Sobre aborto, deficiência e limites

A possível ligação entre o zika vírus e a microcefalia obrigou o Brasil a encarar seus tabus

Reprodução do El País

Reprodução do El País

Uma doença nunca é só uma doença. Ela nos conta de desigualdades e falências, e também de paixões. O zika vírus, desde que foi associado à microcefalia, tem revolvido as profundezas do pântano em que a sociedade brasileira esconde seus preconceitos e totalitarismos, muitas vezes trazendo-os à superfície cobertos por uma máscara de virtude. É dessa matéria fervente o debate sobre a permissão do aborto em casos de microcefalia. Diante da crise sanitária revelada pelo Aedes brasilis, como o mosquito vetor já foi chamado de forma tão oportuna, o futuro próximo depende de que sejamos capazes de pensar, mesmo que isso signifique chamuscar as mãos. Pensar e conversar, o que implica vestir a pele do outro antes de sair repetindo os velhos clichês usados como escudos contra mudanças. Se não formos capazes de superar o comportamento de torcida de futebol nem mesmo diante de uma epidemia considerada “emergência global”, o mosquito é o menor dos nossos problemas.

O aborto

No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto. Neste último caso, a liberação foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, por se tratar de uma condição incompatível com a vida. Prevaleceu a tese de que não haveria ali uma vida a ser protegida e, portanto, obrigar uma mulher a levar uma gestação em que ao final haveria um caixão e não um berço era afrontar a sua dignidade e submetê-la à tortura. Aquelas mulheres que encontrassem sentido em completar uma gravidez de feto anencefálico seguiriam, obviamente, com seus direitos garantidos.

Este é um ponto importante: o respeito ao direito de escolha de cada mulher, a partir de suas condições concretas e subjetivas, da teia de sentidos construída por cada uma para se mover pelo mundo. Quando o aborto é permitido, em nenhum momento essa liberação tira de qualquer mulher o direito de não fazê-lo. O que acontece é a ampliação de direitos – e não o estreitamento. Quem entende que fazer um aborto é o mais coerente para a sua vida faz. Quem entende que não – não faz. Preciso informar ao leitor que participei ativamente do debate do aborto de feto anencefálico. Como repórter, na cobertura do tema, e num documentário chamado Uma História Severina, no qual é narrada a luta por autorização judicial travada por uma mulher nordestina, pobre e analfabeta, para interromper a gestação de um feto anencefálico.

Embora no Brasil o aborto só seja legalmente permitido em três casos, a prática é inteiramente outra. E compreender isso é fundamental para qualquer debate honesto. Na vida de todos os dias, o aborto é liberado para quem por ele pode pagar. Se uma mulher de classe média ou alta engravidar, e por diferentes motivos essa gravidez for indesejada, ela vai a uma clínica particular, paga entre 5 mil e 15 mil reais e interrompe a gestação com considerável segurança. Seus dilemas são pessoais, internos, já que a decisão de abortar costuma ser difícil, mesmo quando há convicção pessoal de que é impossível levar aquela gestação adiante. Mas essa mulher não precisa temer ser presa, muito menos morrer por um aborto mal feito. Isso quase certamente não acontecerá com ela.

Com as mulheres pobres, sim. Para elas, abortar significa correr o risco de ser presa como criminosa e significa correr o risco de morrer. Como uma clínica segura, com boas condições sanitárias e profissionais preparados, custa entre 6 e 17 salários mínimos, ela só poderá se arriscar a esquemas muito inseguros. A cada ano, há mais de 200 mil atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS)por complicações pós-aborto, a maioria deles por procedimentos induzidos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados mais de 1 milhão de abortos inseguros por ano no Brasil. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país.

Os números de atendimentos no SUS por complicações pós-aborto provam que dezenas de milhares de mulheres pobres estavam tão desesperadas que se arriscaram a serem presas e também a morrer. E, mesmo assim, acreditaram que esse risco era menor do que o de levar a gestação até o fim. Aqui é preciso interromper o texto por um parágrafo para, juntos, tentarmos nos colocar na pele dessa mulher. E é preciso fazer isso para além do ódio contra as mulheres, arraigado na sociedade brasileira. É preciso pensar – e não odiar, que é muito mais fácil.

Quem se arrisca a ser presa e a morrer está se arriscando a muito. Está arriscando tudo. Assim, é possível concordarmos, ao menos, que os fatos demonstram que aborto não é um ato banal para essas mulheres, mas uma necessidade profunda, movida por condições objetivas e subjetivas que só elas conhecem intimamente. Então, cuidado antes de sair apontando um dedo acusatório: nenhuma delas aborta sem um motivo muito forte. E isso tem de ser escutado por qualquer sociedade que queira se nortear pela ética.

Escutar é justamente debater. Aqueles que não querem debater aborto no Brasil precisam assumir que não se importam com a prisão e a morte de mulheres jovens e pobres, a maioria delas negras, já que estes são os fatos. Precisam assumir também que não se importam que o acesso ao aborto reproduza a desigualdade racial e social do Brasil, ao tornar-se acessível e seguro para quem pode pagar e criminalizado e mortífero para quem não pode. Quem se importa, debate os fatos. E escuta a posição do outro, mesmo que seja muito diferente da sua. Viver é mover-se.

E aqui, vale sublinhar, estamos falando apenas do pior. Mesmo nos casos em que o aborto é consumado sem complicações, é possível pelo menos imaginar o nível de pavor que uma mulher enfrenta ao se arriscar a fazê-lo em condições tão terríveis e sem nenhum amparo. É um pesadelo, e é um pesadelo que agora mesmo, neste instante, está sendo vivido por uma mulher em situação de extrema fragilidade. Não me parece que seja possível viver ignorando as mulheres que sofrem. E é assim que a sociedade brasileira tem vivido.

O aborto costuma surgir no debate público como moeda eleitoral. Em busca do voto religioso, candidatos da direita a esquerda têm se omitido ou chantageado com a vida das mulheres. Esta é mais uma evidência da corrosão da política tradicional, que tem se mostrado capaz de leiloar qualquer princípio: primeiro em nome de vencer a eleição, depois em nome dessa indecência que tem sido chamada de “governabilidade”.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre o aborto, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

A deficiência

No debate da interrupção da gravidez de feto anencefálico, certo tipo de religioso sem escrúpulos de mentir usava o falso argumento de que a proposta era “abortar deficientes”. Era um golpe muito baixo – e muito desrespeitoso. Nunca houve comprovação de um anencéfalo vivendo neste mundo. Se vivia além de dias ou meses, e mesmo isso só ocorria em casos raríssimos, não era anencéfalo, mas uma pessoa com outra malformação, esta compatível com a vida. Mas anunciava-se na internet como um anencéfalo. Como se sabe, a mentira apresentada como verdade, mais ainda quando acompanhada de uma imagem, é um forte instrumento de manipulação das mentes que preferem aderir a pensar.

No caso da microcefalia, sim, são crianças com deficiências. A malformação cerebral pode causar diferentes níveis de problemas, dos menos aos mais graves. E, sim, essas pessoas têm vida. O fato de terem dificuldades de ordem física ou mental não torna essa vida mais ou menos significativa. É aí que a sociedade brasileira falha miseravelmente.

De todos os discriminados deste mundo tantas vezes sórdido que vivemos, as pessoas com deficiências estão entre as mais violadas. O que pode ser pior do que ser decodificado como “uma vida indesejada”? O que pode ser mais esmagador do que ser aquele que “deu errado” ou ser aquele que porta “uma falha”? O que pode ser mais opressor do que “alguém que não deveria existir”?

É muito brutal. E é também uma grande estupidez. Infelizmente, essa estupidez persiste em todas as esferas, inclusive no governo. Só a ignorância pode explicar um ministro da Saúde, como foi o caso de Marcelo Castro (PMDB), referir-se ao nascimento de pessoas com microcefalia como “uma geração de sequelados”. Quando difundida por quem decide sobre políticas públicas de saúde, a ignorância é criminosa.

Por que é uma estupidez? Porque o que cada um faz com a sua vida – e com as suas limitações – é totalmente singular. Ninguém pode dizer, com base nas deficiências físicas ou mentais de alguém, que essa pessoa não poderá ter uma vida plena, com sentidos que ela vai construir e reconstruir a partir das suas possibilidades. Quando pessoas com deficiências provocadas pelas mais variadas causas assumem um protagonismo no mundo, viram histórias exemplares de superação, transformam-se em livros e filmes, ganham prêmios e homenagens, tornam-se nomes de ruas e instituições. Qualquer um pode se lembrar rapidamente de vários exemplos em cinco minutos. Mas todas as outras pessoas com deficiências são massacradas como entraves, como indesejados. Ou “sequelados”, como disse o ministro.

