seu sofrimento, mas o contrário: a relação que ele estabelece com as drogas é resultante da forma como ele vivencia seus conflitos e relações. Já nos casos mais graves, em que há uma perda de autonomia do sujeito, se torna necessária uma vinculação institucional, de preferência sem internação, através da qual ele possa contar com o apoio de uma equipe multiprofissional que lhe auxilie em seu processo de reinserção social.

ÉPOCA – Como você vê os tratamentos oferecidos para “curar” a drogadição, que em geral partem de uma oferta da medicina ou da religião ou de uma aliança entre ambas?
Ribeiro – A maioria dos dependentes de drogas que procuram – ou são levados a – tratamento se encontra em uma situação de fragilidade de suas inserções sociais. Normalmente não estão trabalhando ou estudando e vivenciam conflitos no âmbito familiar. Experimentam um sentimento de anomia, em uma errância que tem como únicos pontos de referência os caminhos que levam à droga. Ora, essa situação produz muita angústia, e não raro desespero. Diante dessa realidade, não é de surpreender que as ofertas de certas comunidades religiosas exerçam forte sedução, afinal elas prometem uma pertença comunitária, uma visão de mundo estruturada e uma função revestida de importância e dignidade – “a construção da Obra do Senhor”. Mas essa “solução” cobra seu preço, e não é barato: espera-se do sujeito que ele seja capaz de abrir mão de seus conflitos, ou seja, de sua história, e se engaje incondicionalmente em um projeto coletivo, que ele já recebe pronto. As correntes mais biológicas da psiquiatria, muitas vezes aliadas a determinadas versões da psicologia cognitivo-comportamental, apresentam outro entendimento do problema, de onde deriva outra proposta terapêutica. Esta é direcionada a uma reprogramação da mente e do comportamento, visando sua “normalização”. O que há de comum entre essas ofertas são as certezas de que partem. Não há lugar para dúvidas acerca do que é certo e do que é errado. Para quem está totalmente perdido, isso não é pouca coisa.

ÉPOCA – Mas, a longo prazo, funciona? A pessoa consegue manter esse engajamento no projeto, que, por sua vez, a mantém longe das drogas?
Ribeiro – Dificilmente. Essa reprogramação exige que o sujeito assuma uma nova vida, e sabemos que nossa liberdade de escolha é limitada: não podemos escolher quem queremos ser. Somos o produto de uma história, que não se deixa ignorar. Mas, embora hegemônicos, esses campos, felizmente, não detêm a exclusividade no tratamento da dependência química. “Felizmente” não porque eles sejam sempre ineficazes ou mal-intencionados, longe disso, mas porque muitos dependentes não se adaptam a suas propostas. Há muitas clínicas, ambulatórios e CAPS-ad (Centros de Atenção Psicossocial a usuários de substâncias psicoativas) que assumem um maior respeito à liberdade de escolha dos sujeitos, tomam como referência a estratégia de redução de danos e trabalham a partir de uma escuta das singularidades de cada caso.

ÉPOCA – Como você vê o jogo de culpa que se faz na abordagem das drogas: é culpa da família, é culpa do traficante, é culpa do Estado, é culpa dos amigos viciados, é culpa de um mundo sem valores ou há tantos culpados que ninguém mais tem culpa? A culpa cumpre algum papel nesse jogo?
Ribeiro – A culpa é um dos sentimentos – ou acusações – mais inúteis e produtores de sofrimento com que temos de conviver. Ela nada produz além de recriminações e ressentimentos. Além disso, a atribuição de culpa costuma ser utilizada por discursos autorizados – o científico, o policial ou o religioso – como estratégia de imposição autoritária de seus pontos de vista. Mais interessantes são as tentativas de produção de consensos mínimos sobre os problemas que envolvem o consumo de drogas e a pactuação de responsabilidades no que se refere à forma como o problema deverá ser enfrentado. Isso vale tanto para um contexto familiar, quanto para a elaboração e implementação de políticas públicas.

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a descriminalização das drogas, no geral, e a descriminalização só da maconha, como propõem alguns, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Ribeiro – Não vejo razões pelas quais consumir drogas deva ser considerado um crime, o que não é o mesmo que defender sua liberação irrestrita. É interessante notar que as origens da proibição ao uso de determinadas drogas não estão relacionadas a qualquer avaliação de ordem médica, psicológica, epidemiológica ou antropológica. Estão associadas de forma muito mais direta às pressões exercidas por certos segmentos sociais, a partir de preconceitos morais e estigmatizações sectárias. Deveríamos ser capazes de aprender com nossos erros e, no momento em que se evidenciam as contradições de nossa política proibicionista, investir em estudos multidisciplinares e promover um amplo debate, depurado de moralismos e respostas fáceis.

