História de amor no Haiti

O que Jeanette disse a Roger, soterrada pelos escombros do terremoto

Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.

De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros. “Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor. Jeanette tem algo a dizer. O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso!”.

Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar.

Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto.

O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.

Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.

O que você diria se fosse Jeanette?

A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é. Inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.

Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.

Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?

Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente. A vida é para hoje, a vida é para já.

Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.

De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.

Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.*
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Este ano começou com muitas tragédias, aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta. O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.

Um estudo citado por Coutinho, The Death Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para estabilizar e reconstruir o país.

A série de tragédias deste início do ano não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis, começando dentro da nossa casa.

Chove em São Paulo enquanto escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexo imediato do prazer, na hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.

Apenas na madrugada de quinta-feira (21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda bem que temos um governador para nos avisar.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila. E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir, bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem. Por chuva.

Cada um de nós tem sua parcela de responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos, do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o barranco sobre o barraco. Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.

Quando Jeanette me faz pensar sobre o que realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar.

* Se você ainda não assistiu, vale muito a pena testemunhar o resgate de Jeanette.

(Publicado na Revista Época em 25/01/2010)

Tropa de elite

Que tipo de povo queremos ser?

Em geral, não gosto de voltar ao tema da coluna anterior. Mas os comentários da última merecem uma reflexão. O fascinante da internet é que o texto continua a ser escrito pelos leitores. Quase sempre tenho a sorte de ter leitores de bom nível, que fazem suas críticas com educação, compartilham suas experiências, enriquecem o debate. Vez ou outra, porém, alguns manifestam sua falta de educação, protegidos pelo anonimato. É triste, porque é uma oportunidade perdida de dizer e ouvir algo que nos faça ir além. Mas, mesmo estes leitores pobres de ideias e de espírito nos dizem algo com sua agressividade. Embora possamos ignorá-los, talvez seja importante pensar não no que dizem, já que sua violência busca encobrir a falta de argumentos, mas no que seu comportamento revela sobre o país que construímos.

Para quem não leu a coluna anterior, em “Vizinhos de praia” eu contava minha má experiência com a vizinhança, ao visitar minha família no final do ano. Carros com porta-malas aberto e som ensurdecedor a qualquer hora do dia e da noite, cachorros (muitos) que não param de latir, barulho ininterrupto de cortador de grama. Decidi contar meus percalços praianos por apostar na hipótese de que o que aconteceu comigo também havia ocorrido com muitos leitores que, como eu, se sentem impotentes diante de uma convivência cada vez mais ditada pela violência. Os comentários, narrando experiências do gênero, algumas bem mais difíceis e perigosas que a minha, comprovaram que minha hipótese estava correta.

Antes de chegar aos – felizmente poucos – leitores agressivos, queria apontar outra reação que a coluna motivou. Fiquei surpresa ao perceber que alguns fizeram uma relação imediata entre a falta de educação/respeito e a ascensão social. Em nenhum momento, no texto, eu afirmo que o grupo que tocava funk e outros gêneros musicais num volume que impossibilitava a conversa dentro da minha casa eram pessoas economicamente pobres que haviam subido de escala social. Pelo contrário. Eu conto que eles tinham dois carros, uma moto e um buggy, bens materiais em geral incompatíveis com quem vive ou saiu recentemente das favelas, mesmo com a comprovada ascensão das classes C e D no governo Lula.

Eu já havia ficado curiosa com a relação entre falta de educação/respeito e ascensão social quando comentava nossas dificuldades com outro vizinho da praia. “Este comportamento é coisa de negrada. Eles saem das vilas e vêm pra cá fazer baderna”, ele disse. Fiquei chocada com o elevado índice de preconceito em apenas duas frases. Este vizinho fez tal afirmação olhando para os vizinhos violentos. O que havia diante dos olhos dele, quando fez o comentário, era o seguinte: proprietários da casa de praia, com seus familiares e amigos, todos brancos, alguns com olhos claros, descendentes de italianos e moradores da serra gaúcha, uma das regiões mais prósperas do Rio Grande do Sul. O preconceito era forte o suficiente para que ele precisasse transformar descendentes de europeus, visivelmente de classe média, em “negrada de vila”. Vila, para um morador do interior do Rio Grande do Sul, é o equivalente à favela.

Ao acompanhar os comentários da coluna, vi que esta inferência se repetiu. Acho importante tentar compreender por que pessoas inteligentes manifestaram preconceito, consciente ou inconscientemente. Eu não acho que todo pobre é bonzinho nem todo rico é malzinho. Sou amiga e acompanho o trabalho de pessoas pobres de grande valor e conheço outras que só prejudicam a comunidade em que vivem. Assim como conheço ricos que tentam repensar suas ações para construir um mundo melhor e outros que são sonegadores de impostos, patrões da pior espécie e péssimos cidadãos. Nem a pobreza nem a riqueza dão atestado de boa conduta para ninguém – nem justificativa para o inverso. Do mesmo modo que a cor também não dá, a priori, diploma de dignidade para alguém.

