Uma família no governo Lula

Durante nove anos, a família Costa Pereira, da periferia de São Paulo, deixou a pobreza para ingressar na “nova classe média”. Sua trajetória nos ajuda a compreender os avanços e as contradições do Brasil durante o período

NA SALA COM A CLASSE C No governo Lula, a família Costa Pereira descobriu como é bom consumir. A TV de tela plana é a estrela da casa, seguida de perto pelo computador e pelo PlayStation 3. No centro, Estela e Hustene, de camisa do Corinthians; Rodrigo, em pé, com a filha Gabriely; Diego e Jade agachados, na frente; Amanda com a filha Rafaela no colo (FOTOS:  Lilo Clareto)

NA SALA COM A CLASSE C
No governo Lula, a família Costa Pereira descobriu como é bom consumir. A TV de tela plana é a estrela da casa, seguida de perto pelo computador e pelo PlayStation 3. No centro, Estela e Hustene, de camisa do Corinthians; Rodrigo, em pé, com a filha Gabriely; Diego e Jade agachados, na frente; Amanda com a filha Rafaela no colo (FOTOS: Lilo Clareto)

Os pilares da sua vida cabiam em três quadros na parede da sala. Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. Futebol, religião e ideologia. Era essa a trindade que sustentava Hustene Pereira no início do ano de 2002. No começo de 2011, a conformação é outra. Che Guevara foi banido da sala. Sua cara barbuda foi trocada por uma paisagem. Nossa Senhora de Fátima mora agora numa parede lateral. Não porque a religião tenha perdido importância, mas por uma decisão estética da família. Em seu lugar, há um anjo comprado como lembrança de viagem pelo filho caçula. Ao longo do governo Lula, a parede principal foi sendo tomada por símbolos ligados à classe média. Apenas o Corinthians permanece – irredutível.

A mudança dos símbolos na parede conta a trajetória da família Costa Pereira no governo Lula. E a família Costa Pereira nos ajuda a compreender a complexidade do Brasil nesse período. Na companhia de cerca de 30 milhões de brasileiros, ela deixou a pobreza e ingressou na grande novidade socioeconômica da história recente do país, objeto de estudo de sociólogos e economistas e também de publicitários e marqueteiros: a classe C. “Agora nós somos da nova classe média!”, diz Hustene. Surpreso, mas também orgulhoso. Segundo a Fundação Getulio Vargas, há hoje 95 milhões de brasileiros com renda familiar entre R$ 1.126 e R$ 4.854 por mês. Pela primeira vez, a classe C é maioria no país. Sozinha, pode eleger um presidente.

No geral, a família Costa Pereira representa essa fatia da população que mudou de classe nos últimos anos. No particular, só representa a si mesma. Em sua casa na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, Che Guevara foi perdendo espaço na medida em que a família ampliou seu acesso aos bens de consumo. Hoje, a classe C lidera os gastos com eletrodomésticos e eletrônicos no país. A família Costa Pereira faz sua parte: desembolsa R$ 653 por mês no pagamento de prestações. Hustene bem que resistiu ao desterro de Che, mas a mulher, Estela Costa, e os filhos não queriam mais saber de um “guerrilheiro” na parede da sala. “A gente queria algo mais relaxante”, diz Estela. Como os milhões de brasileiros que fizeram a mesma transição nos últimos anos, os integrantes da família Costa Pereira descobriram com um presidente operário que o capitalismo pode ser bom.

No início de 2002, Hustene foi o personagem central de uma reportagem cujo título era “O Homem-Estatística”. Desde então, tenho acompanhado a trajetória de sua família ao longo dos últimos nove anos. Quando o conheci, ele encarnava os números de um momento difícil para o Brasil. Apesar do controle da inflação, o desemprego tinha grande impacto entre os brasileiros urbanos da periferia das grandes cidades. Filas de centenas de pessoas se formavam para uma vaga em geral abaixo de suas qualificações. O tempo de procura por trabalho aumentara, assim como a informalidade. A renda e os benefícios de quem tinha um emprego encolheram.

Hustene era um dos brasileiros que sentiam o chão tremer debaixo do único par de sapatos, sem encontrar sentido nas explicações dos economistas. Em 2002, descobriu que era um dos “excluídos” – termo repetido à exaustão nos discursos, na imprensa e nas ruas na virada do milênio. Vale a pena lembrar a evolução da terminologia na história recente do país. Houve os “descamisados” de Fernando Collor de Mello, no início dos 90. Depois os “excluídos”, com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. E hoje, ainda que continuemos a falar nos mais pobres, o termo que se popularizou no período de Luiz Inácio Lula da Silva é a classe C ou “nova classe média”.

Em fevereiro de 2002, Hustene completara quatro meses de desemprego. Desde que havia começado a trabalhar, aos 14 anos, pela primeira vez percebia que não conseguiria um novo posto tão cedo. Qual era sua história até aquele momento? Nos anos 60, migrara com o pai e o avô do Rio Grande do Norte para São Paulo, numa trajetória semelhante à de Lula em muitos aspectos. O pai tinha sido metalúrgico no ABC paulista, com Lula na liderança do sindicato. Hustene havia estudado até a 7a série, mais do que o pai. Deixara o chão de fábrica para trabalhar no escritório da indústria. Até perder o emprego, era o Pereira com menos calos nas mãos.

Encontrei Hustene no momento da queda. Aquele instante em que um homem sente as unhas escorregando da borda do abismo. Percebe que não vai conseguir trabalho tão cedo, as contas se acumulam, o essencial é cortado. O projeto familiar começou a ruir quando os filhos mais velhos transferiram a escola para o período noturno para pegar bicos durante o dia. Hustene, nas palavras dele, se sentia “traí¬do” pelo país. Ao mesmo tempo, sentia que traía os filhos ao se tornar incapaz de cumprir sua parte no pacto familiar.

A família de Hustene sentia falta não do feijão – mas do “danoninho, das bolachas recheadas, das fraldas descartáveis”. Das pequenas conquistas de consumo a que tiveram acesso quando Hustene estava empregado. Eles não encarnavam as páginas de Graciliano Ramos, como seus antepassados que fugiram da seca, mas uma literatura que ainda estava por ser escrita, a dos filhos do desemprego urbano e industrial. Hustene, que até então se orgulhara de sua datilografia e escrituração fiscal, deparava com a exigência de informática. Nem ele nem os filhos conheciam computador. Hustene assim expressava seu sentimento de exclusão: “Quero que um disco voador venha me tirar daqui”.

A TROCA DOS SÍMBOLOS Em 2003, na foto da esquerda, Hustene Pereira era sustentado por uma trindade: Corinthians, Che Guevara e Nossa Senhora de Fátima. Futebol, ideologia e religião. Com a mudança de classe, Che foi trocado por uma paisagem e Nossa Senhora de Fátima por um anjo. Apenas o Corinthians resiste

A TROCA DOS SÍMBOLOS
Em 2003, na foto da esquerda, Hustene Pereira era sustentado por uma trindade: Corinthians, Che Guevara e Nossa Senhora de Fátima. Futebol, ideologia e religião. Com a mudança de classe, Che foi trocado por uma paisagem e Nossa Senhora de Fátima por um anjo. Apenas o Corinthians resiste

Naquele período, Hustene perdeu 30 dos 32 dentes da boca. Um após o outro. “Olha, Estela, caiu mais um”, dizia para a mulher ao acordar pela manhã e descobrir-se num pesadelo recorrente. Logo cedo, enfiava sua melhor camisa, seu sapato “social” e partia em busca de uma vaga – a pé, porque não tinha dinheiro para o ônibus. Voltava de cabeça baixa, ombros caídos. Em casa, se escondia. Tinha vergonha de que os vizinhos o vissem durante o dia. “Vão pensar que sou vagabundo.” À noite, debruçava-se sobre o terraço inconcluso, até o primeiro trabalhador passar a caminho do ponto de ônibus. Então, voltava a se esconder, vítima de um tipo novo de maldição.

Na campanha presidencial de 2002, Hustene raspou o fundo da alma e tirou de lá um resto de esperança. Gravou as promessas de Lula em velhas fitas VHS. Mas o primeiro ano de governo foi para ele uma decepção. Sobrevivia apenas com bicos. Diego, o filho mais novo, ajudava no sustento descarregando galões de água por R$ 15 por semana. Rodrigo, o mais velho, trabalhava como mecânico sem registro. Amanda terminava o ensino médio e procurava o primeiro emprego. Mas a exigência de experiência em todas as portas nas quais batia a lançava num limbo. Jade, a caçula, ainda era criança.Viviam em seis numa casa inacabada de sala, cozinha, quarto e banheiro, erguida num terreno deixado pelo pai de Hustene ao morrer.

Hustene identificava-se com Lula. O presidente tinha sido metalúrgico como seu pai. Era corintiano como ele. Nordestino e migrante como ambos. Por coincidência, Lula e Hustene padeceram no início do governo com uma bursite no ombro direito. Com uma diferença: a de Lula foi tratada por bons médicos – e Hustene não conseguia tratamento para a sua. O trabalho braçal só piorava a inflamação. Até hoje Hustene passa noites sem dormir por causa das dores provocadas pela bursite, mas já desistiu de encontrar alívio.

Ao final do primeiro ano de governo, em 2003, Hustene trancou-se no quarto por seis horas. Estava revisando as promessas de Lula. Escreveu uma carta de quatro páginas endereçada ao presidente. Nela, reclamou do desemprego que jogava gente como ele na margem, acusou o Fome Zero de ter atolado no marketing e sugeriu a Lula que viajasse menos para o exterior, porque os problemas do país estavam bem aqui. “Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir”, disse. Assim mesmo, despediu-se com “um forte abraço ao amigo Lula”.
Para avaliar o primeiro ano de governo, Hustene usou aquela que se tornaria a marca de Lula ao falar com o povo: uma metáfora de futebol.“Lula e o Corinthians empataram em 2003. Jogaram para não cair.” Perdoou a ambos. Perder a esperança tanto num como noutro lhe custaria mais do que poderia pagar naquele momento. Só esperava que, ao final do governo, não lhe dessem para a vida a solução que o médico do SUS deu para a bursite: “Não tem cura. Só nascendo de novo”.

