Quando a periferia será o lugar certo, na hora certa?

A maior chacina de 2015, em São Paulo, mostra que as palavras começam a matar antes da morte e seguem assassinando os vivos depois

As fotos do 13 de agosto mostram mulheres lavando o sangue dos mortos com rodo, como nos filmes B de terror. Se o rio vermelho escorre pelos degraus, as palavras ecoam para além da extensa fila de cadáveres. Elas matam lentamente, como balas em câmera lenta, que perfuram os corpos, se espatifam por dentro e vão corroendo os órgãos. Dia após dia, dia após dia, dia após dia. Mata-se e morre-se também na linguagem. As palavras silenciam os mortos para além da morte. E calam os vivos, mesmo quando eles pensam gritar.

1) “Estava no lugar errado, na hora errada”

“Ele nunca teve nada a ver com crime. Era pacato, de família. Estava no lugar errado na hora errada. O nome Deivison foi porque meu pai gostava das motos Harley-Davidson.”

(Jorge Henrique Lopes Ferreira, 31, técnico de celulares, sobre o irmão, Deivison Lopes Ferreira, 26, assassinado em 13 de agosto. O pai de ambos foi assassinado há 18 anos, no mesmo bairro, da mesma maneira, num crime jamais esclarecido.)

“O Thiago estava desempregado havia um mês, mas era uma pessoa excelente e infelizmente estava na hora errada, no lugar errado.”

(Alessandra de Lima, 37, dona de casa, sobre o irmão Thiago Marcos Damas, 32, assassinado.)

“Eu vou ter de voltar à normalidade, seguir a minha vida. Perdi um companheiro e um amigo. Por mais que eu queira, infelizmente não posso mudar de casa. Foi o caso de estar no lugar errado e na hora errada.”

(Jean Fábio Lopes, 34, ajudante em lanchonete, sobre o companheiro, Eduardo Oliveira dos Santos, 41, artesão, assassinado)

“Foi muito rápido e muito trágico. Estava no lugar errado e na hora errada.”

(Alberto Martins, sobre o irmão, Fernando Luiz de Paula, 34, pintor, assassinado)

“Estava no lugar errado e na hora errada” foi o comentário mais frequente dos familiares dos 18 mortos, seis feridos, na periferia de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na maior chacina de 2015. A expressão dá conta de uma máxima: “na periferia há preto ladrão, branco ladrão e aquele que está no lugar errado e na hora errada”. A frase também culpa, ainda que indiretamente, aquele que morre.

Por que, afinal, ele estava aonde não deveria de estar, do lado de fora, na rua? Não tinha nada de estar ali. Para não estar na hora errada, no lugar errado, é preciso ficar trancado dentro de casa. Se estivesse trancado dentro de casa, estaria vivo. Comentários como estes são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer se resignam a desistir do espaço público.

É a vida dos escravos, sonhada por seus senhores: de casa pro ônibus lotado, do ônibus lotado pro trabalho, do trabalho pro ônibus lotado, do ônibus lotado pra casa. Gente pobre não precisa de lazer ou o lazer é ver TV em casa, preferencialmente programas em que apresentadores, alguns deles com ambições eleitorais, criminalizam pobres e ofertam a imagem de seus corpos no altar midiático. Quem frequenta bar, sabe que pode morrer, é este o recado. Como na noite de 13 de agosto, como em tantas outras noites.

Como pode ser lugar errado e hora errada estar num bar perto de casa antes da meia-noite? Mas assim é. Se há um lugar errado e uma hora errada, supõe-se que existiria então um lugar certo e uma hora certa. Mas a periferia nunca é o lugar certo. Na periferia nunca há hora certa. Já nos bairros nobres de São Paulo, no centro expandido, todo bar é um lugar certo, toda hora é certa. Também na noite de 13 de agosto.

Nenhum dos homens e mulheres de classe média e alta que lotaram os bares da Vila Madalena ou do Itaim Bibi, na mesma noite e hora, jamais precisou pensar sobre a possibilidade de que encapuzados pudessem entrar e executá-los. Nem que as faxineiras no dia seguinte, elas que vêm do outro lado do rio, tivessem de limpar seu sangue com rodo. Não é preciso pensar nisso, nem faz qualquer sentido. Ser encurralado por encapuzados e executado a tiros nunca é a possibilidade no lugar certo e na hora certa.

Ao se depararem com o corpo de filhos, pais, maridos, irmãos, o que os pobres dizem? Ao se confrontarem com o cadáver de quem amam estirado no asfalto, à espera de ser recolhido, ou estendido numa maca no pátio aberto do Instituto Médico Legal, porque faltou geladeira para todos, o que eles afirmam? “Estava no lugar errado, na hora errada”. É a frase com que a mãe espera convencer a sociedade, pela derradeira vez, de que seu filho era inocente e não merecia ser morto a balas. Em seguida, o absurdo se naturaliza na matéria de jornal e vira normalidade: “A maioria dos familiares disse que as vítimas trabalhavam e não viu motivo para execuções”. Isso é quase tão desesperador quanto a morte, porque também é um tipo de morte. E também mata.

2) “Foi parecido com os outros crimes, por que não considerar?”

Qual é o número de assassinados que a sociedade paulista e também a brasileira considera motivo de alarme? Qual é o número de pobres e de pretos executados que atinge nossa sensibilidade seletiva? De quantos corpos é preciso para fazer uma manchete? Sabemos que, se o morto for morador dos bairros nobres, um já causa escândalo, como deve ser diante de uma vida destruída pela violência. Na periferia, é preciso muitos. Acabamos de descobrir que 18 é um número que impressiona. Para ser considerado chacina pelo Governo é necessário pelo menos três mortos. Só nos primeiros seis meses deste ano foram 10 chacinas no estado de São Paulo e 38 mortos, conforme levantamento do Instituto Sou da Paz, baseado em números oficiais, obtidos através da lei de acesso à informação. Neste ano, o número de chacinas duplicou, se comparado ao anterior, e o de vítimas triplicou. Segundo a Ponte, agência independente de reportagem, especializada em direitos humanos e segurança pública, as estatísticas são ainda piores. Só na Grande São Paulo foram 72 mortes em 2015. Em 7 de março, por exemplo, 10 pessoas foram assassinadas no Parque Santo Antônio, na zona sul da capital. Em 18 de abril, oito foram mortas na quadra da torcida organizada Pavilhão Nove, em Osasco, quando se preparavam para um jogo entre Corinthians e Palmeiras. Mas foi preciso um número maior, 18, para causar uma comoção que já começa a ser esquecida.

É perfurante o comentário de um amigo da vítima que foi tirada da lista. Sandro Afonso, 34 anos, ajudante geral, foi morto com quatro tiros em Itapevi, cidade próxima a Osasco e Barueri, na mesma noite. Ele seria o décimo-nono, mas o Governo considerou que o caso não tinha relação com a chacina. “Foi parecido com os outros crimes, por que não considerar?”, lamentou um amigo anônimo. A esperança desta família era que “o seu” fosse incluído no crime que dá notícia, para não ser mais um morto ignorado, o que multiplica as chances de um assassinato impune. Saiu da lista visível, entrou na lista quilômetros mais longa, a dos invisíveis. Seu assassinato perdeu o interesse público e midiático. Arrancado da vida, dificilmente será arrancado do silêncio na morte. Quando a esperança de quem chora o morto é de que ele entre na lista de uma chacina, a sociedade apodreceu.

3) “Ele era trabalhador”

“Era um trabalhador. Saiu para comprar salgadinho para a irmã e não voltou.”
(Tia de uma das vítimas assassinados)

“Ele nunca deu problema com a polícia, gostava de ficar em casa com a mulher, que está grávida de três meses.”

(Viviane de Lima, 27 anos, sobre o irmão, Rodrigo Lima da Silva, 16, assassinado)

“Ele nunca se meteu com nada de errado.” (Tânia Cristina César, sobre o irmão, Eduardo Bernardino César, 26, assassinado)

“Não usava drogas, era um homem trabalhador.”

(Ângela Maria Pereira, sobre o marido, Jonas de Santos Soares, 33 anos, operador de máquinas, três filhos pequenos, assassinado)

O desespero dos familiares para afirmar que seu filho, pai, marido, irmão, amigo morto, estirado no chão, com balas no corpo e sangrando, não era “bandido”, mas “trabalhador” aparece nos vídeos e nas declarações aos jornais. A afirmação expõe, ao mesmo tempo, a deformação e o derradeiro ato de amor. Nessa afirmação está implícito que, se fosse bandido, haveria uma justificativa para a execução. Quando a imprensa valoriza o fato de que 12 dos 18 mortos não tinham antecedentes criminais, é possível justificar o destaque dado à informação porque ela tornaria, em tese, mais distante a hipótese de acertos do crime organizado, assim como de mortes com identidades previamente determinadas, e não aleatórias, como parece ter sido. Mas também reproduz a ideia amplamente disseminada em todas as camadas da população de que criminosos podem – e devem – morrer, ainda que no Brasil não exista oficialmente a pena de morte.

Se tinha ou não antecedentes criminais é, afinal, a mesma interrogação dos assassinos de 13 de agosto. Ao chegarem ao local, segundo testemunhas, os encapuzados perguntavam quem tinha antecedentes criminais. Em alguns casos, teriam matado aqueles que responderam que já haviam cometido delitos. Em seguida, são os jornalistas que perguntam. Logo depois, é a vez da população, que comenta a tragédia, e decide a partir dessa informação se cabe ou não compaixão. A lógica reproduzida por todos os atores dessa história macabra é a mesma, portanto. E o fato de ser a mesma é aterrador. E se 18 dos 18 mortos tivessem antecedentes criminais, isso significaria que a chacina seria menos terrível ou que o assassinato de alguns pode ser tolerado pela sociedade, quando não desejado? Como o comentário do filho adolescente de uma amiga, ao chegar de uma das escolas de elite mais incensadas de São Paulo, excitado com a notícia: “Mãe, a polícia matou 20 ladrões em Osasco!”.