O fato de meus vizinhos tocarem funk de madrugada, com o porta-malas do carro com caixas de som no volume máximo, talvez possa ter contribuído para a ilação – jamais para o preconceito, que é sempre inadmissível. Afinal, o funk surgiu nas favelas do Rio. Mas, pensar que isso demonstra a classe social de quem ouve, é ignorar que o funk, assim como o rap, se difundiu entre a as classes A e B há muitos anos. Se eu não estivesse tão irritada na ocasião, seria instigante pensar por que jovens de classe média do interior gaúcho, cujos pais ainda falam dialeto vêneto, sentem-se poderosos ouvindo funk carioca. Fiquei imaginando o insólito encontro entre aquelas “cachorras” do interior gaúcho e os funkeiros das favelas do Rio. O que eles têm em comum? Nada, imagino. Mas, com certeza, esta apropriação deve nos contar alguma coisa. E pode ser interessante saber o que é para entender um pouco mais do mundo onde vivemos.

Agora, o que dizem os leitores que pretendiam me ofender? Em geral, eles me acusam de manifestar um comportamento elitista e me taxam de “burguesinha”. Um deles defende que, com o texto, eu revelo meu desprezo pelo povo e também pelos leitores. Em geral, eu não ligo para tentativas de agressões, porque acho que elas são auto-explicativas. O autor, na tentativa de me desqualificar, revela mais dele mesmo do que de mim. Mas achei que estes mereciam ser escutados naquilo que diziam sem querer dizer. Em alguns casos, infelizmente, tive de eliminar os comentários, porque agrediam outros leitores com palavrões, me chamavam de “piranha” e me mandavam tomar no mesmo lugar para o qual o funk dos vizinhos já tinha me enviado várias vezes.

Ora, o que é um comportamento “elitista”? Boa parte dos problemas crônicos do Brasil se deve ao fato de que, ao longo da História, o país teve uma elite de última categoria. No geral, o comportamento da elite brasileira, em diferentes momentos (e também quando incluiu novos atores), norteou-se por se apropriar e usar os recursos naturais do país de forma danosa, explorar os trabalhadores, valorizar o que vem de fora e desvalorizar o que é produzido aqui, especialmente a cultura, garantir a impunidade de seus atos, não se sentir implicada na construção do país nem no bem-estar do seu povo. Para esta elite, só o seu bem-estar importa. Ela só descola os olhos de seu umbigo quando percebe seus privilégios ameaçados. E, muito significativo, historicamente a elite brasileira usa o público como se fosse privado. Para ficar num exemplo recente, basta observar o modus vivendi da recente elite política do país, refestelada no Congresso Nacional.

Em resumo: o comportamento padrão da elite se expressa por fazer o que bem entende sem responder pelos seus atos ou se importar com o bem-estar do outro. Exatamente, portanto, como meus vizinhos de praia. Como os vizinhos dos leitores que contaram seus percalços. E como os leitores que entram neste espaço não para fazer críticas ponderadas, das quais todos possam se beneficiar, mas para agredir, ofender, desrespeitar.

Ainda levando em consideração a “acusação” de que eu estaria manifestando um comportamento elitista, vejamos. Se havia uma relação entre elite e povo em meus percalços litorâneos, como estes leitores acreditam que existia, eu e minha família estávamos no lugar do povo que devia continuar aguentando calado os desmandos e abusos daqueles que se achavam no direito de ser mais importantes que todos os outros. E usavam o espaço público como se fosse privado. Do mesmo modo, quando a polícia apareceu, meus vizinhos estavam tão certos da impunidade, que ridicularizaram a polícia e a nossa crença na lei.

Dito isso, por que vale a pena pensar sobre isso? Porque estes pequenos casos da vida cotidiana, minha e de tantos leitores, são reveladores. E, embora possa não parecer, têm grande repercussão na vida do país. Se há avanços sociais significativos e muitos de nós têm ampliado o acesso a bens de consumo, é relevante pensar sobre que tipo de povo queremos ser. Será que queremos repetir o comportamento histórico de parte da elite brasileira e fazer o que bem entendemos sem nos importar com o bem-estar do outro? Será que nós também vamos privatizar o espaço público? Será que nós também rasgaremos a lei para nos mantermos impunes?

Será muito triste se, depois de uma História tão sofrida, quando o Brasil parece viver um momento pródigo em oportunidades, quando temos a chance histórica de nos reinventar, decidirmos nos construir à imagem e semelhança da elite que nos espoliou por 500 anos.