Hustene só voltou a conseguir emprego em maio de 2005, no terceiro ano do governo Lula. Enquanto esteve desempregado, fez supletivo e terminou o ensino fundamental. Faltou apenas uma última prova para se formar no ensino médio. Nos três anos e sete meses de desemprego, só não perdeu a lucidez porque tinha em Estela um amor de delicadezas que sobrevivia não só à perda dos dentes, mas à de um mundo inteiro. E tinha o Corinthians. Desde 1974, Hustene monta álbuns dos vários campeonatos de que o clube participa. Toda a vida do Timão está lá, contada em recortes de jornais, frases criativas e layout próprio. Um testemunho que talvez um dia seja exibido no Museu do Corinthians, uma paixão que a vizinhança admira e acompanha. Quando Hustene foi engolido pelo desemprego, o jornaleiro não titubeou: vendeu fiado.

Naquela época, Hustene escrevia e desenhava furiosamente. Ele é um homem que se conta – e esta narrativa é parte do que s torna a história da família tão rica. Desde que fez uma promessa para salvar Diego, desenganado pelos médicos ao nascer, Hustene escreve um diário a Nossa Senhora de Fátima. Nas páginas, sua história se confunde com a do país: “As coisas estão tão difíceis (no Brasil) que não sabemos mais o que fazer. Estou ainda desempregado. Esta palavra causa medo, vergonha e incrimina qualquer pessoa do bem”.

Nos anos em que a miséria entrava pelas frestas da porta como água de enchente, aprendi com Hustene como a honestidade é dura para os mais pobres. Algumas vezes, a família ficou sem água e sem luz por falta de pagamento. Nunca fez um “gato”. Numa ocasião, Estela atravessou São Paulo até a sede do Serviço de Proteção ao Crédito apenas para corrigir seu nome. Tinha recebido uma carta na qual constava “Estelita”. Esclareceu no balcão que quem devia era ela, Estela. Quando o desespero lhe comia por dentro, Hustene levantava o queixo: “Estou desempregado, mas não fico bebendo no boteco. Não bato na mulher e nos filhos. Minha família só tem feijão para comer, mas nunca precisei visitar um filho na prisão nem vi um filho drogado”. Essas palavras o mantinham em pé. Constituíam um princípio. E faziam sentido quando todo o resto virava fumaça. Faziam sentido, mesmo quando no Natal não tiveram feijão – apenas farinha com cebola.
A forma como Hustene decodifica o Brasil é muito particular. Ele não tolera os programas sociais que dão aos mais pobres cesta básica, gás ou leite. Para ele é “esmola do governo”. Nunca cogitou se inscrever no Bolsa Família. “Um homem quer levantar de manhã, pegar um ônibus para o trabalho e pagar as suas contas. Isso é dignidade”, afirma. Os filhos seguem a mesma cartilha. Dão apoio quase incondicional a Lula, mas consideram o Bolsa Família uma “humilhação”.

Por tudo o que é, Hustene só voltou a sentir-se inteiro ao conseguir emprego. Em maio de 2005, tornou-se funcionário de uma empresa de segurança. Ocupava seu posto na recepção de uma indústria farmacêutica. Um dia chamou a atenção da direção ao atender o telefonema de um cliente americano e improvisar uma língua em que os dois se entenderam. Ganhou uma identidade: “Porteiro Pereira”. Partia às 4 horas de casa e voltava para dormir. Ganhava salário mínimo e nenhum benefício. Mas tinha algo que para ele e para os brasileiros pobres sempre foi essencial: registro na carteira de trabalho. O “Porteiro Pereira” era um homem feliz.

A VIDA COMO ELA FINALMENTE É A família mede a ascensão social pela comida. No passado, sobreviveu com refeições de arroz com limão. Hoje come carne todos os dias. Na foto maior, o almoço de domingo. Na menor, Jade estuda para o vestibular com a ajuda do computador, sob o olhar severo de Che Guevara – “um bicho feio demais”

A VIDA COMO ELA FINALMENTE É
A família mede a ascensão social pela comida. No passado, sobreviveu com refeições de arroz com limão. Hoje come carne todos os dias. Na foto maior, o almoço de domingo. Na menor, Jade estuda para o vestibular com a ajuda do computador, sob o olhar severo de Che Guevara – “um bicho feio demais”

Em 2006, último ano do primeiro mandato de Lula, Hustene continuava decepcionado com o governo. Naquele momento, revoltava-se com as denúncias de corrupção. Quando o Corinthians jogava mal, Hustene sofria, mas mantinha seu amor pelo time intacto. Na mesma lógica, conseguia perdoar um governo Lula aquém de seus sonhos, mas o “mensalão” travava em sua garganta. Pensou em anular o voto no primeiro turno. Acabou decidindo dar mais uma chance a Lula. Naquela época como hoje, Hustene atribui as falhas do governo aos assessores – nunca ao presidente. Até o final do segundo mandato, ele só não conseguiu encontrar justificativas para os abraços de Lula em José Sarney e Fernando Collor.

Hustene votou em Lula no primeiro turno. E teria ajudado a reelegê-lo, não fosse ter sofrido um derrame por falta de assistência médica. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2006, Hustene sentiu-se mal, sua pressão arterial subiu. Estava exaurido por uma jornada diária de 12 horas, sem folgas, nos 70 dias anteriores. No posto de saúde, o médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes. Despachou-o para casa. Ao chegar, Hustene sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Perdeu os movimentos do lado esquerdo do corpo. Só voltaria a andar em 2008.

Nunca mais pôde trabalhar. Seu quadro se agravou pela deficiência da rede pública de saúde. Em 2009, Hustene teve um segundo derrame. Neste, apagou-se nele o dom do desenho. Desde então, cada incursão ao médico é uma experiência de degradação. Hustene espera em média seis meses por uma consulta. Quando chega sua vez, é atendido em minutos. O médico pede que faça exames. Ele leva mais seis meses para conseguir realizá-los, fechando o ciclo de um ano. Quando tem nova consulta, outros seis meses depois, os exames estão defasados, e o ciclo recomeça. Enquanto isso, recebe o auxílio-doença e vai tomando os remédios de sempre.

Nas últimas eleições, Estela conseguiu medicamentos em falta na rede pública graças a um candidato que fez do comitê uma farmácia para eleitores desesperados. Perguntei se votariam naquele deputado nas eleições. Estela respondeu: “Claro que não!”. Hustene passou dias pesquisando na internet para escolher seus candidatos. Votou pelo projeto. Os escolhidos pertenciam a quatro partidos diferentes.
Em 2009, Hustene descobriu que tinha uma doença grave e degenerativa nos olhos. Precisava fazer exames para avaliar a progressão e definir o tratamento. Ao comparecer à consulta, a médica estava de férias e não havia substituto. Quando finalmente foi atendido, um mês mais tarde, ela disse que estava curado. Ele não se sente curado – e a doença não é do tipo que se cura sozinha. Não sabe o que fazer, então reza. Espera o ano começar para tentar uma nova avaliação.

Hustene já perdeu muito – e não alcança como viverá sem seus olhos. Como poderá inventar uma vida sem ver os lances do Corinthians, contar suas pequenas aventuras no diário a Nossa Senhora ou apenas olhar dentro dos olhos de Estela e ter certeza de que existe. Um dia me perguntou como poderia fazer para aprender braile. Há anos Hustene vem pagando a deficiência do SUS com nacos do seu corpo. Tem 51 anos.

Para Hustene, a saúde pública era ruim antes. E atravessou o governo Lula ruim. Mesmo assim, Hustene, Estela e os quatro filhos votaram na candidata de Lula. Eles não conheciam Dilma Rousseff e não simpatizaram com o que viram dela nos debates e na propaganda eleitoral. Acreditavam que, por ter sido guerrilheira na ditadura, ela poderia ter problemas para representar o Brasil no exterior. Perguntei a Hustene por que, então, votaram em Dilma. Ele respondeu: “Porque Lula indicou”.

Era claramente um voto pragmático. Votaram em Dilma por concluir que sua vida no governo Lula melhorou. E queriam que continuasse melhorando. Têm números para justificar seu voto. Fazem contas. E as contas da família Costa Pereira são simples: em janeiro de 2003, depois de dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a renda familiar girava em torno de R$ 700 por mês, em geral menos, às vezes mais; em janeiro de 2011, depois de oito anos do governo Lula, a renda familiar será de quase R$ 4 mil, mais alta que na época da eleição. Em dezembro, um dos filhos foi promovido, e o outro conseguiu um emprego melhor.

Estela, que nos tempos da pobreza às vezes só botava na mesa arroz com limão, explica o que significa o aumento de renda: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E, pela primeira vez, a gente come bem”. Pode parecer pouco para quem nunca passou fome. Mas é enorme para quem já passou. No final de cada mês, Estela peregrina pelos supermercados da região em busca das melhores promoções. Nunca compra tudo de que precisa num só. Compra vários tipos de carne, o suficiente para encher o congelador da nova geladeira dúplex. Estela não tem dinheiro para picanha ou filé, mas sua família agora come carne todo dia. Em setembro de 2010, ela encontrou uma promoção de camarão e serviu um almoço de domingo especial. Como nunca havia preparado camarão, descobriu que o quilo encolhia depois de tirar a casca só na hora de preparar o prato. Encontrar um camarão no arroz virou uma gincana. Mas a família Costa Pereira comeu camarão naquele domingo.

NOVOS ENREDOS Entre as mudanças, a família fala da possibilidade de sonhar depois de uma vida limitada à sobrevivência. Na foto maior, Estela e Gabriely no supermercado; acima, Diego no horário de almoço do trabalho no condomínio de Alphaville; à esquerda, Amanda na universidade privada onde termina o curso de enfermagem

NOVOS ENREDOS
Entre as mudanças, a família fala da possibilidade de sonhar depois de uma vida limitada à sobrevivência. Na foto maior, Estela e Gabriely no supermercado; acima, Diego no horário de almoço do trabalho no condomínio de Alphaville; à esquerda, Amanda na universidade privada onde termina o curso de enfermagem

Acima da Bíblia e de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, os armários da cozinha estão lotados de produtos industrializados. Enquanto os mais ricos buscam artigos naturais e orgânicos e defendem o consumo consciente, preocupados com as taxas de colesterol e com o meio ambiente, famílias como a de Hustene e Estela pela primeira vez têm acesso amplo às prateleiras. E o que querem é consumir o máximo possível. Não porque não se preocupem com o meio ambiente, mas porque só agora podem consumir. Quando Hustene aponta as melhorias de seu bairro na periferia, ele diz: “Veja como melhorou! Agora temos banco e supermercado.

