Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”

Os xingamentos ao colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a abolição da escravatura jamais foi completada

 

O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas. Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades. Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num colombiano a expressão racista.

Não deveria acontecer, mas aconteceu. E aconteceu no dia em que os capitães dos times que disputaram uma vaga para a semifinal leram um manifesto da campanha contra o racismo: “Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça, orientação sexual, origem ou religião. Através do poder do futebol, podemos ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar nesta luta”. Depois do hino, brasileiros e colombianos posaram para fotógrafos e cinegrafistas com uma faixa: “Say no to racism” (“Diga não ao racismo”).

E então a jogada bruta do campo expôs a brutalidade infinitamente maior fora do campo, aquela que trespassa a sociedade brasileira há séculos – e atravessa o futebol que encantou o mundo. O futebol é fascinante também porque, ao mesmo tempo em que suspende as tensões ao criar sua própria linguagem, as revela pela mesma razão. De repente, a “Copa das Copas” expôs o Brasil dos linchamentos, o Brasil que botou a polícia militar para barrar a entrada de jovens das periferias nos shoppings na virada do ano, o Brasil em que um adolescente negro foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.

Não tenho instrumentos para medir o alcance dessa reação racista. Torço para que seja minoritária. Mas é significativo que se destaque nos sistemas de busca. A palavra que se escolhe para agredir alguém não é casual, ela sempre diz muito mais de seu autor do que daquele que ele pretende ofender.

A certa altura, na noite após o jogo, pessoas no Twitter começaram a postar: “Por favor, não coloquem as palavras ‘Zúñiga’ e ‘preto’ no buscador. É pelo bem de vocês”. Ao escrever as duas palavras, aparecia o pior. Em uma foto postada no Instagram do jogador, sua filha pequena escreve na areia: “Papi te amo”. A menina e sua mãe são ofendidas, até de estupro se fala, como costuma acontecer com as mulheres.

Esses torcedores parecem esquecer dos tantos negros da seleção brasileira, assim como do maior de todos eles, Pelé. Ou mesmo de Neymar, já que, se a questão é de “cor”, o herói abatido está longe de ser branco. Parecem esquecer de olhar para si mesmos. Para eles, possivelmente, seja difícil ver. Ver e reconhecer-se.

Quem chama Zúñiga de “macaco” nas redes sociais demonstra uma enorme ignorância, em todos os sentidos do que é ignorância – e também sobre o futebol do Brasil. Em seu belíssimo livro, “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil” (Companhia das Letras), José Miguel Wisnik recorda que, ainda nos anos 30 do século 20, Gilberto Freyre dizia que o modo brasileiro de jogar convertia o “jogo britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, incorporando à sua técnica “o pé ágil mas delicado” do capoeira e do dançarino de samba. Freyre disse também que o futebol europeu, reto e anguloso, ganhou, no Brasil, contornos sinuosos e curvilíneos que arredondam e adoçam o jogo. Era a celebração da mestiçagem do país que ganhava – talvez – sua melhor expressão na linguagem dos pés.

O futebol começou no Brasil com os brancos, em clubes de elite. Sobrava aos negros as bolas de meia ou de qualquer material que se arredondasse, nos campinhos e nas ruas, nas margens. E foram nestas sobras que se agigantaram, subverteram o futebol dos ingleses, criaram uma poética. Demoraram a ser primeiro recebidos pelas portas dos fundos, depois tolerados e por fim aceitos e aclamados. Mas a tensão persiste apesar das décadas. Expressa-se como um corte no momento em que, seja na arquibancada ou na arena de vale-tudo das redes sociais, um jogador negro é chamado de “macaco”.

Então, por um rasgo no tempo, lembramos que o racismo ainda é uma marca terrível, escavando abismos na sociedade brasileira. Abismos que também se desvelam na brancura da torcida dentro dos estádios da Copa, contrastando com os negros que recolhem as latinhas na parte externa, restos de uma festa em que sobram nas margens. Ou limitam-se a assistir ao desfile da elite de seu país pelos portões das “arenas”, reafirmando o seu lugar no lado de fora.