ÉPOCA – E quais seriam as questões centrais deste debate?
Ribeiro – Questões que discutam poder e responsabilidade. O que legitima que alguém legisle ou defina o que posso ou não consumir? Se é uma questão que extrapola o âmbito das liberdades individuais, envolvendo problemas de saúde pública, quais são os critérios para definir quem pode e quem não pode consumir tais e tais drogas? Repressão e marginalização são boas estratégias para a produção de saúde?

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a campanha nacional contra o crack lançada pelo Ministério da Saúde (e recentemente ampliada pelo presidente Lula)?
Ribeiro – A campanha promovida pelo Ministério da Saúde promove grandes avanços, entre eles o de respeitar os direitos dos usuários, o de operar a partir da lógica de redução de danos, o de priorizar a abordagem do problema no território em que vive o usuário e o de evitar internações prolongadas. Entretanto, é sabido que esse tipo de abordagem enfrenta fortes resistências de parte daqueles que se opõem a Reforma Psiquiátrica e se mostram saudosos dos antigos manicômios. Para estes, o melhor seria ampliar o número de leitos de internação, segregar e “tratar” o maior número possível de usuários, para depois “devolvê-los” – se possível – para o convívio social. Infelizmente, através dessa estratégia, muitos psiquiatras evitam a abordagem da intensidade dos dramas humanos – preferindo a calmaria dos sedativos.

(Publicado na Revista Época em 14/06/2010)

Tropa de elite

Que tipo de povo queremos ser?

Em geral, não gosto de voltar ao tema da coluna anterior. Mas os comentários da última merecem uma reflexão. O fascinante da internet é que o texto continua a ser escrito pelos leitores. Quase sempre tenho a sorte de ter leitores de bom nível, que fazem suas críticas com educação, compartilham suas experiências, enriquecem o debate. Vez ou outra, porém, alguns manifestam sua falta de educação, protegidos pelo anonimato. É triste, porque é uma oportunidade perdida de dizer e ouvir algo que nos faça ir além. Mas, mesmo estes leitores pobres de ideias e de espírito nos dizem algo com sua agressividade. Embora possamos ignorá-los, talvez seja importante pensar não no que dizem, já que sua violência busca encobrir a falta de argumentos, mas no que seu comportamento revela sobre o país que construímos.

Para quem não leu a coluna anterior, em “Vizinhos de praia” eu contava minha má experiência com a vizinhança, ao visitar minha família no final do ano. Carros com porta-malas aberto e som ensurdecedor a qualquer hora do dia e da noite, cachorros (muitos) que não param de latir, barulho ininterrupto de cortador de grama. Decidi contar meus percalços praianos por apostar na hipótese de que o que aconteceu comigo também havia ocorrido com muitos leitores que, como eu, se sentem impotentes diante de uma convivência cada vez mais ditada pela violência. Os comentários, narrando experiências do gênero, algumas bem mais difíceis e perigosas que a minha, comprovaram que minha hipótese estava correta.

Antes de chegar aos – felizmente poucos – leitores agressivos, queria apontar outra reação que a coluna motivou. Fiquei surpresa ao perceber que alguns fizeram uma relação imediata entre a falta de educação/respeito e a ascensão social. Em nenhum momento, no texto, eu afirmo que o grupo que tocava funk e outros gêneros musicais num volume que impossibilitava a conversa dentro da minha casa eram pessoas economicamente pobres que haviam subido de escala social. Pelo contrário. Eu conto que eles tinham dois carros, uma moto e um buggy, bens materiais em geral incompatíveis com quem vive ou saiu recentemente das favelas, mesmo com a comprovada ascensão das classes C e D no governo Lula.

Eu já havia ficado curiosa com a relação entre falta de educação/respeito e ascensão social quando comentava nossas dificuldades com outro vizinho da praia. “Este comportamento é coisa de negrada. Eles saem das vilas e vêm pra cá fazer baderna”, ele disse. Fiquei chocada com o elevado índice de preconceito em apenas duas frases. Este vizinho fez tal afirmação olhando para os vizinhos violentos. O que havia diante dos olhos dele, quando fez o comentário, era o seguinte: proprietários da casa de praia, com seus familiares e amigos, todos brancos, alguns com olhos claros, descendentes de italianos e moradores da serra gaúcha, uma das regiões mais prósperas do Rio Grande do Sul. O preconceito era forte o suficiente para que ele precisasse transformar descendentes de europeus, visivelmente de classe média, em “negrada de vila”. Vila, para um morador do interior do Rio Grande do Sul, é o equivalente à favela.

Ao acompanhar os comentários da coluna, vi que esta inferência se repetiu. Acho importante tentar compreender por que pessoas inteligentes manifestaram preconceito, consciente ou inconscientemente. Eu não acho que todo pobre é bonzinho nem todo rico é malzinho. Sou amiga e acompanho o trabalho de pessoas pobres de grande valor e conheço outras que só prejudicam a comunidade em que vivem. Assim como conheço ricos que tentam repensar suas ações para construir um mundo melhor e outros que são sonegadores de impostos, patrões da pior espécie e péssimos cidadãos. Nem a pobreza nem a riqueza dão atestado de boa conduta para ninguém – nem justificativa para o inverso. Do mesmo modo que a cor também não dá, a priori, diploma de dignidade para alguém.