A estrela da casa é uma TV de tela plana de 42 polegadas. Desde sempre, o lazer da família esteve ligado à televisão. Mas agora chega por meio de um aparelho novo, grande e moderno. E não mais pelos canais da TV aberta. A maior parte da programação é buscada nos canais pagos da TV por assinatura. Há ainda um equipamento de DVD e um videogame de última geração. Nessa nova configuração, Estela e os filhos consideraram Che Guevara “um bicho feio demais para ficar na sala”. Hustene resistiu, mas era um exército de um homem só. Che foi substituído por uma paisagem comprada especificamente para a decoração. Outro personagem simbólico entrou na vida da família. “Eu não gostava deste tal de Noel porque nunca ganhei presente”, diz Hustene. Este foi o terceiro Natal consecutivo com pinheirinho na sala.
O velho Che só deixou o exílio em dezembro. Teve uma ajuda providencial do jogo do bicho. Hustene aposta toda semana na águia e, só neste ano, ganhou mais de R$ 5 mil. O dinheiro foi aplicado na reforma da casa, que agora é chamada de “Complexo do Pankinha” – o apelido de Hustene. “Dinheiro que não é abençoado tem de gastar logo porque voa da mão”, diz Estela. Uma das reformas transformou o corredor onde Estela antes lavava roupa à mão num pequeno escritório – agora que ela tem máquina de lavar roupa. No final de 2010, o escritório ganhou mesa e prateleiras feitas sob medida. Hustene pediu para botar o quadro do Che na parede. “Como você deixou, mãe?”, perguntaram os filhos. “Negociei com seu pai. Em troca, ele vai me dar uma moldura nova para o quadro de fotos.”

Hustene deu um novo lugar a Che Guevara: passado, não mais presente. Che está junto aos livros e álbuns, virou história. “Hoje minha ideologia é a família”, diz. Antes, ele costumava escrever ao revolucionário sobre os acontecimentos no Brasil. Che era seu interlocutor político, assim como Nossa Senhora de Fátima era a ouvinte do cotidiano. Hustene parou de escrever a ele em agosto de 2004. Retornou em 3 de outubro de 2010, logo após o primeiro turno das eleições. Seria interessante saber o que Che pensaria da última carta de Hustene se estivesse vivo: “No primeiro governo tive decepções. Veio o segundo mandato e as coisas melhoraram para a nossa classe. Melhor ainda, camarada, subimos de classe. O poder aquisitivo melhorou, passamos a consumir mais. Hoje tenho filha na faculdade, adquiri computador, TV 42 LG, geladeira dúplex, é mole? E até Play 3”.

O escritório é a conquista mais significativa da família, para além das necessidades básicas e do consumo de eletrodomésticos e eletrônicos. Hustene chorou quando ficou pronto. É lá que está o computador conectado 24 horas à internet. Estela busca receitas de cozinha, Hustene procura o noticiário, Jade estuda para o vestibular, todos usam e-mails. Até a neta Gabriely, de 10 anos, participa de redes sociais. É também lá que está o aparelho de som no qual Hustene ouve sua nova coleção de CDs de Chico Buarque. Lá estão também escritores como Dan Brown e best-sellers como A cabana e O vendedor de sonhos. Antes, todos ficavam na cozinha com Estela. Agora se dividem pela sala, pelo escritório e pelo terraço concluído. É nesse amplo terraço, pavimentado com lajotas nas cores do Corinthians, que Hustene faz questão de aparecer.

O aumento da renda da família no governo Lula foi determinado pelo crescimento do salário mínimo e pela mudança na qualidade do emprego – de bicos no mercado informal ao registro na carteira. Diego e Rodrigo já não dependem do SUS. Têm plano privado de saúde como benefício das empresas onde trabalham. Diego, de 23 anos, acaba de ser promovido a chefe de estoque de uma multinacional. Trancou duas vezes a faculdade – a primeira, por falta de dinheiro para pagar a mensalidade; a segunda, por causa do horário do trabalho. Em 2011, a empresa vai pagar curso de inglês aos sábados para que ele possa fazer um estágio nos Estados Unidos. Sempre que sobra algum dinheiro, Diego investe em literatura. Quando o conheci, era um menino de olhos tristes que descarregava caminhões para ajudar a família e sonhava em ser arqueólogo. Diego ainda sonha.

Rodrigo, de 28 anos, conseguiu em dezembro um posto de mecânico numa grande concessionária de automóveis. É a primeira vez que trabalha numa empresa com benefícios. Jade, de 18, deixou o emprego de balconista numa loja para estudar para o vestibular de fisioterapia. Hustene e Estela concluíram que valia mais a pena para ela se concentrar nos estudos neste momento – um luxo impensável até bem poucos anos atrás. “Hoje”, diz Jade, “eu tenho até tênis Nike.” Gabriely, filha de Rodrigo com uma ex-namorada, é criada pela família. Nas proximidades do Natal, pedia à avó que comprasse uma caixa de bombons para o “amigo de chocolate” na escola pública onde estuda. Nenhum drama. Havia dinheiro para os bombons.

Em 2011, Amanda se tornará a primeira Costa Pereira da história, pela linhagem da mãe e pela do pai, a se formar na universidade. Aos 26 anos, tem sua própria família e renda. Ela apenas estuda. É seu marido quem paga curso superior para ambos com o salário de dois trabalhos. A filha Rafaela, de 5 anos, também estuda em escola particular. O marido de Amanda quer se formar para fazer concurso público. Ela será enfermeira. A nova família tem plano de saúde privado, um carro e uma moto e acaba de pegar as chaves do apartamento próprio. “Antes eu não tinha planos nem sonhos. Queria simplesmente ter um emprego e ajudar em casa”, diz Amanda. “Hoje tenho os melhores sonhos para minha família, como dar uma boa educação para a minha filha.”
Com exceção de Rodrigo, que parou de estudar no ensino fundamental, todos os filhos superaram Hustene em anos de estudo. Ele segue, porém, como referência da família. Apesar de ter ficado menos tempo na escola, recebeu um ensino de mais qualidade. É ele quem escreve melhor. Ao fiscalizar as tarefas escolares da neta, fica triste com a baixa qualidade do ensino público. Sofre também ao pensar que nenhum dos filhos chegará às melhores universidades de São Paulo. “Elas são para quem estudou em colégio particular, para os mais ricos”, diz. Mesmo assim, quando Hustene conta que Amanda está na universidade – e ele não perde nenhuma oportunidade de tocar no assunto na vizinhança –, fica parecido com um chéster de tanto estufar o peito. Adora pronunciar a mesma frase: “Minha filha está na universidade”. Gosta de tudo, até do som das palavras.

A família não identifica a melhoria das condições de vida com o governo Fernando Henrique Cardoso. Mesmo que a estabilidade econômica tenha sido concretizada nos dois mandatos de FHC, assim como as bases para o que veio depois, toda a transformação é atribuída a Lula. Nos dois mandatos de FHC a situação era difícil, no primeiro mandato de Lula também, no segundo a vida mudou para melhor. Mais, inclusive, do que pensaram que poderia mudar. Hustene não perdoa uma coisa em particular: no governo de FHC se afirmava que “o Brasil quebraria se tivesse um aumento de salário mínimo”. A família Costa Pereira gosta de olhar as fotos no painel da sala em que todos estão bem magrinhos. “Olha nós no governo FHC.” Hoje, engordaram. “Até a Pantera”, dizem. A cadelinha vira-lata come ração e bife.

Quando assistia ao noticiário em que Lula aparecia no exterior, com outros chefes de Estado, com reis e rainhas, Hustene chorava diante da TV. Perguntei a ele por que, se todos os presidentes anteriores também foram recebidos nas cortes. Com olhos de garoa, Hustene Pereira afirmou: “Mas não era eu. Agora, sou eu que estou lá”. Mesmo que em Dilma Rousseff ele “confie desconfiando”, Hustene acredita que, de alguma forma, ainda estará lá.

(Publicado na Revista Época em 03/01/2011)

 

A história dentro da história

Eliane Brum conta como acompanhou a família Costa Pereira ao longo de todo o governo Lula

Quando propus a ÉPOCA contar a trajetória da família Costa Pereira, do final do governo Fernando Henrique Cardoso ao final do governo Lula, algumas pessoas da redação ficaram intrigadas com este testemunho de nove anos. Apresentei duas vezes, oralmente, a história desta família no exterior, em eventos sobre o Brasil em Ferrara (Itália) e em Madri (Espanha), e a curiosidade se repetiu. Jornalistas estrangeiros me perguntavam se eu continuaria acompanhando os Costas Pereiras no governo de Dilma Rousseff. Sim, claro que sim, eu respondia. Mas não exatamente pelas razões que eles supunham. Penso que preciso explicar como esta reportagem aconteceu – a história dentro da história.
Na virada de 2001 para 2002, eu fui incumbida de encontrar um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro. Eu buscava um homem no instante da queda para contar um momento histórico específico do Brasil.

Tentei vários caminhos, como as listas dos cadastros de benefícios da prefeitura e do Estado de São Paulo. Consumi alguns dias perambulando pelas periferias sem encontrar o que procurava. Desempregados e pobres havia muitos. Mas eu buscava um momento muito específico, entre o final do seguro-desemprego e o início da percepção de que o controle da vida escapava pelo vão dos dedos. E buscava um homem capaz de dimensionar sua perda. Depois de alguns dias atravessando a Grande São Paulo de várias maneiras, num carro sem ar-condicionado e no auge do verão paulistano, o motorista perguntou: “Afinal, o que exatamente você procura?”. Eu esmiucei em detalhes. “Ah!”, disse ele. “Você procura o meu vizinho!”

E ele tinha toda razão. Como em geral têm os bons motoristas de imprensa – hoje infelizmente quase extintos, com a terceirização do serviço. No momento em que fui apresentada a Hustene Alves Pereira, no Jardim Veloso, na periferia de Osasco, eu soube de imediato que era ele. Seus olhos queimavam no quarto mês de desemprego. Ele era um homem vivo – com medo de ser esmagado pelo Brasil e pelo discurso da exclusão.
Nos reconhecemos ali. Tenho convicção de que toda reportagem é um encontro entre personagem e jornalista. Só acontece quando este encontro é de verdade. Para isso, é preciso existir um movimento de entrega de ambas as partes: eu me abro para ouvir a sua história sem preconceitos e você se abre para contá-la com tudo o que ela é, o feio e o bonito. Com Hustene e sua família foi assim.

