Quando as “fraquejadas” incomodam

A apresentadora Fernanda Lima foi linchada nas redes sociais por ter encerrado a edição do seu programa “Amor & Sexo”, de 6 de novembro, na TV Globo, com as seguintes palavras. É bom ler vírgula por vírgula, porque a quantidade de gente que comenta, julga e condena sem sequer ler tem se multiplicado mais do que baratas. E, às vezes, com o cérebro de uma. Fernanda disse:

– Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?

O programa havia sido gravado em julho, como ela afirmou nas redes sociais, mas de imediato uma horda de seguidores de Jair Bolsonaro (PSL) interpretou a fala da apresentadora como um manifesto contra a eleição de seu “mito”. Como é possível? É bastante possível, é mesmo até previsível. Se a apresentadora está conclamando as mulheres a lutar contra a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia (ódio às mulheres), e os eleitores de Bolsonaro se ofendem e revidam o que consideram um ataque pessoal ao seu líder, é porque compreendem que o presidente eleito defende e proclama a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia. Entendem tudo muito bem.

Se Fernanda Lima invoca o público a combater a submissão, a tirania e a repressão, e os eleitores de Bolsonaro se ofendem, é porque entendem que Bolsonaro – e também eles – defendem a submissão (das mulheres, dos LGBTQI e dos negros), a tirania e a repressão. Nenhuma novidade. Quem denunciou o projeto autoritário de Bolsonaro já sabia disso. Ao contrário de parte do eleitorado do deputado profissional, quem a ele se opôs acreditou na violência que Bolsonaro propagou publicamente durante quase 30 anos. Acreditou no que ele disse. Exatamente por acreditar, milhões de pessoas lutaram contra a sua candidatura. Esta, a propósito, é mais uma característica curiosa desta eleição: parte dos eleitores dizia não acreditar que seu candidato faria o que dizia que faria – e por isso votaram nele. É difícil de entender? É.

O que talvez ainda pudesse surpreender é uma horda de pessoas linchar verbalmente alguém porque a vítima defende valores fundamentais da civilização, que pareciam já consolidados, como a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e a tirania. Mas chegamos a este ponto. E certamente daqui passaremos para muito mais abaixo. Não estamos nem perto do fundo do poço sem fundo.

Um dos mais raivosos com a luta de Fernanda Lima contra o machismo respondeu com a elegância e o respeito que caracterizam uma parcela dos seguidores de Bolsonaro, feitos a imagem e semelhança do “mito”. Assim, o cantor Eduardo Costa expressou a si mesmo: “Mais de 60 (sic) milhões de brasileiros e brasileiras votaram no Bolsonaro e agora essa imbecil com esse discurso de esquerdista! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco, e o lado mais fraco hoje é o que ela está. Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela?”.

Que ser de esquerda signifique também combater a tirania, o machismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, perfeitamente justo. E bastante honroso. Mas duvido que parte da direita não compartilhe dos mesmos valores humanitários básicos. Há uma direita que suspeito que possa ficar ofendida por ter sido apartada destes valores. Mas cadê ela? Muda como uma freira que fez voto de silêncio.

Os que não fazem votos de silêncio são os pastores de certas igrejas evangélicas – não todas, definitivamente não todas. Conhecedor de seus fiéis, o deputado Marco Feliciano (Pode) se manifestou na imprensa Gospel com a certeza de que seu público só leria o que ele disse, não o que Fernanda efetivamente falou. E seu público nunca o decepciona. Então mentiu: “Em uma das últimas apresentações, ela (Fernanda Lima) vociferou críticas ferozes e mentirosas ao presidente eleito Jair Bolsonaro. Sua fala denotava um ódio escancarado e uma falta de respeito à maioria do povo brasileiro, entre eles muitos de seus espectadores, numa linguagem de revolucionário clandestino, como se estivesse falando de alguma caverna do Afeganistão”.

Leiam mais uma vez o que Fernanda Lima disse. Como ela pode ter ofendido Jair Bolsonaro? Como as dependências da TV Globo (!!!!) podem ser comparadas com uma caverna do Afeganistão? Para que possamos conversar, é preciso manter uma afinidade mínima com os fatos. Embora se saiba que Bolsonaro defende o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia e a tirania, ter ideias diferentes não é ofender, apenas discordar. Neste caso, apenas cumprir a lei, já que racismo, por exemplo, é crime. Sem contar que Bolsonaro jamais foi citado no programa, gravado muito antes do primeiro turno das eleições.

Mas a fala de Feliciano, um pastor que já foi acusado de tentativa de estupro e que já afirmou que os negros descendem de um “ancestral amaldiçoado por Noé”, não surpreende ninguém. O que surpreende é ele “denunciar” que alguém é contra a opressão das mulheres e o racismo. O evangelismo dele seria a favor? Feliciano pode ser o que ele é e responder pelo que diz e faz na justiça, mas não pode tratar seu comportamento como se fosse a forma correta de se mover numa sociedade. Esta é a insanidade do momento. Tratar comportamentos antiéticos e imorais, alguns deles previstos no Código Penal como crime, como a forma correta de agir – ou como se a eleição de Bolsonaro tivesse bastado para rasgar a Constituição e defecar no Código Penal.