É cheia de drama e de vergonhas a entrada dos negros nos clubes de futebol do Brasil. Alguns, como o grande Friedenreich, o mulato com sobrenome alemão, esticava o cabelo, usava gorros. Esbarrou sempre no preconceito da elite, preocupada com a imagem do país no exterior, empreendendo grandes esforços para esconder os negros do futebol brasileiro. Em 1920, quando a seleção visitou Buenos Aires, um jornal local provocou o elenco brasileiro chamando os jogadores de “macaquitos”. É possível, mas não há certeza, que esta tenha sido a primeira vez que a palavra foi usada para expressar a discriminação racial no campo do futebol brasileiro.

Outro que demonstrava a força dessa violência era o mulato Carlos Alberto, ao encher a cara de pó-de-arroz. “Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção”, descreve o cronista Mario Filho. “O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz. Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto: ‘Pó de arroz! Pó de arroz!’”.

Depois que os negros passaram a jogar nos clubes, pela razão irremovível de que eram melhores, tinham espaço no campo, mas não na vida construída ao redor do futebol, como os saraus dançantes das casas finas. A certa altura, os negros eram chamados na crônica esportiva de “colored”, porque “preto” era um palavrão. A palavra inglesa buscava escamotear o que ainda envergonhava os brancos chiques: depender de negros para colecionar vitórias.

Toda essa saga de resistência, invenção e talento está lindamente contada no livro seminal de Mario Filho, “O negro no futebol brasileiro” (Mauad X), que todos os brasileiros deveriam ler, assim como qualquer pessoa que se interesse pelo país ou pelo futebol ou por ambos. Quando Leônidas da Silva, o famoso Diamante Negro, e Domingos da Guia se tornaram fenômenos de popularidade, carregavam com eles toda uma história brutal e fascinante que, ainda hoje, está longe de acabar. E que ficaria marcada depois no “Maracanazo”, o suposto trauma que ainda persistiria no Brasil atual, por ter perdido a Copa para o Uruguai, em 1950. Jogadores negros e especialmente Barbosa, o goleiro, foram escolhidos como culpados pela derrota, numa vitória que foi comemorada antes do jogo. Pagaram uma enormidade por algo que avançava muito além deles e do Maracanã. Com a vida para sempre assinalada, Barbosa apontado na feira, na praia, na rua como aquele que “tinha feito o Brasil chorar”.

O futebol festejado nesta Copa do Mundo de 2014 no Brasil é este, em grande parte moldado por negros que “roubaram” a bola e subverteram a narrativa. É também por este futebol que parte do país suspira, ansioso para tê-lo de volta. O futebol da ginga e do encantamento que também nos fez quem somos – mas sem saber hoje se ainda somos. Para Mario Filho, Pelé completou a obra da Princesa Isabel, (que assinou a abolição da escravatura). Mas a cada dia a realidade insiste em reeditar a certeza de que a abolição no Brasil jamais foi completada.

É o que acontece quando Zúñiga é chamado de “macaco” ou de “preto safado” por torcedores brasileiros porque entrou forte em Neymar, numa partida toda ela forte. Aqui, aparece ainda mais ignorância, sobre uma outra narrativa brutal, a do futebol na Colômbia. Essa geração, a de James Rodríguez, Cuadrado e Zúñiga, assinala uma travessia em curso no seu país, ainda com imensas fraturas. O presidente recém reeleito, Juan Manuel Santos, que estava no Castelão para assistir ao jogo, ganhou apertado com a bandeira de continuar negociando com as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A geração anterior de futebolistas entrava em campo sob os gritos das torcidas, que os chamavam de “narcotraficantes”.

James, Cuadrado e mesmo Zúñiga encarnam uma possibilidade, um novo, na simbologia em construção de uma Colômbia que tenta fazer do futuro um presente. Quando ignorantes pedem a morte de Zúñiga – ou “a ele o mesmo destino de Escobar” – estão incitando um crime. Há 20 anos Andrés Escobar foi assassinado em Medellín dias depois de ter feito um gol contra na Copa do Mundo nos Estados Unidos. Vomitar a ignorância, também de um processo histórico, clamando pela morte de Zúñiga nas redes sociais – esta sim, uma maldade explícita – é uma covardia monumental.

Talvez não saibam o que fazem, mas deveriam saber. Está na hora de a “pátria de chuteiras” entender mais de futebol.

(Publicado no El País em 07/07/2014)

Nós, os humanos verdadeiros

Quem estava nu além do menino negro acorrentado a um poste por justiceiros?