Passamos dias juntos, Hustene e eu, vencendo quilômetros em busca de emprego, a pé porque ele não tinha dinheiro para o ônibus. Nestas longas caminhadas Hustene me contava da angústia do seu presente, dos sonhos de seu passado e do futuro que não mais enxergava. Testemunhei do meu canto a delicadeza com que sua mulher, Estela Costa, tecia com o que lhe restava de linha não só tapetes para vender, mas uma rede para que sua família não se afogasse. Seus quatro filhos, alguns com mais intimidade do que outros, me falavam de seus anseios. E às vezes eu apenas ficava ali, observando sem nada dizer.
Repartiam comigo também o seu feijão com arroz. Algumas pessoas, ao saber que eu comia em sua mesa, ficavam indignadas porque o que eles tinham já era tão escasso. Este é um tipo de conclusão de quem pouco entende de gente e pouco pisou em favelas e periferias. Nada seria mais ofensivo para Hustene e Estela do que minha recusa em compartilhar o que tinham – mesmo que fosse quase nada. E eu nem cogitei tal desfeita.

A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. É neste momento que começa o capítulo mais surpreendente da história dentro da história.

Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.

Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou narrando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Ele, por sua vez, passou a acompanhar a minha vida de repórter. Assim que a situação financeira melhorou um pouco, em meados da primeira década deste século XXI, Hustene assinou a ÉPOCA para poder ler e recortar minhas reportagens. Meus livros também estão na prateleira do seu novo escritório, figuras humildes entre vistosos best-sellers.

Seguidamente sou mencionada em seus diários – ele não esquece jamais nem o dia do jornalista nem o dia do escritor. E há uma foto minha perto de Nossa Senhora de Fátima para me proteger do risco de algumas reportagens. Especialmente se viajo a trabalho de avião, uma criatura alada da qual Hustene tem pavor. Cada vez que descobre que vou embarcar em algum, ele reza.

Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.

Hustene e sua família seguiram fazendo a narrativa da sua vida. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por email. Hustene escreve muito – e escreve com verdade. Sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de emails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua existência tantas vezes por um fio escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim concede o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura. Sou o olhar externo – de dentro.

Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora. Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.

O que eu mais gosto na vida é escutar, ler e escrever. Acompanhei a história da família Costa Pereira sem nenhum propósito de publicá-la. Mas sempre guardei tudo o que Hustene me enviou por escrito por aquele amor que a gente tem pelo testemunho histórico. E, no meu caso, porque tenho especial apreço pela grandeza das vidas supostamente – e só supostamente – comuns. Fiz apenas mais uma pequena reportagem sobre a interpretação de Hustene do primeiro ano do governo Lula, já que ele gravara todas as promessas de campanha e escrevera uma carta “ao amigo presidente”, e contei seu sofrimento em minha coluna no site da revista quando os peritos do INSS fizeram greve e ele ficou sem benefício, como milhares de brasileiros.

Só em 2010 percebi que tinha algo precioso e inédito nas mãos: a trajetória de uma família no governo Lula, a ascensão da pobreza à “nova classe média” contada pelo particular, um retrato íntimo e privado dos personagens mais importantes deste momento histórico. Pedi então licença para contar sua história e fiz várias entrevistas com todos os membros da família. Posso afirmar que só compreendi grande parte do significado, das nuances e das contradições do governo Lula quando pude enxergá-lo pelos olhos da família Costa Pereira. Espero que tenha conseguido transmitir este olhar aos leitores na reportagem publicada nesta primeira edição de 2011, logo após a posse de Dilma Rousseff – e da despedida (oficial) de Lula.

Como foi possível testemunhar a história da família Costa Pereira nos últimos nove anos? Porque Hustene Alves Pereira é um personagem que escolheu seu autor. E, para minha sorte, este autor sou eu.

(Publicado na Revista Época em 29/12/2010)

O novo, o velho e o antigo

Estudioso de Chico Buarque lança um olhar provocador sobre o Brasil e suas circunstâncias

Antes de o italiano Luca Bacchini descobrir o Brasil, foi o Brasil que aportou na sua alma em notas de samba. O Novo Mundo navegava na vitrola da casa da família na Roma da sua infância em discos de vinil que o pai ganhava de um piloto da Alitalia. Ao observar a euforia dos adultos, forjando em língua desconhecida uma versão mais viva de si mesmos nos carnavais improvisados que o pai organizava, Luca capturou o Brasil como uma visão particular de paraíso. Muitos anos depois desse primeiro contato, ele se tornaria um estudioso da obra musical e literária de Chico Buarque. Um “chicólogo”, como ele diz. E uma espécie de romano-carioca que corre sobre as pedras milenares da Via Ápia enquanto planeja sua próxima passagem pela Marquês de Sapucaí.

Convidei Luca Bacchini a refletir nesta coluna sobre seus passos entre dois mundos. A vida cotidiana em Roma, talvez a cidade do planeta onde é possível apalpar como em nenhuma outra o peso do passado no presente. Onde nossos pés pisam sem deixar marcas em pedras que foram assentadas ali antes de Cristo e ali estarão muito depois do nosso fim. E a apreensão da vida nesse país do futuro que é o Brasil, eternamente jovem em sua espera pelo dia seguinte.

Nesta entrevista, Luca Bacchini nos ajuda a pensar sobre o antigo, o velho e o novo. Sobre o Brasil e suas representações. Sobre Chico Buarque e a reinvenção da língua. Professor contratado de literatura brasileira e portuguesa do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade ‘La Sapienza’ de Roma, ele também é crítico literário e tradutor de livros, artigos e reportagens. Já publicou vários ensaios em coletâneas e revistas especializadas sobre a literatura e a música brasileira, especialmente sobre Chico, Tom Jobim e João Gilberto. Dedica-se nesse momento a escrever um livro sobre o romance Budapeste, de Chico Buarque. É também conhecido em alguns meios como “Luca do agogô”. Mas este é um personagem que só se manifesta durante o Carnaval no Rio de Janeiro.

Acompanhe.

Quis fazer esta entrevista ao ouvir você falar sobre a convivência entre o velho e o antigo na sua cidade, Roma. Essa lembrança constante de que as pedras sobrevivem a nós. De que somos frágeis e somos passagem. Qual é a diferença entre o velho e o antigo, para você? E como isso repercute no homem que você é?

Luca Bacchini – Uma cidade como Roma, que é chamada de “cidade eterna”, inevitavelmente implica uma relação problemática com seus habitantes, que são mortais. Dispondo de um tempo ilimitado, a cidade levará sempre uma posição de vantagem com relação a nós, que contamos com um tempo limitado. A gente aqui convive com as ruínas. A antiguidade é um período afastado e remoto, mas que persiste obstinadamente no nosso presente. O antigo é fascinante, não necessariamente belo, mas automaticamente impõe respeito. O velho já é ligado ao conceito de decadência, de enfraquecimento, de declínio de algo que era jovem, talvez bonito, e que hoje não é mais o que era antes. O antigo se mede em séculos e é o tempo “forte” das ruínas, enquanto o velho remete a um tempo “fraco”, mais humano, que inexoravelmente nos revela a caducidade das coisas. Roma é um dos lugares do mundo onde você pode perceber melhor esta diferença. O velho não se torna antigo porque não sobrevive ao tempo. É destinado à extinção, deixando apenas escombros e entulhos que irão desaparecer. Ao contrário das ruínas, que ficam para sempre. Tudo aqui se alimenta da tensão entre estas duas temporalidades antitéticas que acabam vivendo num contraste amoroso.

Como é essa convivência no cotidiano?

Luca – Roma impõe respeito, mas sem inibir. É uma cidade monumental – e não uma cidade com monumentos. A maioria das suas riquezas, artísticas e arqueológicas, não está protegida atrás de vidros blindados. Roma pretende ser usada, tocada, pisada, esculachada, sujada e continuamente re-vivida, sobretudo nas suas ruínas. No Coliseu já houve encontros de boxe e vários eventos musicais. Nas Termas de Caracalla já assisti a um show de Caetano Veloso e a uma representação daAida. Na infância, disputei peladas intermináveis no campo do Circo Massimo e hoje, duas ou três vezes por semana, corro na Appia Antica (Via Ápia). Quando termino o treino, uso as pedras da tumba dos Rabiri ou de Quinto Apuleio para fazer os alongamentos. Às vezes acontece de algum turista querer tirar uma foto e aí, tudo bem, mudo para outro sepulcro. Mas não sou profanador de tumbas. São elas que invadem a minha academia.

Você acha que este é o drama humano, também? Se vamos nos tornar velhos ou antigos, mortos esquecidos ou lembrados, permanecer além da vida? Esta é uma questão para você?

Luca – Quem dera que os homens se preocupassem em ser lembrados ou em permanecer além da vida. Seria, afinal de contas, uma preocupação nobre e profunda. Por séculos a Igreja desfrutou e alimentou essa fraqueza humana montando umbusiness incrível – basta pensar na “venda de indulgências”. Hoje, porém, estamos aflitos por exigências e necessidades muito mais práticas e imediatas. Meditar e refletir é considerado um tempo que você está subtraindo à ação. Vivemos exasperadamente a filosofia do “Carpe diem”, mas numa forma distorcida e hedonista, que tem pouco a ver com o pensamento horaciano. Acho que hoje o grande drama humano é aceitar a velhice ou, dito de outra forma, prolongar ao máximo a juventude. Daqui a 50, 70 anos a grama dos nossos cemitérios estará toda contaminada por botox e silicone.

Você acha que a morte é mais presente – ou uma presença – quando se vive numa cidade em que o passado é tão concreto e mesmo palpável?

Luca – A morte está mais presente onde há violência. Aqui na Itália não temos um contato cotidiano com a morte como no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, no Irã, na África do Sul ou nos países envolvidos em guerras. Acredito que todos os brasileiros ou a grande maioria deles têm um parente, um amigo ou um conhecido que já foi vítima ou testemunha de mortes violentas. Dentro do meu grupo de parentes, amigos e conhecidos, até hoje eu não ouvi nenhum caso de morte ou ferimento causado por criminosos ou, pior ainda, por policiais corruptos. Pelo contrário, a morte foi bem presente na geração que viveu a II Guerra Mundial. Minha avó, por exemplo, assistiu a toda a brutalidade e desumanidade da represália nazista na Itália. Ela viu famílias inteiras deportadas, homens justiçados sob os olhos dos filhos e da esposa, mulheres abusadas, partisanos torturados e massacrados. Ainda hoje ela me fala com horror do ruído das botas dos soldados alemães que ecoavam à noite pelas ruas estreitas da cidadezinha onde ela morava.

Vivendo numa cidade tão monumental, mesmo, já que em Roma o “monumental” faz sentido e não é apenas um adjetivo vazio, como é possível construir ou inventar o novo?

