Vítimas de uma guerra amazônica

Expulsos por Belo Monte, Raimunda e João tornam-se refugiados em seu próprio país

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

Uma das ilhas do Xingu, desmatada e queimada para o enchimento do lago de Belo Monte/ Fotos: Lilo Clareto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A saga de João e Raimunda tem seu ápice em dois atos de uma guerra amazônica não reconhecida pelo Estado e pela maioria dos brasileiros. Ainda assim, ela está lá. Aqui. Essa história, decidida neste momento no Pará, na região de Altamira e da bacia de um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, o Xingu, é contada por um homem e por uma mulher, apenas dois entre dezenas de milhares de expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte, gente que hoje vaga por um território que não reconhece – e no qual não se reconhece. Mas esta não é mais uma entre tantas narrativas dramáticas em um país assinalado pela violação sistemática dos direitos de negros e de indígenas. Raimunda e João trazem inscritos no corpo uma encruzilhada histórica. A de um país que chegou ao presente, depois de tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do centro do poder político e econômico, a Amazônia. Esta é também a anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas submetido a forças acima da Lei. O não reconhecimento da violência sofrida inflige a suas vítimas uma dor ainda maior, e uma sensação de irrealidade que as violenta uma segunda vez. É a experiência de viver não fora da lei, mas sem lei que escava a existência de Raimunda e de João – e os faz escolher destinos diferentes diante da aniquilação.

Raimunda decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não sabe como viver. Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.

Neste momento, João e Raimunda vivem esse impasse.

Enquanto isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas de redução e compensação do impacto, para começar a encher o lago de Belo Monte.

O terceiro ato ainda é uma incerteza.

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Raimunda Gomes da Silva e João Pereira da Silva

Ato 1: João perde a fala e trava as pernas para não matar

Segunda-feira, 23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava diante do preposto da Norte Energia, a empresa que venceu o leilão de Belo Monte, apresentada como uma das três maiores hidrelétricas do mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua casa, roça e demais benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem. Em vez disso, impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da floresta para ganhar o sustento. João percebeu ali que estava condenado à miséria, aos 63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito anos de idade ele peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra sem dono, arrancando cada dia da força dos braços. Depois de um percurso de faltas, João acreditou ter encontrado uma casa e uma existência sem fome na ilha do Xingu. E agora arrancavam-no também dali. João sentiu que era a vida que lhe roubavam, e que ele já não tinha mais juventude nem saúde para recomeçar. Para João, já não haveria uma última fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar. Acabavam de lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o passado-presente-futuro fora reduzido a um tempo só, que se repetia.

João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança, é preciso compreender. Matar como um sacrifício.

– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos outros melhorava. Se eu pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe dessa firma, passaria por dentro umas duzentas vezes. E não tenho medo de dizer. Eu era muito satisfeito de fazer isso, mesmo que na mesma hora minha vida se acabasse.

João não conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou movimento. João descobriu ali que matar não era um ato possível para ele. As pernas travaram, a fala travou. João imobilizou-se por inteiro para não matar aquele que encarnava a obra que acabava de matá-lo. Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela mulher, Raimunda, e por uma das filhas, para fora do escritório da Norte Energia.

– Eu perdi… Chegou um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava só espumando. E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu ando um pouco, mas minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é fácil, ter tanta raiva que trava o corpo.

Desde então, João é um homem traumatizado. Não no sentido banal que a palavra “trauma” ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma” como aquilo que não é possível simbolizar, do buraco que não vira marca. Sem saber para onde ir nem onde está, João só consegue andar uns poucos passos e logo precisa sentar-se num banquinho. Quando sai, perde-se porque já não reconhece o território. João tornou-se um desterrado de tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para Raimunda: “Seu João está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer ali”. Raimunda pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.

E se, em vez de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?

– Muié, eu teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem justiça.

João faz uma pausa antes de esclarecer:

– Muié, você tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu tenho nojo desse pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.

Sem palavra e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se vítima duas vezes, porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu país. Assim, João também torna-se um sem país, na abissal condição de sentir-se dentro e fora ao mesmo tempo, atingido por uma lei não escrita, ignorado pela lei que deveria inscrevê-lo na trama da cidadania. Para referir-se ao Brasil, a expressão mais frequente de João é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é um corpo ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.

– Cheguei a dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e para qualquer cão que aparecer, que a justiça do país brasileiro é dinheiro. Se Jesus bater aqui, nesse país, os altos empresários catam ele e compram ele. E, se ele se abestalhar, é vendido. Entendeu?

João repete a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de escutá-lo por algum tempo percebe-se que não é uma bengala de linguagem, como se poderia supor, mas sua certeza de não ser compreendido.

Ato 2: Raimunda descobre que sua casa virou cinzas

Terça-feira, 1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, chamou um conhecido, comprou dez litros de gasolina para a viagem no rio e fez “um rancho e um frito” para comer no caminho de sua ilha, a Barriguda, no lugar batizado de Furo do Pau Rolado. Partiram às 5 horas da manhã. Um dia antes, na segunda-feira, haviam ligado da Norte Energia: “Dona Raimunda, quando nós podemos tirar os seus resíduos lá da ilha?”. “Resíduos” eram as posses de cozinha e de pesca de Raimunda. Ficou combinado que ela retiraria seus pertences na terça-feira cedo. Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda alcançou a sua ilha.

Sua casa, feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.

– Você sabe que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha… Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada… Eu fiquei anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que mundo é esse que a gente vive?

belo monte 3

A Norte Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram a ela que era um tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela, viu?”. Quando encontrou a casa em cinzas, Raimunda sentou-se na beira do rio.

– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando por dentro da pequena.

Raimunda fez uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de Altamira. Relatou que, naquele momento, as demolições e “remoções” dos ribeirinhos estavam suspensas pelo IBAMA. A medida havia sido tomada depois que uma inspeção realizada em junho revelara uma série de violações de direitos humanos no processo de expulsão das famílias, em relatório assinado pelo Ministério Público Federal, instituições públicas, organizações não governamentais e acadêmicos do porte de Manuela Carneiro da Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida (Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas, ainda assim, a casa de Raimunda queimava.

Ela concluiu:

– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda, o que acha?

– Eu acho que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez eu não tenha certeza do que digo. Mas eles sabem o que fazem.

A procuradora da República em Altamira, Thais Santi, comunicou ao IBAMA o descumprimento da ordem de suspensão das “remoções” e demolições no caso de Raimunda. “A violência dessa atitude de demolir e incendiar a casa dessa moradora é imensurável, pois simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo diante de tantos pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a mesma postura. A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a procuradora. “A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de que, independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”

O Ministério Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo Monte, por descumprimento das medidas obrigatórias de redução e compensação do impacto da obra sobre o meio ambiente, os povos tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma delas conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. Seis delas tiveram decisões favoráveis, que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do “interesse nacional”. A Defensoria Pública da União acaba de entrar com uma ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a violação de direitos dos atingidos pela barragem.

Nem o IBAMA nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento da reportagem.

Diante das cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa.

– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem comigo.

Raimunda buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.

– Agora eu não tenho mais quem me guie.

Raimunda então canta diante das cinzas.

– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.

O Antes: O pai ensina Raimunda a caminhar sem fazer barulho

Raimunda desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha, caminho com qualquer calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço uma brincadeira que só uma branca que leu muitos contos de fadas é capaz de fazer: “Andar de princesa, né, dona Raimunda?”. Ela me chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa dos outros”.

 Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte


Ilha do Xingu queimando para dar lugar à Belo Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

O pai é a raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento enquanto apresenta a dissolução do seu mundo, como se um pudesse costurar o rasgo do outro. Natalino Gomes era bisneto de escravos com muita dor no falar, e uma avó índia canela para apimentar o sangue africano com tropicalidades.

– Meu bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu pai, e assim sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai, porque só sabia trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio de dinheiro, nem sabia ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer barulho ao andar. Eu fui criada nessa cultura do sim senhor, não senhor. Mas, não, nunca me acostumei.

Talvez Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca Gomes. Ela era mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do pai. A mãe era alegre, era livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto a pobreza permite. Um livre de viver em outras realidades, para além das correntes. A mãe era também arretada, não deixava homem nenhum botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o marido. Quebradeira de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de meninos rodopiando ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos, quebra-os com o facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício que mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros. Mas isso foi antes de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10 anos de idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para ver no que dava. Escola, não conheceu.

Raimunda avisa:

– Eu não levo recado, eu dou.