São pequenos casos cotidianos como este que explicam por que escolhemos e legitimamos com nosso voto um Congresso como o que parasita Brasília nesse momento, salvo honrosas exceções. Nossos pequenos atos, a forma como vemos o público e o privado, a escolha que fazemos entre respeitar e não se importar têm grandes consequências para o bem-estar de todos. Nós não estamos apenas cuidando da nossa própria vida, mas construindo um país.

Em homenagem aos leitores que fazem este espaço valer a pena a cada semana, com contribuições que o tornam mais rico, encerro com o comentário de um deles. Ricardo de Faria Barros, de Brasília, coloca uma questão fundamental para um país em que parte do povo, na primeira oportunidade, tenta imitar a elite no que ela tem de mais nefasto: “Meus pais repetiam, como um mantra, ‘seus direitos acabam quando começam os dos outros’. Mas, para este mantra funcionar, temos que nos perceber como parte de um grupo social, no qual co-existam OUTROS. E não como os únicos. Se nos vemos e percebemos como os únicos, ‘os caras’, se só vemos a nós próprios, como reconhecer onde acaba nosso direito e começa o do outro?”.

(Publicado na Revista Época em 18/01/2010)

Vizinhos de praia

Como eles podem transformar as férias da gente num inferno

A praia costumava ficar num lugar que ninguém se interessava em conhecer. Chegamos lá, 25 anos atrás, depois de nos perder um pouco, graças à casa emprestada de um tio que fazia uns negócios meio malucos e acabava com imóveis em lugares estranhos. A tal praia da qual ninguém tinha ouvido falar era composta por um mercadinho onde comprávamos com caderneta, um restaurante e meia dúzia de casas. Dava para passar o veraneio de pés descalços e dormir de janela aberta que nada acontecia. Praia de marzão aberto, como é a característica do mal-falado litoral gaúcho, ela não tinha nenhuma beleza que não fosse essa atmosfera de lugar nenhum. Mais tarde eu conheci praias paradisíacas no Caribe e no Mediterrâneo, mas em nenhuma fui tão feliz quanto em Ouriço do Mar.

A praia foi crescendo, ganhou um pontinho no mapa, mas meus pais nunca desistiram dela. Agora eles alugam uma casa, sempre a mesma, desde que a antiga foi demolida mais pelos cupins que pelo pedreiro. E, assim, lá estava eu, de volta à melhor praia do mundo, depois de uma hora e meia de avião, quatro horas de espera, duas horas e meia de ônibus e meia hora de carro. Cheguei na tarde de 24 de dezembro, para passar as festas com a família, única época do ano em que todos se encontram, cada um vindo de um canto. Em minutos, eu já estava adaptada, com a trajetória dos próximos dias delimitada por um triângulo perfeito entre a rede, a geladeira e a cama.

Quando os festejos natalinos terminaram, fui dormir quase ronronando. Divido o quarto da frente com meu irmão do meio. É uma delícia ter 43 anos e dividir o quarto com o irmão de 50, sabendo que os pais estão no quarto dos fundos. Regrido uns 30 anos. E quase digo: “Boa noite, John Boy”. E quase escuto: “Boa noite, Mary Ellen”. (Se você tem menos de 40 e não assistiu aos “The Waltons”, nem tente entender.)

Estávamos nós, sonhando com os doces da minha mãe, por volta de 1h da manhã, quando meu coração saltou. Achei que estava enfartando. Então o coração pulou de novo. E continuou pulando forte num ritmo sincopado. Depois de alguns segundos, a verdade me atingiu com a força de uma revelação mística. Sim, eles chegaram. Os novos vizinhos do lado esquerdo.

De repente, nossa casa tinha virado um baile funk. Eu e meu irmão tentamos ignorar. Lançamos mão de nossos poderes de iogues. Por meia hora tentamos fingir que aquilo não estava acontecendo, apesar de o coração vir até a boca, voltar ao peito, vir à boca, voltar ao peito. Tentei me concentrar na respiração. Ar que entra, ar que sai, ódio que entra, ódio que não sai, ôps. Então, a letra, que até então parecia composta por hieróglifos de uma língua antiga, sânscrito talvez, se revelou:

“Vai tomar no cu, bem no meio do teu cu”.

Era o limite. Saltei da cama numa agilidade só vista em tempos imemoriais. Meu irmão me seguiu, minha filha deixou o quarto do meio. Marchamos até a cerca. Lá estava um carro com o porta-malas aberto e gigantescas caixas de som. Na minha opinião, deveria ser obrigatório licença de porte de arma para essas monstruosidades. Com investigação rigorosa do gosto musical e da integridade dos tímpanos do candidato.

Quando eles baixaram alguns milhões de decibéis para nos ouvir, meu irmão disse, calmo como um homem da diplomacia afegã: “Vocês têm duas alternativas. Ou param agora ou eu chamo a polícia”. Eu emendei um discurso sobre o fato de eles não serem os únicos seres sobre o planeta naquela noite.