Quem não tem limites nesse mundo? Só as pessoas das campanhas publicitárias de “uma vida sem limites”, um dos slogans mais cretinos que já inventaram. A questão é que pessoas com deficiências não têm apenas limites, mas barreiras físicas e sociais. Desde falta de acesso a prédios a cadeirantes, para ficar num exemplo bem óbvio, até o muro muito mais difícil de ser ultrapassado, que é o olhar do outro, ao vê-lo como uma “vida indesejada”, um sub-humano.

Vale a pena conferir o que diz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interações com as diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. A vida de alguém, portanto, não é determinada pela deficiência. Mas sim pelo encontro desse corpo com a cultura. A única deformação instransponível é a de uma sociedade que, em vez de derrubar barreiras, as ergue.

Uma das barreiras mais abomináveis é justamente a da escola, aquela que deveria alargar os horizontes das crianças pelo processo emancipatório da educação. Agora mesmo tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) para sustar alguns dos efeitos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI). As escolas particulares querem se livrar da obrigatoriedade de assegurar educação aos estudantes com deficiências.

Como escreveu Lucio Carvalho, ativista e um dos editores do site Inclusive, é um NÃO em caixa alta: “O que muitas pessoas sentem, percebem, interpretam ou identificam em uma ação assim, com objetivos tão claros e explícitos, é um rotundo NÃO social. Um enorme NÃO. Um NÃO sem metáforas. Um NÃO é aqui o seu lugar. Um NÃO pense que o seu filho ou filha está apto a pertencer a este mundo. Um NÃO sonoroso que pode ramificar-se em: NÃO temos vagas, NÃO temos preparo, NÃO temos recursos, NÃO temos acessibilidade, NÃO queremos saber disso aqui, NÃO temos o menor interesse em sair dessa posição, NÃO isso, NÃO aquilo. E mais uma série de NÃOS que repercutem na individualidade, ainda que de muitas formas”.

Carvalho acrescenta: “Além da escola, o preconceito contra a deficiência se expressa de muitas outras maneiras: no isolamento imposto pelo convívio social muitas vezes dificultado; na invisibilidade das pessoas que pouco se veem representadas e reconhecidas nos produtos culturais e nos meios de comunicação; no acesso ao trabalho, por exemplo, quando são comumente vistas como pessoas de menor capacidade e sua presença é tolerada muitas vezes apenas por obrigação legal e formal”.

A maioria das pessoas prefere jamais pensar no que é ter uma deficiência e não poder ter uma vida digna, uma vida com invenção e com sentidos, não por causa de uma “falha” no corpo, mas pela deformação dos “normais”. Não é que a sociedade não pressione pelo derrubada das barreiras físicas e sociais ou pela promoção de políticas públicas de inclusão, que garantam o acesso à cidadania das pessoas com deficiência. É muito pior do que isso. Como se vê na ação movida pela CONFENEN, a sociedade quer derrubar os poucos direitos que se conseguiu garantir até agora. Quando se pensa que são estabelecimentos de ensino que movem uma ação como essa, é ainda mais desesperador. Mas este é apenas um caso entre tantos. Há muros no olhar da maioria.

Às vezes, raramente, emerge delicadeza nessas horas brutas. Como a mãe de um aluno que foi à escola privada do filho agradecer por terem colocado na sala de aula um menino com deficiência. Ela disse: “Meu filho melhorou tanto ao conviver com esse garoto, que eu vim aqui para agradecer. Sou eu, como mãe, que tenho de agradecer à mãe desse menino, por tudo o que ela deu à nossa família ao matricular seu filho nessa escola. Meu filho ganhou muito mais do que o filho dela, tenho certeza”. É a inversão, a inversão que coloca as coisas no lugar. A inversão que mostra que invertido estava antes.

Conto ainda uma outra história real, só possível pelo direito de inclusão na escola. Dois garotos estudaram juntos por três anos. Um deles tinha diagnóstico de autismo. Quando a puberdade se aproximou, aos 11 anos, o menino perguntou à mãe porque o colega estava tão agitado. A mãe respondeu: “Imagina o que é você não ter condições de entender que essas mudanças que estão acontecendo no seu corpo fazem você ser a mesma pessoa. Cada dia você acorda e tem a angústia de não se saber o mesmo”. O menino então disse: “Entendi. É como se o corpo dele fosse um sabonete que a mão, molhada, que é a cabeça, não conseguisse segurar”. Isso é conviver e aprender com as diferenças. Isso é educação, aquela que ensina a fazer o movimento de alcançar uma experiência diversa de estar no mundo.

A pessoa que se arrisca à experiência não é aquela que “tolera” o outro, que tem uma deficiência, como se fosse magnânima porque tolera, como se fosse uma enorme concessão que se expressa pela condescendência. Como acontece com tantos ao considerar que já é uma grande coisa cumprimentar com um sorriso a pessoa com deficiência que trabalha na mesma sala por determinação legal. Ou quando reclamam que o “deficiente” não é simpático, já que deveria estar eternamente agradecido e subserviente porque lhe concederam um lugar, ainda que num canto. Quem faz o mundo dar um passo à frente são aqueles que percebem que a experiência de viver se amplia ao conviver com as diferenças. Que veem diversidade e riqueza onde outros veem inferioridade e fracasso.

Assim, as crianças que nascerem com microcefalia por conta do zika, uma ligação que ainda não está totalmente esclarecida, não estão condenadas a uma vida sem vida. Mas podem estar condenadas a uma vida muito menos autônoma, muito menos cidadã, muito mais restritiva por conta das barreiras sociais que já deveriam ter sido derrubadas e não foram. São vítimas, neste caso, de duas falências: a das políticas sanitárias, que permitiram a proliferação do mosquito, e a das políticas de inclusão.

Neste caso, assim como acontece com o aborto, também são os mais pobres os que mais sofrem as consequências da precariedade das políticas públicas, assim como os efeitos da discriminação que permite a desigualdade de direitos. E os mais pobres no Brasil, como se sabe, são em sua maioria negros. A maior parte dos casos de microcefalia estão entre mulheres pobres do Nordeste, e são elas as que mais sofrerão com a epopeia que será incluir uma criança com deficiências num sistema de saúde pública precário e numa sociedade que discriminará seus filhos em todos os espaços e oportunidades.

Quando o zika vírus provoca um debate sobre a deficiência, é fundamental que todos nos esforcemos para qualificá-lo. Diante de um cenário dramático, o melhor caminho é fazer da crise uma oportunidade para tornar o país mais justo.

É possível juntar aborto e deficiência?

Está em curso uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) que pretende pleitear, entre várias medidas, a permissão do aborto devido à microcefalia e, ao mesmo tempo, a dignidade das crianças com deficiências que nascerem destas gestações. A ideia é garantir direitos: tanto os direitos das mulheres que querem interromper a gestação de um feto com malformação, num caso em que a doença foi causada por falhas das políticas públicas do Estado, como o direito das mulheres que querem levar essa gestação até o fim, com a garantia de que seus filhos terão acesso a tratamento e políticas de inclusão asseguradas. Trata-se, portanto, de ampliação de direitos, e não de encurtamento. E também de respeito a escolhas diferentes.

A articulação é idealizada por parte do grupo que, em 2004, levou a ação de interrupção da gravidez de feto anencefálico ao STF, no qual se destaca a organização não governamental ANIS – Instituto de Bioética. A Organização Mundial da Saúde já se manifestou em defesa da descriminalização do aborto em casos de microcefalia.

Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, a repórter Cláudia Collucci mostrou que, diante da possibilidade de ter um filho com microcefalia, mulheres já começaram a fazer abortos, mesmo em gestações planejadas. Como a microcefalia só é diagnosticada por volta do terceiro trimestre de gestação, a interrupção tem sido feita como “prevenção”, já que não há certeza de que a malformação ocorrerá. Também já têm sido relatados casos de homens que abandonam suas companheiras depois de nascerem bebês com microcefalia.

A questão da desigualdade de novo é determinante: na prática, quem não tem direito de interromper a gestação nestes casos são justamente as mais pobres, que não podem pagar por um aborto em clínicas seguras. São também elas que encontram as maiores barreiras para criar um filho com deficiências, num Estado que falha na garantia de acesso a tratamento de saúde e acesso pleno à cidadania. É imperativo discutir o aborto com a seriedade que merece um tema de saúde pública.