E então dá:

– A escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e crua. Num outro modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter direitos. Olha o que aconteceu com a minha pessoa e com milhares de outros com essa Belo Monte? E cadê a Justiça? Taí, um monte de injustiças na cara da justiça. Então, sou escrava.
Em seguida, Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

Raimunda, no rio, com uma bandeira do Brasil na cabeça porque diz que o país também é dela

 

 

 

 

 

 

 

 

– O negro sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira. Ou na terceira, quem sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É quase impossível.

Se as correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai de Raimunda, ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa esperança fininha que circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje andam o mapa inteiro em busca de uma terra sem dono, que ele carregou a família para a Amazônia, no encalço de uma terra para quem nada tinha. Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz que o pai morreu escravo. Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em casa alheia, também nas Amazônias do Pará.

Para ela, o pai legou uma série de dizeres, e também algumas profecias. Uma delas é esta, na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o passado de escravidão e o presente de escravidão, entre o desterro de um continente ao outro e o desterro dentro do desterro.

– Meu pai dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí, o dinheiro. Não foi isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo, derrubando, passando por cima e jogando umas migalhas de papéis que são os dinheiros que eles dão. Não veem que acabaram com aquela pessoa por dentro quando lhe tiram a sua casa. Entendeu? Tiram tudo da pessoa e jogam uns papeizinhos, daí fica assim. Entendeu?
Como João, seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para concluir as frases, fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do interlocutor. Mas a esse “entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda acredita que ainda pode ser compreendida.

E assim, continua.

– Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de dinheiro e vê o que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma sacola de dinheiro, perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma planta, você acha uma fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o que você precisa pra viver, pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E você, com dinheiro, você morre com ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem uma raiz que ninguém pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava prevista por aquele que arrastava as correntes, a sensação de que tudo está para além de qualquer controle é brutal, mas não a paralisa: “O papel acabou com o mundo, como meu pai dizia. Ele sabia”. O pai também dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se verá mais adiante, sempre dá jeito de encontrar uma trilha.

O Antes: abandonado pelo pai, João ganha o trecho e vira barrageiro

João também nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de pertencimento para ele. João não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um indo. Seu pai foi acometido por uma febre mais forte do que a malária, e que dura muito mais. E às vezes também mata. A do ouro. “Bamburrar”, encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma fotografia empoeirada no passado, é o que faz bater o coração de milhares de homens Brasil afora. A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo veio de ouro, eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de arara, em pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma vida de aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro me disse, de personagem de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não sabia ler.

Como costuma acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados toda vez que recusam seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte, os garimpeiros são tratados como bandidos, enquanto as grandes mineradoras, as multinacionais, as que arrasam enormes porções de floresta e concentram o lucro, estas são purificadas pela palavra “negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”. Essa metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar imensa jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá vivem há décadas. Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com os povos tradicionais, que pertencem à floresta e a preservam para o Brasil e o mundo.

O pai de João era um destes homens febris, que abandonou a família e também esse filho pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha terra no chão nordestino e até um pouco de gado, mas não era homem plantado. Embrenhou-se nos garimpos de Itaituba, no Pará, lá onde hoje cresce o cerco do governo para mais duas grandes hidrelétricas: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Como a maioria dos garimpeiros, encontrou uma mulher nova, e possivelmente várias outras. As prostitutas chegam antes dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com eles. Lá são chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser mulher de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de gramas de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que se forma no garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam. Quando o pai veio buscar o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde para um encontro que nunca houve. O pai tentou duas vezes, numa delas apareceu até de avião. João desacreditou das asas do pai e recusou-se a seguir com ele. Preferiu fazer-se homem quando ainda era menino.

Primeiro João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade, um fiapo de gente. Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das palavras mais enigmáticas na linguagem variada dos Brasis, que vai ganhando significados diferentes país afora. O trecho é o mundo, é a estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe de possibilidades. João viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais pedras do que podia, inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a vida de menino pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado pelo pai, que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.

João não se filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele não se considerava mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação. Entre as sinas dos brasileiros pobres, ele escolheu a de se tornar barrageiro, um operário de barragem que vai seguindo a trilha dos grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma grande usina para construir, alista-se em contratos fora do país, negócios assumidos pelas gigantes do setor de construção. “Trabalhei na Mendes Júnior, trabalhei na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na Odebrecht, trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram umas 12 firmas que eu trabalhei.”

João foi peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil. Nos anos 50, no governo democrático de Juscelino Kubitschek, as empreiteiras construíram Brasília e nunca mais saíram do centro do poder. Cresceram e multiplicaram seus lucros logo em seguida, nos grandes projetos da ditadura civil-militar (1964-1985), com ênfase nas obras megalômanas na Amazônia, como a Transamazônica, uma entre tantas que aniquilaram floresta e vidas. Seguir o dinheiro das grandes empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do Brasil, um período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros 15 anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia, acusados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação investiga a corrupção em contratos da Petrobras e, mais recentemente, também do setor elétrico. Delatores já revelaram a prática de propina em Belo Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.

No começo de sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal. Depois, conquistou uma profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua primeira grande hidrelétrica foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional que afundou uma das maravilhas do mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade sem reparação. Mas foi só em outra hidrelétrica, Tucuruí, que João compreendeu seu papel descartável no jogo comandado por reis e depois por uma rainha. No momento dessa descoberta, João começava o capítulo definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.

O casamento: João e Raimunda se encontram num “pancadão”

Raimunda tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa. “Eu olhei ele, ele olhonimim.” Foi assim, entre o azulado do olho de João e o negro de Raimunda, que se quiseram de imediato. Raimunda foi logo avisando que não era “da tradição de gente que se junta, se quiser me dê aliança e sobrenome e vamos fazer história”. Fizeram. Tempos depois se oficializaram num casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido lilás, segundo ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de filhas, no total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses, batizado como Leodeí:

– Eu trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era militar. E ele morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei aquele nome na cabeça, Indonésia… E o sonho da mãe era conhecer essa cidade porque o filho morreu, ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os restos mortais, mas não era mais o filho. Eu fiquei pensando comigo… Indonésia… Se a Indonésia é uma cidade que foi guerreada numa guerra inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha filha tenha esse nome. Aí coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia, a Livia, a Liviane, a Leidiane, a Luciene e a Liliane.

Lindionésia é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda atravessarem uma vida de guerra, a paz inscrita no corpo de letras da filha. A saga, porém, ainda não tem conclusão na concretude dos dias. A paz, na vida de Raimunda e de João, ainda não deixou de ser palavra para virar a coisa que representa. O “L” tem outro porquê:

– É de liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas filhas fossem livres, que tivessem livre expressão de estudar, de brincar, de ser o que quisessem na vida.
Raimunda persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não deu certeza.

– Meu pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele não deu como certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo procurando a paz.

Nesta busca, um dia João apareceu anunciando:

– Tão contratando em Tucuruí.

Foi ali que Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce pra barragem”. E a condição de peão revelou-se para João em toda a sua magnitude. Se antes ele andava de barragem em barragem, de obra em obra, agora ele tinha uma família. João não podia mais percorrer o trecho, ele precisava enraizar-se. Enquanto uma das barragens mais devastadoras da ditadura era construída também pelas suas mãos, no rio Tocantins, no Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa. Ao final, descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:

– Meu João trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu conta que tava feito pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia em que ele bota o ovo, ele começa a desmantelar o ninho. No dia em que termina de tirar o derradeiro fagulho do ninho, o filho já foi embora. E ele tava fazendo isso, mesmo. Porque ele trabalhou, comprou uma terra e uma casa com o dinheiro da barragem que construía, e essa mesma barragem alagou tudo nosso.

 A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura: Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica


A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura:
Ilha do Xingu sendo derrubada por causa da hidrelétrica

– E lá a gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que aconteceu? Meu lote valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro muito alto. Então, a Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe depositar esse dinheiro sem o título da terra”. Nós tinha terra legalizada. E nunca mais nós vimos esse título. E não podia provar, porque era a palavra deles contra a nossa. Então, além de perder tudo, ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava lá. Por isso que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o que fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada. Deram outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos nem as pragas. A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a vegetação. Se formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O que que nós fizemos? Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na beira da Transamazônica) no finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988 fomos pra Altamira.

Em Altamira, João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a floresta. Mas isso foi depois.

Antes, João passou por ainda mais duas provações. Logo depois de Tucuruí, ele partiu para o Iraque, contratado pela construtora Mendes Júnior Internacional. João, que se sentia vítima de uma guerra não declarada, foi despachado para o outro lado do mundo, para construir “uma pista para tanques de guerra”. Sofreu um ano longe da família. Quis voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou a Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda. Terminou dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como uma prova de que o amor deles constrói pontes entre exílios.