É doloroso testemunhar o desespero dos familiares, ao explicar e explicar e explicar mais uma vez, aos repórteres, que seu morto era “trabalhador”, era “bom”, era “família”. Fazem a defesa pungente da memória dos que amavam, reproduzindo no ato todo o discurso que os aniquila há séculos. Como repórter, uma das cenas que mais me dilacera e que se repete quase toda vez que piso pela primeira vez na casa de alguém que mora na periferia é quando me estendem sua carteira de trabalho para provar que não são bandidos. Homens e mulheres sofridos, assinalados pela vida dura, que sabem que já nasceram sob suspeição porque são pobres, e mais suspeitos tornam-se se ainda por cima forem também negros. E eu, branca e jornalista, sou decodificada como uma autoridade a quem também é preciso estender a carteira de trabalho. Recuso, digo que não precisa, repito que não devem. Insistem. Eu pego, morro um pouco. Neste gesto, toda a falência do Brasil é consumada.

4) “Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar.”

A principal linha de investigação do massacre de 13 de agosto aponta para a vingança, por parte de policiais militares, pela morte de um colega durante um assalto, ocorrido na semana anterior, na mesma região. Na maioria das demais chacinas, também há suspeita de envolvimento de policiais. O 13 de agosto prova, mais uma vez, que as periferias paulistas vivem sob estado de terror, provocado por uma guerra não declarada. Nela, tombam os mais pobres, a maioria deles negros.

Em 2014, a Polícia Militar paulista matou 926 pessoas, no trabalho ou fora dele – e 75 policiais foram mortos. É a maior letalidade policial desde 1995, quando os dados começaram a ser divulgados pelo Governo. Com informações do Centro de Inteligência e da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, o repórter André Caramante mostrou que a PM mata uma pessoa a cada 10 horas em São Paulo, cinco a cada dois dias. Só no primeiro semestre deste ano, segundo a Folha de S. Paulo, 358 pessoas foram mortas no estado por policiais militares e civis no exercício da função – e 11 policiais morreram.

As mortes fora de serviço são chamadas, na gíria da polícia, de “caixa 2”, como mostra outro jornalista especializado em segurança pública, Bruno Paes Manso. Em blogs e redes sociais, policiais exibem fotos de suspeitos e estimulam a violência não como exceção, mas como regra. Como comportamento e forma de atuação, aberta e cotidianamente. É comum a morte de suspeitos, “os malas”, corruptela de “malacos”, serem divulgadas e comemoradas pelo WhatsApp: “Mala bom é assim, mala morto”. Ou, meses atrás: “Os três vermes, agora há pouco, deitaram no mármore gelado do IML. Vagabundos perigosos. Parabéns aos policiais envolvidos na ocorrência”.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), afirma que o mais importante é esclarecer a série de crimes e prender os assassinos da chacina de 13 de agosto. Não basta. Se for comprovado que os autores da noite mais violenta de São Paulo são policiais, é hora de enfrentar com seriedade a necessidade de refundar as polícias. Passou da hora, já que o envolvimento de policiais, especialmente militares, em grupos de extermínio, é bem conhecido. Uma polícia militar num regime democrático já é uma contradição em si. A deformação estrutural prejudica os bons policiais – sim, eles existem – e mergulha a população das periferias no horror cotidiano, vítimas de uma guerra não declarada oficialmente, colocada em curso por agentes do Estado, cuja rotina de vinganças é exibida sem pudor em manifestações nas redes sociais, por parte dos membros da corporação, e tolerada por quem deveria puni-la. É preciso enfrentar a estrutura. É preciso formar uma polícia que cumpra a lei e proteja os cidadãos, em vez de assassiná-los.

É isso ou assumir o estado de terror expressado nesta frase: “Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar”. A afirmação foi feita por uma mulher de 50 anos, costureira, amiga de uma das vítimas. Há três anos ela perdeu o filho em outra chacina na cidade. Se ela já sabe qual é o modo de operação de uma parcela da polícia, como o Governo não sabe e não toma providências antes do fato consumado? O mais brutal dessa frase, porém, é a certeza dessa mulher de que nada vai mudar e que os seus continuarão morrendo. Essa certeza é um dado da sua vida, tão imutável quanto a Terra girar ao redor do Sol. E ainda mais brutal do que isso é que ela tem razão. Não há nenhum fato, nem agora nem no passado, que se possa apresentar a ela para provar que, sim, algo vai mudar. Há promessas. Fatos, até agora, não há.

O discurso que atravessou o sepultamento das vítimas pode ser resumido pela frase de outra mulher, esta irmã de Eduardo Bernardino César. Ela disse, ao enterrá-lo: “Se forem mesmo (PMs), não vai ter investigação, porque a polícia não vai atrás de polícia”.

Esta é a credibilidade da polícia e do governo de São Paulo entre os mais pobres. Uma convicção construída e comprovada no cotidiano. Dia após dia.

5) “Meu filho morreu. Continuarei meus corres”

O massacre dentro do massacre, a morte no interior da morte, o assassinato além da carne é a frase de uma mãe. Zilda Maria de Paula perdeu Fernando, 34 anos. Ele era pintor de paredes. Estava tomando cerveja com os amigos, pouco antes das 21 horas, num bar de Osasco, quando os encapuzados entraram e ele tombou ao lado de outros sete. Era a primeira execução da noite de 13 de agosto. Sua mãe disse à reportagem dos jornais Folha de S. Paulo e Agora:

– Só sei que meu filho morreu. Não vou usar camiseta com a foto dele, não vou pedir justiça. Continuarei meus corres porque ninguém vai me ajudar.

Neste domingo, ela foi a única familiar a participar de um ato contra o genocídio na periferia, em Osasco, que reuniu apenas 50 pessoas, num cenário de ruas esburacadas, escassas árvores raquíticas e casas de tijolos aparentes. Vários parentes das vítimas do 13 de agosto teriam se recusado a comparecer por medo de retaliação policial. Zilda planeja uma missa de sétimo dia: “Estou aceitando a morte do meu filho, mas não como foi. Ele tinha dois metros de altura. Só pôde se proteger colocando a mão na cabeça e se escondendo atrás de uma máquina. Quero reunir quem está junto na mesma dor. Fazer algo civilizado, para não dar motivo para a polícia reprimir”.

Perto dela, uma mulher que não quis se identificar afirmou: “Quando acabar o ato aqui, o que vai acontecer? O silêncio vai voltar”.

6) Epílogo: na Avenida Paulista, selfies com a polícia

Nesta mesma tarde de domingo, 16 de agosto, a alguns quilômetros dali, era outra a cena. As pessoas “de bem” que se manifestavam pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff reeditavam sua admiração e confiança em uma das polícias que mais mata no mundo. Apertavam a mão de policiais, davam parabéns pelo bom trabalho. Depois, tiravam selfies. Abraçadas aos PMs, fazendo sinal de positivo. Não foram registrados protestos contra a chacina de três dias antes.

Na larga Paulista, a avenida-símbolo da pujança de São Paulo, ocupada por cerca de 135.000 manifestantes, a maioria deles homens, autodeclarados brancos e com curso superior, segundo pesquisa do Datafolha, era como se nada tivesse acontecido do outro lado do rio, as pontes dinamitadas também por mais esse gesto. Era como se não existissem 18 corpos furados à bala e chorados por dezenas nos cemitérios das periferias da Grande São Paulo. Os cadáveres não foram lembrados nem por compaixão, nem por decência. Nem mesmo por vergonha. A suspeita de que o massacre tenha sido cometido por policiais não parece ter abalado os manifestantes. A maioria sequer parecia perceber a obscenidade do seu gesto ao pedir um selfie, esquecendo-se ou fingindo esquecer-se de que cada policial ali representa não a si mesmo, mas a instituição marcada por uma letalidade criminosa.

Executar pobres a tiros nas periferias parece não ser considerado corrupção pelos manifestantes da Paulista. Faz todo o sentido. É essa polícia que garante que só morram os do lugar errado, hora errada. As pessoas “de bem” estão no lugar certo, hora certa. Clamam contra a corrupção vestidas com a camiseta da corrupta CBF, o que de novo faz todo o sentido. E vão à Paulista também para garantir que continuem a estar sempre no lugar certo, hora certa.

(Publicado no El País em 19 de agosto de 2015)

Por quem rosna o Brasil

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez

 

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma “democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou. Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.

Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam neste momento de esquina do Brasil.

É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere qualquer falsificação ao vazio.

Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor. Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e, assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de encarcerados.

Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.

A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que continue exatamente assim.

Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.

Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal. Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.

Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E bastante crua.

O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias, nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de “catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina” para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.

Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso democraticamente eleito, formado por um número considerável de oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas Eduardo Cunha é nosso.

Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de 2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora” – não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários. O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido, intérprete confuso de um Brasil que já não existe.

Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto, cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se quisermos construir uma outra, menos brutal.

O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões de fundo.

A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das relações sociais e para a violência.

Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional (17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.

(Publicado no El País em 03/08/2015)

Por quem rosna o Brasil?

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez

 

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma “democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou. Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.

Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam neste momento de esquina do Brasil.

É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere qualquer falsificação ao vazio.

Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor. Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e, assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de encarcerados.

Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.

A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que continue exatamente assim.

Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.

Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal. Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.

Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E bastante crua.

O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias, nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de “catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina” para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.

Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso democraticamente eleito, formado por um número considerável de oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas Eduardo Cunha é nosso.

Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de 2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora” – não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários. O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido, intérprete confuso de um Brasil que já não existe.

Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto, cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se quisermos construir uma outra, menos brutal.

O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões de fundo.

A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das relações sociais e para a violência.

Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional (17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.

(Publicado no El País em 03/08/2015)

“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”

A pergunta de criança denuncia a vida entre muros do condomínio chamado Brasil

 

Uma amiga me conta, na volta de uma viagem a Paris com a família. “Só quando estava lá é que percebi que minha filha estava, literalmente, andando na rua pela primeira vez”. A menina tem quatro anos. Classe média. Mora em São Paulo, num condomínio fechado. Do condomínio, vai de carro para a escola privada. Da escola privada volta para casa. No fim de semana, fica dentro do seu condomínio ou vai para outros condomínios, de casas ou prédios, cercados por muros ou grades, com guaritas e porteiros. Ou vai a shoppings, onde chega pelo estacionamento, de onde sai pelo estacionamento. Desloca-se apenas de carro, bem presa na cadeirinha, protegida atrás de janelas fechadas, vidros escurecidos com insulfilm. De muro em muro, a criança passou os primeiros quatro anos de vida sem pisar na rua, a não ser por breves e arriscados instantes. E apenas quando a rua não pôde ser evitada. E apenas como percurso rápido, temeroso, entre um muro e outro.

A cidade é uma paisagem do outro lado do vidro, uma paisagem que ela espia mas não toca. O fora, o lado exterior, é uma ameaça. O outro é aquele com quem ela não pode conviver, tanto que não deve nem enxergá-la. Até mesmo contatos visuais devem ser evitados, encontros de olhares também são perigosos. Qualquer permeabilidade entre o dentro e o fora, entre a rua e o muro, seja na casa, na escola, no shopping ou no carro, ela já aprendeu a decodificar como intrusão. O outro é o intruso, aquele que, se entrar, vai tirar dela alguma coisa. Se a tocar, vai contaminá-la. Se a enxergar, vai ameaçá-la.

A rua, o espaço público, é onde ela não pode estar. E por quê? Porque lá está o outro, o diferente. E ela só pode estar segura entre seus iguais, no lado de dentro dos muros.

Minha amiga chocou-se, de repente desconhecida de si mesma. Tinha passado os primeiros quatro anos da vida da filha preocupada em descobrir qual era a casa mais protegida que poderiam comprar juntando as economias dela e do marido, a casa dentro de muros, mas com espaço de convivência, com um “playground” em que as crianças de dentro, as crianças “certas”, se encontram. Em seguida, preocupada em escolher uma escola que garantiria mais habilidades competitivas quando a menina chegasse à vida adulta e que também fosse uma escola protegida, na qual a filha ficasse segura no lado de dentro. Não tinha sequer percebido que estava criando uma criança com horror a todos aqueles que estavam do lado de fora dos muros e com pavor de pisar na rua.

Outra mãe, esta de um menino, ficou sem respostas diante de duas perguntas sequencias do filho pequeno: “Por que ela é marrom?”, o menino perguntou, referindo-se à empregada. E, logo em seguida: “Onde dormem as pessoas marrons?”, já que as “pessoas marrons” deixavam os muros ao final do dia, tanto na casa dela quanto na casa dos amiguinhos, mas ele não sabia para onde iam. Outro condomínio?

Podem parecer acontecimentos banais para alguns, afinal, os tempos são assim. Podem parecer histórias de terror, para outros, afinal, os tempos são assim. Para mim as crianças denunciam a brutalidade do país que criamos para elas, fazendo as perguntas que os adultos preferem não fazer a si mesmos. Não sabemos que pessoas serão estas que crescem entre muros e que aprendem a escanear o outro, o diferente, como ameaça.

Mais preocupados devemos ficar quando a resposta da Câmara dos Deputados à violência se encaminha para a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, nos crimes considerados mais graves. O que estão tentando fazer, estes que manipulam o medo? Querem garantir que esses outros, adolescentes que não tiveram educação nem saneamento nem saúde nem lazer nem acesso a nenhum de seus direitos garantidos pela Constituição, esses outros que tiveram as leis que os protegem violadas desde o nascimento, crianças dessas “pessoas marrons” que o menino não sabe para onde vão à noite nem quem cuida dos filhos delas, sejam encarcerados mais cedo porque já decretaram que, para elas, não há solução.

Para estes outros é apagada a responsabilidade do Estado de ajudá-los a construir um caminho alternativo e dar-lhes acesso a direitos que sempre lhe foram negados. Sem as perguntas que as crianças poderiam fazer a adultos que preferem anular os pontos de interrogação, os adolescentes que praticam crimes são esvaziados de história para que a sociedade seja absolvida e, portanto, desresponsabilizada. Os deputados manipulam o medo de seus eleitores para torná-los uma ameaça incontornável. Varre-se então das ruas aqueles que sujam a paisagem, para que nem mesmo seja preciso enxergá-los do outro lado dos vidros, e os colocam em instituições muradas onde o lado de dentro se assemelha a campos de concentração. Se alguém acha que excluir e punir mais e mais cedo é o caminho para um país sem muros, precisa voltar a raciocinar. Não é preciso ser vidente para saber o que a vingança provoca num indivíduo e num país quando passa a ocupar o lugar da justiça. E os que estão atrás de seus tantos muros se vingam do quê, valeria a pena perguntar?

A História já nos mostrou o que acontece quando o Estado determina que um tipo de outro encarna a ameaça e deve, portanto, ser separado e confinado. E depois, qual é o próximo passo ou qual é a solução final? Pena de morte, extermínio? Cuidado. Em algum momento aqueles que se iludem que estão seguros por trás dos muros que ergueram podem se tornar o outro a ser eliminado. Uma sociedade fundada em muros cada vez mais altos sempre vai precisar de uma ameaça no lado de fora para culpar pelo seu mal-estar, para que as engrenagens continuem funcionando, garantindo a desigualdade e enriquecendo os mesmos de sempre. Em vez de se horrorizar com a violência do sistema de educação pública, que sequestra o presente e o futuro destas crianças que têm cor, classe social e endereço, preocupam-se em desumanizá-las, apagando singularidades e trajetórias, esvaziando-as de sentidos para torná-las monstruosas. Quando conseguirem encarcerar todos os filhos de pobres que não puderam converter em mão de obra barata, talvez prendendo logo no nascimento, já que o aborto é condenado pelos mesmos que defendem a redução da maioridade penal, há de se encontrar uma nova ameaça para manter o sistema de privilégios intacto.

Uma sociedade de muros sempre vai precisar forjar monstros para seguir justificando a desumanização e o sistema não oficial de castas. Aqueles que tentam se sentir seguros e criar seus filhos em segurança não estão inseguros porque há um outro ameaçador do lado de fora. Essa é só a aparência que mantém tudo como está. O que precisamos não é erguer muros cada vez mais altos, mas derrubá-los e nos misturarmos nas ruas da cidade.

O Brasil atual é uma realidade esgarçada. Entre as mais recentes tentativas de compreendê-lo destaco uma bem interessante, proposta pelo psicanalista Christian Dunker. Está num livro que ele lançou há pouco, chamado Mal-estar, sofrimento e sintoma – uma psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo). Mas poderia chamar-se “Condomínio Brasil”. Dunker pensa o país a partir da lógica do condomínio, que tem em Alphaville, construído nos anos 70 nos arredores de São Paulo, sua expressão mais marcante. Vale a pena, como aponta o autor, lembrar o filme de Jean-Luc Godard de mesmo nome. Alphaville, o do cineasta francês, se passa em outro planeta, onde tudo é controlado por um computador central, o Alpha 60. Um agente secreto é enviado a Alphaville para destruir o computador e eliminar seu criador. Em Alphaville não há singularidades. Amor, poesia ou emoção estão proibidos. São vetadas as interrogações. É banido o “por quê?”. Só é permitido o modo explicativo: “porquê”.

Numa das cenas antológicas, como lembra o filósofo Vladimir Safatle na apresentação do livro, o agente é interrogado pelo computador e responde a suas perguntas com citações de Jorge Luis Borges, Blaise Pascal e Friedrich Nietzsche. A máquina, confusa, o libera. “Esta foi a maneira encontrada por Godard para mostrar o que Alphaville havia deixado de fora de suas fronteiras: a indeterminação que vem junto à palavra poética, esse pavor pascaliano diante do silêncio dos espaços infinitos”, escreve Safatle. “Ou seja, fora de Alphaville estava toda a experiência possível.”

E este Condomínio Brasil? A hipótese formulada por Christian Dunker é de que “a vida em forma de condomínio” insere o nosso mal-estar no que chama de capitalismo à brasileira. A lógica do condomínio transforma os problemas em problemas de gestão, no qual o síndico adota o papel de regulador do sofrimento – e também do gozo. Ou, nas palavras de Dunker, “aquele que deve gerir o sofrimento da vida (…) para transformá-lo em formas palpáveis de insatisfação, que ele poderá administrar”. Ou, mais adiante: “Nosso déficit de felicidade nos leva ao sentimento, mais ou menos invejoso, de que o vizinho raptou um fragmento do nosso gozo. O síndico representa tanto a lei mal formulada quanto o gozo excessivo do vizinho”. A segregação, como diz Dunker, surge do fracasso em articular a diferença e a divisão. É um livro ousado e complexo, que pensa sobre o caminho brasileiro de “despolitização do sofrimento, medicalização do mal-estar e condominialização do sintoma”. Recomendo a leitura. Aqui, me detenho apenas em algumas reflexões que o livro me provocou.

Primeiro, é preciso estabelecer as fronteiras. Os que estão do lado de dentro, com a ilusão de proteção, os que estão do lado de fora tentando entrar porque há algo lá que eles não têm. Há ainda aqueles que entram e saem em períodos determinados, pela porta lateral ou dos fundos, para desempenhar serviços e manter a ilusão da paisagem intacta (grama aparada, árvores podadas, ruas e casas limpas etc). Estes outros, tolerados porque necessários, mas uniformizados e indistintos para reforçar a única (des)identidade que importa: a da função, esta estratégica, de maquiar a realidade, limpando a sujeira para que tudo pareça imutável. Garantindo assim a manutenção do paraíso como paraíso que não decai nem se arruína. Ao final, autolimpando-se ao deixar os muros. Vale a pena repetir a pergunta perturbadora do menino do início: “Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”.