Como acontece sempre que surge a palavra “aborto”, porém, tão logo a ação foi anunciada em artigos na imprensa ergueram-se os punhos e terçaram-se as armas. Me interesso por gritos que expressam dores, mas não por aqueles programados para calar a voz do outro. Não acho que este seja um debate com respostas fáceis. É preciso enfrentar a complexidade. E só consigo enfrentá-la com dúvidas.

Meu incômodo com a proposta de permitir que mulheres com gestações de fetos com microcefalia façam aborto é a relação estabelecida com a deficiência. Penso que mulheres grávidas de fetos com microcefalia devem poder abortar, se assim o quiserem, porque têm o direito de decidir sobre o seu corpo – e não porque o direito ao aborto é justificado pelo nascimento de uma criança com deficiências, ainda que essa situação tenha sido causada por negligência do Estado. Ter ou não um filho é uma decisão individual, íntima, de cada mulher. Ao Estado cabe garantir que sua escolha seja protegida, em qualquer um dos casos.

A questão complicadora do debate em curso, porém, é que o tema do aborto ainda é um tabu na sociedade brasileira. Assim, o movimento estratégico possível seria lutar para garantir pelo menos que essas mulheres pobres, que desejam interromper uma gestação de feto com microcefalia, possam fazê-lo em segurança, contando com os serviços públicos de saúde. Sem correr o risco, portanto, de serem presas ou mesmo de perderem a vida. Essa ideia ganha legitimidade pela necessidade de lidar com o mundo real. Se não é possível garantir ainda o amplo direito das mulheres sobre seus corpos, como é assegurado em vários países, em geral os mais desenvolvidos, pelo menos se conseguiria reduzir a desigualdade e a injustiça, ao proteger as mais frágeis neste caso específico. Lutar pontualmente pelo possível, já que o justo está distante.

Faz muito sentido. Mas, ainda assim, tenho dúvidas. Temo que a ideia de que o aborto deve ser autorizado porque o feto apresenta microcefalia possa ter consequências perigosas. Porque, ainda que seja em nome de uma causa justa, proteger a escolha das mulheres mais pobres, inevitavelmente reforça a crença de que uma vida com deficiências é uma vida indesejada – ou condenada ao fracasso. E qualquer possibilidade de reforçar esse preconceito tão arraigado, com consequências tão terríveis na vida de milhões de pessoas, é um risco grande demais. E um risco com repercussões cujas dimensões não podemos prever. Há um efeito desse discurso sobre quem nasceu com deficiências e vive neste mundo.

Neste sentido, é ilustrativa uma discussão ocorrida em São Paulo, durante um encontro informal entre ativistas de direitos humanos, no qual a ação foi tema de debate inflamado. Um dos ativistas defendia que, num assunto tabu como o aborto, era preciso ir avançando pelas bordas, até que as mulheres finalmente tivessem seus direitos reprodutivos respeitados e autonomia sobre os seus corpos. Por isso, defendia a ação. Afinal, o aborto é responsável pela morte de mulheres jovens, a maioria pobres. Outra ativista retrucou: “Mas este é o mesmo princípio da governabilidade, em nome do qual tanto absurdo foi cometido. É justificar concessões inaceitáveis em nome de um bem supostamente maior. Mas não avançamos e não garantimos direitos quando a discussão do aborto se dá em torno da deficiência. O aborto é um direito da mulher, que não pode estar ligado ao julgamento público sobre qual vida vale a pena existir e qual não vale”.

Não há mesmo respostas fáceis numa situação de tanta dor. Mas, também por isso, é preciso se arriscar ao debate, para que ele possa nos levar mais longe, num momento tão crucial.

Me lanço nele com um pensamento bem custoso. Defendo ativamente a autonomia das mulheres sobre os seus úteros. Defendo, portanto, o direito amplo ao aborto. Os motivos de cada uma para fazê-lo a cada uma pertencem. Não acho que o Estado ou a sociedade possam interrogá-las sobre razões íntimas, apenas garantir que sua opção seja assegurada na esfera pública. Ponto. Mas o argumento público do direito ao aborto porque dessa gestação resultará uma criança com deficiências para mim é um limite. Um limite que escolho não ultrapassar.

(Publicado no El País em 15 de fevereiro de 2016)

Em defesa da desesperança

Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança

A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.

A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.

Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.

1. A falsa polarização

O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.

O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.

Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voava pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT“, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.

Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.

Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.

Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.

Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.

A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.

2. Restou governo para ser defendido?

A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?

A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.

Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?

Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.

Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.

Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.

No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.

A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.

Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.

Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?

3) Quando havia um governo, ele era defensável?

Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.

Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.

Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.

A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.

A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.

É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.

Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?

O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.

Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.

Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.

4) Há fundo no poço sem fundo?

Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.

O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.

Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.

Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.

O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.

Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?

Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.

Mas como?

Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.

5) A desesperança como imperativo ético

Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.

Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.

A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.

Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.

Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.

(Publicado no El País em 21 de dezembro de 2015)

É política sim, Geraldo

Enquanto o Brasil vive o rebaixamento do exercício político, os estudantes paulistas mostraram que é possível estar com o outro no espaço público

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

Estudantes protestam em São Paulo na última sexta-feira. MIGUEL SCHINCARIOL AFP (Reprodução do El País)

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111 tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

Diante desse despedaçamento, há que se cuidar para que as palavras disponíveis, aquelas que dão nome a conceitos cuja construção é o que de melhor a humanidade criou, não sejam pervertidas e restem também elas obscenas. É neste ponto, profundo, que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) cometeu um ato simbólico de extrema violência, para além da truculência concreta de sua polícia nas ruas de São Paulo. Em 2 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, ele afirmou:

– Não é razoável obstrução de via pública, é nítido que há uma ação política no movimento. Há uma nítida ação política.

A frase do governador foi amplificada pela imprensa, em títulos de jornais e chamadas nas rádios, TV, internet. O governador denunciando o movimento dos estudantes que ocupavam as escolas públicas de São Paulo em protesto contra um plano que, em nome da “reorganização escolar”, fecharia mais de 90 escolas e remanejaria mais de 300.000 alunos. Mas, vale repetir, o que o governador denuncia? Que o movimento é político. Qual seria a acusação? É óbvio que o movimento é político. E a melhor qualidade do movimento é justamente a de que é político.

É pelo exercício da política que se alcançou o que de melhor existe na experiência humana. E não pela força, pela imposição, pelo extermínio do diálogo e das ideias e, vezes demais, das pessoas que discordam. Onde a política é suspensa, a aniquilação se instaura. Para Alckmin, porém, a julgar pela sua declaração e pelos seus atos, a política é obscena. Tanto que ele precisa denunciá-la. E insinuar que os estudantes estão sendo instrumentalizados por interesses partidários e ideológicos. É fundamental que se preste atenção a um governador, com ambições de ser presidente da República, que iguala a política à obscenidade. Ou à abominação, outra palavra que pode nos iluminar nesse momento em que a crise de representação alcança também as palavras.

Voltemos à declaração do governador: “Não é razoável obstrução de via pública”. É assim que a frase começa. Para ele, protesto, manifestação, algo do cerne da democracia, é “obstrução da via pública”. O que se impõe nesta afirmação de Alckmin? A voz que vale é a daquele que quer passar. A via pública pertence àqueles que querem passar com seus carros. Passar, portanto, sem parar para escutar. É forte, porque Alckmin tem demonstrado governar assim, passando sem escutar. Se necessário, passando por cima, como se viu.

O que foi a imposição da “reorganização escolar” sobre a comunidade, senão um “passar sem escutar”? E o que aconteceu? O ato autoritário foi enfrentado com política. Os estudantes ocuparam o espaço público para reafirmar a necessidade de dialogar, para dizer que imposição não era possível num regime democrático. A reação foi recebida pelo governo como uma afronta à ordem e à autoridade. Mas como, se esta é uma democracia? Quem não dialoga é ditador. Diante do impasse, entre considerar a política uma obscenidade e, ao mesmo tempo, governar num estado democrático, Alckmin fez o quê? Se ele queria passar sem escutar, com seu carro e com seu decreto, o governador fez o quê? Chamou aquela que restou da ditadura: a Polícia Militar.

Como afirmou Fernando Padula Novaes, chefe de gabinete da Secretaria de Educação, é “guerra”. A palavra reveladora de como o governo se relaciona com aqueles que discordam, neste caso os estudantes, foi usada mais de uma vez numa reunião cujo áudio foi divulgado pela repórter Laura Capriglione, do coletivo Jornalistas Livres. O encontro com cerca de 40 dirigentes de ensino contou também com a anunciada presença de um militante da Ação Popular, movimento de jovens do PSDB. Na reunião, Padula demonstrou a necessidade de “desqualificar” o movimento de resistência e mostrar que a “radicalização” estava “do lado de lá”.