O fato de meus vizinhos tocarem funk de madrugada, com o porta-malas do carro com caixas de som no volume máximo, talvez possa ter contribuído para a ilação – jamais para o preconceito, que é sempre inadmissível. Afinal, o funk surgiu nas favelas do Rio. Mas, pensar que isso demonstra a classe social de quem ouve, é ignorar que o funk, assim como o rap, se difundiu entre a as classes A e B há muitos anos. Se eu não estivesse tão irritada na ocasião, seria instigante pensar por que jovens de classe média do interior gaúcho, cujos pais ainda falam dialeto vêneto, sentem-se poderosos ouvindo funk carioca. Fiquei imaginando o insólito encontro entre aquelas “cachorras” do interior gaúcho e os funkeiros das favelas do Rio. O que eles têm em comum? Nada, imagino. Mas, com certeza, esta apropriação deve nos contar alguma coisa. E pode ser interessante saber o que é para entender um pouco mais do mundo onde vivemos.

Agora, o que dizem os leitores que pretendiam me ofender? Em geral, eles me acusam de manifestar um comportamento elitista e me taxam de “burguesinha”. Um deles defende que, com o texto, eu revelo meu desprezo pelo povo e também pelos leitores. Em geral, eu não ligo para tentativas de agressões, porque acho que elas são auto-explicativas. O autor, na tentativa de me desqualificar, revela mais dele mesmo do que de mim. Mas achei que estes mereciam ser escutados naquilo que diziam sem querer dizer. Em alguns casos, infelizmente, tive de eliminar os comentários, porque agrediam outros leitores com palavrões, me chamavam de “piranha” e me mandavam tomar no mesmo lugar para o qual o funk dos vizinhos já tinha me enviado várias vezes.

Ora, o que é um comportamento “elitista”? Boa parte dos problemas crônicos do Brasil se deve ao fato de que, ao longo da História, o país teve uma elite de última categoria. No geral, o comportamento da elite brasileira, em diferentes momentos (e também quando incluiu novos atores), norteou-se por se apropriar e usar os recursos naturais do país de forma danosa, explorar os trabalhadores, valorizar o que vem de fora e desvalorizar o que é produzido aqui, especialmente a cultura, garantir a impunidade de seus atos, não se sentir implicada na construção do país nem no bem-estar do seu povo. Para esta elite, só o seu bem-estar importa. Ela só descola os olhos de seu umbigo quando percebe seus privilégios ameaçados. E, muito significativo, historicamente a elite brasileira usa o público como se fosse privado. Para ficar num exemplo recente, basta observar o modus vivendi da recente elite política do país, refestelada no Congresso Nacional.

Em resumo: o comportamento padrão da elite se expressa por fazer o que bem entende sem responder pelos seus atos ou se importar com o bem-estar do outro. Exatamente, portanto, como meus vizinhos de praia. Como os vizinhos dos leitores que contaram seus percalços. E como os leitores que entram neste espaço não para fazer críticas ponderadas, das quais todos possam se beneficiar, mas para agredir, ofender, desrespeitar.

Ainda levando em consideração a “acusação” de que eu estaria manifestando um comportamento elitista, vejamos. Se havia uma relação entre elite e povo em meus percalços litorâneos, como estes leitores acreditam que existia, eu e minha família estávamos no lugar do povo que devia continuar aguentando calado os desmandos e abusos daqueles que se achavam no direito de ser mais importantes que todos os outros. E usavam o espaço público como se fosse privado. Do mesmo modo, quando a polícia apareceu, meus vizinhos estavam tão certos da impunidade, que ridicularizaram a polícia e a nossa crença na lei.

Dito isso, por que vale a pena pensar sobre isso? Porque estes pequenos casos da vida cotidiana, minha e de tantos leitores, são reveladores. E, embora possa não parecer, têm grande repercussão na vida do país. Se há avanços sociais significativos e muitos de nós têm ampliado o acesso a bens de consumo, é relevante pensar sobre que tipo de povo queremos ser. Será que queremos repetir o comportamento histórico de parte da elite brasileira e fazer o que bem entendemos sem nos importar com o bem-estar do outro? Será que nós também vamos privatizar o espaço público? Será que nós também rasgaremos a lei para nos mantermos impunes?

Será muito triste se, depois de uma História tão sofrida, quando o Brasil parece viver um momento pródigo em oportunidades, quando temos a chance histórica de nos reinventar, decidirmos nos construir à imagem e semelhança da elite que nos espoliou por 500 anos.

São pequenos casos cotidianos como este que explicam por que escolhemos e legitimamos com nosso voto um Congresso como o que parasita Brasília nesse momento, salvo honrosas exceções. Nossos pequenos atos, a forma como vemos o público e o privado, a escolha que fazemos entre respeitar e não se importar têm grandes consequências para o bem-estar de todos. Nós não estamos apenas cuidando da nossa própria vida, mas construindo um país.