Há que se desempenhar essa função de “limpar e manter”, mas sendo o mais invisível possível. Entrando e saindo numa cor só, para que invisível também se torne tudo aquilo que escapa ao controle. O que nos leva à próxima pergunta: afinal, o que de fato se limpa e o que é preciso manter? É possível arrancar a erva daninha que avança sobre a grama, anunciando que essa é uma guerra perdida. É possível tirar o mais rápido possível o lixo da vista, antes que ele nos lembre de que cheiramos mal e destruímos muito. Mas não é possível barrar o envelhecimento, a doença e a morte, nem a insatisfação, a ansiedade e a angústia, nem o gosto amargo na boca que só faz aumentar porque o paraíso não era bem como o prometido e a felicidade soa cada vez mais nervosa. Tampouco é possível negar a percepção crescente de que os vizinhos, os iguais, são menos cordiais, interessantes ou suportáveis do que a publicidade garantiu. O que não se consegue deixar do lado de fora é também o mal-estar que o levou para dentro. O custo de estar dentro é alto. Talvez mais alto do que a maioria perceba.

O que acontece quando aquele que está fora decide entrar? Nesta altura, imagino que boa parte dos leitores possa pensar em assalto. Não. Lembro aqui os “rolezinhos”, ocorridos entre o final de 2013 e os primeiros meses de 2014. O momento em que jovens da periferia, a maioria deles negros, decidiram marcar pela internet passeios coletivos nos shoppings e foram humilhados, reprimidos e criminalizados. Qual foi a lei que quebraram? Jovens pretos e pobres não podem frequentar shoppings em grande número? É esta a lei não escrita? O fato é que seu passeio, chamado então de “rolezinho”, foi decodificado pela clientela habitual dos shoppings e pelas forças de segurança do Estado como “assalto”. Mas, de fato, o que se “assaltava” ali, na reivindicação de ocupar o lado de dentro do condomínio que é o shopping, para se divertir com os amigos?

Em maio deste ano, chegou-se a um desfecho só possível num país regido pela lógica do condomínio: a condenação de três jovens que organizaram pelas redes sociais um passeio no shopping. Foi feita então uma “vaquinha” de solidariedade na internet para ajudá-los a pagar a multa de R$ 394 cada um. Para eles, que têm empregos informais e recebem salário mínimo, o valor pode inviabilizar o sustento. Eles não entendiam pelo que estavam sendo condenados. No sentido literal, mesmo. Não sabiam qual era o motivo da condenação alegado pelo juiz, mas assinaram porque foi dito que era o melhor para eles. A justiça aparece aqui como um condomínio em que um dos vários muros é a linguagem.

O condomínio, essa figura concreta, que tão bem conhecemos ou por estar dentro ou por estar fora, é também uma alegoria para compreender todos os outros condomínios dessa vida de muros. A hipótese sugerida por Christian Dunker nos ajuda a pensar sobre questões profundas da atual sociedade brasileira, expressada também nos casos mais recentes de violência, como o já mencionado esforço de um grupo de deputados para aprovar a redução da maioridade penal e encarcerar adolescentes mais cedo atrás de outros muros. Ou o apedrejamento da menina de 11 anos vestida com as roupas da sua religião, o candomblé, por dois homens que gritavam: “Sai demônio! Vão queimar no inferno, macumbeiros!”. A violência resultou num ferimento na cabeça, um desmaio e a perda momentânea da memória da criança, sem contar as sequelas psicológicas.

Entre os casos recentes de violência, podemos pensar ainda na indignação de religiosos contra a artista transexual que encenou a crucificação de Cristo na parada LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) para denunciar a crucificação cotidiana vivida por todos eles. Ao se indignarem com uma transexual no lugar de Cristo, os religiosos defenderam seus muros, na crença de que o símbolo e o sofrimento são privatizáveis e privatizados e, assim convertidos, pertencem ao seu condomínio. Sem contar a mulher que, enquanto era confundida com a “mãe” da criança, pôde permanecer no Clube Pinheiros, em São Paulo, sem ser perturbada. Ao ser descoberta como “babá” da criança passou a ter problemas para entrar e exigiram-lhe que usasse uniforme branco, para que não fosse confundida nem frequentasse espaços reservados apenas para sócios. Os lugares e as fronteiras não podem ser borrados para que os privilégios atrás dos muros se mantenham cimentados.

São condomínios murados que proliferam no Brasil, com cercas cada vez mais violentamente defendidas, porque já não basta deixar o outro do lado de fora, é preciso agora eliminá-lo. É também de condomínios e de muros que se trata quando, nas redes sociais da internet, torna-se impossível escutar o argumento do outro, porque o lado de cá, seja ele qual for, tem o privilégio das certezas ou do bem e da justiça e da crítica. E também ali o outro tem de ficar do lado de fora, porque já rotulado como ameaça ou desqualificado como direita ou esquerda, dependendo de que lado se está, não teria nada a dizer que possa ser escutado. Então já não se escuta e nem se reconhece a sua voz. Neste sentido, se nem todos moram em Alphaville, é bom olhar bem para dentro, porque pode ter uma Alphaville morando onde menos se espera, com muros disfarçados de argumentos.

Também muitos dos que se anunciam como derrubadores de muros (e defensores da diversidade de gente e de ideias) parecem, na prática, apenas fortalecer as defesas de suas cercas. Vão até onde os muros podem ser derrubados sem afetar seus privilégios, que às vezes são apenas a ilusão tão cara e afagada de estarem sempre certos e do lado certo. Mas há sempre o último muro, aquele que nos obriga a nos movermos, aquele que toca no privilégio maior, “o de não precisar pensar nos nossos privilégios”, e este precisa ser mantido a qualquer custo.

O muro mais bem guardado, afinal, é o de nossa Alphaville interna. A que nos mantém limpinhos, ao lado das boas causas, mas sem perder nada que nos é caro. “Peraí, perder também não!” Pronto. Chama o pedreiro para construir mais dois metros de muro para deixar de fora quem nos lembra do incômodo de que, para deixar o outro entrar, vai ser preciso perder alguma coisa.

São muitas as armadilhas muradas em um país tão barbaramente desigual. Volta e meia os mais atentos percebem seu pé preso em alguma arapuca, justamente quando acreditavam rumar para a liberdade e para um mundo mais justo. Agora mesmo os condomínios fechados do tipo Alphaville são vistos por muitos como algo da ordem do ridículo. Mas também estes parecem renovar sua busca pelo paraíso perdido (e jamais achado). A moda no Brasil, há algum tempo, é comprar pedaços de terra com mata nativa e fontes de água em algum lugar, como nas regiões serranas ainda disponíveis do Sul e do Sudeste ou mesmo em pedaços “paradisíacos” da Amazônia.

Seria este anseio uma atualização do ideal de uma vida sem mal-estar, cercados por outro tipo de iguais, talvez ainda mais iguais do que os outros? Vizinhos ecologicamente conscientes, equilibrados por meditação, yoga e a prática saudável de esportes, que se locomovem em bicicletas e consomem orgânicos, com espaços e propriedades privadas bem definidas. É altamente sedutor para quem pode escolher seus muros, mas não seria esta uma renovação do condomínio, tanto de suas ilusões como de seu caráter de exclusão? Para quem é deixada a luta pelo espaço público para todos, em cidades cimentadas onde falta tanto água quanto árvores quanto o reconhecimento da humanidade do outro?

“Cidades Rebeldes” é o nome de um seminário promovido pela editora Boitempo e pelo SESC, na segunda semana de junho, que reuniu alguns pensadores da maior relevância sobre o tema, tanto brasileiros, como o próprio Christian Dunker, autor do livro citado anteriormente, quanto estrangeiros como o geógrafo marxista David Harvey. Era também um encontro das esquerdas nesse momento tão desafiador, em que as ruas do país foram tomadas por gritos de direita. Mas houve uma rebelião no debate que debatia a rebelião. O Movimento Independente Mães de Maio divulgou um manifesto cortante com o seguinte título: “A rebelião não será gourmetizada”. (Leia aqui. E sugiro ler também os comentários, para compreender o quadro maior).

O “Mães de Maio” tem na origem um grupo de mulheres, a maioria negras, pobres e periféricas, que perderam seus filhos assassinados, suspeita-se que muitos deles executados pela polícia, nas ruas do estado de São Paulo em maio de 2006. O grupo faz a denúncia cotidiana da violência praticada pelo Estado contra os mais pobres. Costuma chamar Geraldo Alckmin de “governador genocida” e denuncia o que chama de “terrorismo de Estado”. Também empresta o nome à Comissão da Verdade que investiga os crimes cometidos pelo Estado no período democrático. Neste seminário, o movimento foi convidado de última hora para substituir um convidado de primeira hora que precisou cancelar sua participação. Mas recusou o convite. No manifesto explica o porquê.

Entre as justificativas, o Mães de Maio denuncia uma ausência considerada por muitos uma obscenidade: a falta do Movimento Passe Livre (MPL), que provocou as manifestações de 2013 no país, na grade dos debatedores. Também negou a legitimidade de convidados como Luiz Inácio Lula da Silva, que cancelou sua participação antes do início do seminário, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Este último é considerado um repressor dos protestos de 2013, contra o aumento da tarifa do transporte público, o que tornaria sua presença num seminário sobre cidades rebeldes uma ofensa. Não me recordo de nenhum outro manifesto recente de movimentos sociais tão contundente em sua crítica ao PT, definido como o “agonizante Partido dos Trabalhadores”, e a Lula, chamado a certa altura de “este sujeito”.