E, assim, na lógica de “guerra”, Geraldo Alckmin respondeu ao exercício da política com bombas de gás, com golpes de cassetete e agressões físicas e psicológicas, como humilhar e carregar à força um garoto de 18 anos pendurado de cabeça para baixo. Respondeu com repressão, como já tinha feito nas manifestações de 2013. Respondeu como um general alinhado ao golpe de 1964 responderia durante os anos de chumbo. A Polícia Militar é o que sobrou de lá, aqui. E, se como analistas de segurança pública têm dito, a polícia está descontrolada, está descontrolada porque governantes precisam controlar. E impor: passar sem escutar. Passar sobre a política. “Limpar” as ruas dos pretos e dos pobres e também dos que fazem política.

Enquanto as imagens nas ruas expunham a violência da Polícia Militar contra os estudantes, a maioria deles adolescentes, este era o discurso do governador: “A polícia dialoga, a polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso. A polícia faz todo o trabalho, ela é capacitada, é treinada, tem paciência…”. O governador, e esta não é uma constatação banal, está satisfeito com a ação da PM. A desconexão entre o discurso da autoridade máxima do estado de São Paulo e a realidade documentada por vídeos e fotografias nas ruas de São Paulo é um fato a ser levado a sério.

É uma enormidade o que os estudantes paulistas deram ao país neste mês de resistência. Enquanto a política em Brasília, aquela feita por profissionais do ramo, era rebaixada a chantagens e tomaladacá, adolescentes deram ao país uma lição de política em sua expressão mais completa. Organizaram-se, ocuparam 196 escolas, responsabilizaram-se por elas – consertando, limpando e cuidando – e impediram que, num país e num estado em que a péssima educação pública escava um abismo, mais de 90 escolas fossem fechadas por decreto. Foram reprimidos violentamente por isso. Muitos apanharam, dezenas foram detidos, centenas sofreram as consequências das bombas de gás. Mas resistiram. E venceram. E, como o que venceu foi a política contra o autoritarismo da verdade única e da força bruta da PM, vencemos todos.

Em 4 de dezembro, o governador foi obrigado a recuar: suspendeu a “reorganização escolar”. O secretário de Educação, Herman Voorwald, deixou o cargo. Geraldo Alckmin recebeu uma lição de política dada por crianças e adolescentes. Ao ver sua popularidade despencar, conforme pesquisa do Datafolha publicada no mesmo dia em que anunciou o adiamento das mudanças até 2017, o político que iguala a política à obscenidade descobriu que não era mais possível mandar a Polícia Militar passar por cima do povo para sua verdade única passar.

Geraldo Alckmin recuou com uma frase do Papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo”. Ainda que óbvio, é uma questão de respeito restabelecer os fatos para não perverter as palavras. “Indiferença egoísta”: pode ser relacionada ao governo, que tentou impor sem debate um projeto controverso, criticado por educadores, que fechava quase uma centena de escolas e atingia centenas de milhares de alunos. “Protesto violento”: fotografias e imagens documentam a violência da PM contra os estudantes. “Diálogo”: é o que os alunos reivindicavam, enquanto no interior do governo se anunciava “guerra”. Diálogo é justamente política. Como aquilo que se faz é mais revelador do que aquilo que se fala, o governador fez seu anúncio e deixou a sala sem falar com a imprensa.

Não foi apenas Geraldo Alckmin que aprendeu algo importante com os alunos da escola pública –ou deveria ter aprendido. Há dois pontos aos quais é preciso prestar bastante atenção. Um deles, que já havia se tornado claro nas manifestações de 2013, é o de como uma parcela da imprensa da redemocratização ainda está intoxicada pelos tempos da ditadura e da censura, entre outras hipóteses para a escolha dos termos usados na cobertura. Adolescentes levam bombas e borrachadas das forças de segurança do Estado e parte da imprensa chama de “confronto”. A cada protesto nas ruas, várias reportagens começavam pelas agruras causadas pela interrupção do trânsito, como se o trânsito fosse a entidade mais importante desse acontecimento político, relacionado à grande tragédia nacional, a educação, numa hierarquia de valores bastante iluminadora. Adolescentes eram encurralados e agredidos pela PM e parte da imprensa definia como “confusão”. A PM reprimia violentamente os alunos que protestavam e uma parcela da mídia descrevia o fato como um ato de “dispersão”. Nomear os fatos com precisão é tarefa obrigatória do jornalismo.

Ao pensar nas manifestações contra o aumento das passagens do transporte público, em 2013, desponta outro ponto crucial: qual é o limite da opinião pública? Ou, de forma mais explícita: em quem a polícia pode bater sem causar assombro e reação, ou sem que isso provoque a queda de popularidade do governador? O que os protestos contra o fechamento das escolas mostraram é que usar violência contra alunos adolescentes é um limite para os cidadãos. Desta vez, não foi possível transformar os estudantes em “vândalos” e ganhar a opinião pública, como ocorreu em 2013, usando como justificativa a ação violenta dos black-blocs. Geraldo Alckmin apostou que conseguiria repetir 2013, quando num primeiro momento houve uma reação massiva contra a violência da polícia e, em seguida, com a conversão de manifestantes em “vândalos”, na narrativa de parte da imprensa, a opinião pública passou a apoiar a repressão policial, por ação ou omissão.

É importante pensar sobre isso, porque enquanto a violação da lei pela polícia não for rechaçada, independentemente de contra quem for, seguiremos muito mal. Se pode bater neste, mas não naquele (ou matar, como acontece nas periferias e favelas), continuaremos involuindo no pacto civilizatório. E os governantes autoritários seguirão com chance de passar sua verdade única sobre a política, calando a democracia com bombas de gás e golpes de cassetete.

O fracasso na conversão de estudantes em “vândalos” para a opinião pública, apesar de todos os esforços, revela que a escola ainda têm um lugar forte no imaginário coletivo. A educação pública, tão abandonada, tão desrespeitada, tão desinvestida nestas últimas décadas, ainda ecoa na população como um valor. Ainda ressoa a consciência de que uma escola, neste país, não pode ser fechada. Muito menos dessa maneira. A escola, tão maltratada, ainda é um símbolo positivo.

Há aqui uma lição profunda que os estudantes das escolas públicas deram não apenas ao governador, mas ao conjunto da sociedade que acredita em saídas individuais, em geral na de matricular o filho na escola privada para pelo menos salvar o seu da tragédia educacional brasileira. Quando já se tornava difícil acreditar que houvesse uma saída, os estudantes se apropriaram das escolas e, com a ajuda de parte dos pais, passaram a cuidar dela. Coletivamente, como comunidade, como cidadãos. Cuidam do que ninguém mais de fato cuidava.

Acho que ainda não chegamos perto de alcançar o tamanho desse gesto, que nestas últimas semanas levou gente que nunca tinha pisado numa escola pública a oferecer de comida a serviços. Pessoas de todas as áreas têm se apresentado para dar aulas nas escolas ocupadas. Alunos de universidades prestigiadas, aquelas em que os estudantes da escola pública foram ensinados a acreditar que nunca entrariam, pediram para os secundaristas irem até a faculdade explicar o movimento. Os estudantes conseguiram derrubar muros que quase ninguém acreditava que ainda poderiam cair. E uma estudante ouviu de uma visitante no domingo, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, a primeira ocupada na capital paulista, uma frase simbólica: “Tenho orgulho de viver numa cidade em que você existe”. Como escreveram os repórteres Felipe Resk e Rafael Italiani, do Estadão, a escola que tem o nome de um bandeirante “se tornaria símbolo da resistência ao Palácio dos Bandeirantes”. Recusando tal pai-fundador, os alunos cobriram a estátua do “matador de índios”, na frente da escola, com um saco preto.

Os estudantes que ocuparam escolas e ruas estavam até então na posição de restos. Eram os estudantes que o Estado fingia educar, em escolas abandonadas, caindo aos pedaços, em aulas com professores muito mal pagos, desmotivados e despreparados. Eram os alunos que nunca teriam muita chance na vida porque recebem uma péssima educação. Eram os estudantes “violentos” e “perdidos” da escola pública, eram também os pretos e os pobres da escola pública. Eram aqueles que restavam na condição de objetos, também de discursos eleitoreiros e de slogans indecentes. Os herdeiros do processo de redemocratização lento, frágil e precário que vivemos há 30 anos, das ações imperfeitas de inclusão social, provaram que, se a moldura do espaço público for a democracia, há lugar para as diferenças, há lugar para o outro. Aqueles que muitos acreditavam “sem futuro”, porque sem presente, ensinaram aos adultos que a política é o exercício de estar com o outro no espaço público.