Depois da expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se uma documentadora. Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis. João também mudou. Da experiência de construir em países do Oriente Médio, ele faz uma analogia com Belo Monte:

– Conheci vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país brasileiro, em lugar com terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de matar hoje e o dia de matar amanhã. Entendeu? Justiça não existe.

Em outra ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de trabalho. Explica com essa lembrança por que não é capaz de pedir esmola, embora não tenha mais como ganhar o pão, desde que foi expulso da ilha:

– Eu nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra isso. Eu tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. Entendeu? Numa ocasião eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá perto de Marabá (Pará). Eu tava com 50 contos. E já tava com três dias sem comer. Não comia porque aquele dinheiro era pro transporte. De noite eu tô num banco lá na rodoviária, um cara diz pra outro: “Rapaz, lá na cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por 3 e por 4”. Eu saí e comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco. Cheguei lá, eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi logo a placa. “Não ficho ninguém. E não insista”. Mas eu, pra tirar a dúvida, tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui caçar emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes que tavam comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio dia, eu voltei lá e falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não tenho dinheiro pra nada. Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha, deixa a boroca (bolsa) aí. Você trabalha de estivador?”. Eu respondi: “Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma carreira com oitocentos sacos de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o que acontece? Antes do meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma garrafa de água assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo, até que eu arriei mesmo. Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar. Queria que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz assim, botei um pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade. Aí saí pra beber um copo de água. E vomitei tudinho. Na farmácia tomei uma injeção. Aquela injeção pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco trabalhando. Mas nunca perdi a resistência e nem a esperança. Mas, muié, o que faz eu perder tudo é na situação que eu tou. Com que força eu vou trabalhar, agora que tou velho e doente? Eu não tenho mais resistência pra começar tudo de novo. E não sei pedir.

Quando reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes, João encontrou-se.

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

Paisagem do Xingu em parte ainda não afetada pela usina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A virada: João e Raimunda se descobrem ricos

A virada do milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um contra ou um fora, mas como parte. Depois de peregrinar pelo que era chamado de progresso e só encontrar tribulação, João e Raimunda foram acolhidos por uma das centenas de ilhas do Xingu. Aprenderam a extrair o alimento da floresta, a plantar sem violar a terra, a pescar e a navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos pescadores e agroextrativistas, que vivem em dupla casa, uma na rua, uma na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta chama a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo. A casa na rua é para a venda dos produtos na feira, para resolver as oficialidades da burocracia, que sempre são muitas, para buscar tratamento para doenças mais enroscadas, para o estudo dos filhos; a casa na ilha ou na beira do rio é onde se ganha a vida e se vive livre. Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram que haviam chegado. Tinham um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.

Trataram de enraizar-se fundo. A vida era assim:

– Tinha nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão, o milho, o abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a chicória. Tudo isso era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do rio, eu tirava a cédula maior. Vinha pra cidade com as coisas que plantava, e com o meu peixe, e já cheguei a fazer mil e duzentos reais na semana, em dinheiro livre. Eu mesma ficava mais na rua, porque comecei a me envolver com movimento social. Meu marido morava lá na ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o peixe na feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era essa. Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa vida era um vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem ele lhe entende. Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É uma parceria entre você e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e o rio é a minha lousa.
Primeiro João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de Altamira, depois construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão de esclarecer que mesmo na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque gosta muito de suíte.

– O sonho de uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no chão. O rio nos deu. Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar minha televisão, meu fogão a gás, meu botijão. Consegui comprar a minha cama, o meu colchão do jeito que eu queria. Eu fui na loja, comprei, porque eu sabia que o rio ia me dar retorno, eu ia poder pagar a prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito, era meu supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio. Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a terra dava.

Já não eram mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente chegado. Raimunda então entranhou-se nas lutas de Altamira e da Amazônia. A das mulheres, a da terra, a do meio ambiente. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se militante de movimentos sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um ir, mas um ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela primeira vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.

Desde os anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma ameaça que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país. No passado, a Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito de guerra na língua dos Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a índia Tuíra encostou um facão no pescoço do diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Tuíra demonstrava no gesto a resistência à barragem de um rio mítico, que era vida, cultura, espiritualidade e sustento para os povos tradicionais. A fotografia correu mundo. A Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte. Nenhum governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos movimentos sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do povo que conhecia a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda achou que a paz tinha chegado. O talvez do pai virava certeza.

É nesse momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de Raimunda. E torna-se sua mais íntima companheira. “É uma neguinha, cabelinho ruim, amarradinho”, descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a primeira boneca da vida de Raimunda. Ela estava num encontro de mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem vendendo bonecas na rua. Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já tinha se encantado. Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por uma freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma criança pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de crianças pobres. Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na Marcha das Margaridas, das trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas e quilombolas, na Rio+20, por todo canto. Escondida, porque João garante que “vão bulir” com Raimunda se descobrirem que ela carrega uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A Sofia significa para mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza Raimunda.

É no momento em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.

– Eu não fui criança, porque trabalhei muito. Também não tive juventude. Por isso não dou minha velhice. Não abro espaço pra ninguém. Minhas filhas dizem que tou ficando perturbada. Nada, eu tou é vivendo.

Raimundo com a boneca Sofia

Raimundo com a boneca Sofia

Demorou alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido traídos. Lula era um sindicalista do ABC paulista, sua visão de mundo era a da indústria, do concreto, da cidade grande. Progresso, para um operário, era ter carro, TV de tela plana, churrasco no fim de semana. Progresso, para um país, era transformar a Amazônia em soja e pasto pra boi, exploração de minérios por grandes mineradoras para exportação de commodities (matérias-primas). Lula não tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta. Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a Amazônia era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão de segurança nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação. A única voz no governo federal e no PT com alguma força para se contrapor a essa visão estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista que se criou nos seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só suportou a pressão até 2008, quando deixou o Ministério do Meio Ambiente e logo depois o PT.

Raimunda e as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais que somente Lula poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os compromissos de campanha, por um lado o PT no poder desmobilizou os movimentos sociais, por outro os cooptou. A resistência, que por décadas foi coesa, rachou. O setor elétrico atravessou governos como um feudo do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB). Um exemplo: José Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no pescoço, em 1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado diversos outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A Eletronorte é a mesma antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a coleira, o cachorro é o mesmo.” Mas só o PT e Lula teriam força política para minar a resistência e fazer de Belo Monte uma realidade de toneladas de concreto no meio do Xingu.

Essa é a arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra gigantesca e ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o passado e o grupo do presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava Jato possa começar a desvendar. São também esses interesses que atravessam governos que podem explicar por que Belo Monte vai se tornando fato consumado, mesmo violando a Constituição, com um governo cada vez mais fragilizado e parte dos donos das empreiteiras que a constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando totalmente desfeito, revelará o Brasil.

Para Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava um partido a mais no poder, mas um projeto político que se confundia com sua busca de um lugar no país – e com a crença de que esse lugar existia. O simbolismo para ela era uma literalidade. Ao sentir-se traída, desacreditou:

– Se o Lula visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É difícil pra mim falar isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E eles nos traíram. Porque o Lula disse claramente que Belo Monte não ia sair. E depois a Dilma falou que Belo Monte era preciso, que não tinha como voltar atrás. Eles são traidores da humanidade. Ah, meu pai do céu! Se eu visse eles, eu não diria. Eu avançaria na cara deles tudo, pra tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação? Eu não voto é mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu rasgava. Como eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu voto na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu plano.

Belo Monte é onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de ser: os mais frágeis e os mais desprotegidos, os historicamente arrancados da sua terra, como os indígenas, os historicamente exilados dentro do próprio país, como Raimunda e João. É nesse ponto do mapa, a última fronteira para quem palmilhou o Brasil inteiro em busca de paz, que o discurso petista em defesa dos pobres gira em falso há muito mais tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul, essas vozes foram ignoradas.

Raimunda quer falar:

– Eu vou dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão noiados, tão tudo grogues por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção do tamanho desse monstro aí no Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer quando começar a funcionar. Ninguém.

Barragem

Barragem

Interrupção: “Belo Monstro” barra a vida de Raimunda e de João

Depois de travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia, João não voltou mais a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em maio de 2015, Raimunda o levou para a capital, Belém do Pará, em busca de tratamento. Só voltariam de lá no fim de agosto. Nesse período, as filhas trataram de fazer a mudança da casa na cidade, porque sabiam que a mãe não permitiria se estivesse em Altamira, disposta a resistir até que o valor fosse justo. Quando Raimunda e João voltaram, já não tinham mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais, valor insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas dos vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade. A canoa São Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado tantas e tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto deslocado nos fundos da casa, em terra firme e a quilômetros do rio. Raimunda planeja fazer dela um banco para visitas quando a casa ficar pronta.