Luca – Morando numa cidade monumental – e na Itália há muitas – a gente tem o privilégio de frequentar cotidiamente a arte e a história. Por um lado, nós acabamos desenvolvendo uma natural sensibilidade estética. De repente é daí que vem o que no Exterior é chamado de buon gusto ou stile dos italianos. Por outro lado, criamos uma relação meio traumática com o passado que está sempre lá, materialmente presente, te olhando, te espiando e te questionando. Em termos políticos isso se traduziu numa falta total de interesse na programação do futuro e, consequentemente, na instauração de um sistema gerontocrático. Os nossos políticos são os mais velhos da Europa. Em qualquer setor da sociedade as decisões mais importantes são assumidas por pessoas com uma idade bem avançada, em vários casos até anterior àquela dos meus pais. De um certo ponto de vista as pessoas idosas são aquelas que mais se aproximam da eternidade (risos). Com certeza, o espírito do lugar não estimula a criação do novo. Morando aqui você é levado a perceber o novo numa forma prevalentemente negativa, como uma categoria transitória, provisória, com prazo marcado. Como algo que antecipa o tempo, mas que pelo tempo afinal será sempre derrubado, que inevitavelmente passará de moda e que, em breve, se tornará velho, superado, obsoleto, até desaparecer. Afinal, é tristemente normal que uma sociedade gerontocrática considere o novo como uma ameaça à ordem constituída porque ele viola no presente a hegemonia do passado. Para mim, o Brasil, com a sua vocação congênita de país do futuro, funciona como uma espécie de alternativa libertadora para equilibrar essa falta crônica de utopia.

Mas não é possível que o novo se torne antigo? Construir algo novo que permaneça, do ponto de vista arquitetônico e também imaterial?

Luca – Para responder devidamente, eu deveria ser eterno. Por enquanto, me limito a concordar com o antropólogo Marc Augé, quando diz que a nossa época não poderá produzir ruínas porque não tem mais tempo. Somos vítimas complacentes da cultura do descartável.

“O Brasil sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar o próprio passado”

Por que o Brasil seria, como você diz, uma alternativa libertadora devido à “vocação congênita de país do futuro”? Por que você sente isso a respeito do Brasil e não sente, por exemplo, por outros países da América Latina, todos eles jovens, já que os colonizadores destruíram a maior parte do que havia antes? O que é diferente aqui?

Luca – Naturalmente, a ideia do Brasil como “país do futuro” não é de minha autoria, mas há uma ilustre tradição secular atrás. Porém, acho muito difícil dar uma resposta satisfatória à sua pergunta. Explicar racionalmente e numa forma convincente os motivos dessa minha predileção me levaria a dizer banalidades ou a cair em lugares comuns, talvez correndo o risco de ofender outros povos latino-americanos. Tudo no Brasil é diferente. E com isso não quero dizer que tudo seja melhor ou pior que no resto do continente. Poderia argumentar essa diferença numa perspectiva histórica, cultural ou sociológica, mas isso não explicaria o meu sentimento pelo Brasil. Um aspecto interessante é que também a maioria dos italianos percebe essa diferença do Brasil com relação à America Latina numa forma muito clara e quase instintiva. Como resposta posso contar-lhe uma situação pela qual já passei e que acho bastante significativa. Cada vez que aqui na Itália, por motivos diferentes e nos contextos mais variados, devo explicar que sou um estudioso da cultura brasileira e que com um certa frequência viajo para o Brasil, assisto sempre à mesma reação. O interlocutor me olha com o mesmo jeito alusivo, ensopado por uma inveja mal disfarçada, saindo com comentários do tipo: “Você sabe tudo!”, “Você é o grande malandro”, “Eu não entendi nada na minha vida”, “Eu também deveria ter seguido o seu caminho”. Com meus colegas, especialistas de outras áreas da América Latina, a reação geralmente é entre a perplexidade e a interrogação: “Que interessante! Mas por que você resolveu ir até lá?”.

Qual é a sua percepção do Brasil? Ou, melhor, qual é a sua percepção do Rio de Janeiro, já que o “seu” Brasil é o Rio de Janeiro?

Luca – Eu sou a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta porque gosto demais do Rio de Janeiro e, portanto, qualquer afirmação minha seria viciada por uma parcialidade tão descarada que acabaria me deslegitimando. Como todas as pessoas apaixonadas não posso ser objetivo quando falo do objeto de amor. No Rio eu quero conscientemente ser seduzido, que é também a melhor disposição para ser iludido, eu sei disso, mas a cidade é apaixonante e não tenho como resistir. Sou um caso tão desesperador que, quando estou em Roma, até sinto falta daquele trânsito horrível que toma a Lagoa nas horas de pico, daquele cheiro forte de xixi que invade as ruas durante o Carnaval, daqueles temporais que em poucos minutos inundam a cidade paralisando tudo e daquele medo constante de poder ser continuamente assaltado. Para mim, o Rio é sobretudo um lugar de sonho encontrado quando era criança e que mais tarde descobri existir no mapa. É lá que reencontro o tempo perdido da minha infância. Portanto, esse tempo é mítico, sacro e incontestável. Nessa dimensão suspensa tenho a sensação – e a ilusão – de viver no presente um tempo eterno e, assim, no país do futuro consigo me descarregar do peso das ruínas.

Que ponte você faz entre o Brasil e a Itália, Roma e o Rio?

Luca – Até pouco tempo atrás eu tinha uma teoria para explicar o Brasil. Dizia que Roma é como o Rio, Milão como São Paulo e Nápoles como Salvador. Um dia uma amiga mineira me perguntou como ficaria se colocasse Belo Horizonte dentro dessa equação. Aí deu branco! (risos) Sendo o país do futuro, o Brasil se relaciona a um tempo que está banido na Itália. Em termos de identidade, ele tem um problema contrário ao nosso. Sofre de uma falta de ruínas nas quais fundar – e legitimar – o próprio passado. A saída foi a construção de uma identidade nacional baseada mais no espaço e na geografia que no tempo e na história. Na Itália tudo pretende ser o “mais antigo do mundo” – o teatro mais antigo, a igreja mais antiga, a universidade mais antiga, etc –, enquanto no Brasil triunfa a retórica do “maior do mundo”. Nesse gigantismo natural que não depende da presença do homem, o povo brasileiro é chamado a expressar a próprio valor. Daí vem esse ufanismo recorrente baseado nos primados de grandeza: o maior estádio, a maior hidrelétrica, o maior shopping, o maior produtor disso, o maior exportador daquilo, etc. Dentro dessa visão, o que conta é só a quantidade. E isso pode ser muito arriscado, sobretudo em termos sociais de longo prazo, porque acaba narcotizando o sentido crítico do povo, que começa a avaliar a própria existência só em termos quantitativos. Um gigante sem consciência sempre será facilmente vulnerável, como demostrou Ulisses contra Polifemo (episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses vence o ciclope Polifemo cegando seu único olho depois de embriagá-lo).

“O futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres”

Que tipo de consequência pode se esperar dessa visão de que tudo se resolverá num suposto dia seguinte?

Luca – Falando das cidades americanas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss comentou que elas vivem febrilmente uma doença crônica. São sempre jovens, sem nunca gozar de saúde. Em 1935, ele visitou São Paulo e ficou maravilhado pelas “precoces devastações do tempo”. Penso que o Brasil tem um pouco dessa imagem do jovem doente. Nesses anos em que estive no Brasil eu vi um país sempre em obras, sempre envolvido em grandiosos projetos a serem realizados no futuro e que, graças a essa esperança, conseguia cotidianamente ignorar tanto os entulhos que sobraram do fracasso dos projetos anteriores quanto a persistência de graves problemas crônicos. O que mais me chama a atenção é a capacidade que o povo tem de se acostumar com quase qualquer coisa que o presente lhe propõe: violência, injustiça, corrupção, etc. Não é aceitação nem resignação, mas é a consequência de uma fé ilimitada e incondicionada na utopia do futuro que, talvez, seja para muitos a única maneira de sobreviver.

Na política também?

Luca – Na política em geral domina a idéia de que o Brasil é um país jovem e que, assim sendo, os problemas e os erros do presente em alguma medida podem ser tolerados enquanto “pecados da juventude”. Importa apenas o futuro glorioso que está na frente. E até lá o Brasil terá sempre o álibi do novato, do emergente. O fato que o slogan “Pra frente Brasil” ainda hoje seja usado pelos políticos é muito significativo. Se o Brasil não tivesse a obrigatoriedade do voto, com certeza assistiríamos a um filme bem diferente. Atualmente, poucos países no mundo adotam esse sistema e nessa pequena lista não aparece nenhuma das grandes democracias. A companhia teatral não está mais preocupada com a qualidade da comédia quando sabe que a casa está sempre cheia.

Você se refere à ultima campanha eleitoral, que elegeu Dilma Rousseff?

Luca – Estou me referindo de forma mais geral ao funcionamento do sistema político brasileiro, isto é, aos nexos entre os mecanismos para a criação do consenso, a composição do eleitorado e os programas de governo, independentemente do time que ganhou nessa eleição ou nas anteriores. Existe um problema estrutural nas regras do jogo que nenhum dos jogadores, sejam vencedores ou perdedores, têm interesse em mudar. A Dilma é apenas uma das soluções que esse sistema corretamente admite.

Você acompanhou o governo Lula e esta última eleição? O que você viu?

Luca – Sinceramente, eu não daria muita importância ao baixo nível do debate na última campanha eleitoral. Na política o transformismo paga mais que a coerência. Nesse segundo turno, Dilma Rousseff e José Serra não teriam hesitado em lançar uma campanha feroz pela abolição do churrasco se tivesse sido decisivo o voto dos vegetarianos. A busca do consenso é sempre prioritária à perseguição do bem da nação – e isso, claro, não só no Brasil. Campanha eleitoral é aquela festa de sempre em qualquer lugar do mundo. Discurso de político aos eleitores é tão confiável quanto as promessas de um homem quando faz um pedido de casamento. No circo dos horrores da política italiana de hoje encontram-se exemplos excepcionais. Quanto ao Lula, ele foi eleito como presidente e saiu do Planalto como um grande herói do povo, atuando com sucesso na fórmula de um “populismo light”, que lhe garantiu índices de consenso extraordinários, sobretudo nas faixas de baixa renda. Acho que, afinal de contas, cada cidadão brasileiro, independentemente da orientação política e do nível social, pode estar orgulhoso de ter tido um presidente como Lula. E eu também, durante esses oito anos, enquanto estudioso e amigo do Brasil, tive o privilégio de compartilhar um pouco desse orgulho tanto na Itália quanto no Exterior. Claro, Lula cometeu muitos erros, alguns até de uma certa gravidade. Não vou negar que existem várias decisões com as quais absolutamente não concordo, sobretudo na política externa.