Há muitas interpretações possíveis para a rebelião contra o seminário sobre a rebelião. Também há muitas versões. Todas elas fascinantes e muito mais fundamentais para compreender o atual momento do que pode parecer à primeira vista. Como estamos murados, porém, muitos dos sentidos possíveis foram apagados por polarizações (sempre elas). Alguns desqualificaram o debate já antes do manifesto, por ter nele figuras do PT. Logo, nada ali, nem todos os outros, inclusive críticos do PT, poderiam ser escutados. Outros desqualificaram o Movimento Independente Mães de Maio. Outros ainda magoaram-se porque suas melhores intenções não foram compreendidas e se viram num lugar muito incômodo, já que temos a tendência de acreditar que somos só bacanas e estamos a salvo.

Com esse gesto, o Mães de Maio dificultou a recolocação do PT no contexto das ruas e das rebeliões e também na identificação como “esquerda”, o que é muito forte. Dificultou a recolocação do PT não só como protagonista, mas também como participante do movimento mais amplo das cidades rebeldes. Mostrou também que hoje não basta incluir no debate um ou dois representantes das periferias e dos movimentos sociais, o que até pouco tempo teria sido suficiente e garantiria um ambiente controlado. O que o Mães de Maio disse talvez de mais importante é que, no Brasil atual, para ter legitimidade não é suficiente falar sobre, é preciso falar com. Para isso também é necessário que todos – todos mesmo – compreendam que “com” significa “com” – e não “só nós”. Do contrário a lógica dos muros permanece a mesma, ainda que se mude os personagens de lugar. Hoje, é urgente estar de fato com o outro e se arriscar ao que isso significa. Arriscar-se, portanto, à rebelião.

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Dito isso, escolho terminar caminhando com Tim Tim. Neste vídeo viral, a grande transgressão do pequeno rebelde é andar na rua e arriscar-se a encontros. Quanto tudo parece quase intransponível, quando me vejo cercada de muros que me encurralam, os de fora, mas também os de dentro, eu lembro do passo de Tim Tim. E encontro esperança nessa geração que está sendo educada no resgate do espaço público para todos, arriscando-se às diferenças para combater a desigualdade. Arriscando-se à experiência. Às vezes a vida pede a delicadeza de descobrir a rebelião também nos passos vacilantes, mas muito entusiasmados, de um guri com um redemoinho na cabeça.

(Publicado no El País em 22/06/2015)

 

No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho

O cancelamento da peça ‘A Mulher do Trem’ por racismo mostra que a tensão racial no Brasil chegou a um ponto inédito, cujos rumos passaram a ser ditados pela nova geração de negros que alcançaram a universidade

 

Algo se rasgou em 12 de maio de 2015. Naquela noite, em vez de uma peça de teatro, A Mulher do Trem, oito atores sociais subiram ao palco do auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, para discutir a representação do negro na arte e na sociedade. A decisão foi tomada depois que Stephanie Ribeiro, blogueira negra e estudante de arquitetura, protestou contra o uso de “blackface” na peça e o considerou racismo, iniciando uma série de manifestações nas redes sociais da internet. “O que me impressiona é que o debate sobre racismo e blackface é antigo, pessoas do teatro se dizem tão cultas e não pararam para pensar sobre isso? Reproduzir isso em 2015 é tão nojento quanto ignorante. Mas, né, esqueci que, quando o assunto é negro, não existe esforço nenhum em haver respeito”, escreveu no Facebook. E acrescentou: “Só lamento, não passarão”.

Não passaram. Diante de uma acusação tão perigosa para a imagem pública de um e de outro, a companhia de teatro Os Fofos Encenam e o Itaú Cultural decidiram suspender a peça e, no mesmo local e horário, acolher o debate. O espetáculo que se desenrolou no palco tem a potência de um corte.

O que aconteceu ali?

Temos vivido de espasmo em espasmo, como já escrevi aqui. Os dias têm sido tão acelerados que os anos já não começam nem terminam, mas se emendam. Enormidades se sucedem às vezes no espaço de minutos entre uma e outra. Torna-se cada vez mais difícil perceber o que é (ou será) histórico, no sentido daquilo que faz uma marca no tempo. Minha interpretação é que aquele debate, aquelas três horas numa noite da Avenida Paulista, pode virar uma citação no futuro. Pelo menos um sinalizador de um momento muito particular da sociedade brasileira, em que a tensão racial não pôde mais ser contida no Brasil e atravessou uma fronteira inédita. Como interpretação também é desejo, faço aqui a minha minúscula parte para que o debate tenha o lugar que lhe é devido. Como o historiador Nicolau Sevcenko afirmou uma vez, num outro contexto, há coisas que não devemos nos perguntar o que farão por nós, elas já fizeram. Acredito que este seja o caso aqui.

A atriz Roberta Estrela D’Alva, uma das debatedoras convidadas, iniciou sua apresentação falando sobre a percepção, ao entrar em contato com os protestos na internet, de que algo acontecia, algo que não teria acontecido mais de dez anos atrás, quando a peça foi montada pelo grupo Os Fofos Encenam. “Tem alguma coisa diferente nisso, porque tem manifestações sempre, mas que ganham essa projeção, e que foram ouvidas nesse sentido, de alguém que falou ‘não’ pra uma coisa e tomou essa dimensão que nós estamos vendo aqui agora… Eu acho que fazia tempo que a gente tava esperando, aguardando ou pedindo por isso. E não acho realmente que a peça é o foco. Eu acho que o que acontece na peça é sintoma de uma doença culturalmente transmissível, que é o racismo. E de uma relação muito espinhosa, que são os 400 anos de escravatura no Brasil”.

Só agora, depois das manifestações de 2013 e da reação virulenta de setores da sociedade à política das cotas raciais nas universidades e em outros espaços historicamente ocupados por brancos, parece ter se tornado possível um “não” que finalmente foi ouvido na Avenida Paulista. O ponto é que o racismo no Brasil é o debate sempre adiado e, desta vez, ele aconteceu, como muito bem colocou o mediador do evento, Eugênio Lima, DJ e ator: “A gente tem uma tarefa muito interessante nesse momento, que é conseguir dar forma a um debate que nunca se consegue dar forma por completo na história da sociedade brasileira. Toda vez que vai se tocar nesse assunto, se fala: não, não é exatamente o tempo bom. Não, vamos fazer um pouquinho mais pra frente. Não, agora não vai dar. Não, a gente tá muito próximo da escravidão. Não, a gente tá muito próximo dos anos 30, a gente precisa formar (primeiro) a nação. Não, a gente tá muito próximo do projeto da ditadura, a gente tá muito próximo da redemocratização, a gente tá muito próximo dos radicalismos. Então, o nosso desafio é proporcionar um debate que seja de fato um debate”.

Nada do que aconteceu naquele palco é simples. Ou fácil. É racismo? É censura? Estas eram as duas questões espinhosas que pairavam sobre o auditório enquanto as pessoas iam ocupando as cadeiras. Eram, talvez, mais um exemplo das falsas polarizações que têm assinalado o Brasil atual. Por seu potencial explosivo, muitos apostavam e até se preparavam para “um barraco” —e não um debate. Tanto que o mediador foi muito habilidoso ao reposicionar essas questões logo na abertura. Eugênio Lima colocou a necessidade de não escolher o caminho mais fácil, aquele que também poderia ser o caminho da oportunidade perdida, caso o debate se polarizasse entre censura, como o argumento dos brancos, e racismo, como o argumento dos negros: “A gente deve procurar não criar uma invisibilização da voz legítima do outro. Então, quando você chega num determinado momento e fala: é censura, ponto. É falta de liberdade de expressão, ponto. É racismo, ponto… Aí não tem como o outro conseguir dialogar. E a gente precisa dialogar. A gente precisa fazer um exercício de escuta”.

Eugênio Lima também apresentou-se de uma forma bastante interessante, deixando explícito o lugar de onde falava: “Eu não sou um mediador no sentido de que eu vou tentar atingir a média. Eu não estou equidistante entre as duas posições. Eu tenho uma história, uma história política, artística, que fala pelo meu posicionamento”.

Pego emprestada a explicação para este artigo —e para qualquer artigo, acredito eu. Não estou (ou sou) equidistante. Escrevo a partir da minha história e de como me descobri branca, e me redescubro a cada dia, nesse Brasil em que é “natural” pretos, pobres e periféricos morrerem. A própria escolha dos trechos que escolhi transcrever e reproduzir aqui, porque acho que ler é diferente de ouvir —e às vezes se escuta melhor lendo— fala de mim. O debate na íntegra pode – e deve – ser assistido aqui. O meu é um recorte próprio, com grifos próprios, no qual posso inclusive inverter a ordem e priorizar falas da plateia em detrimento da fala dos convidados. Até porque, de certo modo, não houve plateia. Os limites do palco foram ultrapassados e as manifestações do público foram tão ricas quanto a dos debatedores convidados. Apenas no final vou dizer o que o debate me provocou, as reflexões que me trouxe, para não atrapalhar o percurso de nenhum leitor atento, disposto a de fato escutar e, talvez, fazer o mais difícil: mover-se.

Um pequeno aviso, antes que as luzes do palco se acendam. Não se trata aqui de um jogo de “a favor” ou “contra”. Acho que vivemos numa época em que isso foi – ou deve ser – superado. Não são dois lados, são vários. É muito mais complicado. E o momento não está para simplificações. Precisamos avançar para o confronto real, complexo, que abarque as contradições de cada um. São contradições dialogando com contradições. A coerência de cada ator emerge da capacidade de acolher esse desafio.