Dos três cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não suportaram viver amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um cachorro grande, mestiço de Fila, que se instalava na proa do barco para cuidar da casa na ilha, quando os donos estavam fora, morreu primeiro. “Dei esse nome porque ele era um lorde”, explica Raimunda. Xena, uma pitbull que ganhou o nome por ser “tão autoritária quanto a princesa”, personagem de filmes e de animação, foi a segunda a amanhecer morta. “Eu não podia deixar eles soltos na rua, porque na cidade eles são violentos. Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha deixado eles morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta uma Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa coleira que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo pra uma casa que não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela já tinha veneno. Essa Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O único que restou foi o vira-lata Negão, “um cachorro que não se emociona assim tão fácil”. Negão, sem nome de princesa nem de barão, é um sobrevivente. Como Raimunda.

Ela documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de Belo Monte”. Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de suas filhas chegaram a trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na cozinha, outra na mecânica. Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem dinheiro de jogo, vocês não podem fazer isso comigo”, esbravejou. “Demorou, mas libertei minhas filhas.” De máquina fotográfica cor de rosa em punho, registrou até a Força Nacional protegendo Belo Monte do povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.

A documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo brutal e poético. Enquanto ela mostra as imagens, vai narrando a sua travessia.

A vida antes de Belo Monte:

– Documentei toda a minha história esperando o futuro, e o futuro taí. Antes de Belo Monte, a minha história era essa. Ó, a minha casa. O meu plantio, o meu pomarzinho, tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho. Aqui o meu velho com a roça dele, limpando o chão. Aqui é capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas coisa assim. Aqui é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de murici! Eles queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira, muito bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso aqui, pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui que eu tou falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o primeiro que eu via. Meu pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O meu outro cachorro, que morreu só de tristeza porque não era acostumado com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente vai parar.

A vida durante Belo Monte:

– Agora vou lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de vaivém, vaivém, vaivém. Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu fogão a gás, à lenha… A sobrevivência do rio é muito gostosa. Pra quem sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá valor. Meu marido roçando… Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva, então já tava se prevenindo. O meu cachorro, que já não tenho mais…O outro cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira, esperando sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por causa das galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu certo, porque as galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu velho branco de olho azul, um gato. Que hoje tá… Eu digo pra ele que ele não tá inútil, porque eu ainda vejo ele na minha frente. Então, ele ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da ilha, aqui, que é onde ela tá produtiva. Deixa eu lhe mostrar aqui…As plantas que foram queimadas. As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram com tudo. Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por conta que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as cebolinhas…Cheiro verde… Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra dor de cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui eu, dentro d’água, que eu adoro água, também. Aqui, eu com medo de uma cobra, que ela tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi mais rápida que eu, foi embora. A gente dorme na rede durante o inverno. O meu neto, que ia pra ficar umas férias comigo. Meu pé de capim-santo, ele também não morre na água, ó, fica um tempo submerso. Só se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre. Mas, se ele respirar, ele não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era uma casa. Bananeira… ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de pé. Olha lá o milho. Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo da cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso aqui… é o fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito importante. Porque eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de mim. Porque a gente era como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o milho lá atrás. Olha esse cacho de banana, o tamanho. Deixa eu pegar pra você ver. Essa aqui, olha, além de ser uma fruta pra alimentação, ela é um antídoto contra inseto. Tem o pescador que vive na ilha, e eu vivia da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente era amiga. Entendeu? Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se despede, vai embora.

A vida depois de Belo Monte:

– Aqui sou eu, pensando… Quando será esse dia, que eu não quero sair? O meu genro dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada, é isso mesmo. E eu falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui eu dizendo pras minhas plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só história, que eu não voltei. Meu véio pensando se voltava lá um dia, ou não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu falei: “Não sei, Deus que sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus que deixasse a gente ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo queimado. A Norte Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe mostrei, aquele murici, aquela coisa mais linda…Tá aqui, sapecado. Eu fui lá, registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo Monte. Aqui, ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma prova. Eles deixaram. Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça não se manifesta. Enquanto a Justiça tiver com aquela venda na cara, que é aquela estátua que fizeram lá em Brasília, é assim, ó. A Justiça só vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.

Raimunda quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um pescador: antes, durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que o único lugar seu será a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim, em branco da paz”.

Terceiro ato: o impasse

Raimunda desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja bem diferente daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que entre pela frente, quero uma porta que entre de lado, porque quero que meu futuro seja diferente. Então, comecei pela infraestrutura da casa”, explica. “Quando eu entrar nessa casa hoje, eu não quero chegar pensando que tou na outra.” Raimunda marcou toda a história na casa nova, ainda em construção: as paredes são verdes, “porque é a esperança no futuro”, os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da barragem”, as grades das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha vida tem uma história”, ela reforça. E tem.

Raimunda e João

Raimunda e João

Raimunda é uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a vida. João, não. No dia em que paralisou, ele perdeu a capacidade de criar sentidos. Por dentro, ainda está travado. João viu demais, e o excesso de lucidez o cegou. Agora, não consegue voltar. “Perdi a ponta da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de fato, toda hora, eu não tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu? Eu tou fora. Me perco. Não sei onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio, mas um rio de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu o rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”

É este hoje o impasse entre João e Raimunda.

Raimunda diz:

– Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou pindova e quero viver.

João responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:

– Mas eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha vida. Eu perdi a linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo escuridão na minha vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só vejo escuridão. Fico aqui, olhando pro mundo, procurando a mim mesmo. Quem sabe me responder essa procura? Ninguém. O buraco na minha vida, o buraco na minha vida…

O impasse atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu” dentro de casa. Raimunda conta:

– O João chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de mártir. Ele quer se matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem deixava ele ir. Se ele se matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra ser comido pelos urubus. Por isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde.

João encerra seu repente brutal:

– Eu quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.

(Publicado no El País em 22 de setembro de 2015)

 

 

O dia em que a casa foi expulsa de casa

A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal – e ainda impune – da redemocratização do Brasil

Lilo Clareto

Fotos: Lilo Clareto

Antonia Melo foi encurralada. Por seis meses o tempo da sua vida esteve marcado pelo som das máquinas botando abaixo a vizinhança da Sete de Setembro, o nome da rua só mais uma ironia. Ela estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa de Gaza. Ela, seus filhos, seus netos. E o barulho da destruição avançando, cercando, soterrando também as conversas, fincando seus braços robóticos nas palavras, matando frases inteiras. Um dia chegou em casa e descobriu os escombros do muro dos fundos, derrubado junto com um pedaço da floresta que tinha como quintal. Num calor que pode beirar os 40 graus, já não havia energia elétrica suficiente para ligar a geladeira. Antonia foi sendo asfixiada aos poucos, menos ar a cada dia. Mas ainda assim o povo banido das ilhas da Volta Grande do Xingu, dos baixões de Altamira, continuava entrando pelo seu portão sempre aberto, desviando das crateras, saltando sobre os destroços com as havaianas que parecem ter nascido já gastas naqueles pés. “Dona Antonia, dona Antonia, como tiram da gente uma casa?”. Essas milhares de famílias cuspidas de seus lares pela hidrelétrica de Belo Monte fizeram de Antonia Melo o seu endereço. Lá, até o fim, encontravam uma cadeira, um copo de água entre árvores de sombra, e os ouvidos de Antonia, um par de orelhas que ela fez braços e abraço ao escutar os que ninguém mais escutava. Sem rumo, confinados em bairros longe de tudo que conheciam, em residências todas iguais, feitas para não durar, a maioria sem pouso algum, arrancados pela raiz e jogados fora, esses homens, mulheres e crianças esculpidos pelo sol amazônico tinham em Antonia Melo a sua casa. A maior liderança popular viva do Xingu tornara-se o único ponto de reconhecimento num mapa rasgado por uma guerra talvez pior, porque não nomeada. Na sexta-feira, 11 de Setembro de 2015, a casa foi expulsa de casa.

 

 

 

 

 

 

 

O que é uma casa, minha senhora?, repito a pergunta que tanto escuto pelas ruas de Altamira, no Pará, na boca de gente que já não encontra o destino dos pés.