Como por exemplo…

Luca – Penso no flertezinho com o Irã e na tentativa de legitimá-lo internacionalmente; na defesa do Cesare Battisti e nas declarações do ministro Tarso Genro sobre a Itália; no silêncio sobre a violação dos direitos humanos em Cuba e na negação de asilo aos dois boxeadores cubanos durante os jogos panamericanos; na cooperação militar com a China e, consequentemente, na decisão de alterar o voto de condenação à China no Conselho de Direitos Humanos da ONU; na aproximação com o ditador Teodoro Obiang da Guiné Equatorial, em nome do comércio exterior e do petróleo; na distribuição de camisas da seleção brasileira aos chefes de Estado durante o G8 sediado em L’Aquila, sem entender que a celebração da vitória da Copa das Confederações naquele clima de consternação geral resultaria inoportuna e ofensiva para as vítimas do terremoto. O elenco poderia continuar também no plano da política interna, mas errar é normal para quem a cada dia deve tomar decisões para uma coletividade de quase 200 milhões de pessoas. Aliás, talvez uma grande parte dos brasileiros não dê a menor importância aos fatos que citei. Com a política externa não se ganham as eleições, ao menos que o país esteja em guerra. Apesar de tudo, acredito que o grande mérito de Lula foi o de não ter repetido muitos dos erros trágicos que seus predecessores cometeram teimosamente por décadas. E isso já foi suficiente para fazer do Brasil um país melhor.

Você se referiu algumas vezes à crença do Brasil como eterno “país do futuro”. Mas hoje começamos a ouvir, em alguns meios, que o futuro chegou. Você, que nos olha de fora mesmo quando está dentro, sente isso? Se o futuro chegou, você consegue arriscar algumas hipóteses do que muda no nosso imaginário do país e de nós mesmos?

Luca – Isso acontece ciclicamente no Brasil, com a mesma frequência com que em outros países se anuncia o fim do mundo. Vozes mais ou menos intensas de que o futuro tinha chegado já circularam durante o Estado Novo, no anos JK e na ditadura do general Médici. Não é uma novidade. Agora, boa parte do país é atravessada por uma euforia infantil devido à Copa do Mundo e às Olimpíadas. A política e a mídia alimentaram a idéia de que estes dois eventos têm o poder mágico de resolver a maioria dos problemas do país. Essa ilusão é contagiante. Um trem-bala, uma estação do metrô, um aeroporto maior e um estádio reformado são suficientes para provar que o futuro chegou? O povo deveria ser bem mais exigente. Acho que o futuro está ainda longe num país que no presente tem milhões de analfabetos e de pobres, onde um número assustador de crianças vive nas ruas ou trabalha em vez de ir à escola, onde duas das maiores empresas são a prostituição e o narcotráfico. Mas isso é papo de gringo…

“O Brasil se tornou um lugar de sonho para onde fugir”

Falando em gringo, como você descobriu o Brasil?

Luca – A minha descoberta do Brasil concide com as primeiras lembranças que guardei da infância. Meu pai tinha uma amigo, piloto da Alitalia, que era apaixonado por música. Cada vez que fazia escala no Brasil, ele trazia para nós um disco de presente ou, quando tínhamos menos sorte, ele gravava numa fita o disco que tinha comprado para ele. João Gilberto, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Jorge Ben eram algumas daquelas vozes misteriosas, vindas de um país longínquo, que meu irmão e eu ouvíamos ininterruptamente. Tínhamos a certeza de que os intérpretes daquelas músicas não eram propriamente cantores, mas nossos companheiros de brincadeiras. Outros meninos, talvez um pouco mais velhos, que de um lugar indefinido chamado “Brasil” pediam que fôssemos seus cúmplices e que escutássemos em silêncio os segredos e as histórias que vinham nos sussurrar. Apesar de eles não se dirigirem a nós em italiano, conseguíamos entendê-los igualmente, cada vez numa forma diferente – afinal, quando existe uma amizade é possível se entender mesmo sem falar o mesmo idioma. Meus pais também adoravam aquelas músicas e, de vez em quando, organizavam festas de Carnaval em casa convidando os amigos. Era tudo muito surreal, todos cantando numa língua que não entendiam. Meu irmão e eu trocávamos os discos na vitrola e ficávamos olhando os adultos enlouquecidos. Para nós era uma grande alegria porque podíamos ir dormir mais tarde.

E os convidados, o que achavam desse carnaval?

Luca – Entre os convidados, quem merecia destaque era um casal gay muito amigo da minha família que morava no mesmo prédio. Osvaldo era rico, feio, culto e mal humorado. Elio era exatamente o contrário: de origem humilde, bonito, sem cultura e sempre alto astral. Nessas festas o Elio vinha vestido de mulher e o Osvaldo de Pierrot choroso, com uma lágrima pintada no rosto. E os dois sempre brigavam por causa do Brasil! (risos) Quando ouvia um samba-enredo, o Elio ficava possuído e começava a jurar que na manhã seguinte compraria uma passagem para o Rio. E o Osvaldo ficava danado!! Nossa! (risos) O sonho do Elio era passar o Carnaval no Brasil e desfilar nas escolas. Eram cenas hilárias, com os dois gritando e berrando e todo mundo rindo até chorar. Eu não entendia porque os dois brigavam, mas a partir daí ficou aquela idéia do Brasil como uma obsessão, como um lugar de sonho para onde fugir. Lembro que uma frase recorrente do Elio era: “Um belo dia chuto o balde e fujo pro Brasil.” Ele faleceu dois anos atrás e nunca conseguiu visitar o Brasil. Até o fim da sua vida, cada vez que a gente se encontrava, ele sempre me fazia mil perguntas sobre o Rio e o Carnaval, como quem estivesse pensando em organizar uma viagem daqui a pouco. O Osvaldo já não berrava mais, mas sempre olhava muito feio para ele.

Quando você desembarcou no Brasil concreto pela primeira vez houve um choque entre imaginação e realidade?

Luca – Minha primeira vez no Brasil foi em 1999, junto com meu irmão, e foi totalmente hilária. Na época eu estava finalizando a minha tese de graduação sobre o uso das metáforas bíblicas nos cronistas do Novo Mundo e tinha ganhado uma bolsa de estudo para pesquisar na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lembro sobretudo do choque climático. Viajamos em julho, trocando o tórrido verão romano pelos trópicos, sem imaginar que nos trópicos as temperaturas não são sempre “tropicais”, no sentido estereotipado que a gente atribuía a esse adjetivo. Partimos completamente desprevenidos porque estávamos indo para um país que, pela fantasia, frequentávamos desde a infância. Na mala só tínhamos colocado bermudas, sungas, camisas de mangas curtas e protetor solar. Naquele dois meses choveu muito e fez um friozinho bastante violento. Para enfrentar a emergência tivemos de comprar roupa pesada. Às 17 horas já era escuro e isso para nós era inaceitável num país tropical! Mesmo com frio e sem entender quase nada adoramos a cidade. Não tínhamos outra opção, porque aquele lugar tinha para nós um fortíssimo valor emocional e afetivo que invalidava qualquer capacidade crítica. Voltamos para Roma com o protetor solar ainda lacrado, mas com os corações já completamente apaixonados pelo Rio.

Quantas vezes você voltou, desde então?

Luca – A partir de 1999 voltei quase todos os anos, ficando dois ou três meses. Durante o doutorado era bem legal porque dava para ficar direto, por muito mais tempo. Agora, com os compromissos da faculdade, é tudo mais complicado. No ano passado nem pude ir ao Brasil. Tenho desfilado nas escolas de samba sempre que vou e sempre em mais de uma escola. A Estácio (de Sá) é uma constante, seja no grupo especial ou no grupo de acesso. As outras se alternam: Império, Caprichosos, Mangueira, Salgueiro, União da Ilha, Porto da Pedra. Digamos que sou um “viciado do samba”: qualquer escola que oferece a possibilidade de desfilar… eu vou.

Por quê? Como é o “seu” Carnaval?

Luca – Meus primeiros carnavais cariocas foram vividos inconscientemente na minha casa, em Roma, durante a infância. Assim, passar o Carnaval no Rio tornou-se uma maneira de alimentar uma espécie de tradição de família. Os samba-enredos sempre tiveram um poder emocional muito forte para meus pais, meu irmão e eu. Quanto ao “meu” Carnaval no Rio, ele tem um dimensão plural e coletiva e, portanto, seria mais correto que eu fale do “nosso” Carnaval, aquilo que passo em companhia dos meus amigos. A cada ano chegamos ao dia do desfile absolutamente convencidos de que a nossa escola vai ganhar, mas a apuração pontualmente nos contradiz. Então, começamos a gritar que foi um escândalo, que a escola foi roubada, que chegou a hora de acabar com a nossa inglória carreira de foliões e que nunca mais iremos desfilar. Mas já em agosto, timidamente, voltamos a falar da escolha do novo enredo e dos esboços da fantasias… Nos últimos anos comecei a tocar na bateria de alguns blocos de rua. O problema inicialmente foi que eu não sabia tocar nenhum instrumento de percussão. Até fiz um cursinho para aprender o básico do tamborim. Mas, como alertava Noel Rosa, “o samba não se aprende no colégio”. Então, mudei de estratégia. Pensei que a única solução fosse escolher um instrumento pouco difundido que quase nenhum bloco tivesse. Foi assim que comecei a tocar o agogô. Ainda hoje toco mal pra caramba, mas graças à falta de concorrência sou sempre muito bem-vindo nas baterias. Aliás, o fato de ser estrangeiro às vezes ajuda. Um dia um amigo me apresentou ao diretor de um bloco de uma maneira completamente maluca: “O rapaz aqui é “Luca do agogô”. Ele é italiano, nunca desfilou com a gente, mas em Roma já tocou para o Papa em São Pedro durante a missa do galo”. O diretor me olhou emocionado e me perguntou se eu tinha conhecido pessoalmente o Bento XVI! (risos).

Se o Rio surgiu para você como um lugar mágico para onde fugir, é isso o que é, em certa medida, ainda hoje? Neste sentido, você foge do quê?

Luca – Geralmente se foge “de” um lugar e não “para” um lugar. No meu caso ficou a idéia infantil de que o Brasil é um destino que se alcança pela fuga, e não por uma simples viagem, mas sem que a partida implique escapadas ou evasões.

Você quer morar no Brasil? Como seria viver no lugar mágico de fuga? Não teme não ter mais para onde fugir?