 

Precisei escutar o discurso do bem. O que dizem aqueles que acorrentaram um menino negro a um poste com uma trava de bicicleta no Flamengo, no Rio, em 31 de janeiro. Aqueles que cortaram sua orelha, aqueles que arrancaram suas roupas. O que dizem aqueles que defendem os jovens brancos que torturaram o jovem negro. Eu sei que os homens e as mulheres que evocam o direito de acorrentar adolescentes negros em postes, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas porque se anunciam como homens e mulheres de bem – e homens e mulheres de bem podem fazer tudo isso – estão ao meu redor. Eu os encontro na padaria, os cumprimento no elevador, agradeço a eles quando me permitem atravessar na faixa de segurança. Eles estão lá ao ligar a TV. Mas o que eles dizem que é preciso escutar?

O discurso do bem cabe em poucas frases. O Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. Diante desses fatos, e todos os fatos são sempre inquestionáveis no discurso do bem, acorrentar jovens negros em postes com trava de bicicleta, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é um direito de legítima defesa dos cidadãos de bem. Se quiserem torturar o menino negro, como fizeram, eles podem, assegura o bem. Se quiserem matá-lo, eles podem, também. E alguns o fazem. Meninos negros não são meninos. Não é preciso investigação, não é preciso julgamento, não é preciso lei. Os cidadãos de bem sabem, porque são a lei. Também são a justiça. O menino é um marginalzinho, é também um vagabundo, diz o bem. E bandido bom é bandido morto, garante o bem. Se você não pensa assim, o bem tem um pedido a lhe fazer: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. Simples, direto, objetivo. O discurso do bem orgulha-se de ser simples, orgulha-se de só ter certezas. A dúvida atrapalha o bem. E o bem não deve ser perturbado. E como duvidar que acorrentar um menino negro a um poste pelo pescoço, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é o bem?

Encontro uma explicação definitiva no discurso dos justiceiros amplificado nas redes sociais. Quem acorrenta um jovem negro a um poste, corta um pedaço da sua orelha e arranca suas roupas – e quem defende o direito de fazer tudo isso – são os “verdadeiros humanos”. E também os “humanos verdadeiros”.

Adolescente amarrado a um poste com uma trava de bicicleta. / Yvonne de Mello (Facebook)

Adolescente amarrado a um poste com uma trava de bicicleta. / Yvonne de Mello (Facebook)

É uma guerra, descubro, entre humanos verdadeiros e humanos falsos.

Neste ponto, tenho uma dúvida. Talvez eu não seja uma humana verdadeira – ou uma verdadeira humana –, porque além dessa dúvida sobre a veracidade de minha humanidade, eu ainda tenho outra. O que os humanos verdadeiros – ou verdadeiros humanos – viram ao arrancar a roupa do menino negro? O que eles enxergaram ao se deparar com sua nudez? Será que foi por isso que arrancaram suas roupas, para provar que ele não era humano? O que aconteceu quando descobriram que seu corpo era igual ao deles? Ou não era? Será que foi nesse momento que cortaram a sua orelha, para marcá-lo como um humano falso, já que Deus ou a evolução não haviam providenciado essa diferença no corpo? Ou basta a cor, como já disse um pastor evangélico dedicado aos direitos humanos? Que perturbadora pode ter sido a nudez do menino, ao se tornar espelho dos justiceiros e os deixar nus, enquanto batiam nele com seus capacetes.

Quem estava nu nessa cena?

As dúvidas não fazem bem ao bem. Por associação eu concluo que há também os jornalistas falsos e os verdadeiros. Os falsos tenderiam a acreditar que, no jornalismo, uma opinião só pode ser dada com informação, pesquisa e investigação da realidade – ou não é uma opinião para o jornalismo, só um vômito de palavras. Os falsos pensariam que, para falar das ruas, seria preciso ir às ruas. Os falsos mostrariam que, quem mais morre por violência, no Brasil, são os jovens negros e pobres como aquele que foi acorrentado a um poste pelo pescoço. Mostrariam também que as maiores vítimas de violência de todos os tipos estão nas periferias e nas favelas – e não no centro, muito menos nos condomínios fechados. Os falsos se preocupariam em esmiuçar o contexto em que o fato foi produzido, explicar as raízes históricas que fazem com que as maiores vítimas de violência sejam os negros e os pobres, a começar pela abolição da escravatura que não se completou. Os falsos se esforçariam para revelar a complexidade de uma cena que remete à escravidão se repetir mais de 125 anos depois da Lei Áurea. Os falsos buscariam analisar como a violência é uma marca de identidade nacional, presente ao longo da constituição da sociedade brasileira – e que aquele que diz punir, de fato se vinga. Os falsos saberiam que uma imagem não desvenda tudo nem é toda a verdade. Os falsos suspeitariam que defender o linchamento, ainda que de humanos falsos, e abrir espaço para o incitamento ao linchamento em veículos de massa e na grande mídia poderia ser considerado uma irresponsabilidade que desqualifica o jornalismo e reduz a imprensa.