De onde veio a boa notícia no rio de lama e de obscenidades que se transformou o país, no concreto e no simbólico? Dos meninos e meninas das escolas públicas. Educaram o governador, educaram a sociedade. E fizeram o que parecia impossível no atual momento do Brasil: resgataram a política.

(Publicado no El País em 7 de dezembro de 2015)

Vítimas de uma guerra amazônica

Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A saga de João e Raimunda tem seu ápice em dois atos de uma guerra amazônica não reconhecida pelo Estado e pela maioria dos brasileiros. Ainda assim, ela está lá. Aqui. Essa história, decidida neste momento no Pará, na região de Altamira e da bacia de um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, o Xingu, é contada por um homem e por uma mulher, apenas dois entre dezenas de milhares de expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte, gente que hoje vaga por um território que não reconhece – e no qual não se reconhece. Mas esta não é mais uma entre tantas narrativas dramáticas em um país assinalado pela violação sistemática dos direitos de negros e de indígenas. Raimunda e João trazem inscritos no corpo uma encruzilhada histórica. A de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei. O não reconhecimento da violência sofrida inflige a suas vítimas uma dor ainda maior, e uma sensação de irrealidade que as violenta uma segunda vez. É a experiência de viver não fora da lei, mas sem lei que escava a existência de Raimunda e de João – e os faz escolher destinos diferentes diante da aniquilação.

Raimunda decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não sabe como viver. Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.

Neste momento, João e Raimunda vivem esse impasse.

Enquanto isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas de redução e compensação do impacto, para começar a encher o lago de Belo Monte.

O terceiro ato ainda é uma incerteza.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Ato 1: João perde a fala e trava as pernas para não matar

Segunda-feira, 23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava diante do preposto da Norte Energia, a empresa que venceu o leilão de Belo Monte, apresentada como uma das três maiores hidrelétricas do mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua casa, roça e demais benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem. Em vez disso, impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da floresta para ganhar o sustento. João percebeu ali que estava condenado à miséria, aos 63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito anos de idade ele peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra sem dono, arrancando cada dia da força dos braços. Depois de um percurso de faltas, João acreditou ter encontrado uma casa e uma existência sem fome na ilha do Xingu. E agora arrancavam-no também dali. João sentiu que era a vida que lhe roubavam, e que ele já não tinha mais juventude nem saúde para recomeçar. Para João, já não haveria uma última fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar. Acabavam de lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o passado-presente-futuro fora reduzido a um tempo só, que se repetia.

João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança, é preciso compreender. Matar como um sacrifício.

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. Se eu pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe dessa firma, passaria por dentro umas duzentas vezes. E não tenho medo de dizer. Eu era muito satisfeito de fazer isso, mesmo que na mesma hora minha vida se acabasse.

João não conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou movimento. João descobriu ali que matar não era um ato possível para ele. As pernas travaram, a fala travou. João imobilizou-se por inteiro para não matar aquele que encarnava a obra que acabava de matá-lo. Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela mulher, Raimunda, e por uma das filhas, para fora do escritório da Norte Energia.

– Eu perdi… Chegou um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava só espumando. E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu ando um pouco, mas minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é fácil, ter tanta raiva que trava o corpo.

Desde então, João é um homem traumatizado. Não no sentido banal que a palavra “trauma” ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma” como aquilo que não é possível simbolizar, do buraco que não vira marca. Sem saber para onde ir nem onde está, João só consegue andar uns poucos passos e logo precisa sentar-se num banquinho. Quando sai, perde-se porque já não reconhece o território. João tornou-se um desterrado de tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para Raimunda: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer ali”. Raimunda pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.

E se, em vez de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?

– Muié, eu teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem justiça.

João faz uma pausa antes de esclarecer:

– Muié, você tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu tenho nojo desse pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.

Sem palavra e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se vítima duas vezes, porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu país. Assim, João também torna-se um sem país, na abissal condição de sentir-se dentro e fora ao mesmo tempo, atingido por uma lei não escrita, ignorado pela lei que deveria inscrevê-lo na trama da cidadania. Para referir-se ao Brasil, a expressão mais frequente de João é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é um corpo ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.

– Cheguei a dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e para qualquer cão que aparecer, que a justiça do país brasileiro é dinheiro. Se Jesus bater aqui, nesse país, os altos empresários catam ele e compram ele. E, se ele se abestalhar, é vendido. Entendeu?

João repete a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de escutá-lo por algum tempo percebe-se que não é uma bengala de linguagem, como se poderia supor, mas sua certeza de não ser compreendido.

Ato 2: Raimunda descobre que sua casa virou cinzas

Terça-feira, 1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, chamou um conhecido, comprou dez litros de gasolina para a viagem no rio e fez “um rancho e um frito” para comer no caminho de sua ilha, a Barriguda, no lugar batizado de Furo do Pau Rolado. Partiram às 5 horas da manhã. Um dia antes, na segunda-feira, haviam ligado da Norte Energia: “Dona Raimunda, quando nós podemos tirar os seus resíduos lá da ilha?”. “Resíduos” eram as posses de cozinha e de pesca de Raimunda. Ficou combinado que ela retiraria seus pertences na terça-feira cedo. Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda alcançou a sua ilha.

Sua casa, feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.

– Você sabe que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha… Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada… Eu fiquei anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que mundo é esse que a gente vive?

belo monte 3

A Norte Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram a ela que era um tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”. Quando encontrou a casa em cinzas, Raimunda sentou-se na beira do rio.

– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando por dentro da pequena.

Raimunda fez uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de Altamira. Relatou que, naquele momento, as demolições e “remoções” dos ribeirinhos estavam suspensas pelo IBAMA. A medida havia sido tomada depois que uma inspeção realizada em junho revelara uma série de violações de direitos humanos no processo de expulsão das famílias, em relatório assinado pelo Ministério Público Federal, instituições públicas, organizações não governamentais e acadêmicos do porte de Manuela Carneiro da Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida (Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas, ainda assim, a casa de Raimunda queimava.

Ela concluiu:

– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda, o que acha?

– Eu acho que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez eu não tenha certeza do que digo. Mas eles sabem o que fazem.

A procuradora da República em Altamira, Thais Santi, comunicou ao IBAMA o descumprimento da ordem de suspensão das “remoções” e demolições no caso de Raimunda. “A violência dessa atitude de demolir e incendiar a casa dessa moradora é imensurável, pois simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo diante de tantos pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a mesma postura. A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a procuradora. “A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de que, independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”

O Ministério Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo Monte, por descumprimento das medidas obrigatórias de redução e compensação do impacto da obra sobre o meio ambiente, os povos tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma delas conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. Seis delas tiveram decisões favoráveis, que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do “interesse nacional”. A Defensoria Pública da União acaba de entrar com uma ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a violação de direitos dos atingidos pela barragem.

Nem o IBAMA nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento da reportagem.

Diante das cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa.

– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem comigo.

Raimunda buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.

– Agora eu não tenho mais quem me guie.

Raimunda então canta diante das cinzas.

– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.

O Antes: O pai ensina Raimunda a caminhar sem fazer barulho

Raimunda desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha, caminho com qualquer calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço uma brincadeira que só uma branca que leu muitos contos de fadas é capaz de fazer: “Andar de princesa, né, dona Raimunda?”. Ela me chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa dos outros”.

 Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte


Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

O pai é a raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento enquanto apresenta a dissolução do seu mundo, como se um pudesse costurar o rasgo do outro. Natalino Gomes era bisneto de escravos com muita dor no falar, e uma avó índia canela para apimentar o sangue africano com tropicalidades.

– Meu bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu pai, e assim sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai, porque só sabia trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio de dinheiro, nem sabia ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer barulho ao andar. Eu fui criada nessa cultura do sim senhor, não senhor. Mas, não, nunca me acostumei.

Talvez Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca Gomes. Ela era mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do pai. A mãe era alegre, era livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto a pobreza permite. Um livre de viver em outras realidades, para além das correntes. A mãe era também arretada, não deixava homem nenhum botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o marido. Quebradeira de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de meninos rodopiando ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos, quebra-os com o facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício que mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros. Mas isso foi antes de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10 anos de idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para ver no que dava. Escola, não conheceu.