Em homenagem aos leitores que fazem este espaço valer a pena a cada semana, com contribuições que o tornam mais rico, encerro com o comentário de um deles. Ricardo de Faria Barros, de Brasília, coloca uma questão fundamental para um país em que parte do povo, na primeira oportunidade, tenta imitar a elite no que ela tem de mais nefasto: “Meus pais repetiam, como um mantra, ‘seus direitos acabam quando começam os dos outros’. Mas, para este mantra funcionar, temos que nos perceber como parte de um grupo social, no qual co-existam OUTROS. E não como os únicos. Se nos vemos e percebemos como os únicos, ‘os caras’, se só vemos a nós próprios, como reconhecer onde acaba nosso direito e começa o do outro?”.

(Publicado na Revista Época em 18/01/2010)

Lula, o filho do Barretão

Os homens são bem mais interessantes do que os heróis – ou os santos

“Não quero que publiquem que eu sou santo. Não sou. Estou cansado que me carreguem no colo, que puxem meu saco. Não encontro textos sérios: ou inventam mentiras para me esculhambar, ou exageram em coisas que não existiram para me transformar num super-homem. Não sou nem uma coisa nem outra. Gostaria que você fizesse um texto ‘científico’ sobre mim, contando as coisas como elas são”.

Esta fala é de Luiz Inácio Lula da Silva e foi transcrita na introdução de sua biografia – Lula – o filho do Brasil (Perseu Abramo) –, escrita pela jornalista Denise Paraná. No surrado sofá vermelho do pequeno apartamento de Denise, então uma estudante vivendo com o dinheiro da bolsa de doutorado em História, na Universidade de São Paulo (USP), Lula contou a extraordinária história de sua vida em encontros que totalizaram cerca de cem horas de entrevistas, entre os anos de 1992 e 1994. Ao contá-la, pronunciou umas duas centenas de palavrões que foram limados da edição da Fundação Perseu Abramo, publicada no final de 2002, ano da primeira eleição presidencial vencida por Lula, depois de três derrotas. A primeira publicação da obra é de 1996.

A biografia, elaborada com os critérios da história oral e apresentada na forma de entrevistas com Lula e seus irmãos, é irretocável. Ao contar a história de Lula de 1945 a 1980, do nascimento no sertão pernambucano à liderança das greves no ABC paulista, Denise Paraná compreendeu que a riqueza do homem era sua complexidade. Foi respeitosa com todas as contradições do retirante sertanejo, operário e líder sindical que se tornaria o presidente mais popular da história recente do Brasil. Como o próprio Lula pediu, ao aceitar contar sua vida, o retrato traçado no livro é fascinante, mas decididamente não é nem o de um herói, muito menos de um santo.

Quando li a biografia, para cobrir a campanha de 2002, às vezes ri muito com Lula, às vezes chorei, em outras achei-o mau-caráter, em alguns parágrafos deu até raiva. Ao final da leitura consegui me aproximar das muitas verdades de Lula, um homem complexo e contraditório como são todos os homens. Ou, como diz Denise na primeira frase da introdução da obra: “Este é um livro sobre um homem controvertido”.

Ao assistir a Lula – o filho do Brasil, o filme, fui surpreendida por um outro Lula. Este me deu sono. Baseado na biografia de Denise Paraná, o filme usou fatos relatados no livro, retocou alguns momentos menos edificantes, mas perdeu o melhor da história: a humanidade do personagem. O Lula do filme é plano, unidimensional. Faz tudo certo sem tropeçar em nenhum conflito, nem mesmo um bem pequeno, em sua trajetória linear. Ao final, ficamos pensando (eu, pelo menos) que aquele cara da tela nunca chegaria a presidente da República. Não chegaria nem a liderar uma greve do ABC. O Lula do filme é raso como o açude seco em que o menino Lula bebia água com o gado.

A história de Lula e de sua família é uma grande história. Contém nela um naco da trajetória do Brasil. O pai migrou para São Paulo com a amante menor de idade, deixando no sertão a mãe grávida de Lula e outros seis filhos. Numa visita, ainda fez uma oitava filha antes de levar um dos meninos, Jaime, com ele para Santos. Dona Lindu vende tudo e vai para São Paulo atrás do marido porque este filho engana o pai, analfabeto, e escreve uma carta muito diferente da que ele ditou. Em Santos, ela tem gêmeos e perde os filhos sem nenhuma ajuda. Muito mais tarde, quando Lula está preso, dona Lindu morreria de câncer.

As irmãs de Lula trabalham como domésticas, um irmão tem doença de Chagas, outro é torturado pela ditadura militar. A primeira mulher de Lula morre no sétimo mês de gestação, junto com a criança, possivelmente por negligência médica. Quando é velada, o chão da casa em que viviam cede com o peso do caixão. O filme conta muitas dessas histórias, mas é uma narrativa sem densidade ou nuances. Não parece uma vida, mas fatos encadeados.