Mas esse é o problema dos falsos. Eles acham que a realidade não cabe em meia dúzia de frases repetidas de forma diferente. São falsos e são fracos porque duvidam das verdades absolutas. Os jornalistas verdadeiros não têm dúvida nenhuma, nem mesmo uma bem pequena. O mundo acaba nos limites do seu próprio mundo, mesmo que este seja um condomínio fechado e que nas poucas vezes em que saiam de casa seja em carro blindado, de um lugar protegido por seguranças a outro lugar protegido por seguranças. Os jornalistas verdadeiros conquistaram, porque são verdadeiros, o direito de estabelecer os limites do mundo e de falar apenas a partir dele. A alteridade, assim como o movimento de escutar o outro e experimentar o seu argumento, faz mal ao bem e também ao jornalismo verdadeiro.

Divaguei. E divagações não fazem bem ao bem. A questão maior, a que abarca todas as outras, inclusive a dos jornalistas, é a dos verdadeiros humanos – ou dos humanos verdadeiros. Também conhecidos como cidadãos de bem.

Aqui, exatamente aqui, eu tenho outra dúvida. Essa me perturba mais. Percebo que, se estes são os humanos verdadeiros, os que acorrentam jovens negros a postes com travas de bicicleta, cortam a sua orelha e arrancam suas roupas – assim como os que defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso –, minha tendência é me alinhar aos humanos falsos.

A distinção, porém, permaneceria. Com o tempo, eu poderia sucumbir à tentação de considerar que os falsos são os melhores. E, em seguida, talvez ousasse dizer que os falsos, na verdade, são mais humanos do que os outros. E, logo, aqueles que não acorrentam jovens negros em postes, não cortam sua orelha, não arrancam suas roupas – e aqueles que não defendem os cidadãos de bem que fazem tudo isso – seriam os verdadeiros humanos – ou os humanos verdadeiros. E eu me colocaria ao lado deles, como uma apaziguada companheira de manada.

Mas seria fácil demais.

Difícil seria compreender não a diferença, mas a igualdade. Difícil não é me diferenciar, mas me igualar, perceber em que esquinas minha humanidade se encontra com a do menino negro preso ao poste e também com a humanidade dos jovens brancos que acorrentaram o jovem negro ao poste. Para isso, eu preciso perceber que aqueles que arrancaram as roupas do menino ficaram nus, sim, mas também me deixaram nua. Nos deixaram nus. Nós, que não compactuamos com quem acorrenta jovens negros em postes, somos aqueles que estavam na cena, mas não aparecem na imagem. E por isso podem se esconder melhor.

É para isso que também serve o discurso do bem. Ou o discurso do ódio, se preferirem. Para que possamos nos contrapor a ele e nos assegurarmos não só da nossa diferença, mas principalmente da nossa inocência. Para que possamos continuar vivendo na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não sejam acorrentados em postes pelo pescoço. Na ilusão de que fazemos algo para que meninos negros não se tornem, caso alcancem a vida adulta, homens e mulheres que ganham menos que os brancos, que têm menos educação que os brancos, que têm menos saúde que os brancos, que sejam a maioria nas casas sem saneamento. Na ilusão de que fazemos algo para que as mulheres negras não sejam as que mais morrem no parto nem seus filhos os que preenchem as estatísticas de mortalidade infantil. Na ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não tenham a entrada banida em shoppings, exceto para trabalhar. O discurso do ódio também serve para que possamos nos contrapor a ele e manter intacta a ilusão de que fazemos algo para que jovens negros não sejam os que morrem mais e mais cedo.