Raimunda avisa:

– Eu não levo recado, eu dou.

E então dá:

– A escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e crua. Num outro modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter direitos. Olha o que aconteceu com a minha pessoa e com milhares de outros com essa Belo Monte? E cadê a Justiça? Taí, um monte de injustiças na cara da justiça. Então, sou escrava.
Em seguida, Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

 

 

 

 

 

 

 

 

– O negro sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira. Ou na terceira, quem sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É quase impossível.

Se as correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai de Raimunda, ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa esperança fininha que circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje andam o mapa inteiro em busca de uma terra sem dono, que ele carregou a família para a Amazônia, no encalço de uma terra para quem nada tinha. Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz que o pai morreu escravo. Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em casa alheia, também nas Amazônias do Pará.

Para ela, o pai legou uma série de dizeres, e também algumas profecias. Uma delas é esta, na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o passado de escravidão e o presente de escravidão, entre o desterro de um continente ao outro e o desterro dentro do desterro.

– Meu pai dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí, o dinheiro. Não foi isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo, derrubando, passando por cima e jogando umas migalhas de papéis que são os dinheiros que eles dão. Não veem que acabaram com aquela pessoa por dentro quando lhe tiram a sua casa. Entendeu? Tiram tudo da pessoa e jogam uns papeizinhos, daí fica assim. Entendeu?
Como João, seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para concluir as frases, fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do interlocutor. Mas a esse “entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda acredita que ainda pode ser compreendida.

E assim, continua.

– Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de dinheiro e vê o que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma sacola de dinheiro, perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma planta, você acha uma fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o que você precisa pra viver, pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E você, com dinheiro, você morre com ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem uma raiz que ninguém pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava prevista por aquele que arrastava as correntes, a sensação de que tudo está para além de qualquer controle é brutal, mas não a paralisa: “O papel acabou com o mundo, como meu pai dizia. Ele sabia”. O pai também dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se verá mais adiante, sempre dá jeito de encontrar uma trilha.

O Antes: abandonado pelo pai, João ganha o trecho e vira barrageiro

João também nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de pertencimento para ele. João não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um indo. Seu pai foi acometido por uma febre mais forte do que a malária, e que dura muito mais. E às vezes também mata. A do ouro. “Bamburrar”, encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma fotografia empoeirada no passado, é o que faz bater o coração de milhares de homens Brasil afora. A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo veio de ouro, eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de arara, em pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma vida de aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro me disse, de personagem de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não sabia ler.

Como costuma acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados toda vez que recusam seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte, os garimpeiros são tratados como bandidos, enquanto as grandes mineradoras, as multinacionais, as que arrasam enormes porções de floresta e concentram o lucro, estas são purificadas pela palavra “negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”. Essa metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar imensa jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá vivem há décadas. Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com os povos tradicionais, que pertencem à floresta e a preservam para o Brasil e o mundo.

O pai de João era um destes homens febris, que abandonou a família e também esse filho pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha terra no chão nordestino e até um pouco de gado, mas não era homem plantado. Embrenhou-se nos garimpos de Itaituba, no Pará, lá onde hoje cresce o cerco do governo para mais duas grandes hidrelétricas: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Como a maioria dos garimpeiros, encontrou uma mulher nova, e possivelmente várias outras. As prostitutas chegam antes dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com eles. Lá são chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser mulher de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de gramas de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que se forma no garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam. Quando o pai veio buscar o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde para um encontro que nunca houve. O pai tentou duas vezes, numa delas apareceu até de avião. João desacreditou das asas do pai e recusou-se a seguir com ele. Preferiu fazer-se homem quando ainda era menino.

Primeiro João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade, um fiapo de gente. Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das palavras mais enigmáticas na linguagem variada dos Brasis, que vai ganhando significados diferentes país afora. O trecho é o mundo, é a estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe de possibilidades. João viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais pedras do que podia, inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a vida de menino pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado pelo pai, que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.

João não se filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele não se considerava mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação. Entre as sinas dos brasileiros pobres, ele escolheu a de se tornar barrageiro, um operário de barragem que vai seguindo a trilha dos grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma grande usina para construir, alista-se em contratos fora do país, negócios assumidos pelas gigantes do setor de construção. “Trabalhei na Mendes Júnior, trabalhei na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na Odebrecht, trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram umas 12 firmas que eu trabalhei.”

João foi peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil. Nos anos 50, no governo democrático de Juscelino Kubitschek, as empreiteiras construíram Brasília e nunca mais saíram do centro do poder. Cresceram e multiplicaram seus lucros logo em seguida, nos grandes projetos da ditadura civil-militar (1964-1985), com ênfase nas obras megalômanas na Amazônia, como a Transamazônica, uma entre tantas que aniquilaram floresta e vidas. Seguir o dinheiro das grandes empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do Brasil, um período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros 15 anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia, acusados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação investiga a corrupção em contratos da Petrobras e, mais recentemente, também do setor elétrico. Delatores já revelaram a prática de propina em Belo Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.

No começo de sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal. Depois, conquistou uma profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua primeira grande hidrelétrica foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional que afundou uma das maravilhas do mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade sem reparação. Mas foi só em outra hidrelétrica, Tucuruí, que João compreendeu seu papel descartável no jogo comandado por reis e depois por uma rainha. No momento dessa descoberta, João começava o capítulo definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.

O casamento: João e Raimunda se encontram num “pancadão”

Raimunda tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa. “Eu olhei ele, ele olhonimim.” Foi assim, entre o azulado do olho de João e o negro de Raimunda, que se quiseram de imediato. Raimunda foi logo avisando que não era “da tradição de gente que se junta, se quiser me dê aliança e sobrenome e vamos fazer história”. Fizeram. Tempos depois se oficializaram num casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido lilás, segundo ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de filhas, no total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses, batizado como Leodeí:

– Eu trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era militar. E ele morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei aquele nome na cabeça, Indonésia… E o sonho da mãe era conhecer essa cidade porque o filho morreu, ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os restos mortais, mas não era mais o filho. Eu fiquei pensando comigo… Indonésia… Se a Indonésia é uma cidade que foi guerreada numa guerra inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha filha tenha esse nome. Aí coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia, a Livia, a Liviane, a Leidiane, a Luciene e a Liliane.

Lindionésia é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda atravessarem uma vida de guerra, a paz inscrita no corpo de letras da filha. A saga, porém, ainda não tem conclusão na concretude dos dias. A paz, na vida de Raimunda e de João, ainda não deixou de ser palavra para virar a coisa que representa. O “L” tem outro porquê:

– É de liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas filhas fossem livres, que tivessem livre expressão de estudar, de brincar, de ser o que quisessem na vida.
Raimunda persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não deu certeza.

– Meu pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele não deu como certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo procurando a paz.

Nesta busca, um dia João apareceu anunciando:

– Tão contratando em Tucuruí.

Foi ali que Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce pra barragem”. E a condição de peão revelou-se para João em toda a sua magnitude. Se antes ele andava de barragem em barragem, de obra em obra, agora ele tinha uma família. João não podia mais percorrer o trecho, ele precisava enraizar-se. Enquanto uma das barragens mais devastadoras da ditadura era construída também pelas suas mãos, no rio Tocantins, no Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa. Ao final, descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:

– Meu João trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu conta que tava feito pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia em que ele bota o ovo, ele começa a desmantelar o ninho. No dia em que termina de tirar o derradeiro fagulho do ninho, o filho já foi embora. E ele tava fazendo isso, mesmo. Porque ele trabalhou, comprou uma terra e uma casa com o dinheiro da barragem que construía, e essa mesma barragem alagou tudo nosso.

 A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura: Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica


A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura:
Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica

– E lá a gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que aconteceu? Meu lote valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro muito alto. Então, a Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe depositar esse dinheiro sem o título da terra”. Nós tinha terra legalizada. E nunca mais nós vimos esse título. E não podia provar, porque era a palavra deles contra a nossa. Então, além de perder tudo, ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava lá. Por isso que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o que fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada. Deram outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos nem as pragas. A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a vegetação. Se formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O que que nós fizemos? Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na beira da Transamazônica) no finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988 fomos pra Altamira.

Em Altamira, João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a floresta. Mas isso foi depois.