O Lula real era um menino tão tímido que não conseguia vender laranjas na infância por falta de coragem de gritar. O do filme é um vendedor com sacadas publicitárias. No filme, o casamento com Maria de Lourdes, a primeira mulher, é um conto de fadas proletário, com direito à perseguição no varal de roupas. Na vida, o casal voltou antes da lua de mel porque Lourdes só chorava. Quando o sogro de Marisa, taxista, conta a ele sobre sua nora, viúva, Lula estava saindo da casa da namorada, Miriam Cordeiro, e pensa: “Qualquer dia vou comer a nora desse velho”. No filme, ele apenas conta ao taxista, com voz embargada, que perdeu a mulher e o filho. E o taxista diz que também perdeu um filho e mostra a foto da viúva, Marisa, e do neto. O viúvo Lula do filme só chora. O da vida chora, mas depois quer “namorar todo dia e, de preferência, com pessoas diferentes”.

Quando Marisa aparece no sindicato dos metalúrgicos para “pegar o carimbo” necessário para liberar o dinheiro da pensão do marido assassinado, Lula não a reconhece da foto mostrada pelo taxista, como é contado no filme. Lula é chamado para atendê-la porque havia deixado ordens de ser avisado quando aparecesse “uma viuvinha nova”, como conta a própria Marisa no livro. Então Lula mente para Marisa que a lei tinha mudado e a obriga a voltar várias vezes ao sindicato. Depois a chantageia para que lhe dê seu telefone.

E assim por diante. Entre um personagem contraditório e outro com comportamento previsível, mas elevado, a escolha foi eliminar as nuances e ficar com um Lula sem ambivalências. Mais do que um herói ou um santo, o Lula do filme é um sujeito insosso.

Por que uma grande história, um grande personagem e um grande orçamento – R$ 16 milhões, um dos mais caros da trajetória do cinema brasileiro – se transformaram em um filme medíocre?

Só tenho hipóteses. O momento escolhido – com o personagem principal na presidência da República e às vésperas de uma eleição presidencial – pode ter feito mal à obra. O momento pode ter beneficiado a captação de recursos, já que dá gosto acompanhar na tela a lista de empresas sensibilizadas para a necessidade de investir no cinema nacional. Mas pode também ter produzido uma série de auto-censuras.

Como já foi dito pelos realizadores do filme, havia uma preocupação de não apresentar cenas que pudessem ser consideradas piegas ou excessivamente dramáticas, embora verídicas, como a que o pai de Lula se recusa a lhe dar picolé porque diz que ele não sabe chupar sorvete. A mesma preocupação pode ter ocorrido ao preferir não mostrar um Lula mulherengo e às vezes de caráter duvidoso, um Lula mais malandro que bom moço.

Há no filme alguns momentos heroicos, que nunca ocorreram na vida real, como quando o menino Lula se posta na frente da mãe para impedir que o pai, Aristides, batesse nela, dizendo: “Homem não bate em mulher”. Na vida real, contada pelo próprio Lula, é a mãe que não permite que o pai bata em Lula. Por conta disso, Aristides dá uma mangueirada na cabeça de dona Lindu. Do mesmo modo, há episódios em que a índole do personagem foi aprimorada, como quando Lula passa mal ao assistir ao dono de uma fábrica, que havia atirado em um trabalhador durante uma greve, ser jogado do segundo andar e depois linchado. Na vida real, narrada pelo próprio Lula, ele diz: “Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça”.

Quando a biografia foi editada na Coreia do Sul, a tradutora passou alguns apertos. Ela não sabia como traduzir a passagem em que Lula fala sobre um costume dos meninos do sertão do seu tempo: a iniciação sexual com animais. A jovem Sophia Cho, que além de terminar a tradução acertava os últimos preparativos de seu casamento, ficou ruborizada. “Ainda que tenhamos permitido a aparição da primeira cantora transexual na TV, senhorita Ja Ri Su, a Coreia continua muito fechada nesse aspecto”, explicou-me, quando a entrevistei. “Como traduzir isso para um país que pratica o confucionismo há 4 mil anos?” Sophia Cho e todos os sul-coreanos poderão assistir ao filme sem sobressaltos. A fita não ruborizaria nem o próprio Confúcio.

Luiz Carlos Barreto, o Barretão, já disse que fez o filme para ganhar dinheiro. Deve ter sido sincero. Mas se o momento histórico é propício para “ganhar dinheiro”, me parece difícil fazer um bom filme sobre um presidente da República que está no poder e iniciará 2010 como um recordista de popularidade. Será que existiriam empresários tão interessados em investir na cultura nacional se o filme mostrasse o jovem Lula anunciando que queria “comer” a futura primeira-dama do Brasil? O fato é que mesmo cineastas brilhantes poderiam derrapar na empreitada. E a cinebiografia do diretor, Fábio Barreto, infelizmente não o inclui nesta lista.