Eles sabiam disso. Só tinham certeza de que eram os mais importantes. Não eram exatamente adolescentes. Eram adultos e havia até uma criança de menos de dois anos com eles. Com quatro, ela com certeza estará surda. Estava sempre tentando fugir para o nosso pátio.

Marchamos de volta. E não é que eles pararam? Para mim, foi mais incrível do que se Papai Noel tivesse aterrissado com duas renas listradas bem no meio do quintal. Finalmente um milagre natalino.

Tive fé cedo demais. No dia seguinte, eles recomeçaram. Para que fique bem entendido. Por volta de 16h do dia de Natal ninguém se ouvia dentro de casa. Se fosse imprescindível, berrávamos no ouvido um do outro. Quando percebi, a situação tinha chegado ao nível de estarmos assistindo a um filme na TV, no mudo, só com a legenda. O som era: “Bota na bundinha, bem no meio da bundinha”. Incrível essa fixação em botar e tirar coisas da região anal. Tentei não me aprofundar muito. Letras complexas demais poderiam atrapalhar meu descanso.

Liguei para o 190. E não é que a polícia veio? Fiquei muito grata à briosa PM do Rio Grande do Sul. Imagino o pé no saco que deve ser estar de plantão e ter de vir explicar para gente grande que não dá para botar música no volume máximo, na frente da casa e com caixas de som gigantes. Como se explica o que todo mundo já sabe? Como se lida com essa espécie humana?

Meus vizinhos se sentiram injustiçados. Nós não sabíamos nos divertir. Éramos uns chatos. “Vão para o meio do mato!”, berravam. Procuraram um outro jeito de nos atormentar. E, claro, acharam. Ligavam, ao mesmo tempo, os dois carros, obviamente com o cano de descarga aberto, um buggy e a moto. E aceleravam.

Tentei manter uma compostura de elfa. Mas era difícil, já que o hit do verão, pelo menos em Ouriço do Mar, já tinha dissolvido uma parte do meu cérebro. “Eu sou sua mulher e você é o meu homem”. O que é um verso de Chico Buarque como “na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido e meu sapato ainda pisa no teu” perto da elegância deste refrão? Quantas horas foram gastas para conceber este primor da língua de Camões? Não tenho nada a ver ou dizer sobre o gosto musical dos outros, desde que não me obriguem a compartilhá-lo.

No dia seguinte, começaram a explodir foguetes por todo o canto, inclusive dentro de casa. A vizinha da frente, grávida depois de anos de tentativas, começou a berrar: “Vou perder meu bebê! Eu não posso levar susto!”. Eles concluíram que ela também não sabia se divertir.

Tentei observá-los com lentes antropológicas. Da minha rede, fiz cara de conteúdo. Descobri que eles não se tratavam pelos nomes. Todos os homens eram chamados de “merda”. E todas as mulheres de “mocreia”. Interessante. Meu irmão, até então sempre muito sensato, deu para defender uma teoria antiga, mas que fez pouco sucesso em seu tempo, de que os macacos evoluíram dos homens. De repente, começou a fazer muito sentido.

Na véspera do Ano-Novo chegou o vizinho da direita. Esperávamos reforços para nosso movimento de resistência. Descobrimos que estávamos sós. Este vizinho é uma boa pessoa, como diz a minha mãe. Mas tem obsessão por cortador de grama. Ele corta grama o dia inteiro. Quando termina a grama da casa dele, começa a cortar a grama dos vizinhos. Quando a vizinhança toda se transforma num campo de golfe, ele é tomado por ímpetos de cidadania e passa a aparar os canteiros públicos. Uma hora dessas vai entrar mar adentro e procurar grama entre os cangurus da Austrália.

Já tive pesadelos com o cortador de grama do vizinho. Quando acaba tudo, a grama dele já tem uns cinco centímetros e o ciclo recomeça. Nesse veraneio, ele descobriu uma cobra coral no pátio. Agora, quando não está cortando grama, caça cobra com um galão de gasolina na mão. Ele quer incinerar o bicho. Aqui em casa, torcemos pela cobra.

Duas horas depois chegou o vizinho da frente. Ele e o vizinho da direita são muito próximos. Conversam o dia inteiro, mas sem sair de casa. É um método interessantíssimo. Cada um coloca uma cadeira de praia na varanda, respectiva cuia de chimarrão na mão, e gritam de um lado a outro da rua. A rua tem duas mãos e um canteiro no meio. Nenhum deles tem segredos, nem entre eles nem num raio de 200 metros. Eu gostaria que eles tivessem segredos.