Por fim, antes de pedir para desligar os celulares, devo dizer que várias pessoas me alertaram para não escrever sobre esse debate. Conto isso apenas para dar uma informação a mais sobre o quanto o protesto, a suspensão da peça e por fim o evento moveram placas tectônicas. Com variações, o aviso era: “O tema é espinhoso demais, os ânimos estão acirrados, você vai se queimar com todos os lados. Melhor ficar fora dessa”. Concluí que o risco de me “queimar” faz parte do privilégio e da responsabilidade de ter esse espaço.

Um pequeno contexto, antes que o espetáculo se inicie.

O evento ocorreu na véspera da comemoração da abolição da escravatura no Brasil, a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Uma abolição jamais completada, 127 anos depois. Neste momento, um jovem negro no Brasil tem um risco 2,5 vezes maior do que um jovem branco de morrer assassinado. De 2003 a 2012, a sociedade brasileira testemunhou – sem escândalo – o assassinato por armas de fogo de 320 mil negros. Imagine, para ter noção do significado, uma cidade de porte médio povoada por cadáveres com furos de bala – e que todos esses corpos têm a mesma cor. E imagine que, neste mesmo país, isso é tão naturalizado – e naturalizar é tornar natural o que não é – que apenas os mesmos se espantam. Esta é a trama que se desenrola nas periferias de São Paulo, nas delegacias e nas prisões, enquanto na Avenida Paulista, no auditório do braço cultural de um dos dois maiores bancos privados do país, o foco e as luzes estão sobre oito pessoas, brancas e negras, que falam a partir de lugares e de posições diversas.

O drama é maior porque os episódios de racismo no Brasil são abundantes e atravessam o cotidiano de um e de todos, de forma explícita ou inconsciente. Mas justamente Os Fofos Encenam, a companhia teatral que montou A Mulher do Trem em 2003, peça que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor figurino, além de outras oito premiações, nunca teve qualquer identificação com o racismo. A peça é descrita como “comédia de circo” e a tradição circense no Brasil foi invisível por décadas, até ser resgatada e reconhecida também pela academia. Ainda hoje essa vertente teatral é marginalizada e enfrenta problemas para conseguir recursos. Assim, se sofrer uma acusação de racismo é difícil para a maioria, esse lugar é especialmente penoso para “Os Fofos”, como se verá mais adiante.

Se para o Itaú Cultural era crucial que o debate se realizasse em seu território, para alguns convidados e para parte do público soou arriscado aceitar subir ao palco ou ocupar a plateia do instituto. O Itaú Cultural tem uma atuação reconhecida por dar visibilidade a grupos e questões que sempre estiveram à margem, colaborando com a democratização da cultura, mas também é um fato que os bancos, no geral, têm tido sua imagem cada vez mais associada à desigualdade brasileira. Tanto é que, nos protestos, são os primeiros a serem apedrejados ou terem suas portas derrubadas ou os vidros quebrados por Black Blocs e outros grupos. A última eleição e a recessão em curso tornou essa relação ainda mais sensível. Assim, para muitos, foi difícil fazer justamente esse debate no espaço de um “representante do sistema financeiro”. Todas essas tensões estavam presentes e apareceram nas três horas de duração do evento.

Com tanto em jogo, o debate de fato aconteceu. Havia uma chance considerável de que virasse um bate-boca do tipo rede social, onde os ódios mútuos e as posições fechadas impedem a escuta e inviabilizam o diálogo e qualquer movimento de fato. Nos dias seguintes isso até aconteceu em alguns espaços da internet que repercutiram o evento, num triste rebaixamento. Mas não ali. E começo o debate pela bela aula dada por Mario Bolognesi, professor universitário e pesquisador do circo brasileiro, mostrando que a peça não usa blackface.

— Vou tentar falar um pouco do teatro praticado debaixo da lona, que tem neste país uma longuíssima história, que foi também escondida e não revelada. Só ultimamente, nos últimos 30 anos, é que pesquisadores têm se debruçado para desvendar a história deste teatro riquíssimo. (…) O circo brasileiro, na sua versão teatral, desde o início, acoplou a causa dos abolicionistas. (…) Também acolheu muitos escravos fugitivos, que foram encontrar no circo e no espetáculo uma possibilidade de realização. O circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de blackface. Não sabe. Ele nunca trabalhou com esse referencial, nascido em meados do século 19 nos Estados Unidos. O circo brasileiro tem a sua vertente, a sua matriz europeia, que vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha com personagens-tipos, o que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas, fundamentalmente psíquicas, mas também sociais. (…) E no circo brasileiro estes personagens-tipos se carregam como máscaras. (…) Essa máscara pode ser tanto algo que se acopla ao rosto como pode ser uma maquiagem. (….) E chega a nós por contrastes. Nós temos uma linhagem dos chamados “enfarinhados”. E temos uma outra linhagem de personagens que são os negros pintados de negro. Qual é o sentido disso para o teatro? O sentido é criar uma polaridade, inclusive visual, ou preferencialmente visual, porque, não nos esqueçamos, se praticava teatro ao ar livre pra muita gente. Portanto, o critério de visibilidade deve estar muito bem exposto, e as cores vermelha, preta e branca são as preferenciais deste universo, porque são visíveis à longa distância. No circo, essa polaridade (branca e negra) veio para realçar, trazer o cômico.

Fernando Neves, ator e diretor de Os Fofos Encenam, trouxe uma fala testemunhal nessa direção. Comédia francesa do século 19, A Mulher do Trem teria sido montada pela primeira vez no Brasil, em 1920, no Circo Colombo, mantido pelo seu avô:

— Eu demorei muito tempo pra entender o que era, o que minha família, como outras famílias de artistas, tinham feito aqui nesse país em relação à arte, ou seja, Teatro de Revista, o Circo-Teatro e o Teatro de Comédia. Eu venho de um ventre negro que já teve uma questão forte de entrar numa família de portugueses que chegaram aqui em 1890. Vindos com um circo. (…) Eu proibia a minha mãe, quando fosse alguém em casa, de falar que ela tinha sido vedete. (…) Foi aos 53 anos, em 2003, que eu falei: não, eu preciso falar sobre isso. Foi uma coisa impressionante essa questão de A Mulher do Trem, porque era a peça que levantava a praça, que meu tio escondeu de mim, que também foi duro arrumar material pra fazer pesquisa. E daí a gente fez, e quando a gente tentou dinheiro a gente não conseguiu nada. Então foi tudo na dificuldade eterna. (…) Eu comecei a entender o que era, pro ator brasileiro, a questão da composição e das máscaras. E que é uma questão muito difícil. (…) Porque envolve tipo psicológico, envolve temperamento. Então, é uma questão que infelizmente deveria ser matéria nas escolas. Pra, quando chegasse nessa discussão, eu não tivesse, ou ele não tivesse que falar: não tem nada com o blackface.

Mario Bolognesi é um pesquisador sério e levou ao debate, com toda a honestidade, a complexidade de quem estuda o tema em profundidade. Fernando Neves trouxe a dor de ter dado duro para encenar algo da tradição circense que estava oculto, algo que restava envergonhado tanto nas margens da sociedade como nas margens de si mesmo. Do ponto de vista estritamente conceitual, a peça da discórdia não usa blackface. O sentido é outro, neste ponto de vista. E é importante que isso seja dito e seja entendido. Mas, avançando um pouco mais, é obrigatório fazer a pergunta: quem dá os sentidos? E o que torna o blackface de fato blackface, o que só se completa ao ser assistido (ou, neste caso, não assistido)? Colocado de outro modo: quem diz o que é blackface? Quem o faz ou quem o reconhece?

Aqui, destaco um trecho da fala de Stephanie Ribeiro, a blogueira negra que iniciou o protesto com um post no Facebook. Sua fala interrompe conclusões fáceis. Ela dá conta de uma pergunta subjacente: deveriam, portanto, aqueles que se sentem violados, entender que não é este o sentido, que a rigor isto não é blackface, e seguir em frente?

— A gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Porque eu sou negra, eu sou natural, eu sou normal. Eu não sou exótica. Eu passo a minha vida inteira escutando que eu sou exótica, que eu sou diferente, que o meu cabelo é diferente. Essa é a minha vivência. É isso o que eu levo quando eu vejo aquela foto e vejo que aquela é a representação da pessoa branca para comigo, para com a minha avó, para com a minha bisavó, que eram negras, que foram escravizadas, que foram estupradas, que foram marginalizadas. Essa é a minha história e essa é a história que eu levo sempre e vou levar pra toda a minha vida porque não tem como eu ser negra um dia e não ser no outro. E aí entra a questão da peça e de toda manifestação feita pelo Facebook de várias pessoas negras, e da forma como isso foi recebido por algumas pessoas, de um jeito até racista, de achar que o negro não entende de arte, o negro não entende de cultura, o negro não sabe isso, o negro não sabe aquilo. Sabe quantas vezes na minha vida eu não vejo uma pessoa perguntando: “Ah, mas você faz arquitetura?”. E por quê? Eu não posso fazer arquitetura? Tem curso pra branco e tem curso pra negro? Ah, parece viagem, mas não! É a nossa capacidade, sempre sendo ignorada pela elite cultural paulista na arte. (…) Qual a visão de um homem branco sobre a minha vivência? Sabe? A gente já parou pra pensar isso? Eu não sei o que é ser branco, eu nunca vou saber. Eu sei o que é ser negro. E pautado no que eu sei, é difícil. E eu ainda sou uma mulher negra privilegiada, sabe? Eu tenho sorte de estar numa universidade. Eu sou uma mulher negra ainda de pele clara. Imagina as outras mulheres negras que não podem estar aqui! Que estão limpando o chão, que estão lá, sei lá, cuidando de vários filhos. E isso me ofende porque, quando a gente coloca a imagem do branco para com nós, é uma imagem tão ofensiva, tão estereotipada, que não tem essa de ser máscara, de ser tipo. É a minha imagem toda vez que eu vejo na TV, toda vez que eu vou numa peça. É sempre a mesma coisa. É ou a mulher negra para sexo, ou a mulher negra Globeleza, ou a mulher negra é empregada. Ah, mas por que a mulher negra é empregada? Porque a gente vive num país que, pós-abolição, a mão de obra negra era abundante. Então o que que a gente faz com essa mão de obra abundante? Vai dar chances? Vai dar estudo? Não! Vamos colocar eles pra limpar, lavar e passar. É aí que entra o estereótipo. Não é só pintar a cara de preto. O estereótipo que a peça reforçava é esse estereótipo da mulher negra em vários sentidos: no cabelo, na forma de se portar. Porque estava escrito no próprio site dos Fofos, quando eu fui ler, que ela era intrometida. Então, o problema não é essa peça, mas o problema é a visão das pessoas brancas sobre nós. Essa visão a gente não vai aceitar mais, porque hoje a gente tem voz, hoje a gente pode falar. Que seja no Facebook, que seja com pichação, que seja da forma que for. Eu não aceito.Eu não vou me calar.