É preciso encarar nossa nudez nesse espelho em que a imagem, sempre incompleta, mostra apenas o menino negro nu. E abrir mão de uma certa soberba que faz com que, no fundo, acreditemos que somos nós os cidadãos de bem – os civilizados contra os bárbaros. E que dizer isso basta para um sono sem sobressaltos.

A maioria (79%), pelo menos no Rio de Janeiro, segundo pesquisa do Datafolha, é contra acorrentar jovens negros a postes. (O maior índice de aprovação aos justiceiros é encontrado entre os brancos, os mais ricos e os mais escolarizados, e este é um dado importante.) Mas o poste/tronco é apenas a imagem extrema, hiper-real, do que a maioria convive, dia após dia, sem perceber que deveria ser impossível conviver com o fato de que uma parte da população brasileira tem menos tudo, inclusive vida. A abolição incompleta da escravatura está em todas as horas do Brasil. Se não fosse mais conveniente ser cego, enxergaríamos jovens negros presos a postes pelo pescoço o tempo todo. O que a quadrilha de jovens brancos, de classe média, fez ao acorrentar o jovem negro a um poste foi uma interpretação literal da realidade cotidiana. Porque seu pensamento é simplista, direto, objetivo, escancararam o que se expressa no dia a dia de formas menos explícitas. O que os brutos realizaram, porque esse também é o papel dos brutos, é a materialização de uma realidade simbólica com a qual convivemos sem pruridos. Ao fazê-lo, os justiceiros nos dão, de novo, a chance de exaurirmos nossa omissão em ruidosa revolta, e voltar esgotados de imagem para o sono dos justos.

Os brutos não são a maioria, pelo menos nesse caso, pelo menos no Rio. A maioria é contra acorrentar jovens negros a postes, cortar sua orelha e arrancar suas roupas. Então, por que a abolição da escravatura ainda não se completou no Brasil? Porque nossa cumplicidade encontra caminhos para se convencer inocente.

Somos os “sonsos essenciais”. O termo é de Clarice Lispector, no melhor texto que li sobre a cena do menino negro acorrentado a um poste pelo pescoço. Com o detalhe que foi escrito na década de 60 do século passado. “Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. (…) E eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem”.

Para fazer a diferença é necessário se diferenciar. Mas só se diferencia aquele que antes se iguala. Levanta os olhos e encara, no espelho que é o outro, a enormidade de sua nudez.

(Publicado no El País em 17/02/2014)

Kaique e os rolezinhos: o lugar de cada um

A lógica que criminalizou os rolezinhos é a mesma que levou a polícia a registrar a morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos como suicídio, antes de qualquer investigação

 

A morte do adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos e os rolezinhos não coincidem apenas no calendário. Dizem de um lugar: onde é “natural” encontrar um jovem negro e pobre, onde não é “natural” encontrá-lo. A lógica que determina a criminalização prévia dos rolezinhos e a não criminalização prévia da morte de Kaique – acontecimentos que moveram São Paulo e parte do país nos últimos dias – é a mesma. Ela indaga por territórios e revela leis não escritas.

Primeiro, quem é Kaique, já que sobre os rolezinhos estamos bem mais informados. O adolescente foi encontrado morto no sábado (11/1), próximo a um viaduto da Avenida Nove de Julho, na região central de São Paulo. Os dentes e os dedos estavam quebrados, havia um ferimento numa perna. Para a família, uma barra atravessada, que depois teria sido retirada. Para policiais, uma fratura exposta. Tinha 16 anos – e são os jovens os que mais morrem por assassinato no Brasil. Era homossexual – as mortes por homofobia cresceram 11% em 2012, comparado ao ano anterior. Era negro, como mais de 70% das vítimas de homicídio no país. É razoável esperar que suas circunstâncias, assim como as circunstâncias em que seu corpo foi encontrado, motivassem suspeitas de que pudesse ter sido assassinado. Não foi, porém, o que aconteceu. A polícia de São Paulo registrou no boletim de ocorrência: “suicídio”.

Não há, neste momento, como afirmar se Kaique foi assassinado ou se suicidou. Para afirmar, tanto um homicídio quanto um suicídio, é preciso uma investigação. E séria. Há suicídios que, pelas circunstâncias e pelas evidências, são facilmente comprováveis. Não parece ser o caso de Kaique. A questão que se impõe é: por que foi registrada como suicídio uma morte que até hoje, mais de uma semana depois, não foi esclarecida?