Amigos e familiares fazem um tributo à Marielle Franco no programa Amor & Sexo. TV GLOBO (Reprodução do El País)

Amigos e familiares fazem um tributo à Marielle Franco no programa Amor & Sexo. TV GLOBO (Reprodução do El País)

O ataque dos machos brancos

 A tensão de gênero, raça e classe marcou a eleição de 2018

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Brasil, a vingança dos ressentidos

A eleição de Jair Bolsonaro, o populista de extrema direita que será o próximo presidente do Brasil, liberou alguma coisa no país. Um ressentimento contido há muito, por muitos. Todos os tipos de repressão emergiram dos esgotos do inconsciente e hoje desfilam euforicamente pelas ruas, escolas, universidades, órgãos públicos, refeições familiares.

Votantes de Jair Bolsonaro celebran su victoria en las elecciones de Brasil el pasado 28 de octubre. BUDA MENDES/GETTY IMAGES (Reprodução do El País)

Votantes de Jair Bolsonaro celebran su victoria en las elecciones de Brasil el pasado 28 de octubre. BUDA MENDES/GETTY IMAGES (Reprodução do El País)

Leia no El País (em espanhol e em português)

Aos indecisos, aos que se anulam, aos que preferem não

Quando o que está em jogo é a própria democracia, votar em branco, anular o voto ou não votar está fora do campo das possibilidades. Votar em branco, anular o voto ou deixar de votar não é posição neste momento, mas omissão. E omissão é um tipo de ação. Neste momento, o pior tipo de ação possível.

(Minha carta àqueles que ainda são capazes de escutar para além do ódio que interdita as palavras)

Fernando Haddad, candidato à Presidência. Foto: ANDRE PENNER/AP (Reprodução do El País)

Fernando Haddad, candidato à Presidência. Foto: ANDRE PENNER/AP (Reprodução do El País)

O maior delírio vivido hoje no Brasil é o da “normalidade”

Leia no El País

Bolsonaro é uma ameaça ao planeta

A maior ameaça representada por Bolsonaro não é apenas para o Brasil, mas para o planeta. Além de anunciar que pode tirar o Brasil do Acordo do Clima de Paris, que busca controlar o aquecimento global, o candidato de extrema direita já anunciou várias medidas que vão abrir a Amazônia para o desmatamento.

Entre elas, afirmou que, além de fundir o ministério do Meio Ambiente com o de Agricultura, vai entregá-lo para um representante do “setor produtivo”. Também já afirmou que não vai demarcar um centímetro a mais de terras indígenas, hoje as principais barreiras ao desmatamento, e pretende que as já demarcadas possam ser vendidas. Também já disse que nenhum fazendeiro vai ser incomodado por fiscais do IBAMA. “Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês!”, discursou em julho. “Direitos humanos é a pipoca, pô!”

Com 20% da floresta já destruída, a Amazônia está muito perto do ponto de virada (tipping point). Se isso acontecer, a floresta deixará de ser floresta para se tornar uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade. Se a maior floresta tropical do mundo for destruída, combater a mudança climática global será quase impossível.

Em 8 de outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertaram que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5 graus C. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Alertaram também que só há 12 anos para reverter esse processo. DOZE ANOS.

A floresta amazônica é essencial para controlar o aquecimento global. E Bolsonaro já anunciou medidas que vão entregá-la para os grileiros/agronegócio e abri-las ao desmatamento para ser convertida em pasto pra boi, latifúndio de soja e área de mineração.

Como o debate foi sequestrado no Brasil, o maior risco quase não é mencionado ou é simplesmente ignorado. Dentro do país. E também fora, onde a falta de posição de governos e parlamentos da maioria dos países sobre a ameaça que assombra o Brasil é uma vergonha de dimensões globais.

Se não for por posicionamento humanitário, representado pelo risco de um defensor da ditadura, da tortura e do extermínio dos diferentes se tornar o presidente do maior país da América do Sul, que pelo menos seja por cálculo: o Brasil pode ser um país periférico, mas a Amazônia não. A maior floresta tropical do planeta é essencial para o futuro do planeta. De todo o planeta.

El candidato ultraderechista del partido PSL a la presidencia de Brasil, Jair Bolsonaro, el pasado 11 de octubre de 2018, en Río de Janeiro (Brasil). Foto: MARCELO SAYÃO (EFE/Reprodução do El País)

Jair Bolsonaro/Foto: Marcelo Sayão (EFE/Reprodução do El País)

O candidato de extrema direita já anunciou medidas que vão abrir a Amazônia ao desmatamento

Leia no El País

“O ódio deitou no meu divã”

Ele entra sem dizer uma palavra e logo começa a chorar. Pergunto o que aconteceu e ele me diz, assustado, que foi abordado por um cara da faculdade, com as seguintes palavras:

– E aí, seu viadinho de merda, já viu as pesquisas? Vai aproveitando até o dia 28 pra andar de mãozinha dada, porque, quando o mito assumir, acabou essa putaria e você vai levar porrada até virar homem.

Depois, é a menina que já entra chorando e me diz:

— Sil, me ajuda… não sei o que fazer… você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje… Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário… Tinha uma folha de papel…

Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui:

– Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!

O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista.

Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país.

(Leia mais no El País)

O presidente do PSL em coletiva de imprensa no dia 7. ANTONIO LACERDA EFE (Reprodução do El País)

O presidente do PSL em coletiva de imprensa no dia 7. ANTONIO LACERDA EFE (Reprodução do El País)

Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República

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