Luca – Queria morar aí, mas sempre com uma passagem de volta para Roma na mão, como forma de preservar a magia do lugar e não renunciar à possibilidade de fugir de novo. Claro que tenho medo – e muito – de perder o meu lugar de fuga. E nem faço questão de averiguar esse risco. A experiência de quem me precedeu não foi promissora. O austríaco Stefan Zweig, cuja fama se liga principalmente ao livro Brasil, um país do futuro, foi vítima da mesma utopia que o seduziu e que contribuiu para sustentar. Para fugir do nazismo Zweig teve de enfrentar uma longa peregrinação pela Europa e pela América. Desembarcou no Brasil em 1936, quase por acaso, e foi logo amor à primeira vista. Descreveu a cidade do Rio de Janeiro como uma das impressões mais poderosas que experimentou na vida, uma mistura de fascinação e estremecimento causada pela paisagem e pelo tipo de civilização encontradas. Os destinos sucessivos foram Argentina, Portugal, França, Inglaterra, Estados Unidos, até resolver se mudar definivamente para o lugar dos seus sonhos, em 1941. Foi morar em Petrópolis, mas enquanto os meses passavam e a chance de voltar para a Europa tornava-se sempre mais improvável devido à extensão do conflito mundial, ele entrava no túnel de uma depressão progressiva. No ano seguinte, suicidou-se em pleno Carnaval, junto com a esposa. No dia anterior tinha descido ao Rio para assistir aos desfiles na Praça Onze. Será que eu estou fugindo do Berlusconi sem sabê-lo? (risos)

Quando está no Brasil, você tem saudade da Itália?

Luca – Em Roma sou capaz de rodar a cidade inteira em busca de um feijão preto importado ou de uma goiabada em lata. Eu, que quase não bebo, até cheguei a comprar cachaça só para sentir o cheiro. No Brasil revira-se o imã da saudade e começo a comprar compulsivamente macarrão. Depois de muita procura, achei até uma loja que vende uma marca importada de Nápoles. Nunca como tanto spaghetti – e faço questão da grafia italiana da palavra – como quando estou no Rio. (risos)

“Chico Buarque é um genial inovador da língua”

Por que você escolheu Chico Buarque como tema de estudo? Por que o Chico e não outro?

Luca – Estudar Chico Buarque foi uma decorrência natural do meu interesse pela literatura e pela música brasileira. Muitas músicas do Chico ficaram gravadas inconscientemente na memória sonora da minha infância. Mas não foi só a vontade de resgatar esse baú de lembranças musicais que me levou ao estudo da obra dele. Afinal, Chico Buarque não era o único artista brasileiro que a gente ouvia em casa. Minha primeira pesquisa no âmbito da literatura brasileira foi sobre os cronistas do século XVI e XVII. E daí fui me aproximando devagarinho da contemporaneidade. Para chegar ao estudo de Chico Buarque demorei bastante. E isso foi bom, porque enfrentar a obra dele não é fácil. Exige muito da gente. Para o crítico é um fascinante desafio interpretativo cheio de obstáculos e armadilhas.

Na sua opinião, qual é o significado de Chico Buarque para a cultura brasileira?

Luca – Na minha opinião, Chico Buarque representa uma das figuras imprescíndiveis da cultura brasileira contemporânea. Não é apenas um músico extraordinário, que avança idealmente no mesmo caminho iniciado por Villa-Lobos e continuado depois por Tom Jobim, mas é também um genial inovador da língua portuguesa que podemos colocar ao lado de clássicos consagrados como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Antônio Cândido definiu Chico Buarque como “uma grande consciência, inserida num enorme talento”. Cada vez que sai um novo disco ou romance do Chico, a gente se dá conta de que esta consciência e este talento têm um tamanho muito maior do que se imaginava até aquele momento. Chico é um gênio em permanente expansão e evolução e por isso não deixará nunca de nos surpreender com a sua música e com a sua literatura. O estudo da obra dele é um exercício tão prazeroso e estimulante que se tornou o objeto principal das minhas pesquisas. E, assim, virei um “chicólogo”.

Como você começou a se tornar um “chicólogo”?

Luca – Comecei a me dedicar à obra de Chico Buarque durante o doutorado em Estudos Americanos na Universidade de Roma Tre. O título da minha tese era “Francisco-Francesco. Chico Buarque de Hollanda e a Itália”. Trata-se de uma reconstrução da relação do Chico com a Itália, a partir da estadia de 1953-54 até hoje, tentando um diálogo entre a vida e a obra. Recolhi muito material inédito ou pouco conhecido na Itália e no Brasil, como fotos, gravações, recortes de jornais, correspondências, etc. Ao mesmo tempo, tive o privilégio de entrevistar várias pessoas extraordinárias, famosas ou não. Além do próprio Chico e de seus familiares, pude contar com a colaboração de Sergio Bardotti, Toquinho, Ennio Morricone, Elza Soares, Lucio Dalla, Sergio Endrigo, só para citar os mais conhecidos. Foi uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista humano antes que intelectual.

Você está escrevendo sobre o romance Budapeste. Pode contar um pouco sobre suas percepções?

Luca – A história de José Costa (personagem do livro) me ensinou que há sempre a possibilidade de plágios e roubos no mundo editorial. (risos) De repente alguém lê essa entrevista e resolve contratar um ghost writer para escrever um livro baseado nas minhas respostas. Já pensou nisso? A associação dos escritores anônimos é mais ativa do que o romance faz imaginar! (risos) E visto que ainda não assinei um contrato com uma editora, tenho que ser prudente nos adiantamentos. Em síntese, a minha pesquisa aborda o Budapeste focalizando-se no estudo do espaço, da intertextualidade e da linguagem. Trata-se de um trabalho de crítica literária que enriqueci também com as vozes das pessoas que entrevistei, inclusive aquela do próprio autor. O elemento recorrente nos vários níveis da análise proposta é a presença de um ménage à trois criativo entre o Brasil, a Hungria e a Itália. O Budapeste se tornou uma espécie de leitura obsessiva com a qual, daqui a pouco, vou celebrar seis anos de convivência. E o barato é que o livro ainda continua me surpreendendo. Por causa dele até me aproximei da cultura húngara e – ai de mim! – também um pouco do idioma, mas só o pouco suficiente para concordar com José Costa de que “o húngaro é a única língua que o diabo respeita”. Nos últimos anos já re-percorri todos os passos de José Costa no Rio e, provavelmente, na próxima primavera vou fazer uma breve viagem para Budapeste, apesar de o Chico ter escrito o romance sem visitar a cidade antes.

O quanto você se identifica com esse personagem entre duas cidades, duas línguas?

Luca – Na verdade, eu acabo me identificando com todos os personagens, até com os mais chatos, antipáticos e revoltantes. Acredito que essa tendência seja um elemento constituinte do processo de leitura. Afinal, os personagens de ficção têm a chance de sobreviver apenas graças a nós. Uma vez que fechamos um livro, eles não se extinguem, mas ficam conosco, iluminando com a própria sombra a nossa leitura do cotidiano. Com efeito, a vida de um personagem de ficção completa e complica a nossa experiência do mundo real. Cada um de nós, quando lê um livro ou escuta uma música, mergulha na história e nos sentimentos dos personagens e, daí por diante, começa a ver o próprio mundo de uma forma mais ampla, que abrange também a perspectiva deles. Esse processo de identificação acontece independentemente do sexo, da idade, do caráter ou do nível social do personagem. Graças à obra de Chico Buarque entramos em contato com uma galeria de personagens – e também de condições e sentimentos – extremamente variada. Nos tornamos íntimos de pedreiros, malandros, emigrantes, vagabundos, atrizes, sambistas, pivetes, prostitutas, favelados… E, ao mesmo tempo, assistimos a todas as possíveis declinações do amor – da paixão e da ternura até a raiva e a violência. Nessa lista, figura naturalmente também o José Costa, com a sua incapacidade de identificar-se plenamente com uma cidade, uma língua e uma cultura. No meu caso, o Budapeste oferece um acervo extraordinário de situações e cenas que recorrentemente desfruto para elaborar a percepção do que estou vivendo. Não posso negar, por exemplo, que no Rio as minhas caminhadas pela orla ficaram irremediavelmente marcadas por aquelas do José Costa. Sem que eu queira, suas palavras começam a bater na minha cabeça, misturando-se em harmonia com outras vozes e imagens que já encontrei em outros livros, músicas, filmes ou em experiências anteriores que já vivi na vida real. Os personagens de ficção têm a capacidade de nos surpreender quando menos esperamos, assim como acontece com as lembranças das pessoas que compartilharam conosco um trecho da existência.

Quando você virá ao Brasil novamente? Neste Carnaval?

Luca – Ainda não tenho uma previsão. De qualquer forma, outro dia me ligou meu amigo Adilson e me disse que a Estácio está linda e que vai ganhar o Carnaval, com certeza absoluta!

(Publicado na Revista Época em 15/11/2010)

Dilma-lá!

Faz alguma diferença ter uma mulher na presidência?

Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.

Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.

Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.

Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.

Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.

Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.

Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.

Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.

Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.

Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.

Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?

Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.

Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.

Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.

Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza”. Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.

O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.

Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?

Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.

Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.

Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.

Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.

Tomara que a gente goste.

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P.S. 1 – Em algumas semanas, uma coluna é pouco diante dos temas factuais sobre os quais eu gostaria de escrever. Foi o caso da semana que passou, pródiga em barbaridades. Como precisei escolher, queria deixar aqui meu repúdio (e meu horror) à censura de Monteiro Lobato nas escolas públicas pelo Conselho Nacional de Educação. E sugerir a leitura de uma coluna anterior na qual o psicanalista Mário Corso argumenta brilhantemente sobre a influência (nefasta) do politicamente correto em nossas vidas.

P.S. 2 – Outra indignidade foi o “rodeio das gordas”, promovido por estudantes da Unesp de Araraquara, no interior paulista. Se o que aconteceu é reflexo de várias mazelas atuais, inclusive a da educação, é também reflexo do preconceito que perpassa nossa sociedade, obcecada por uma ideia distorcida de saúde e por um modelo de beleza anoréxico. Em geral destilado em doses mais ou menos disfarçadas, neste caso o preconceito foi levado ao extremo e a uma atitude criminosa. Espero que não fique impune. Escrevi duas colunas sobre o tema que podem nos ajudar a refletir: Porca Gorda e O insustentável peso do ser.

Boa leitura e até a próxima!