O vizinho da frente traz a família e sete poodles. Melhorou. Já foram doze. Quem contou foi meu pai. Eu gosto de cachorros, mas estes sofrem de algo que os psiquiatras, sempre afiados na arte de criar uma nova patologia, poderiam chamar de síndrome das línguas inquietas. Eles latem o dia inteiro. E a noite também. Se passa uma formiga na calçada, eles latem. Em meus devaneios, eu já os envenenei com todo o tipo de droga fatal. Ninguém da vizinhança reclama porque o vizinho é médico e, quando alguém se aperta, bate na porta dele. O doutor atende a todos alegremente, ao som dos uivos de seus melhores amigos. O doente não ouve o que ele diz, mas lê os lábios. Em geral, fora um ou outro mal-entendido, acaba comprando o remédio certo.

Neste momento, estou encurralada. Escrevo esta coluna no quarto dos fundos. Perdemos. Não sei quem são estas pessoas. Nem imagino o que dizem para si mesmas. Seja o que for, não conseguiriam ouvir. Só sei que elas têm absoluta indiferença pela vida do outro, por nós. E agora nos esgueiramos pela casa como párias.

Os vizinhos da esquerda nos provocam com um funk que diz: “Abaixa o som, abaixa o som. Olha os hômi.” Seguido pelo barulho de uma sirene de polícia. O da direita corta uma grama imaginária. Na frente, os cachorros se esgoelam. Provavelmente, uma joaninha está passando pelo portão.

Tentem imaginar a combinação de um funk carioca com o som de um cortador de grama, somado a sete poodles se esgoelando. Pronto, vocês entenderam a minha vida.

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Os fatos aqui narrados são verídicos. A única invenção é o nome da praia. Medo de represálias. Nossa única certeza agora é que sempre pode piorar muito.

Como estou de férias, esta coluna vai pular uma segunda-feira. Volta em 18 de janeiro. Se nada acontecer, claro. Torçam por mim. Se eu desaparecer, é porque fui presa metralhando uma caixa de som gigante ou numa luta corporal com o cortador de grama. Se lerem a seguinte manchete de jornal – “Serial killer de poodles estripa e faz linguiça” -, confesso, sou eu.

Vou tentar resistir. Afinal, a bucólica São Paulo me espera. Juro. Não há lugar mais sossegado e silencioso que o sofá azul lá de casa.

(Publicado na Revista Época em 04/01/2010)

Lula, o filho do Barretão

Os homens são bem mais interessantes do que os heróis – ou os santos

“Não quero que publiquem que eu sou santo. Não sou. Estou cansado que me carreguem no colo, que puxem meu saco. Não encontro textos sérios: ou inventam mentiras para me esculhambar, ou exageram em coisas que não existiram para me transformar num super-homem. Não sou nem uma coisa nem outra. Gostaria que você fizesse um texto ‘científico’ sobre mim, contando as coisas como elas são”.

Esta fala é de Luiz Inácio Lula da Silva e foi transcrita na introdução de sua biografia – Lula – o filho do Brasil (Perseu Abramo) –, escrita pela jornalista Denise Paraná. No surrado sofá vermelho do pequeno apartamento de Denise, então uma estudante vivendo com o dinheiro da bolsa de doutorado em História, na Universidade de São Paulo (USP), Lula contou a extraordinária história de sua vida em encontros que totalizaram cerca de cem horas de entrevistas, entre os anos de 1992 e 1994. Ao contá-la, pronunciou umas duas centenas de palavrões que foram limados da edição da Fundação Perseu Abramo, publicada no final de 2002, ano da primeira eleição presidencial vencida por Lula, depois de três derrotas. A primeira publicação da obra é de 1996.

A biografia, elaborada com os critérios da história oral e apresentada na forma de entrevistas com Lula e seus irmãos, é irretocável. Ao contar a história de Lula de 1945 a 1980, do nascimento no sertão pernambucano à liderança das greves no ABC paulista, Denise Paraná compreendeu que a riqueza do homem era sua complexidade. Foi respeitosa com todas as contradições do retirante sertanejo, operário e líder sindical que se tornaria o presidente mais popular da história recente do Brasil. Como o próprio Lula pediu, ao aceitar contar sua vida, o retrato traçado no livro é fascinante, mas decididamente não é nem o de um herói, muito menos de um santo.

Quando li a biografia, para cobrir a campanha de 2002, às vezes ri muito com Lula, às vezes chorei, em outras achei-o mau-caráter, em alguns parágrafos deu até raiva. Ao final da leitura consegui me aproximar das muitas verdades de Lula, um homem complexo e contraditório como são todos os homens. Ou, como diz Denise na primeira frase da introdução da obra: “Este é um livro sobre um homem controvertido”.