Já me foi dito também que a ideia não era fazer um filme para intelectuais e para críticos gostarem, mas para o povão. Bem, acho que o povo merece um filme bom. E filme bom necessariamente não implica inovações de linguagem ou voos intimistas. Só é preciso contar bem uma história. E nenhuma história é bem contada se o personagem principal não vive um único conflito em sua vida, se é contado apenas pelo que o enaltece, se é, portanto, inverossímil. É curiosa essa ideia de “filme para o povão”. Já a escutei como explicação para tudo – de programas de TV de baixo nível a filmes ruins. Subestimar a inteligência e a sensibilidade do povo brasileiro me parece não só falta de respeito, mas arrogância.

Compreendo, é claro, que o filme é “bom” para muita gente, em vários aspectos que nada têm a ver com cinema. Nesse sentido, o que vai acontecer a partir do lançamento poderá render um outro filme no futuro. Nunca antes na história deste país um presidente teve a chance de poder assistir a um filme sobre sua vida refestelado na poltrona do cinema do palácio do Alvorada. Na condição de observadores da história em movimento, vale a pena acompanharmos de perto o efeito dessa monumental obra de propaganda e construção de imagem. É, sem dúvida, um capítulo novo.

Como brasileira que gosta de cinema e de boas histórias, ao contrário de alguns críticos, eu gostaria de assistir a um filme sobre a vida do Lula. Não agora, mas num momento em que Lula não estivesse tentando fazer seu sucessor na presidência. Um bom filme, que não fizesse dele nem um super-homem nem um santo nem um cara sem sal. Espero que algum cineasta de talento encare essa empreitada daqui uns anos.

Ao transformar Lula nesse cara que não faz nada errado, sequestra-se da história de todos nós um patrimônio fundamental da eleição de Lula para presidente do Brasil: a identificação que a maioria dos brasileiros pobres tem com a trajetória de Lula. Todos nós, mortais, erramos, temos conflitos, somos contraditórios, falamos besteira, derrapamos em covardias, nos arrependemos de muita ou pouca coisa. A identificação de um número significativo de brasileiros com Lula, em parte, se dá por essa certeza de que Lula poderia estar sentado na mesa de bar com cada um, tomando uma, falando de futebol ou de mulher ou jogando truco. Mas também pela possibilidade que ele representa na vida de cada um de superar a pobreza em um país tão desigual e se transformar em presidente com tudo o que é. Quando Lula se transforma em um predestinado, caso do personagem do filme, esse rico patrimônio simbólico se perde.

Prefiro o Lula que disse à Denise Paraná, que acabou assinando o filme como co-roteirista, quando ela pergunta a ele se acredita ter algum tipo de “inteligência especial”: “Eu não me considero burro, tenho clareza de que não sou burro. Agora, que eu não tenho nada de especial, isso eu não tenho. Não tenho, não tenho nenhuma inteligência especial. Eu apenas sei utilizar a minha”.

O maior defeito do filme com estreia prevista para 1º de janeiro, me parece, é não estar à altura da história. Nem à altura do homem. Lula, o filho de dona Lindu, é bem mais fascinante do que Lula, o filho do Barretão.

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Me pergunto se hoje Lula repetiria o pedido feito à sua biógrafa, de contar uma história real, que não lhe puxasse o saco nem lhe sacaneasse, que não o transformasse em santo ou super-herói. Ousaria arriscar que não. Minha hipótese, infelizmente, é de que depois de sete anos no poder, Lula passou a acreditar que é um pouco dos dois, santo e super-herói. E gosta mais do que seria prudente que todos lhe puxem o saco.

Como todo mundo, eu gosto de estar certa. Mas, seria bem melhor para mim e para todos os brasileiros, especialmente para Lula, que eu esteja errada.

(Publicado na Revista Época em 28/12/2009)

De volta à Idade Média

Não concorde com a concordata de Lula e do Papa

A primeira vez que vi um crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal, acima da cabeça do presidente, achei bizarro. Como a corte máxima da Justiça de um país laico pode ostentar o símbolo religioso do catolicismo? Como se sentem os evangélicos, judeus, umbandistas, budistas, espíritas, muçulmanos e também os agnósticos e os ateus ao descobrirem que a corte laica prioriza uma religião? Estado laico pressupõe a separação Estado-Igreja. Ou seja, o Estado respeita todas as religiões, mas esse é um assunto da esfera privada de cada cidadão. As religiões, nenhuma delas, interferem nas questões do Estado, que tem o dever de governar, julgar e legislar no interesse de todos. Tenham a religião que tiverem – ou não tenham nenhuma.