Antes, João passou por ainda mais duas provações. Logo depois de Tucuruí, ele partiu para o Iraque, contratado pela construtora Mendes Júnior Internacional. João, que se sentia vítima de uma guerra não declarada, foi despachado para o outro lado do mundo, para construir “uma pista para tanques de guerra”. Sofreu um ano longe da família. Quis voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou a Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda. Terminou dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como uma prova de que o amor deles constrói pontes entre exílios.

Depois da expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se uma documentadora. Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis. João também mudou. Da experiência de construir em países do Oriente Médio, ele faz uma analogia com Belo Monte:

– Conheci vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país brasileiro, em lugar com terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de matar hoje e o dia de matar amanhã. Entendeu? Justiça não existe.

Em outra ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de trabalho. Explica com essa lembrança por que não é capaz de pedir esmola, embora não tenha mais como ganhar o pão, desde que foi expulso da ilha:

– Eu nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra isso. Eu tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. Entendeu? Numa ocasião eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá perto de Marabá (Pará). Eu tava com 50 contos. E já tava com três dias sem comer. Não comia porque aquele dinheiro era pro transporte. De noite eu tô num banco lá na rodoviária, um cara diz pra outro: “Rapaz, lá na cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por 3 e por 4”. Eu saí e comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco. Cheguei lá, eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi logo a placa. “Não ficho ninguém. E não insista”. Mas eu, pra tirar a dúvida, tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui caçar emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes que tavam comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio dia, eu voltei lá e falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não tenho dinheiro pra nada. Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha, deixa a boroca (bolsa) aí. Você trabalha de estivador?”. Eu respondi: “Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma carreira com oitocentos sacos de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o que acontece? Antes do meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma garrafa de água assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo, até que eu arriei mesmo. Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar. Queria que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz assim, botei um pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade. Aí saí pra beber um copo de água. E vomitei tudinho. Na farmácia tomei uma injeção. Aquela injeção pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco trabalhando. Mas nunca perdi a resistência e nem a esperança. Mas, muié, o que faz eu perder tudo é na situação que eu tou. Com que força eu vou trabalhar, agora que tou velho e doente? Eu não tenho mais resistência pra começar tudo de novo. E não sei pedir.

Quando reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes, João encontrou-se.

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A virada: João e Raimunda se descobrem ricos

A virada do milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um contra ou um fora, mas como parte. Depois de peregrinar pelo que era chamado de progresso e só encontrar tribulação, João e Raimunda foram acolhidos por uma das centenas de ilhas do Xingu. Aprenderam a extrair o alimento da floresta, a plantar sem violar a terra, a pescar e a navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos pescadores e agroextrativistas, que vivem em dupla casa, uma na rua, uma na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta chama a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo. A casa na rua é para a venda dos produtos na feira, para resolver as oficialidades da burocracia, que sempre são muitas, para buscar tratamento para doenças mais enroscadas, para o estudo dos filhos; a casa na ilha ou na beira do rio é onde se ganha a vida e se vive livre. Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram que haviam chegado. Tinham um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.

Trataram de enraizar-se fundo. A vida era assim:

– Tinha nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão, o milho, o abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a chicória. Tudo isso era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do rio, eu tirava a cédula maior. Vinha pra cidade com as coisas que plantava, e com o meu peixe, e já cheguei a fazer mil e duzentos reais na semana, em dinheiro livre. Eu mesma ficava mais na rua, porque comecei a me envolver com movimento social. Meu marido morava lá na ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o peixe na feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era essa. Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa vida era um vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem ele lhe entende. Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É uma parceria entre você e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e o rio é a minha lousa.
Primeiro João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de Altamira, depois construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão de esclarecer que mesmo na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque gosta muito de suíte.

– O sonho de uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no chão. O rio nos deu. Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar minha televisão, meu fogão a gás, meu botijão. Consegui comprar a minha cama, o meu colchão do jeito que eu queria. Eu fui na loja, comprei, porque eu sabia que o rio ia me dar retorno, eu ia poder pagar a prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito, era meu supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio. Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a terra dava.

Já não eram mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente chegado. Raimunda então entranhou-se nas lutas de Altamira e da Amazônia. A das mulheres, a da terra, a do meio ambiente. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se militante de movimentos sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um ir, mas um ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela primeira vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.

Desde os anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma ameaça que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país. No passado, a Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito de guerra na língua dos Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a índia Tuíra encostou um facão no pescoço do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Tuíra demonstrava no gesto a resistência à barragem de um rio mítico, que era vida, cultura, espiritualidade e sustento para os povos tradicionais. A fotografia correu mundo. A Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte. Nenhum governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos movimentos sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do povo que conhecia a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda achou que a paz tinha chegado. O talvez do pai virava certeza.

É nesse momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de Raimunda. E torna-se sua mais íntima companheira. “É uma neguinha, cabelinho ruim, amarradinho”, descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a primeira boneca da vida de Raimunda. Ela estava num encontro de mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem vendendo bonecas na rua. Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já tinha se encantado. Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por uma freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma criança pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de crianças pobres. Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na Marcha das Margaridas, das trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas e quilombolas, na Rio+20, por todo canto. Escondida, porque João garante que “vão bulir” com Raimunda se descobrirem que ela carrega uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A Sofia significa para mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza Raimunda.

É no momento em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.

– Eu não fui criança, porque trabalhei muito. Também não tive juventude. Por isso não dou minha velhice. Não abro espaço pra ninguém. Minhas filhas dizem que tou ficando perturbada. Nada, eu tou é vivendo.

Raimundo com a boneca Sofia

Raimundo com a boneca Sofia

Demorou alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido traídos. Lula era um sindicalista do ABC paulista, sua visão de mundo era a da indústria, do concreto, da cidade grande. Progresso, para um operário, era ter carro, TV de tela plana, churrasco no fim de semana. Progresso, para um país, era transformar a Amazônia em soja e pasto pra boi, exploração de minérios por grandes mineradoras para exportação de commodities (matérias-primas). Lula não tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta. Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a Amazônia era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão de segurança nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação. A única voz no governo federal e no PT com alguma força para se contrapor a essa visão estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista que se criou nos seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só suportou a pressão até 2008, quando deixou o Ministério do Meio Ambiente e logo depois o PT.

Raimunda e as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais que somente Lula poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os compromissos de campanha, por um lado o PT no poder desmobilizou os movimentos sociais, por outro os cooptou. A resistência, que por décadas foi coesa, rachou. O setor elétrico atravessou governos como um feudo do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB). Um exemplo: José Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no pescoço, em 1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado diversos outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A Eletronorte é a mesma antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a coleira, o cachorro é o mesmo.” Mas só o PT e Lula teriam força política para minar a resistência e fazer de Belo Monte uma realidade de toneladas de concreto no meio do Xingu.

Essa é a arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra gigantesca e ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o passado e o grupo do presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava Jato possa começar a desvendar. São também esses interesses que atravessam governos que podem explicar por que Belo Monte vai se tornando fato consumado, mesmo violando a Constituição, com um governo cada vez mais fragilizado e parte dos donos das empreiteiras que a constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando totalmente desfeito, revelará o Brasil.

Para Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava um partido a mais no poder, mas um projeto político que se confundia com sua busca de um lugar no país – e com a crença de que esse lugar existia. O simbolismo para ela era uma literalidade. Ao sentir-se traída, desacreditou:

– Se o Lula visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É difícil pra mim falar isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E eles nos traíram. Porque o Lula disse claramente que Belo Monte não ia sair. E depois a Dilma falou que Belo Monte era preciso, que não tinha como voltar atrás. Eles são traidores da humanidade. Ah, meu pai do céu! Se eu visse eles, eu não diria. Eu avançaria na cara deles tudo, pra tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação? Eu não voto é mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu rasgava. Como eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu voto na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu plano.

Belo Monte é onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de ser: os mais frágeis e os mais desprotegidos, os historicamente arrancados da sua terra, como os indígenas, os historicamente exilados dentro do próprio país, como Raimunda e João. É nesse ponto do mapa, a última fronteira para quem palmilhou o Brasil inteiro em busca de paz, que o discurso petista em defesa dos pobres gira em falso há muito mais tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul, essas vozes foram ignoradas.

Raimunda quer falar:

– Eu vou dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão noiados, tão tudo grogues por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção do tamanho desse monstro aí no Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer quando começar a funcionar. Ninguém.