Na sexta-feira (17/1), centenas de pessoas fizeram um ato contra a homofobia, no centro de São Paulo, exigindo esclarecimentos sobre a morte de Kaique. Entre os cartazes, um referia-se à manutenção, sem qualquer alteração, do papel da polícia da ditadura civil-militar na atual democracia: “Desde 64 quem é torturado e assassinado foi suicidado”. A verdade – ou pelo menos parte dela – é que, não fosse a inconformidade da família, a divulgação pela imprensa e, principalmente, a revolta massiva nas redes sociais, a morte de Kaique jamais seria investigada. Ainda que a polícia possa negar que funcione assim, “suicídio”, no boletim de ocorrência, significa, na prática, caso resolvido. Encerrado, portanto, sem investigação.

Pressionada pela família de Kaique e por ativistas da luta contra a homofobia, a polícia paulista segue repetindo que não há indícios de assassinato, como repetia desde o momento em que policiais botaram os olhos no corpo do garoto e concluíram por suicídio. A Secretaria de Direitos Humanos, ligada à presidência da República, enviou para São Paulo o coordenador de Promoção dos Direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) para acompanhar o caso. Em nota, afirmou: Kaique foi “brutalmente assassinado” e há indicação de que “se trata de mais um crime de ódio e intolerância motivado pela homofobia”.

Neste momento, há uma ministra do PT (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos) desmentindo a polícia do PSDB em ano de eleição. Nem assim, as provas irrefutáveis que poderiam respaldar o registro de suicídio apareceram. Ainda que, contra as aparências e a crença da maioria, a polícia paulista consiga provar que Kaique se suicidou, a questão crucial dessa história continua rigorosamente a mesma. Não se trata apenas de saber se a morte de Kaique foi assassinato ou suicídio, o que está perto de virar um FlaXFlu político-partidário, mas sim questionar aquilo que já está provado: não havia como saber a causa da morte de Kaique quando a polícia a registrou como “suicídio” no boletim de ocorrência.

E por que o fez?

Há várias hipóteses, inclusive a de reduzir as estatísticas da violência, uma preocupação constante das autoridades, que se acirra em períodos pré-eleitorais. Mas há uma explicação que pode nos ajudar a refletir sobre esse momento agudo que o Brasil vive e que é marcado pelos rolezinhos, o fenômeno mais interessante do momento, pela riqueza (inclusive contraditória) de seus significados.

É nesta esquina simbólica, na indagação sobre o território de cada um, que o caso Kaique e os rolezinhos se encontram. Ao se deparar com um jovem negro e homossexual morto, o corpo flagelado, perto de um viaduto, a polícia tem, sem qualquer investigação, a convicção de que não houve um crime. Ao encontrar um grupo de jovens da periferia, a maioria negros, bem vivos dentro de um shopping, a polícia tem a certeza de que, sim, é um crime. Se ainda não cometeram furtos, roubos e arrastões, certamente o farão. Do crime, não são vítimas, mas autores.

No primeiro caso, se Kaique foi de fato assassinado, o crime ficaria impune, não fosse a pressão das redes sociais. No segundo caso, puniu-se um crime que não aconteceu, ao se indiciar jovens que não fizeram nada além de zoar. Discriminou-se centenas de outros, que foram coagidos a se retirar de shoppings por conta de sua cor e de sua aparência, e barrou-se a entrada de outras centenas, também por causa de sua cor e de sua aparência. Sem esquecer daqueles que, como é mostrado em vários vídeos, levaram gravatas, chutes, socos e empurrões da polícia por ousar entrar num shopping.

Por quê?

As respostas são muitas e não tenho a menor chance de esgotá-las aqui. Mas há uma que vale a pena refletir com bastante atenção num momento em que o apartheid do Brasil é escancarado pelo fenômeno dos rolezinhos, independentemente do fato de esta ser ou não a intenção dos meninos que os promovem. O que une o caso Kaique e os rolezinhos é não só, mas principalmente, o lugar. A naturalização do lugar de cada um numa sociedade cindida, como continua a ser a brasileira.