O  rugido da demolição morde as palavras de Antonia Melo, mas não consegue silenciá-la:

– Dinheiro nenhum paga uma casa. Primeiro, porque eu não estava vendendo minha casa, não coloquei nela nenhuma placa de venda. Eu nunca pensei em sair daqui, de jeito nenhum. Aqui é o lugar que eu escolhi pra morar, criei os meus filhos. A maioria deles nasceu aqui, cresceu aqui. Hoje tenho os netos que nasceram aqui e já estão crescendo aqui. Então, indenização nenhuma paga a casa de uma pessoa. A casa que eu vou comprar com esse dinheiro nunca será a minha casa. Uma casa é como plantar uma árvore. As raízes vão profundamente embaixo da terra, lá embaixo elas se agarram, para que vento, vendaval, tempestade, e até mesmo uma alagação, não a derrubem. As raízes de uma casa são bem profundas. Os filhos e os netos vão embora, mas a casa fica. E a gente embeleza a casa com a natureza, com as árvores, com o que a gente gosta. E embeleza também com as árvores que dão alimento. Eu plantei com as minhas mãos todas as belezas que estão aqui e que hoje me dão frutos e me dão forças pra resistir ao barulho dos tratores derrubando tudo. Uma dessas árvores é o açaizeiro. Aprendi a amar o açaí, o vinho, o suco mais saboroso que já tomei dentro e fora do Brasil. Mas tem o cupuaçuzeiro, de cupuaçu, e a mangueira, que dava tantas mangas e tão saborosas que eu botava na calçada para os vizinhos e quem passasse pegar. Uma casa é isso, é onde a gente se sente feliz, mesmo sem ter dinheiro. Estar dentro da sua casa é ser grande.

O rosto de Antonia Melo é salgado por um choro lento. Ela tenta interrompê-lo, mas não foi feita para barrar rios.

– Mesmo que seja destruído aqui, como vai ser destruído, ninguém vai poder negar a minha casa. Eles tiraram parte dos meus sonhos. Há uma lacuna dentro de mim, eu nunca mais vou ser a mesma. Mas a casa, mesmo destruída, ela continua aqui. Mesmo que ninguém mais a enxergue, aqui continua sendo a minha casa.

Antonia Melo é atravessada por uma voz no portão. Um homem ignorou a vizinhança aos pedaços para oferecer seus serviços. “Bom dia, senhora. Tá precisando de dedetização?” Antonia precisa, mas não desse tipo. Agradece. E o homem vai embora, saltando pedaços de paredes com suas sandálias, habituado a um Brasil que para ele nunca foi plano.

– Eu estou perdendo a minha casa, estou perdendo o rio, perdendo tudo. Essa perda, assim, é de uma vida que era, que tinha um objetivo, que tinha um sonho, que tinha um projeto. Eu não me sinto bem quando eu vou ao rio, vejo o que está acontecendo, as ilhas derrubadas. Não. A minha casa é tudo isso. Era. O rio livre. As ilhas lindas, verdes. Pra mim, é tudo ligado. É uma tristeza só.casa antonia2

 

 

 

 

 

 

A casa, as ilhas, o rio, hoje são um pretérito. Um era. Antonia Melo volta a chorar, antes de agarrar-se mais uma vez ao fio das palavras. O que é uma casa senão o corpo inviolável de alguém, minha senhora? Me diga, como se faz para partir de si mesma?

– As coisas materiais são as que têm menos valor. Uma cadeira, uma cama, uma estante. O valor é insignificante pra mim. Porque o valor significante, que nunca vai se acabar, é esse sentimento… (ela silencia e por um tempo só se ouve o barulho das máquinas). O valor significante é essa certeza de que aqui eu era feliz. Porque eu ajudei a construir isso aqui. É diferente de sair daqui e comprar uma casa pronta, uma casa que você não fez parte da construção. Aqui eu construí, é uma pertença muito grande. As mãos, a cabeça… o pensamento está todo aqui. É a pertença. Por isso que é difícil e é doloroso as pessoas serem arrancadas da sua casa na beira do Xingu. Lá, pertencia. Então, é doloroso, é uma coisa que ninguém nunca esquece. Nunca esquece, pro resto da vida. Estão me arrancando daqui, tentando apagar a memória, a vida. Belo Monte é isso, é arrancar todas as formas de vida, até que mesmo a memória seja apagada para sempre, até que não exista nenhuma raiz. O governo é um mata-memórias.

No ano passado, Antonia Melo, a maior árvore do Xingu, quase perdeu o coração. Ela já havia visto companheiros de luta como Dema, Brasília e Dorothy Stang tombarem a tiros por sua luta pela floresta e pelo rio. Ela já entrou várias vezes na lista de ameaçados de morte por conflitos de terra na Amazônia, vivendo dia após dia sob a sombra da pistolagem. Um de seus melhores amigos, o bispo do Xingu, Dom Erwin Kräutler, vive há uma década com escolta policial para não ser assassinado. Mas talvez nada tenha violado tanto Antonia Melo quanto Belo Monte e o seu rastro de crimes, porque ao longo dos últimos anos ela testemunhou a violação recorrente da lei e a impunidade como um direito adquirido. Essa perversão provoca naquele que a experimenta uma sensação de impotência brutal. A violência parece ter ganhado uma dimensão tamanha dentro e fora de Antonia Melo que já não podia ser simbolizada. Virou uma literalidade que perfurou o coração de uma mulher que a tudo havia resistido. Ela precisou ser levada a São Paulo, onde foi submetida a uma cirurgia e a um prolongado tratamento, para que pudesse salvar a sua vida. Seu coração bate. Ela respira. Mas algo foi arrancado dela para sempre, e esse pedaço faltante é uma presença visível. Antonia carrega uma ausência que agora também é a da casa, onde já não existe mais porta para bater.

Depois de salvar seu coração, Antonia Melo empreendeu uma viagem em busca da memória. Partiu no encalço da casa e dos parentes do pai, Gentil, e da mãe, Elisa. Nordestinos, cearenses, primos, eles haviam se casado e sobreviviam na base da meia, dando metade do que colhiam para o dono da terra, no vizinho Piauí. Era muito suor para tão pouca chance de sonhar. E quando tinham oito dos 13 filhos, entre eles Antonia, uma menina de quatro anos, partiram para a nova terra prometida, a Amazônia. Como tantos brasileiros migrantes, antes e depois deles, a família de Antonia buscava uma fronteira em que houvesse terra para pobre. Antonia enraizou-se no Xingu, mas quando a floresta e o rio passaram a ser destruídos pra virar lago de Belo Monte, ela precisou escavar raízes mais antigas. Trouxe da casa da sua infância, no Piauí, uma pedra e sementes de buriti. E da casa onde a mãe nasceu, no Ceará, carregou sementes de manga. Essa viagem-travessia foi a terra onde plantou seu agora frágil coração.

casa antonia pedra– Até o final do ano começo a escrever a minha história. Dar vida à história, né? Não vão ser palavras que se falou e o vento levou e ninguém mais vai lembrar. Escrever é dar vida a uma história, a um personagem, a uma pessoa, a um lugar… a um espaço. É provar que existiu. E que essa vida não foi uma vida por acaso. Ela tem um significado. Ela tem um sentido.

casa antonia pedra1Um homem entra pelo portão. O peso da carga que carrega faz suas costas vergarem. “Quer uma rede boa e barata na promoção?” Não, meu senhor, já não haverá paredes nem árvores para uma rede. “É uma rede abençoada, senhora.” Já não há bênçãos na terra violada. Ele também parte desviando dos escombros, enredado num mundo em que as pontas já não se amarram.

O desencontro entre Brasis tornou-se trágico no processo de expulsão das famílias por Belo Monte. A empresa concessionária, a Norte Energia, e o governo federal preferem dar a essa ação o nome técnico de “remoção”, vocábulo neutro de onde o conteúdo violento é esvaziado. Para os prepostos da Norte Energia, casa era apenas o “seu” conceito de casa. Um deles chegou a afirmar, demonstrando uma ignorância –ou uma conveniência– quase do tamanho da usina: “Uma moradia é uma moradia. Todo mundo sabe o que é”. E, assim, muitos tiveram suas casas consideradas não casas, e portanto não indenizadas, porque não atendiam ao padrão de “moradia” do “empreendedor”, o termo com o qual o Brasil contemporâneo passou a blindar a palavra “colonizador”. Nas grandes obras do governo na Amazônia, recusar a lavagem das palavras é um ato de resistência. Antonia Melo sabe disso como poucos. Belo Monte arrancou a maior árvore do Xingu, mas ainda assim não conseguiu tombá-la.

casa antonia verde
– Cada vez que eu olho o que eles estão fazendo, destruindo as casas, destruindo o rio, destruindo as vidas, mais eu me fortaleço nessa resistência, mais eu crio coragem e forças pra dizer “não” e continuar resistindo. Para mim, Belo Monte não é fato consumado. Eu luto contra esse modelo de destruição e morte de gerar energia, luto contra esse modelo chamado desenvolvimento. Belo Monte é um crime contra a humanidade. Eu não posso voltar atrás. Não posso. Não devo, jamais, nenhuma vírgula. Nem que um dia chegue a ser só eu. Mas continuarei na resistência.