Na Idade Média, os papas tinham poderes tão grandes e muitas vezes maiores que os reis sobre a vida – e a morte. A separação Estado-Igreja deu origem aos estados modernos e ao Ocidente como hoje o conhecemos. Em 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos foi um marco nessa direção, ao determinar as bases para a liberdade religiosa e os direitos civis. Assim como a Revolução Francesa, em 1789, ao tirar o poder das autoridades religiosas. No Brasil, a separação Estado-Igreja e a proteção à liberdade de crença já é um valor desde a Constituição de 1891. Vale a pena lembrar das aulas de História, porque vamos precisar reaprender antigas lições. Há um golpe em curso contra o Estado laico – e contra o cidadão brasileiro. Contra mim e contra você.

Em 13 de novembro de 2008, o presidente Lula e o Papa Bento XVI assinaram o que se chama de “concordata”, um acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro, com o argumento de “regulamentar o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Primeira pergunta: por que a Igreja Católica, que chegou ao país junto com Cabral, precisaria regulamentar alguma coisa? E justo hoje, quando as projeções mostram que o Brasil tende a ser um país cada vez menos católico e mais multirreligioso?

Como o Vaticano tem esse ambíguo status jurídico de Estado, embora seja um Estado que só existe para organizar e propagar uma religião, a concordata tem o valor de um tratado internacional, bilateral. Não pode ser rompido por um dos signatários, só por ambos. Em 20 artigos, o texto interfere em questões como o ensino religioso confessional na escola pública, efeitos civis do casamento religioso e o reconhecimento de que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com as instituições católicas.

Sempre me incomodou que a escola pública de um estado laico tenha ensino religioso confessional. Como cidadã, acredito que a escola pública deveria ter mais carga horária, melhores e mais bem pagos professores. Como aluna de escola pública que fui, gostaria de acrescentar ao currículo matérias como filosofia, latim e grego, entre outras. E aumentar a carga horária das demais disciplinas.

O ensino da religião, inserido no contexto social e político, eventualmente pode ser interessante, se for ministrado por um professor com boa formação na área. Mas não encontro nenhum argumento que faça sentido para a presença no currículo do ensino religioso confessional. Esta não deve ser a prerrogativa da escola, mas das denominações religiosas. Se você quer dar ao seu filho uma educação religiosa, que ele a tenha dentro da igreja ou templo. Se você acha que seria bom ter dentro da escola, então o matricule numa escola privada confessional.

A Constituição de 1988, que avançou em tantos temas, contém um artigo que prevê oferta obrigatória de ensino religioso, com matrícula facultativa. Há um movimento em curso na sociedade brasileira para rever esse artigo, que contraria o princípio da laicidade do Estado. Em seu uso mais abusivo, as escolas públicas do Rio de Janeiro, no governo de Rosinha Garotinho, usavam as aulas de religião para ministrar a doutrina do criacionismo – uma visão religiosa sobre a origem da vida que nega a teoria da evolução de Charles Darwin. Ou seja, um desserviço à boa qualidade do ensino, tema tão caro e delicado para qualquer nação que pretenda ter grandeza no seu futuro. E, com o perdão do trocadilho, usada com má fé, já que tenta enfiar goela abaixo dos estudantes uma visão religiosa como se fosse científica.

A concordata assinada por Lula e pelo Papa precisa ser aprovada pelo Congresso brasileiro para vigorar. Tem tramitado por lá sem maiores alardes, o que, em si, já é curioso. Na quarta-feira passada, 12 de agosto, foi aprovada pela Comissão das Relações Exteriores da Câmara. Precisa passar ainda por mais três comissões, mas como corre em regime de urgência, pode ser votada no plenário nos próximos dias.

Aí vem a segunda pergunta: você não consegue lembrar de no mínimo algumas dezenas de projetos que merecem urgência porque lidam com questões vitais para todos os brasileiros? E, em vez disso, se arrastam pelo Congresso há anos? Algum de nós, cidadãos – católicos e não-católicos –, consegue imaginar por que motivo a “Regulamentação do Estatuto Jurídico da Igreja Católica” seria urgente para a nação brasileira? Isso, por si só, bota algumas pulgas atrás não de uma, mas das nossas duas orelhas.

Diante das críticas de que o acordo fere o princípio da laicidade do Estado, a CNBB afirma que tudo o que está lá já é previsto na Constituição. É verdade. E aí somos imediatamente levados à terceira pergunta: se já está na Constituição, por que precisamos de um acordo? E por que o Papa e os bispos estão tão empenhados na sua aprovação? Mais umas três dúzias de pulgas.

Se o acordo for aprovado, como discutir o artigo constitucional sobre o ensino religioso na escola pública? E o que acontece com as escolas públicas que usam o ensino religioso para estudar a história da religião no contexto sócio-político de cada época – e não para ministrar aulas confessionais?

O mais grave, porém, é que o artigo da tal concordata – o nome é horrível, não? – fere a Constituição em pelo menos dois de seus princípios mais caros: 1) ao fazer um acordo com uma denominação e não com todas as outras, está privilegiando uma religião em detrimento de todas as outras, ferindo o artigo constitucional que proíbe o tratamento diferenciado entre cidadãos por razões de ideologia, crença ou culto; 2) ao fazer um acordo com uma determinada denominação, fere o princípio da laicidade do Estado. Estado Laico é aquele que não interfere em questões religiosas e não estabelece relações de dependência ou aliança com crenças religiosas ou seus representantes. Portanto, não faz diferença entre brasileiros por sua escolha religiosa.