Mas, sendo ou não blackface, a arte não é o território da liberdade? A peça em questão não teve um papel crucial ao levar esse debate até esse ponto e, assim, realizar um corte na sociedade? O corte se deu pelo fato de a peça não ser encenada. Mas não seria mais correto que ela fosse encenada e o debate ocorresse logo depois, com o potencial de ser ainda mais rico? A questão então torna-se não mais o “racismo”, mas a “censura”?

Aimar Labaki, dramaturgo, diretor e ensaísta, apresentou um ponto de vista interessante sobre isso. E trouxe ao debate algo fundamental: a necessidade do confronto como parte do processo de construção da democracia.

— A questão do negro no Brasil é igual a duas outras questões pra mim: primeiro, a questão dos desaparecidos e dos torturadores, isto é, a nossa verdade histórica que ainda está, de alguma forma, enterrada, e a ideia de que uma justiça possa vir a realmente servir pra todo mundo. É igual à questão da liberdade sexual, isto é, que a questão do gênero, a questão das opções sexuais sejam normalizadas, pelo menos do ponto de vista legal, e a vida vai fazer com que o óbvio se estabeleça, que cada um viva como quer. Por que estas três questões são importantes? Porque são as três questões que nos impedem de, de verdade, nos sentirmos parte de uma nação e de nos sentirmos parte de um Estado que nos representa em alguma medida. E eu não estou falando só da questão da representação política, que é uma crise pela qual passa o mundo inteiro e que não é uma crise só brasileira. Aqui foi piorado pelo fato de a ditadura ter acabado com uma ou duas gerações de pessoas que poderiam ter o conhecimento de como se mover publicamente e fez com que a nossa educação, nesse sentido, fosse atrasada tanto. Faz 30 anos que acabou a ditadura, mas o (José) Sarney só se aposentou no ano passado e ainda está indicando gente. Ainda tem militar que não obedece ao chefe do comando que é o presidente da República, quando o presidente da República manda entregar documentos que são do Estado, não são do Exército. Então, nós estamos há 30 anos construindo pela primeira vez uma democracia formal, mas nós não temos um espírito democrático, nós não temos um espírito de República. Nós ainda estamos tentando construir isso, e construir um aprendizado de como discutir em público. Porque democracia não é paz. Democracia é luta cotidiana, é debate cotidiano entre os diferentes. E nós temos medo do debate, nós temos medo do confronto. E é preciso aprender a se confrontar. Nesse sentido, essas três questões – a questão do negro, a questão dos torturados e da punição aos torturadores, e a questão da liberdade sexual – é que nos impedem, como diz o poeta, de conseguirmos transformar essa vergonha numa nação. Isso posto, eu acho que pra todas as três questões vale a preocupação permanente de compreender que essa democracia está em construção. E, nesse sentido, não me parece o caminho mais adequado você pedir ou você lutar pela supressão de qualquer representação que te incomode (…) Nesse caso, a representação também é uma forma de manutenção de uma visão de mundo que perpetua o racismo. E eu concordo com isso. Eu acho que essa visão tem que ser apagada, mas ela não pode ser apagada pela força, ela não pode ser apagada pelo silêncio.

Stephanie Ribeiro dá uma resposta:

— Eu queria começar falando que talvez eu seja muito radical, porque, na minha concepção de mundo, pessoas brancas não dizem como pessoas negras devem lutar. Então, se eu quero fazer um boicote, eu vou fazer. Se a gente quer se unir contra uma peça, a gente vai se unir. Porque é isso o que a gente tá debatendo aqui. São anos e anos de pessoas negras não tendo voz. São anos e anos de pessoas negras sendo silenciadas, invisibilizadas. São anos e anos que a representatividade não vem. A representatividade, num país onde 54% da população é negra, não deveria nem ser discutida. Quando a gente se manifesta, a gente não tá censurando, a gente só tá pautando o que ninguém tinha pautado até então porque não tem a nossa vivência. (…) Tem que ter um esforço das pessoas pra entender o que é ser negro no país. Você nunca vai saber o que é viver na minha pele, mas pelo menos pode não reforçar ideias como essa de… “natural é a pele branca”, entendeu? Isso é desconstrução, isso é leitura de gente negra. Gente negra fala, gente negra escreve, e não é de hoje, entendeu? (…) Quando é que eu vou ter o privilégio de não saber o que eu sou? Agora, vocês têm o privilégio de não saber o que eu sou, me marginalizar, me oprimir, e ainda me chamar de censuradora. É ótimo esse privilégio! Essa ação foi muito importante, porque ela foi feita no Facebook, com várias pessoas, principalmente militantes jovens. E é essa força que vem vindo que não vai se calar, gente. Eu acho que é importante as pessoas se abrirem pra escutar essas vozes. Mas essa abertura tem que vir com o diálogo, principalmente, de que pessoas brancas não pautam a luta dos negros. Ninguém vai dizer como a gente deve agir, porque ninguém sabe o que é ser a gente e ninguém sabe tudo o que a gente já passou.

Ao final, Aimar Labaki faz uma espécie de tréplica:

— Eu realmente fiquei emocionado com o que a Stephanie falou, no sentido de que eu nunca vou saber o que é ser negro. Eu sou branco. E, apesar de ter nascido na extrema pobreza – não parece, mas é verdade –, eu tive uma série de sortes que, se eu fosse negro, eu não teria. Então, o meu ponto de vista é de classe média, branco, olhando para a minha realidade. E, desculpa, eu sou interlocutor também. Vocês vão ter que falar comigo também. Eu tenho que falar com vocês, vocês têm que falar comigo. Não acho que a gente seja tão diferente quanto parece. Do meu ponto de vista, a questão do racismo eu vejo de uma forma intelectual, eu não vejo de uma forma emocional. (…) Por isso é que eu entendo e concordo quando você diz: “Não importa se é blackface ou não, é racismo”. Da mesma forma, eu digo: não me importa se é racismo ou não, é censura. (…) Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente num país que é autoritário, num país onde não há tradição de liberdade de expressão. Você abre a Caixa de Pandora. Em seguida você vai ter os reacionários, você vai ter os militares, você vai ter o diabo a quatro querendo que as coisas não sejam apresentadas porque eles acham que não estão representados nela. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do Movimento Negro.

Um homem na plateia fará, muito mais tarde, um recorte aqui:

— Sou preto, pobre, pederasta e professor. Eu sou, nesta ordem, esses quatro “Ps”. E entendi que o preto vem antes de tudo isso no Brasil, e não só no Brasil. Acho que essa dimensão da cor, sempre que ela vem à tona, a gente recua. E esse recuo já não é mais possível. Eu acho que o que tá acontecendo aqui hoje é sinal de uma mudança estrutural no país que a gente não pode negligenciar e que diz respeito à sociedade, mas também ao teatro que nós fazemos, ao teatro de grupo. Isso é sinal de que alguma coisa muito complexa está acontecendo neste país. (…) Não é uma questão de representação. A cor não se representa. É isto que, de certo modo, o blackface denuncia. Porque o negro é uma outra coisa, além da sua cor. São relações que estão em jogo e que talvez o teatro tenha tido dificuldade de elaborar. Tá na hora de a gente se perguntar o que é que nós estamos conseguindo elaborar neste momento em que de fato uma mudança está acontecendo. Ela não aconteceu. Ela está acontecendo. E ela é perigosa. Ela é perigosa porque o outro existe. E eu também me defino pelo outro. E eu não posso, na minha lógica, reproduzir a lógica da supressão. Eu não estou com isso dizendo que nós vamos ouvir os brancos e eles vão nos pautar. Eu só tô querendo dizer que talvez a gente tenha, como negro, de ser capaz de elaborar uma imagem do branco. E nesse momento é que a sociedade muda.

Fernando Neves, de Os Fofos Encenam, faz um desabafo. E uma conclusão.