Ao assistir a Lula – o filho do Brasil, o filme, fui surpreendida por um outro Lula. Este me deu sono. Baseado na biografia de Denise Paraná, o filme usou fatos relatados no livro, retocou alguns momentos menos edificantes, mas perdeu o melhor da história: a humanidade do personagem. O Lula do filme é plano, unidimensional. Faz tudo certo sem tropeçar em nenhum conflito, nem mesmo um bem pequeno, em sua trajetória linear. Ao final, ficamos pensando (eu, pelo menos) que aquele cara da tela nunca chegaria a presidente da República. Não chegaria nem a liderar uma greve do ABC. O Lula do filme é raso como o açude seco em que o menino Lula bebia água com o gado.

A história de Lula e de sua família é uma grande história. Contém nela um naco da trajetória do Brasil. O pai migrou para São Paulo com a amante menor de idade, deixando no sertão a mãe grávida de Lula e outros seis filhos. Numa visita, ainda fez uma oitava filha antes de levar um dos meninos, Jaime, com ele para Santos. Dona Lindu vende tudo e vai para São Paulo atrás do marido porque este filho engana o pai, analfabeto, e escreve uma carta muito diferente da que ele ditou. Em Santos, ela tem gêmeos e perde os filhos sem nenhuma ajuda. Muito mais tarde, quando Lula está preso, dona Lindu morreria de câncer.

As irmãs de Lula trabalham como domésticas, um irmão tem doença de Chagas, outro é torturado pela ditadura militar. A primeira mulher de Lula morre no sétimo mês de gestação, junto com a criança, possivelmente por negligência médica. Quando é velada, o chão da casa em que viviam cede com o peso do caixão. O filme conta muitas dessas histórias, mas é uma narrativa sem densidade ou nuances. Não parece uma vida, mas fatos encadeados.

O Lula real era um menino tão tímido que não conseguia vender laranjas na infância por falta de coragem de gritar. O do filme é um vendedor com sacadas publicitárias. No filme, o casamento com Maria de Lourdes, a primeira mulher, é um conto de fadas proletário, com direito à perseguição no varal de roupas. Na vida, o casal voltou antes da lua de mel porque Lourdes só chorava. Quando o sogro de Marisa, taxista, conta a ele sobre sua nora, viúva, Lula estava saindo da casa da namorada, Miriam Cordeiro, e pensa: “Qualquer dia vou comer a nora desse velho”. No filme, ele apenas conta ao taxista, com voz embargada, que perdeu a mulher e o filho. E o taxista diz que também perdeu um filho e mostra a foto da viúva, Marisa, e do neto. O viúvo Lula do filme só chora. O da vida chora, mas depois quer “namorar todo dia e, de preferência, com pessoas diferentes”.

Quando Marisa aparece no sindicato dos metalúrgicos para “pegar o carimbo” necessário para liberar o dinheiro da pensão do marido assassinado, Lula não a reconhece da foto mostrada pelo taxista, como é contado no filme. Lula é chamado para atendê-la porque havia deixado ordens de ser avisado quando aparecesse “uma viuvinha nova”, como conta a própria Marisa no livro. Então Lula mente para Marisa que a lei tinha mudado e a obriga a voltar várias vezes ao sindicato. Depois a chantageia para que lhe dê seu telefone.

E assim por diante. Entre um personagem contraditório e outro com comportamento previsível, mas elevado, a escolha foi eliminar as nuances e ficar com um Lula sem ambivalências. Mais do que um herói ou um santo, o Lula do filme é um sujeito insosso.

Por que uma grande história, um grande personagem e um grande orçamento – R$ 16 milhões, um dos mais caros da trajetória do cinema brasileiro – se transformaram em um filme medíocre?

Só tenho hipóteses. O momento escolhido – com o personagem principal na presidência da República e às vésperas de uma eleição presidencial – pode ter feito mal à obra. O momento pode ter beneficiado a captação de recursos, já que dá gosto acompanhar na tela a lista de empresas sensibilizadas para a necessidade de investir no cinema nacional. Mas pode também ter produzido uma série de auto-censuras.

Como já foi dito pelos realizadores do filme, havia uma preocupação de não apresentar cenas que pudessem ser consideradas piegas ou excessivamente dramáticas, embora verídicas, como a que o pai de Lula se recusa a lhe dar picolé porque diz que ele não sabe chupar sorvete. A mesma preocupação pode ter ocorrido ao preferir não mostrar um Lula mulherengo e às vezes de caráter duvidoso, um Lula mais malandro que bom moço.

Há no filme alguns momentos heroicos, que nunca ocorreram na vida real, como quando o menino Lula se posta na frente da mãe para impedir que o pai, Aristides, batesse nela, dizendo: “Homem não bate em mulher”. Na vida real, contada pelo próprio Lula, é a mãe que não permite que o pai bata em Lula. Por conta disso, Aristides dá uma mangueirada na cabeça de dona Lindu. Do mesmo modo, há episódios em que a índole do personagem foi aprimorada, como quando Lula passa mal ao assistir ao dono de uma fábrica, que havia atirado em um trabalhador durante uma greve, ser jogado do segundo andar e depois linchado. Na vida real, narrada pelo próprio Lula, ele diz: “Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça”.