Caso o acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro seja aprovado pelo Congresso, terá força de lei e será incorporado à vida nacional. Teremos dito “sim”, por meio de nossos representantes, à ingerência de uma denominação religiosa, a Igreja Católica, no Estado, que tem por dever moral e constitucional zelar por todos os cidadãos, católicos e não-católicos.

É um precedente grave, perigoso e muito retrógrado. Um dos artigos, o que determina que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com a Igreja, por exemplo, é tema da Justiça trabalhista. Uma denominação religiosa não pode estar acima da Lei de um país. É o Estado que deve decidir – e não uma das partes interessadas. E ainda não há Jurisprudência unânime sobre esse tema. Outro artigo, o do casamento, abriria espaço para que a Justiça brasileira seja obrigada a aceitar sentenças de anulação matrimonial do Vaticano.

Você acha que, no Brasil do início do terceiro milênio, isso faz algum remoto sentido? Para que fique claro: sou agnóstica, meus pais são católicos praticantes, tenho excelentes amigos católicos, espíritas, budistas, judeus, muçulmanos, umbandistas, do candomblé, do batuque e também ateus. É essa a maravilha do Estado laico: o exercício da tolerância e do respeito à escolha do outro. Respeito profundamente a religião de meus pais e as dos meus amigos – e eles respeitam profundamente a minha escolha de não aderir a nenhuma confissão religiosa. Somos todos cidadãos que respeitamos as escolhas uns dos outros e convivemos em paz.

O Estado laico é exatamente isso: ele garante que ninguém será perseguido ou discriminado por sua crença. Muito diferente dos Estados teocráticos que conhecemos, por exemplo. Eu não quero a ingerência da Igreja Católica – e de nenhuma outra crença religiosa – no Estado que me representa. A supremacia de um credo em detrimento do outro é sempre fonte de intolerância e de desrespeito. Contraria todos os nossos mais caros princípios de igualdade de escolhas.

Acho uma boa ideia conhecer a fundo esse acordo para exercer a nossa cidadania, nos posicionarmos como cidadãos de um Estado laico e democrático. Se a concordata for aprovada, vai afetar a nossa vida. E poderá abrir espaço para mais mudanças que não queremos e não precisamos.

A França discute hoje se deve permitir que muçulmanas usem burca nos espaços públicos. Até mesmo os Estados Unidos, de longe o país mais religioso do Ocidente, proibiu um monumento dos Dez Mandamentos em dois tribunais – e manteve em um terceiro, porque estava ao lado de outras obras de arte.

No Brasil, a discussão da legitimidade dos crucifixos em repartições públicas chega com mais de um século de atraso. Na França, eles foram retirados em 1880. Minha sugestão é que, enquanto não há uma decisão sobre os ícones católicos na esfera pública, todas as religiões peçam isonomia, com base no princípio constitucional que não permite que se faça diferença entre os cidadãos por sua crença religiosa.

Enquanto o bom senso não prevalecer, sugiro a instalação da imagem de Xangô ao lado do crucifixo, a representação do Buda, um retrato de Alan Kardec etc. E um espaço em branco para aquelas religiões que não usam imagens e também para nós, agnósticos e ateus. Pelo menos o senso de Justiça, nesse caso específico, prevaleceria no Supremo Tribunal Federal. E a ingerência religiosa no espaço público daquele que se define na Constituição como um Estado laico se tornaria clara.

Temos, porém, um desafio mais urgente. Como cidadãos, precisamos nos posicionar e pressionar os parlamentares que legitimamos com nosso voto a recusar esse acordo tão flagrantemente inconstitucional. Devemos caminhar cada vez mais em direção à tolerância das diferenças – e não para reforçar privilégios de uns em detrimento de outros. Queremos ser mais igualitários – e não elitistas.

Para botar mais algumas pulgas em todos os lugares do seu corpo – especialmente no cérebro –, rememore o que o Papa Pio X (1903-1914) disse sobre o Estado laico, na encíclica Vehementer nos: “tese absolutamente falsa”, “erro perniciosíssimo”, “em alto grau injurioso para com Deus”. Você pode argumentar que a encíclica tem mais de um século. É verdade. Só que nunca foi revista ou revogada. Ou seja, é exatamente o que o Vaticano e o atual Papa Bento XVI, que representam um dos dois lados do acordo, acreditam.

Quem faz o país somos nós – seja pelas nossas boas ou pelas nossas más escolhas. É só assumindo nossa responsabilidade e exercendo a cidadania que nos tornamos capazes de barrar abusos e conquistar um Brasil mais justo. Essa é uma boa hora para lembrar disso.

(Publicado na Revista Época em 17/08/2009)

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