— A gente fez apresentações, em 2003, e a peça foi pro baú. Quando ela retoma, a gente leva um susto. O Eugênio fala assim: “Fernando, pensa o que é isso. É uma coisificação de uma ideia que traz muito sofrimento pra muita gente só de olhar. Não precisa ver a peça”. Eu falei: é um totem. É um totem. Então tá errado, a máscara de circo não foi feita pra isso. A minha família, todo o trabalho, tudo, quem fazia essa máscara era a minha mãe. Ela não foi feita pra isso. Ela foi feita pra divertir. No circo, drama é pra chorar e comédia é pra rir. Ela não foi feita pra ridicularizar ninguém. Tanto é que, se vocês olham os tipos de A Mulher do Trem, a mulher que faz a dona da casa, ela tem o nariz torto, a boca torta. Não é assim, que o negro tá pintado e todo mundo tá com cara e pele boa. Não é. Tá todo mundo ridicularizado. Porque era isso que o circo fazia. Então, quando o Eugênio me explicou o que era isso, eu falei: então essa máscara tem que sair de cena. Ela não pode ficar, ela não foi feita pra isso. Como várias vezes, durante a História, várias máscaras e vários tipos tiveram que sair de cena. Eles se ressignificam e voltam. O teatro é vivo. (…) Para tudo! (…) Essa máscara tá fora de cena. Ela tem que sair de cena. Porque ela não foi criada pra causar dor em ninguém. Porque é tudo o que a gente não quer na vida. E nossa arte, tudo o que a gente tá fazendo, não se baseia nisso. Eu não quero, e nenhum dos Fofos quer. (…) Então, o que eu queria dizer é que apoio essas falas que ouvi até agora, tão sábias. Eu apoio plenamente. E… estas máscaras estão fora. (…) A gente tem que trabalhar na alegoria que existe na arte popular pra trazer reflexão. Antes, ela era forma. Agora ela tem que ter um engajamento. Ela é posta pra gente discutir. Eu quero agradecer muito e pedir desculpa a todos que eu tenha ofendido (…) Foi uma coisa que me machucou demais. E me trucida, porque isso é tudo o que eu não queria na minha vida. Então, essa máscara tá fora de cena, como tá fora qualquer tipo de preconceito, qualquer tipo de racismo e qualquer tipo de violência.

Fernando Neves chora.

O espetáculo tornou-se o debate (ou o debate tornou-se um espetáculo?), que abarcou não apenas o palco, mas a plateia, e as reações nas redes sociais provocadas por ele. Parte do público apropriou-se de A Mulher do Trem e subverteu-a. Sem ser encenada, a peça teatral provocou uma outra cena, que também a contém. Arte e política como categorias indissociáveis, imunes a delírios de pureza e de significados em si e para si. Profanadas, sempre, pelo mundo e pelas circunstâncias. Teatro.

Aqui, talvez, seja o momento de eu dizer como me senti neste debate, de forma totalmente honesta e até difícil pra mim. Como Aimar Labaki, a ideia de um espetáculo não ser apresentado, ser censurado, seja por quais motivos forem, ainda que se diga que não é censura, mas decisão do grupo, o que seria autocensura, me arrepia. A ditadura, a censura e a repressão são bem vivas na minha memória, e eu temo exceções, porque elas botam o pé na porta e abrem espaço para que o pior vire regra. Afinal, quem vai dizer quais são os bons motivos para suspender um espetáculo? Quem será mais igual do que os outros, parodiando A Revolução dos Bichos, de George Orwell? Um boicote da peça teria me parecido mais democrático, mas não a suspensão da peça. Protestos na porta do Itaú Cultural, o que possivelmente aconteceria se ela fosse encenada – perspectiva, aliás, que deve ter assustado os envolvidos –, causariam comoção e discussão. E a peça lá, no palco, provocando e sendo provocada, para possivelmente nunca mais voltar do mesmo jeito.

Porém, uma outra percepção foi se tornando mais forte na medida em que eu escutava os negros. Talvez tenha sido preciso fazer esse corte dentro do corte. Porque talvez o fato de eu pensar sobre isso como uma censura, num momento de construção de uma democracia cheia de buracos, seja um privilégio meu, como branca, que não sei o que é ser negra neste país. Posso escrever sobre isso, como escrevo, posso tentar vestir a pele negra, como tento, mas ser é de outra ordem. E esta ordem eu preciso admitir que não alcanço. E talvez a ruptura seja a única forma para aqueles que não têm privilégios serem escutados pelos que têm privilégios. Talvez seja este o momento do Brasil. E talvez seja importante que assim seja, porque já se passou tempo demais para uma abolição não ter sido completada. Talvez a escravatura só acabe, de fato, a partir de rupturas como esta.

Para mim, a síntese veio por esta fala de um homem jovem e negro na plateia, que tinha grandes chances de estar morto, mas está vivo:

— Meu nome é Max. Eu sou ator… Eu era ator, mas eu me tornei produtor cultural por ausência, por necessidade de produções culturais em que eu me sentisse um pouco mais digno. Digno. Acho que é a palavra perfeita pra ocasião. Eu vou falar a partir da minha pele preta natural e do meu cabelo normal, embora alguém em 1930 tenha dito que existiam cabelos normais e outros sei lá o quê. Né? Decidiram o que era normal e o que era natural. (…) É interessante como o branco treme quando vai perder o privilégio. Então, de repente, quando você toca no privilégio daquele que sempre pôde falar como quiser, de quem quiser, na altura que quiser, alguém fala: “Eu não gostei”, e chamam essa pessoa de Estado. Né? (…) Os negros, que nunca tiveram sequer grandes papéis no Estado, são censuradores. Não houve Ministério Público, não houve DOPS, não houve Conselho da Comunidade Negra, não houve SEPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial) mandando, enviando. E ninguém nem foi perguntar aos Fofos se era censura ou não. (…) As pessoas assim… com um treme-treme de perder esse espaço. Eu acho que é aí que o copo tem que esvaziar. A gente, enquanto homem, vai ter que perder privilégios para dar espaço às mulheres, aos homossexuais. A gente, enquanto sudestinos, vai ter que abrir espaço nos editais pra que o Norte seja contemplado também. E talvez os brancos ainda não conseguiram dar um milímetro de passo pra perder seus privilégios. Ou pra compartilhar os privilégios nas universidades. Compartilhar o privilégio desse diálogo. Eu fiquei com medo de ter que fazer barraco aqui, (…) achando que ia ter uma palestra de pessoas justificando o blackface. Eu tava preparado pro barraco. Sério mesmo. Nunca vi o mercado financeiro abrir espaço pra um debate desse. Nem o Estado, nem o mercado financeiro. (…) Eu quero colocar essa questão pras pessoas pensarem o que é esse privilégio. Uns amigos falam: “Mas eu não tenho privilégio de ser branco!”. Eu falo: você tem avô, avó? “Tenho”. Então você já é branco, porque a maioria dos negros não conhece os avós. Você pode andar na rua sem o carro da polícia pelo menos parar um pouquinho pra dar uma olhada em você? Ele nem sabe o que é isso. Você para um táxi e ele para? Ele nem sabe o que é isso. Então, você tem um monte de privilégio de ser branco. Só que você tem o privilégio do privilégio de nem pensar nos seus privilégios.

Fiquei pensando sobre a enormidade desse privilégio, que é o de não ter que pensar nos meus privilégios. E fiquei pensando a partir de um grupo no qual tenho a pretensão de me incluir: o dos brancos não racistas, o dos brancos que denunciam o racismo e lutam contra ele. Percebo que, por mais profundo que seja o discurso do branco, por mais articulado, ele fala a partir de um lugar do qual teme ser deslocado, consciente ou inconscientemente. E, assim, sempre que possível, adere, aliviado, ao discurso mais intelectualizado, aparentemente limpinho, que no caso das cotas era o de que raça é algo que não existe ou que o problema do Brasil é social e não racial etc etc. E aqui, talvez, o discurso de adesão capaz de manter as boas aparências seja o da censura ou da liberdade de expressão. De certo modo, o discurso do melhor branco é sempre contemporizador.

Esses brancos bacanas, cool, esperam que os negros fiquem satisfeitos com a “abertura lenta, gradual e segura”. O ponto de vista é sempre o da concessão. E concessão é a palavra escolhida por aquele que tem o privilégio de conceder. Talvez o problema no Brasil, com relação à questão racial, seja semelhante ao da redistribuição da renda. Mesmo os brancos bacanas querem avançar na igualdade sem perder nada. Os negros ascendem sem que os brancos percam um centímetro do seu privilégio, o que começa pelas empregadas domésticas. Porque privilégio de branco é cláusula pétrea na sociedade brasileira. E aqui aproveito para sugerir que assistam à Casa Grande, filme no qual a Senzala é a presença – ou onipresença – não nomeada.

Os negros não podem se impacientar, ao contrário, precisam agradecer a benevolência. E, quando questionam, e em especial quando questionam gente bacana, aqueles que têm certeza de fazer o certo, a conversa muda de tom. É fácil se unir contra os trogloditas, e no Brasil há sobra deles. E contra os bacanas, os cool, como é que fica? E escrevo sem ironia, porque me incluo nesta conta. Escrevo com dor, porque a incompletude da abolição colocou gente de fato digna, brancos dignos, numa situação com poucas saídas a não ser um confronto que começa dentro, com a dureza dessa realidade que, enquanto não mudar, impede qualquer branco de ser de fato digno. É essa a tragédia que precisamos encarar: a impossibilidade de um branco ser digno neste país enquanto a realidade dos negros não mudar. A verdade brutal é que, no Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho.

Não quero ter a última palavra. Quero acrescentar duas falas que representam minhas melhores esperanças, ainda que eu saiba que esperança também é um privilégio de poucos.

A primeira é do mesmo homem da plateia que se apresentou como “4 Ps”:

— A pergunta talvez seja: neste contexto, que é novo, como é que nós inventamos uma outra sociedade? Porque, como professor de História do Teatro Brasileiro, eu não estou interessado em revisar a história do teatro brasileiro, eu estou interessado em inventar uma outra História. Acho que este é o ponto.

E termino com Roberta Estrela D’Alva, juntando duas falas que ela fez em momentos diferentes do debate. Na primeira, ela se referia a uma questão colocada pelo professor Achille Mbembe, com quem viajou pela África:

— O que nós vamos ter que deixar morrer em nós, brancos e negros, para que haja a transcendência, para que haja o encontro? Porque os copos estão cheios. O que a gente vai ter que derramar para que comece a penetrar? (…) Para a gente transcender vai ter que ser junto. Não tem nós e eles. O racismo não é um problema do negro, é um problema da sociedade. E nós todos somos a sociedade.

No meu teatro, Estrela D’Alva tem a última palavra:

— Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém.

(Publicado no El País em 25/05/2015)

 

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