Barragem

Barragem

Interrupção: “Belo Monstro” barra a vida de Raimunda e de João

Depois de travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia, João não voltou mais a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em maio de 2015, Raimunda o levou para a capital, Belém do Pará, em busca de tratamento. Só voltariam de lá no fim de agosto. Nesse período, as filhas trataram de fazer a mudança da casa na cidade, porque sabiam que a mãe não permitiria se estivesse em Altamira, disposta a resistir até que o valor fosse justo. Quando Raimunda e João voltaram, já não tinham mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais, valor insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas dos vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade. A canoa São Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado tantas e tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto deslocado nos fundos da casa, em terra firme e a quilômetros do rio. Raimunda planeja fazer dela um banco para visitas quando a casa ficar pronta.

Dos três cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não suportaram viver amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um cachorro grande, mestiço de Fila, que se instalava na proa do barco para cuidar da casa na ilha, quando os donos estavam fora, morreu primeiro. “Dei esse nome porque ele era um lorde”, explica Raimunda. Xena, uma pitbull que ganhou o nome por ser “tão autoritária quanto a princesa”, personagem de filmes e de animação, foi a segunda a amanhecer morta. “Eu não podia deixar eles soltos na rua, porque na cidade eles são violentos. Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha deixado eles morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta uma Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa coleira que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo pra uma casa que não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela já tinha veneno. Essa Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O único que restou foi o vira-lata Negão, “um cachorro que não se emociona assim tão fácil”. Negão, sem nome de princesa nem de barão, é um sobrevivente. Como Raimunda.

Ela documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de Belo Monte”. Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de suas filhas chegaram a trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na cozinha, outra na mecânica. Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem dinheiro de jogo, vocês não podem fazer isso comigo”, esbravejou. “Demorou, mas libertei minhas filhas.” De máquina fotográfica cor de rosa em punho, registrou até a Força Nacional protegendo Belo Monte do povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.

A documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo brutal e poético. Enquanto ela mostra as imagens, vai narrando a sua travessia.

A vida antes de Belo Monte:

– Documentei toda a minha história esperando o futuro, e o futuro taí. Antes de Belo Monte, a minha história era essa. Ó, a minha casa. O meu plantio, o meu pomarzinho, tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho. Aqui o meu velho com a roça dele, limpando o chão. Aqui é capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas coisa assim. Aqui é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de murici! Eles queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira, muito bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso aqui, pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui que eu tou falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o primeiro que eu via. Meu pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O meu outro cachorro, que morreu só de tristeza porque não era acostumado com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente vai parar.

A vida durante Belo Monte:

– Agora vou lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de vaivém, vaivém, vaivém. Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu fogão a gás, à lenha… A sobrevivência do rio é muito gostosa. Pra quem sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá valor. Meu marido roçando… Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva, então já tava se prevenindo. O meu cachorro, que já não tenho mais…O outro cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira, esperando sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por causa das galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu certo, porque as galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu velho branco de olho azul, um gato. Que hoje tá… Eu digo pra ele que ele não tá inútil, porque eu ainda vejo ele na minha frente. Então, ele ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da ilha, aqui, que é onde ela tá produtiva. Deixa eu lhe mostrar aqui…As plantas que foram queimadas. As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram com tudo. Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por conta que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as cebolinhas…Cheiro verde… Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra dor de cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui eu, dentro d’água, que eu adoro água, também. Aqui, eu com medo de uma cobra, que ela tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi mais rápida que eu, foi embora. A gente dorme na rede durante o inverno. O meu neto, que ia pra ficar umas férias comigo. Meu pé de capim-santo, ele também não morre na água, ó, fica um tempo submerso. Só se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre. Mas, se ele respirar, ele não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era uma casa. Bananeira… ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de pé. Olha lá o milho. Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo da cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso aqui… é o fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito importante. Porque eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de mim. Porque a gente era como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o milho lá atrás. Olha esse cacho de banana, o tamanho. Deixa eu pegar pra você ver. Essa aqui, olha, além de ser uma fruta pra alimentação, ela é um antídoto contra inseto. Tem o pescador que vive na ilha, e eu vivia da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente era amiga. Entendeu? Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se despede, vai embora.

A vida depois de Belo Monte:

– Aqui sou eu, pensando… Quando será esse dia, que eu não quero sair? O meu genro dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada, é isso mesmo. E eu falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui eu dizendo pras minhas plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só história, que eu não voltei. Meu véio pensando se voltava lá um dia, ou não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu falei: “Não sei, Deus que sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus que deixasse a gente ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo queimado. A Norte Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe mostrei, aquele murici, aquela coisa mais linda…Tá aqui, sapecado. Eu fui lá, registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo Monte. Aqui, ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma prova. Eles deixaram. Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça não se manifesta. Enquanto a Justiça tiver com aquela venda na cara, que é aquela estátua que fizeram lá em Brasília, é assim, ó. A Justiça só vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.

Raimunda quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um pescador: antes, durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que o único lugar seu será a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim, em branco da paz”.

Terceiro ato: o impasse

Raimunda desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja bem diferente daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que entre pela frente, quero uma porta que entre de lado, porque quero que meu futuro seja diferente. Então, comecei pela infraestrutura da casa”, explica. “Quando eu entrar nessa casa hoje, eu não quero chegar pensando que tou na outra.” Raimunda marcou toda a história na casa nova, ainda em construção: as paredes são verdes, “porque é a esperança no futuro”, os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da barragem”, as grades das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha vida tem uma história”, ela reforça. E tem.

Raimunda e João

Raimunda e João

Raimunda é uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a vida. João, não. No dia em que paralisou, ele perdeu a capacidade de criar sentidos. Por dentro, ainda está travado. João viu demais, e o excesso de lucidez o cegou. Agora, não consegue voltar. “Perdi a ponta da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de fato, toda hora, eu não tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu? Eu tou fora. Me perco. Não sei onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio, mas um rio de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu o rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”

É este hoje o impasse entre João e Raimunda.

Raimunda diz:

– Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou pindova e quero viver.

João responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:

– Mas eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha vida. Eu perdi a linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo escuridão na minha vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só vejo escuridão. Fico aqui, olhando pro mundo, procurando a mim mesmo. Quem sabe me responder essa procura? Ninguém. O buraco na minha vida, o buraco na minha vida…

O impasse atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu” dentro de casa. Raimunda conta:

– O João chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de mártir. Ele quer se matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem deixava ele ir. Se ele se matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra ser comido pelos urubus. Por isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde.

João encerra seu repente brutal:

– Eu quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

(Publicado no El País em 22 de setembro de 2015)

 

 

Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Foto: Bunche Center/UCLA

Foto: Bunche Center/UCLA

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

A primeira foto (1957)

A primeira foto, em 1957

Leia mais na minha coluna no El País:

“Todos os negros nascem num grande exílio forçado”

“O racismo já determinou que brancas são para casar, mulatas para fornicar e pretas para trabalhar”

“Para os que se dizem de direita ou de esquerda, não importa a verdade. Se você tem um adversário, você o elimina da forma mais eficaz: com calúnias”

“No Brasil, o racismo é o leite que amamenta o negro todos os dias”

“A penetração dos negros nas universidades, pelas cotas raciais, foi vivida pela sociedade branca como um estupro”

“Ao quebrar o mito da democracia racial, o movimento negro quebrou a ideologia sobre a qual se sustenta esse país”

Com Fidel Castro, em 1960

Com Fidel Castro, em 1960

“A descoberta de que os negros são maioria no Brasil gerou um pânico existencial na parcela branca da sociedade”

“Nos próximos 15 anos, a maioria negra vai ter que estar refletida em todas as instâncias de poder”

“Os brancos vão ter que negociar o poder no Brasil, como aconteceu na África do Sul. Não há mais como ‘branquear’ o país”

“Para uma parcela dos brancos, descobrir-se opressor é um grande problema. Esses brancos éticos serão uma reserva moral importante”

“Inventamos uma África mítica para resistir por 400 anos num sistema que dizia que não éramos humanos”

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley   em 1987

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley, em 1987

“Eu não estava fazendo uma história. Estava vivendo uma vida”

“Não me defino por nacionalidades. O meu lugar é o de viver de acordo com o meu
tempo”

“Me encontrei: posso olhar todas as diferenças e não me sentir ameaçado por nenhuma delas”

Com Malcom X, em 1974

Com Malcolm X, em 1974

 

LIVRO

“Pichón – minha vida e a revolução cubana” (Editora Nandyala) 

Lançada em inglês, em 2008, a autobiografia de Moore foi editada no Brasil graças a um financiamento coletivo. O vídeo abaixo foi feito para divulgar a campanha de financiamento.

Leia aqui a entrevista completa com Moore.

 

 

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