Só uma outra vez eu havia testemunhado Antonia Melo chorar. Ela narrava o dia, no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em que se encontrou com Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia. Parte dos movimentos sociais da região tinha acabado de descobrir que fora atraiçoada pelo Partido dos Trabalhadores. A tenebrosa usina do Xingu, que nem a ditadura civil-militar havia conseguido tirar do papel, por conta da enormidade da resistência dos povos indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores, tinha sido colocada de novo em pauta. Antonia estava no grupo de lideranças que viajou até Brasília para se encontrar com Dilma Rousseff. Quando ela começou a expor suas preocupações, Dilma interrompeu-a com um murro na mesa. E um berro: “Belo Monte vai sair”. A ministra, que depois seria presidente, levantou-se, deu as costas a todos e foi embora, deixando-os ali, atônitos. Era o primeiro sinal de que Belo Monte atropelaria todas as leis e marcaria a maior traição do PT à sua base social na Amazônia.

Mais de uma década depois, Belo Monte é um monstrengo alienígena esmagando o Xingu com suas patas de concreto, aniquilando milhares de vidas humanas, animais e vegetais. Belo Monte foi erguida no mítico Xingu violando a Constituição, apesar das mais de duas dezenas de ações movidas pelo Ministério Público Federal e ignoradas por parte do Judiciário. A arquitetura política e econômica da mega-hidrelétrica, uma obra que saltou de 19 bilhões de reais para um valor estimado em 33 bilhões de reais, hoje também investigada pela operação Lava Jato, da Polícia Federal, tem tentáculos que não se sabe o quão longe podem chegar.

Hoje, a Norte Energia espera apenas que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) dê a Licença de Operação da usina, mesmo sem que a empresa tenha cumprido as medidas obrigatórias de redução e de compensação do impacto, aquilo que na linguagem dos técnicos se chama de “condicionantes”. Se o IBAMA o fizer, violando a lei pela derradeira vez, em plena democracia, pode responder por isso na Justiça. Ou na História, nome por nome. Ainda assim, a Licença de Operação é dada como certa e até mesmo a data já circula de boca em boca nos bastidores. Esta é a questão a ser respondida: um governo cada vez mais fragilizado, a presidente ameaçada de impeachment, a maioria dos donos das construtoras na cadeia por corrupção e as violações da obra visíveis até mesmo para quem antes as negava – e ainda assim a Licença de Operação é dada como fato consumado. Qual é a lógica acima de todos os dados da realidade que faz Belo Monte seguir se movendo?

casa antonia orelhao
Depois deste (des)encontro com Dilma Rousseff, Antonia Melo fez ainda parte de um grupo que se reuniu com Lula, já no final do segundo mandato, em 2009. O então presidente prometeu que Belo Monte “não seria enfiada goela abaixo” do povo. Antonia Melo percebeu que era apenas Lula dedicando-se a uma de suas especialidades: fazer de conta que ouvia. O interlocutor se despede satisfeito, sentindo-se escutado e contemplado, e o governo ganha tempo enquanto a resistência se desmobiliza, ao acreditar que há uma negociação em curso. Antonia foi a única do grupo a recusar-se a tirar uma fotografia com o então presidente.

Quando anos mais tarde narrou esses dois confrontos com o PT no Planalto, Antonia Melo chorou pela traição. Ela tinha sido uma das fundadoras do partido em Altamira e acreditara que a chegada ao poder de Lula marcaria o fim do tratamento da Amazônia como colônia do centro-sul do país. A visão da região como corpo para violação e exploração tem sido a mesma tanto na ditadura quanto nos vários governos da redemocratização. Ao longo dos anos seguintes, Antonia viu deputados petistas e parte do movimento social serem cooptados pelo governo federal, esquecidos de todos os homens e mulheres que tombaram a tiros para manter a floresta em pé. Antonia Melo foi se tornando uma árvore cada vez mais solitária diante do desmatamento do caráter de quem costumava estar ao seu lado. Por essa ousadia, a de não se deixar cooptar, pagou um preço cada vez mais alto.

Antonia Melo
Hoje, sentada entre ruínas, as visíveis e as invisíveis, Antonia Melo resiste.

– Me expulsar daqui é mais uma tentativa deles de tentar me calar. Não vão conseguir. Eles vão me arrancar daqui, e destruir tudo aqui, mas jamais conseguirão me calar. Mesmo eles sorrindo e tendo a certeza de que me derrotaram, eu tenho pena deles. Porque são eles os derrotados. Porque eles nunca terão na vida deles a paz na consciência que eu tenho. A paz de quem não foi covarde, de quem não recuou. Eu continuo com a minha bandeira em punho. E sobre eles, sobre o governo, sobre essas empresas, pesa a responsabilidade de um crime monstruoso. Eu nunca vou perdoar. A natureza não vai perdoar. Este é um crime sem perdão. Lula e Dilma são criminosos, são traidores, são covardes. E eu não tenho nenhum receio de afirmar isso na frente deles. Quero encontrá-los ainda um dia para dizer isso.

Ela faz uma pausa após cada palavra lentamente pronunciada:

– Criminosos. Traidores. Covardes.

Pelo portão entra seu Otávio das Chagas, pescador arrancado da Ilha de Maria, uma das mais de 400 do Xingu. Vem acompanhado por seu filho Zé. Sem barco, sem rio, sem peixe, sem árvore, sem roça, sem geografia, seu Otávio teve as chagas do nome multiplicadas por Belo Monte. Está confinado numa das “moradias” padronizadas, e isso só depois de muita luta, porque dele haviam tirado tudo em troca de uma esmola de 12 mil reais por uma vida inteira, que logo foi consumida em aluguéis na periferia de Altamira. O pescador não se reconhece no mundo nem reconhece o mundo ao redor. Era rico e agora é pobre, miserável. E lá dentro da “moradia” do bairro com nome pomposo, “Reassentamento Urbano Coletivo (RUC)”, ouve inúmeras vezes ao dia o carro de som passar propagandeando as benesses de Belo Monte. Enquanto escuta que a hidrelétrica “é energia limpa e sustentável”, lá dentro sua família passa fome. Não como força de expressão, mas fome, aquela que dói. Em sua geladeira só há água, e eles esperam que um dos filhos volte no fim do dia em que alugou o corpo por 60 reais na construção civil, para alimentar nove pessoas. O filho mais novo completou 7 anos neste dia. Não há nem presente nem comida. Mas a energia, esta é “limpa e sustentável”, não é isso que o centro-sul acredita?

Todo dia seu Otávio entra pelo portão aberto de Antonia Melo, a única casa e o único endereço que reconhece. Seu Otávio pergunta se é longe o meu lar, eu que ainda o tenho. Ele conta então que nunca viu um mapa do Brasil. Desenho um mapa bem mal traçado no meu caderno, para mostrar o Norte e o Sul e o Centro, onde seu destino é decidido em território para ele desconhecido. Ele se assombra. Otávio das Chagas é um dos tantos sem mapa e sem país que buscavam a casa de Antonia Melo para se encontrar. E agora, arruinado, se perde em ruínas.

No dia da partida, Antonia Melo levou a pedra da casa da infância e as sementes do seu passado. Foi a última moradora a deixar o lugar. Do seu quintal-floresta, levou uma muda de açaí, “o mais importante que carrego daqui”. Com esses alicerces, aos 66 anos ela plantará um futuro no chão de ausências legado por Belo Monte.

Antonia Melo é uma mulher-casa. E por isso jamais se perderá.

(Publicado no El País em 14 de setembro de 2015)

Os índios e o golpe na Constituição

Por que você deve ler essa coluna “apesar” da palavra índio

 

Os índios vão ocupar Brasília nesta semana. Ao escrever a palavra “índio”, perco uma parte dos meus leitores. É uma associação imediata: “Índio? Não me interessa. Índio é longe, índio é chato, índio não me diz respeito”. E, pronto, clique fatal, página seguinte. Bem, para quem ainda está aqui, uma informação: mais de mil lideranças indígenas ocupam Brasília de 13 a 16 de abril em nome dos seus direitos, mas também em nome dos direitos de todos os brasileiros. Há um golpe contra a Constituição em curso no Congresso Nacional. Para ser consumado, é preciso exatamente o seu desinteresse.

Guarde essa sigla e esse número: PEC 215. Quando se fala em PEC 215, só a sigla e o número já afastam as pessoas, porque neles estão embutidos toda uma carga de burocracia e um processo legislativo do qual a maioria da população se sente apartada. Os parlamentares que querem aprová-la contam com esse afastamento, porque a desinformação da maioria sobre o que de fato está em jogo é o que pode garantir a aprovação da PEC 215. Se durante séculos a palavra escrita foi um instrumento de dominação das elites sobre o povo, hoje é essa linguagem, é essa terminologia, que nos faz analfabetos e nos mantém à margem do centro do poder onde nosso destino é decidido. É preciso vencer essa barreira e se apropriar dos códigos para participar do debate que muda a vida de todos. A alienação, desta vez, tem um preço impagável.