(Publicado na Revista Época em 01/11/2010)

O dia seguinte é hoje

É hora de o Brasil ter fome de educação – e isso depende de nós, eleitores

Ao participar na semana passada de um debate sobre o Brasil na cidade de Ferrara, na Itália, fui surpreendida por uma pergunta. O encontro era parte da programação do Festival da Internazionale, famosa revista italiana que publica reportagens de todos os cantos do mundo. Antes do início do encontro, tive dúvidas se o Brasil despertaria interesse suficiente para preencher o Teatro Comunale, um espetacular prédio do século XVIII. A plateia e o primeiro andar de camarotes lotaram, o que diz muito sobre o momento vivido pelo Brasil. Ao final do debate, uma jovem italiana, que recentemente viajara pelo país, perguntou se o povo brasileiro era realmente alegre ou apenas resignado. É uma boa pergunta – e não tem uma resposta só nem uma resposta fácil.

Tive a sorte de andar muito pelo país em mais de 20 anos de reportagem. Conheço vários Brasis. E sempre me pareceu que o povo brasileiro, apesar das muitas e profundas diferenças regionais, é unido por algo de muito seu: uma tristeza que ri de si mesma. Nessa alegria triste há na fundura dos olhos que sorriem uma melancolia que vem de muitas dores, das cicatrizes de uma vida arrancada com dificuldade dia após dia, seja nos confins do sertão nordestino, na floresta amazônica ou na periferia de São Paulo. E o que me surpreende, sempre, é que a intensidade desta alma se manifeste como alegria, ainda que triste. Que as pessoas tentem sorrir, ainda que chova salgado nos olhos que sorriem.

Tentei contar isso à garota italiana, não sei se consegui, porque para mim é muito mais fácil escrever do que falar. Contei a ela também que acredito que vivemos um momento muito rico no país, que pode ser traduzido como um resgate da esperança. Apesar das críticas que faço a Lula e a seu governo, especialmente no campo da ética na política e da ética no tratamento do patrimônio público, a vida do povo brasileiro melhorou. São quase 30 milhões de brasileiros que deixaram a pobreza para ingressar no que tem sido chamado de “nova classe média” ou a tal da classe C. Como me disse uma mãe de família da periferia de Osasco, na Grande São Paulo, dias atrás: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E pela primeira vez minha família come bem”. E ela acrescentaria mais tarde: “E hoje eu tenho uma geladeira nova e uma máquina de lavar roupa”. Para parte da tradicional classe média brasileira, que nunca passou fome e sempre teve acesso aos bens de consumo, pode parecer pouco. Mas não é pouco. É grande.

Seja Dilma Rousseff ou José Serra quem governará o Brasil, o que hoje é significativo passará a ser pouco a partir de janeiro de 2011. Nos últimos oito anos o governo Lula melhorou as condições concretas da vida da população, especialmente as dos mais pobres. Para isso, foi fundamental o controle da inflação iniciado lá atrás, com Itamar Franco, e a estabilidade econômica assegurada por Fernando Henrique Cardoso. Mas só seremos o país que sonhamos se o presidente ou a presidente eleita no próximo dia 31, aliados aos governos estaduais que acabaram de ser eleitos ou ainda serão, tiver o mesmo empenho para melhorar radicalmente a qualidade da educação no Brasil. E, assim, ampliar a definição, também do ponto de vista das políticas públicas, do que é viver com condições de viver.

Fazer as três refeições do dia, ter máquina de lavar roupa e até crédito para comprar uma TV de tela plana ou um computador é muito importante. Só quem nunca teve nada disso pode dar a dimensão do que significa. Mas, a partir deste novo patamar, passa a ser pouco. Pouco não só do ponto de vista do que se espera do novo governo, mas pouco para o que esperamos de nós mesmos.

Espero que neste segundo turno, ao contrário do embate de palavras vazias e promessas de ocasião que assistimos no primeiro, Dilma Rousseff e José Serra discutam com a seriedade que se espera de um candidato a presidente o projeto de cada um para o país. Para mim, como cidadã brasileira, o mais importante é a educação. Se quisermos continuar tendo chance, só podemos educar ou educar. Quero saber, concretamente, como cada um dos candidatos pretende dar qualidade ao péssimo ensino público deste país – já.

Se a educação não for de fato uma prioridade dos governos e dos cidadãos, nossos sonhos serão apenas sonhos, porque não teremos sequer mão de obra qualificada para garantir nossa inserção na economia mundial. E se a educação não esteve antes ou não estiver agora no centro do debate eleitoral que começa hoje é porque nós também não ligamos para ela tanto quanto deveríamos – o que apenas demonstraria a indigência da nossa formação e a pobreza de nossas expectativas. Será que precisamos de um Betinho, o homem que nos apontou a fome como uma indecência que nos envergonhava a todos, para acordar para o fato de que esta tragédia causa danos maiores e mais permanentes do que qualquer terremoto?

É verdade que o acesso à universidade foi ampliado pelo ProUni do governo Lula e pelas cotas sociais e raciais. Mas é igualmente verdade que, em 2009, apenas 21 das 2 mil instituições brasileiras de ensino superior tiveram nota máxima na avaliação feita pelo Ministério da Educação. E somente seis universidades brasileiras aparecem na lista das 500 melhores universidades do mundo numa avaliação anual feita pela Universidade de Comunicações de Xangai: USP, entre as 150 melhores; Unicamp, entre as 300; UFMG, UFRJ e Unesp, entre as 400; e UFRGS, entre as 500. Todas as seis públicas. O que significa que a maior parte de suas vagas pertence aos filhos de pais que podem pagar pelas poucas e caríssimas escolas privadas de boa qualidade nos ensinos fundamental e médio.

Nunca entendi por que não é exigido daqueles que se diplomam em universidades públicas que, depois de formados, retribuam o investimento com um período previamente determinado de trabalho gratuito em zonas estratégicas e carentes do país. Há uma ideia de direito sem a necessária complementação do dever no Brasil que atravessa toda a sociedade. Percebo que os estudantes das universidades públicas não parecem ter a consciência de que têm um privilégio, de que sua educação é gratuita apenas para eles, mas paga por todos os brasileiros, inclusive por aqueles que nunca terão a chance de estudar de graça numa boa escola. Parece-me óbvio, necessário e educativo que, depois de formados, os novos profissionais tivessem de retribuir com trabalho o investimento que a sociedade fez na sua formação, a confiança que a sociedade depositou neles como fiadora de sua educação. Além de ser uma retribuição que o país precisa, seria um complemento importante para a formação desta elite intelectual que, em sua maioria, nunca pisou numa favela ou na periferia, no sertão nordestino ou no que nos resta de floresta amazônica. Por que isso não acontece para mim é um mistério – e uma deformação de caráter.

Mas o ensino superior e a ausência de reciprocidade é apenas o reflexo de uma perversão que começa muito antes. É verdade que a escola fundamental vem se universalizando, num processo iniciado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas também é fato que entre 36% e 58% dos estudantes brasileiros que chegam ao oitavo ano de estudo (e boa parte não chega até aí!) não conseguem entender o que lêem. Seu (des)conhecimento da leitura, segundo o Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Unesco, compromete a continuidade dos estudos e a inserção no mercado de trabalho. O desempenho de nossos estudantes nas áreas de ciências, matemática e português é um dos piores do mundo nas pesquisas internacionais. Não dá para construir um país verdadeiramente grande com uma população tão mal educada.

Durante as últimas décadas a classe média deu uma solução individual ao problema coletivo da deficiência progressiva da escola pública, pagando educação privada para seus filhos. Nesta opção pelo próprio umbigo, entregou os mais pobres à própria sorte. Minha expectativa é de que a melhoria real da renda no governo Lula, que incluiu uma parcela significativa da população na economia de mercado, sirva também para que estes brasileiros comecem a pressionar por educação pública de qualidade. Será triste se copiarem a velha classe média e optarem por saídas individuais, já que não faltam as classes D e E para quem deixar o pior.

Aposto a maior parte da minha esperança nesta população que nos últimos anos pôde comprar carne, geladeira e máquina de lavar. Que ela agora pressinta que a verdadeira emancipação só se dá pela educação e pela cultura, que são estes os caminhos que levam à ampliação da experiência humana. Que descubra que tem direito a mais do que escolas ruins e professores mal pagos. Que, como na pergunta da jovem italiana, tenha menos resignação e mais alegria. É a qualidade do desejo de seus cidadãos que determina a grandeza de um país. Por isso, é fundamental que nosso desejo se alargue.

Ainda que as condições de vida tenham melhorado, o Brasil segue entre as dez nações mais desiguais do mundo e isto se deve em grande parte à baixa escolarização da população e à má qualidade do ensino público. Em educação não vejo nenhum governo, nem federal nem estadual, para ficar no que esteve e estará em jogo nestas eleições, que possa realmente se orgulhar do que fez nas últimas décadas. Ainda que tenham existido avanços – e efetivamente existiram –, continuamos no prejuízo. O buraco é tão grande que tudo o que foi feito é pouco. E sabemos que todos os governos – todos – poderiam ter feito muito mais se a educação fosse tratada de fato como prioridade.

É preciso fazer o máximo, porque na situação que estamos o máximo será pouco. É preciso fazer com mais ênfase, com mais urgência e com mais recursos. E isso só vai acontecer se, como eleitores e como cidadãos, fizermos a nossa parte para reverter esta tragédia nacional. A educação não tem sido a prioridade que deveria ser nas várias instâncias de governo porque nós também ainda não conseguimos compreender que é a nossa vida que está em jogo. Mesmo a sua, que paga o colégio mais caro para o seu filho na esperança de salvação individual.

Tudo o que seremos vai depender da qualidade que conseguirmos dar ao ensino público nos próximos anos. A educação é também determinante para baixar a criminalidade e melhorar a saúde preventiva. Não temos nenhum tempo a perder, pelo contrário. Por isso, vamos exigir de Dilma Rousseff e de José Serra que digam claramente o que vão fazer – e quanto do PIB vão investir – para que a educação seja de fato prioridade. Precisamos saber o quanto compreendem que a educação depende de professores bem pagos, bem formados e constantemente avaliados. E vamos valorizar o nosso voto.

Voltando à pergunta do início desta coluna, a melhor resposta que eu não dei à estudante italiana é que talvez interesse menos saber, neste momento específico, se os brasileiros são alegres – e mais saber se vão se resignar ou continuar desejando mais. Não apenas acesso a bens de consumo, mas à riqueza imaterial que ninguém nos tira e que nos faz sonhar com uma vida que valha a pena num país verdadeiramente grande. Construído com a qualidade do nosso desejo, a consistência do nosso sonho e o valor do nosso voto.

A medida do Brasil será determinada cada vez mais por uma outra fome: a de livros.

(Publicado na Revista Época em 04/10/2010)

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