Quando a biografia foi editada na Coreia do Sul, a tradutora passou alguns apertos. Ela não sabia como traduzir a passagem em que Lula fala sobre um costume dos meninos do sertão do seu tempo: a iniciação sexual com animais. A jovem Sophia Cho, que além de terminar a tradução acertava os últimos preparativos de seu casamento, ficou ruborizada. “Ainda que tenhamos permitido a aparição da primeira cantora transexual na TV, senhorita Ja Ri Su, a Coreia continua muito fechada nesse aspecto”, explicou-me, quando a entrevistei. “Como traduzir isso para um país que pratica o confucionismo há 4 mil anos?” Sophia Cho e todos os sul-coreanos poderão assistir ao filme sem sobressaltos. A fita não ruborizaria nem o próprio Confúcio.

Luiz Carlos Barreto, o Barretão, já disse que fez o filme para ganhar dinheiro. Deve ter sido sincero. Mas se o momento histórico é propício para “ganhar dinheiro”, me parece difícil fazer um bom filme sobre um presidente da República que está no poder e iniciará 2010 como um recordista de popularidade. Será que existiriam empresários tão interessados em investir na cultura nacional se o filme mostrasse o jovem Lula anunciando que queria “comer” a futura primeira-dama do Brasil? O fato é que mesmo cineastas brilhantes poderiam derrapar na empreitada. E a cinebiografia do diretor, Fábio Barreto, infelizmente não o inclui nesta lista.

Já me foi dito também que a ideia não era fazer um filme para intelectuais e para críticos gostarem, mas para o povão. Bem, acho que o povo merece um filme bom. E filme bom necessariamente não implica inovações de linguagem ou voos intimistas. Só é preciso contar bem uma história. E nenhuma história é bem contada se o personagem principal não vive um único conflito em sua vida, se é contado apenas pelo que o enaltece, se é, portanto, inverossímil. É curiosa essa ideia de “filme para o povão”. Já a escutei como explicação para tudo – de programas de TV de baixo nível a filmes ruins. Subestimar a inteligência e a sensibilidade do povo brasileiro me parece não só falta de respeito, mas arrogância.

Compreendo, é claro, que o filme é “bom” para muita gente, em vários aspectos que nada têm a ver com cinema. Nesse sentido, o que vai acontecer a partir do lançamento poderá render um outro filme no futuro. Nunca antes na história deste país um presidente teve a chance de poder assistir a um filme sobre sua vida refestelado na poltrona do cinema do palácio do Alvorada. Na condição de observadores da história em movimento, vale a pena acompanharmos de perto o efeito dessa monumental obra de propaganda e construção de imagem. É, sem dúvida, um capítulo novo.

Como brasileira que gosta de cinema e de boas histórias, ao contrário de alguns críticos, eu gostaria de assistir a um filme sobre a vida do Lula. Não agora, mas num momento em que Lula não estivesse tentando fazer seu sucessor na presidência. Um bom filme, que não fizesse dele nem um super-homem nem um santo nem um cara sem sal. Espero que algum cineasta de talento encare essa empreitada daqui uns anos.

Ao transformar Lula nesse cara que não faz nada errado, sequestra-se da história de todos nós um patrimônio fundamental da eleição de Lula para presidente do Brasil: a identificação que a maioria dos brasileiros pobres tem com a trajetória de Lula. Todos nós, mortais, erramos, temos conflitos, somos contraditórios, falamos besteira, derrapamos em covardias, nos arrependemos de muita ou pouca coisa. A identificação de um número significativo de brasileiros com Lula, em parte, se dá por essa certeza de que Lula poderia estar sentado na mesa de bar com cada um, tomando uma, falando de futebol ou de mulher ou jogando truco. Mas também pela possibilidade que ele representa na vida de cada um de superar a pobreza em um país tão desigual e se transformar em presidente com tudo o que é. Quando Lula se transforma em um predestinado, caso do personagem do filme, esse rico patrimônio simbólico se perde.

Prefiro o Lula que disse à Denise Paraná, que acabou assinando o filme como co-roteirista, quando ela pergunta a ele se acredita ter algum tipo de “inteligência especial”: “Eu não me considero burro, tenho clareza de que não sou burro. Agora, que eu não tenho nada de especial, isso eu não tenho. Não tenho, não tenho nenhuma inteligência especial. Eu apenas sei utilizar a minha”.

O maior defeito do filme com estreia prevista para 1º de janeiro, me parece, é não estar à altura da história. Nem à altura do homem. Lula, o filho de dona Lindu, é bem mais fascinante do que Lula, o filho do Barretão.