O que é uma PEC? PEC é uma Proposta de Emenda à Constituição. Um instrumento para, em tese, aprimorar a Constituição de 1988. O que essa PEC, a 215, pretende, em resumo, é transferir do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação. Só que o resumo, como a gente sabe, nunca explica muita coisa. O direito ao território ancestral é uma garantia fundamental da Constituição porque a terra é parte essencial da vida dos índios. Sem ela, condena-se povos inteiros à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio). Isso explica por que, em 2012, um grupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu, numa carta aos brancos, que fossem declarados mortos. Preferiam ser extintos a ser expulsos mais uma vez:

“Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais”.

Sem a terra de seus ancestrais, um índio não é. Não existe. Os Guarani Kaiowá, uma das etnias em situação mais dramática do Brasil e possivelmente do mundo, testemunham o suicídio de um adolescente a cada seis dias, em geral enforcado num pé de árvore, por falta de perspectiva de viver com dignidade no território dos seus antepassados. Por isso esse grupo afirmou que preferia morrer a ser expulso, mais uma vez, porque pelo menos homens, mulheres e crianças morreriam juntos, já que os indígenas se conjugam no plural, e morreriam no lugar ao qual pertencem.

O pacote maligno

O poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação é atribuído ao Executivo pela Constituição não por acaso, como se fosse um jogo de dados, em que a sorte determina o resultado e tanto faz. Foi atribuído por critérios claros, estudados em profundidade, com o objetivo de reconhecer direitos e proteger o interesse de todos os brasileiros. É o Executivo que tem a estrutura e as condições técnicas para cumprir o rito necessário à demarcação, desde equipes capacitadas para fazer os estudos de comprovação da ocupação tradicional até a resolução de conflitos e a eventual necessidade de indenizações. Da mesma forma, é bastante óbvio que a criação de áreas de preservação são parte estratégica da política social e ambiental de qualquer governo.

Quando os parlamentares tentam tirar o poder de demarcação do Executivo para entregá-lo a eles próprios, o que estão tentando fazer não é aprimorar a Constituição, mas dar um golpe nela. Na prática, a PEC 215 é apenas a pior entre as várias estratégias em curso para acabar com os avanços da Constituição no que diz respeito à preservação do meio ambiente e aos povos indígenas, aos quilombolas e aos ribeirinhos agroextrativistas que o protegem.Na prática, se a PEC 215 for aprovada, o mais provável é a paralisação do processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas, assim como a paralisação da criação de unidades de conservação. É nesse ponto que a PEC 215 passa a ameaçar também o direito fundamental de todos os brasileiros a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, por extensão, ameaçar o direito à vida.

A PEC 215, a qual espertamente foram sendo juntados vários penduricalhos perigosos, tornou-se uma espécie de pacote maligno. Ela também pretende determinar que apenas os povos indígenas que estavam “fisicamente” em suas terras na promulgação da Constituição de 1988 teriam direito a elas. Assim, todos aqueles que foram arrancados de suas terras tanto por grileiros quanto pelos projetos de ocupação promovidos pelo Estado, seriam agora expulsos em definitivo. A proposta aqui é legalizar o crime, já que os índios tirados de suas terras pela força lá atrás seriam “culpados” por não estarem nelas, perdendo-as para sempre. Parece coisa de maluco, mas é isso que se defende. Ao investigar os crimes da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade constatou que, em apenas dez etnias, 8.350 índios foram assassinados. A reparação por meio da demarcação e da recuperação ambiental de suas terras foram consideradas medidas mínimas e indispensáveis para a restauração da justiça.

Mas há algo ainda pior na PEC 215. Ela pretende abrir exceções ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, como arrendamentos a não índios, permanência de núcleos urbanos e propriedades rurais, construção de rodovias, ferrovias e hidrovias. Busca também revisar os processos de demarcação em andamento, assim como impedir a ampliação de terras já demarcadas. Há ainda o risco de a PEC 215 abrir espaço, se aprovada, para que as terras já asseguradas sofram modificações segundo os novos critérios. Para entender: se a PEC 215 passar, o que pode acontecer é que, por um lado, não há demarcação de novas terras; por outro, é retirada a proteção daquelas que já estavam garantidas.

As mãos por trás do golpe

Este é um mundo perfeito para quem? Para mim, para você? Acredito que não. Mas é para alguns. Sempre é para alguns. Basta ver quem está no comando da comissão da PEC 215 para entender. Toda a coordenação é da chamada “bancada ruralista”. Mas é importante compreender de que ruralistas estamos falando, para não reforçar uma falsa oposição com os produtores rurais do Brasil, com aqueles que de fato têm interesse em colocar o alimento na mesa dos brasileiros. Um mundo sem terras indígenas e sem unidades de conservação seria bom para quem produz alimentos para o país? Me parece que não. Produtores rurais inteligentes e com espírito público, sejam eles pequenos ou grandes, sabem que precisam de água para produzir. Se precisam de água pra produzir, precisam de floresta em pé. Se precisam de floresta em pé, precisam de terras indígenas e de áreas de conservação.

Então, se este mundo não é bom nem para mim nem para você nem para quem produz alimentos, para quem este mundo é bom? Sempre é possível ter uma pista seguindo o dinheiro. No caso, o dinheiro do financiamento das campanhas. Segundo o Portal de Políticas Socioambientais, em análise feita a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelo menos 20 dos quase 50 deputados da comissão especial que analisa a PEC 215 foram financiados por grandes empresas do agronegócio, de mineração e de energia, por empreiteiras, por madeireiras e por bancos. Alguns destes parlamentares receberam, sozinhos, mais de um milhão de reais de empresas ligadas a esses segmentos.

Este é um capítulo importante para compreender os porquês. Tanto as terras indígenas quanto as unidades de conservação são terras públicas. Aos povos indígenas cabe o usufruto dessas terras. As unidades de conservação são parques e florestas nacionais, estações ecológicas, reservas extrativistas ou biológicas, refúgios da vida silvestre etc, que pertencem a todos nós e que são criadas para impedir a exploração predatória e proteger a biodiversidade, estratégica para o desenvolvimento sustentável.

Como então colocar a mão nessas terras públicas e protegidas (ou que ainda deverão ser protegidas), terras que são patrimônio de todos os brasileiros, para que elas possam se tornar privadas, para a exploração e o lucro de poucos? Desprotegendo essas terras. E como fazer isso? Dando um golpe na Constituição. Mas como dar um golpe na Constituição? Travestindo esse golpe de legalidade pelo processo legislativo. Junta-se a isso um governo fragilizado, com baixa aprovação popular e pouco apoio até mesmo entre suas bases, e o Congresso mais conservador desde a redemocratização. Pronto, estão dadas as condições para o crime.

Se depois o Supremo Tribunal Federal considerar inconstitucional a emenda, anos já se passaram e tanto a privatização do que é público quanto a devastação de biomas como a floresta amazônica e o Cerrado já se tornaram fatos consumados. E o Brasil, como se sabe, é o país do fato consumado. Basta acompanhar a trajetória de Belo Monte, que entre ilegalidades constantemente denunciadas, várias ações movidas pelo Ministério Público Federal e a suspeita de pagamento de propinas pelas empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato, vira fato consumado à beira do Xingu. Quando finalmente chegar ao Supremo, já será tarde demais.

Os índios, esses estrangeiros nativos

A conversão do público para o privado, em benefício dos grandes interesses particulares de exploração da terra e dos recursos naturais do Brasil, é o que está na mesa nesse jogo de gente bem grande. Cabe à população brasileira se informar e participar do debate, se concluir que este não é o projeto de país que deseja. Por causa dos povos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos? Me parece que seria motivo mais do que suficiente. Sobre os índios, em especial, aqueles que têm grandes interesses nas riquezas das terras que ocupam, costumam espalhar preconceitos como o de que seriam “entraves ao desenvolvimento” e o de que não seriam índios “de verdade”. Mas entraves a qual desenvolvimento e ao desenvolvimento para quem? E o que seria essa categoria, “um índio de verdade”?