Debaixo de um viaduto, um jovem negro morto não chama a atenção. Se for possível perceber pelas roupas, cabelo e acessórios que é gay, menos ainda. Não é estranho o suficiente para que a polícia acredite que precise estranhar. É, talvez, onde parte da polícia e parte da sociedade espera – e muitos até torcem, como provam os comentários homofóbicos e racistas que também proliferam na internet – que acabe um adolescente negro e homossexual que saiu de uma balada gay do centro de São Paulo. Para tanto, basta tascar no boletim de ocorrência, já que é preciso dizer alguma coisa: “suicídio”. E despachar o corpo para o Instituto Médico Legal como indigente, já que Kaique teria perdido os documentos e o celular. Vale registrar ainda que, devido à “superlotação do IML”, o corpo ficou “fora da geladeira” por dias, alcançando um estado de deformação que tornou impossível para a mãe dar um velório ao filho morto. Kaique, portanto, estava no lugar naturalizado para adolescentes com a aparência de Kaique.

Já dentro de um shopping, um grupo de jovens pobres e, em sua maioria negros, está fora de lugar para essa mesma polícia e a sociedade que a gesta, evoca e respalda. O deslocamento, por si só, passa a ser interpretado como um crime, na medida em que essa mobilidade é criminalizada por leis não escritas, mas profundamente introjetadas. Tão introjetadas que o aparato de segurança pública e o judiciário são acionados para mantê-los do lado “certo” – o lado de fora. Tão introjetadas que o fato de não existir crime tem sido espantosamente insuficiente para impedir a criminalização de um movimento de meninos e meninas que querem se divertir e dar uns beijos, mas que, ainda que estejam usando grifes, jamais são reconhecidos como “iguais”, como tendo a “aparência certa”, o cartão invisível que garante a entrada pela porta da frente.

Para os rolezeiros, o crime era estar dentro, quando se esperava que continuassem no lado de fora. Para Kaique, não havia suspeita de crime, porque, para uma parcela da polícia e da sociedade que a legitima, ele estava no lugar previsto (embaixo de um viaduto) e na condição prevista (morto). Para Kaique e para os rolezeiros há um lugar naturalizado para a morte, há um lugar naturalizado para a vida.

Simbolicamente, é o mesmo policial que bota “suicídio” no boletim de ocorrência, diante do corpo flagelado de um menino negro, e aquele que,como contou a jornalista Vanessa Barbara na Folha de S. Paulo, repetia no ouvido dos garotos no Shopping de Itaquera: “Vou arrebentar vocês. Vou arrebentar vocês”, e logo desferiu um chute num menino. Ainda que, por estrato social, a maioria dos policiais esteja mais próxima dos rolezeiros do que dos frequentadores habituais dos shoppings, como mostra a brilhante charge de Angeli, na qual um dos garotos, encostados na parede pela polícia durante um rolezinho, olha para trás e diz ao PM: “Pai?!”. Ainda – ou talvez por causa disso.

Nossa polícia é muito doente. Porque nossa sociedade é muito doente. Apodrecemos em praça pública, a maioria, outros em seus bunkers privados. Mas acredito que vivemos tempos melhores porque, até bem poucos anos atrás (ou talvez meses), o registro da morte de Kaique como suicídio não seria questionado. E nunca saberíamos o que houve porque não existiria pressão suficiente para que a polícia fizesse, de fato, uma investigação. Até poucos anos atrás a decisão dos meninos e meninas da periferia de zoar em massa nos shoppings talvez produzisse só repressão, mas não questionamento e reflexão sobre o Brasil. Ainda que os mesmos de sempre tentem desqualificar e reduzir a importância do fenômeno, pelos motivos óbvios, o embate hoje conta com mais narradores e o nível se elevou. Por paradoxal que pareça, acho que melhoramos porque começamos a sentir o quanto cheiramos mal. Antes, o cheiro estava lá, mas não o reconhecíamos como nosso.

O ano de 2014 começou apressado, com ritmo de meio. Me aparece um bom augúrio. Se há alguma esperança, ainda frágil, delicada, de que alcancemos um estágio civilizatório minimamente aceitável, ela está na capacidade de nos espantarmos com o boletim de ocorrência de Kaique e com a reação violenta e discriminatória contra os rolezinhos. Com a não criminalização prévia da morte de um e a criminalização prévia da vida de outros. Há momentos – e este é um deles – que só o espanto salva.

(Publicado no El País em 20/01/2014)

 

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