Vale a pena examinar os preconceitos de perto, para perceber que eles não param em pé depois de um confronto mínimo com a realidade. Para começar, não existe “o” índio, mas uma enorme diversidade na forma como cada um dos 242 povos indígenas listados pelo Instituto Socioambiental dá sentidos ao que chamamos de mundo e se vê dentro do mundo – ou dos mundos. O Brasil lidera o ranking dos 17 países mais megadiversos, em grande parte por causa dos povos indígenas. Por países megadiversos compreende-se aqueles que concentram a maior parte da biodiversidade do mundo e, portanto, da sua preservação depende o planeta inteiro. Essa é maior riqueza do Brasil, mas a ganância de poucos e a ignorância de muitos a ameaça e destrói, colocando em risco a vida de todos.

Os povos indígenas, guardiões da biodiversidade, são silenciados também pela simplificação, às vezes apenas burra, em geral mal intencionada, de fazê-los parecerem um só, chapados como “entraves ao desenvolvimento”. Estima-se que havia mais de mil povos indígenas quando os europeus desembarcaram no Brasil. Hoje, parte dos parlamentares do atual Congresso não mede esforços para completar o genocídio iniciado 500 anos atrás.

Quando a Constituição assegurou os direitos dos povos indígenas, em 1988, não criou direitos novos, apenas reconheceu direitos pré-existentes, já que eles estavam aqui antes de qualquer europeu. Legalmente, não se trata de “dar” terra aos povos indígenas, mas apenas de demarcar a terra que sempre foi deles. Nesse processo, de responsabilidade do Executivo, é preciso indenizar aqueles fazendeiros e agricultores que possuem títulos legais de propriedade (e o “legais” aqui deve ser bem sublinhado), dados pelos governos nos tantos projetos de ocupação, gente que não têm a menor culpa de ter sido despachada com suas famílias para território indígena. Pela Constituição, o Estado tinha um prazo de cinco anos para demarcar as terras indígenas. Como sabemos, passaram-se mais de 25 anos e dezenas delas ainda não foram demarcadas.

Como também sabemos, a ilegalidade faz mal ao país: os conflitos de terra que se espalham pelo Brasil, semeando cadáveres, são resultado da demora em cumprir a Constituição, sobre a qual a bancada ruralista tenta agora dar um golpe. Vale lembrar ainda que os direitos fundamentais são colocados na Constituição também para que a maioria de ocasião não possa ameaçá-los em nome de seus interesses. A importância dessa proteção fica mais clara se prestarmos atenção à atual composição do Congresso: há dezenas de ruralistas e nenhum indígena.

No capítulo “mentiras & manipulações” sobre os povos indígenas há pelo menos três linhas de não pensamento bastante populares no Congresso e fora dele. Há os “atrasadistas”, gente que estudou e que coleciona diplomas, mas prefere ignorar a Antropologia e pensadores da estatura de Claude Lévi-Strauss, para considerar que os índios são “atrasados”. Para estes, existe uma cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad. Não conseguem – ou não querem – ter a amplidão mínima de pensamento para compreender a multiplicidade de escolhas e de caminhos possíveis para a trajetória de um povo. Tampouco alcançam perceber que são essas as diferenças que formam a riqueza da experiência humana. E, claro, preferem se “esquecer” do que o tipo de “progresso” que defendem causou ao planeta.

A segunda linha de não pensamento é a dos “fiscais de autenticidade”. Quando a classificação dos índios como “atrasados” e “entraves ao desenvolvimento” falha, trata-se então de dizer que, sim, os índios têm direitos, mas só os “de verdade”. Haveria então os não legítimos, aqueles que falam português, usam celular e gostam de assistir à TV ou andar de carro. Nessa lógica abaixo da linha da estupidez, os brasileiros que falam inglês, vão à Disney, preferem rock ao samba e ultimamente andam gostando de torcer por times europeus de futebol, também poderiam ser considerados falsos brasileiros e perder todos os seus direitos. Nessa altura da história humana e com tanto conhecimento produzido era de se esperar um pouco mais de sofisticação na compreensão daquilo que faz de alguém o que é.

Quando as duas mentiras anteriores são desmascaradas, aparecem os “bons samaritanos” para salvar a Pátria – deles. Estes acham que quem gosta de mato é antropólogo e ambientalista e que o sonho dos indígenas, o sonho mesmo, no “íntimo do seu intrínseco”, é viver em nossas maravilhosas favelas e periferias, com esgoto serpenteando na porta e polícia dando tiro nas escadarias, à custa de Bolsa Família e cesta básica. Este seria o ápice da evolução: de “índio falso” a “pobre brasileiro legítimo”. Quem, afinal, poderia resistir a tal progresso na vida?

Um golpe na Constituição aqui e acolá e estes bons samaritanos chegam ao ponto ótimo: ajudam os índios que não conseguiram matar a virar pobres e, pronto, para que terra para índio, se já não existe índio? A ignorância só perde para a má fé. Mas é com preconceitos como estes, espertamente disseminados e manipulados, que se tenta transformar os indígenas numa espécie de estrangeiros nativos, como se os “de fora” fossem aqueles que sempre estiveram dentro. Essa xenofobia invertida seria apenas nonsense, não fosse totalmente perversa, a serviço de objetivos bem determinados.

Aderir ou pensar?

Há muita terra para pouco índio? Não. Como costuma dizer o socioambientalista Márcio Santilli, “há muita terra para pouco fazendeiro”. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há 517 mil índios aldeados em menos de 107 milhões de hectares de terras indígenas, o equivalente a 12,5% do território brasileiro. E onde estão essas terras? Mais de 98% delas estão na Amazônia Legal – e menos de 2% fora de lá. Já os 46 mil maiores proprietários de terras, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, exploram uma área maior do que essa: mais de 144 milhões de hectares.

Sobre a realidade da concentração fundiária no país, que continua a crescer, o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) mostra que as 130 mil grandes propriedades rurais particulares concentram quase 50% de toda a área privada cadastrada no Incra. Já os quase quatro milhões de minifúndios equivalem, somados, a um quinto disso: 10% da área total registrada. Em entrevista ao jornal O Globo, o pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, coordenador do Atlas da Terra, afirmou que quase 176 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. Prestar atenção nos números já é um começo para pensar, em vez de simplesmente aderir.

Falta espaço para a produção de alimentos no país? Tudo indica que não. Num país com essa quantidade de terras destinada à agropecuária e com essa concentração de terras na mão de poucos, afirmar que o problema do desenvolvimento são os povos indígenas só não é mais ridículo do que Kátia Abreu, a latifundiária que diz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje ministra da Agricultura, afirmar que “o problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”. Os índios, esses invasores do mundo alheio. Mas é assim que a história vai sendo distorcida ao ser contada para a população.

Então, sim, respeitar os direitos dos povos indígenas já seria um motivo suficiente para lutar contra a PEC 215. Mas a PEC 215 não ameaça apenas os povos indígenas e as populações tradicionais. Ela ameaça a vida de todos os brasileiros. E por quê? Porque se temos floresta em pé é por causa dos povos indígenas e das populações tradicionais, são eles a pedra no caminho de um tipo de exploração que, depois de consumada, lucros privatizados na mão de poucos, deixa para nós todos o custo da devastação. E agora, nos estados da região sudeste, nós finalmente compreendemos, com o colapso da água, qual é o custo da devastação. Nós finalmente começamos a compreender o quanto corroemos a nossa vida cotidiana ao destruir as florestas e ao contaminar os rios. Não é mais algo subjetivo, uma abstração, mas algo bem concreto. Não é mais um futuro distante, é aqui e é agora. Não são mais os nossos netos, mas os nossos filhos que sofrerão e já sofrem com esse planeta mastigado. Assim como nós mesmos. E só está começando.

Lutar democraticamente para barrar a PEC 215 não é uma atitude altruísta, não é um esforço para respeitar os direitos indígenas, não é algo que fazemos porque somos pessoas bacanas, gente do bem. Barrar a PEC 215 é atender ao nosso instinto de sobrevivência num mundo em que as mudanças climáticas são possivelmente o maior desafio da história humana nesse planeta, que é o único que temos e que destruímos. Se o golpe à Constituição for consumado, o meio ambiente no Brasil perderá boa parte das barreiras que ainda impedem a devastação, reunindo condições e abrindo espaço para a aceleração da corrosão da vida.

Há muita atenção da imprensa e da população sobre os protestos nas ruas do Brasil. O curioso é que, quando são os índios que ocupam o espaço público, apesar de todo o seu colorido, de sua fascinante diversidade, eles correm o risco de tornar-se automaticamente invisíveis. Sua dor, sua morte e sua palavra parecem não existir – ou existir apenas no diminutivo. O olhar dos não índios os atravessa. Desta vez, ainda que por instinto de sobrevivência, seria conveniente enxergá-los. Mas, claro, sempre podemos concluir que o melhor para todos nós é viver cercado de cimento, fumaça e rios de cocô.

(Publicado no El País em 13/04/2015)

Página 20 de 25« Primeira...10...1819202122...Última »