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Me pergunto se hoje Lula repetiria o pedido feito à sua biógrafa, de contar uma história real, que não lhe puxasse o saco nem lhe sacaneasse, que não o transformasse em santo ou super-herói. Ousaria arriscar que não. Minha hipótese, infelizmente, é de que depois de sete anos no poder, Lula passou a acreditar que é um pouco dos dois, santo e super-herói. E gosta mais do que seria prudente que todos lhe puxem o saco.

Como todo mundo, eu gosto de estar certa. Mas, seria bem melhor para mim e para todos os brasileiros, especialmente para Lula, que eu esteja errada.

(Publicado na Revista Época em 28/12/2009)

Escolha o final

Mesmo nas histórias reais, a verdade nunca é simples

É curioso como acordamos com a ilusão de que sabemos o que vai acontecer. Numa manhã, dias atrás, eu tinha uma série de compromissos encadeados numa série que acabaria só tarde da noite. A parte leve do meu dia era um pit stop para fazer as unhas no salão aonde vou sábado sim, sábado não. Eu tinha acabado de superar o dilema feminino de escolher o esmalte, depois de oscilar entre cores e nomes que só os esmaltes são capazes de ter: Atrevida, Maçã, Paixão e Canoa. De repente, essa rotina segura foi rompida por um grito.

“A mulher está desmaiando”, gritou Elis, a moça que tinge, lava e seca os cabelos. Pela cortina, eu só vi as costas de uma mulher grande, sentada no banco diante da calçada, na Vila Madalena, em São Paulo. Ciça, a dona do salão, amparava o seu corpo. Tatiane, a recepcionista, correu a buscar um copo d’água. Rose, a manicure, arriscou um diagnóstico: “Pressão baixa”. Voltei a ler. A moça estava sendo cuidada. Eu tentava recuperar a palavra interrompida na página do jornal quando ela começou a falar.

O desespero na sua voz alcançou as cutículas da minha alma. Eu não entendia o que ela dizia, só escutava o desamparo. Pela cortina, via seus ombros sacudirem-se num choro convulso. Na porta, Tatiane narrava o que ouvia. Sua história vinha aos soluços, como no twitter. “O marido morreu”. “Ela saiu às 4h da manhã de casa”. “Foi despejada porque não tinha o dinheiro do aluguel”. “Deixou os filhos e suas coisas debaixo de uma árvore e veio procurar trabalho”. “O filho mais velho tem 12 anos e ficou chorando”. “Ela tem gêmeos de nove meses que amamenta”. “A vizinha ficou olhando os filhos”. “Ela está com fome”. “Ela está desesperada”.

No lado de dentro, nós éramos mulheres fazendo as unhas, tingindo e cortando os cabelos, num espaço do feminino distante do feminino dela. A dor da mulher entrava pela porta daquele santuário em que vivíamos nossas delicadezas no meio de uma cidade bruta. Cada uma com problemas que nos tentaculavam como polvos.

Algumas de nós cravaram os olhos em suas revistas de celebridades. Não porque fossem indiferentes ao drama, mas porque era dolorido demais entrar em contato. Tentavam se convencer de que aquilo não estava acontecendo. Se ficassem bem concentradas na polêmica sobre o vestido curto de Juliana Paes na cerimônia do Emmy, a voz terrível do lado de fora acabaria se calando. Uma delas nem percebeu que a revista estava de cabeça para baixo.

A certa altura, todas nós chorávamos. Uma mistura de compaixão e vergonha. Não por chorar, mas por não saber o que fazer. Éramos mulheres que davam duro para ganhar a vida e às vezes nos escondíamos ali para ficar bonitas. Fugíamos não só de nossas unhas roídas, mas da feiúra do mundo. E lá estava ela, à porta de nosso pequeno e frágil universo, chorando de fome e desespero. Cadê os seguranças, as cercas eletrificadas, o porteiro eletrônico, os vidros com insulfilm para nos proteger do desamparo alheio? Não havia.

Com braços espichados, pernas no colo da manicure, eu era um retrato patético da impotência. Depois de alguns minutos eternos consegui romper meu imobilismo. “Tati, quanto é o aluguel dela?”. Tati correu para fora. Voltou. “É cem reais.” A dona do salão ofereceu a ela um emprego em sua casa. Dei a ela o dinheiro do aluguel, para que pudesse reorganizar a vida e voltar a trabalhar.

A mulher quis entrar para me conhecer. O desamparo agora tinha corpo. Era negra, grande, os seios fartos de leite. O conjunto azul de saia e blusa revelava sua tentativa de estar apresentável para bater de porta em porta em busca de um emprego. Sempre me comovi com estes pequenos detalhes. O vestido puído, mas limpo, o paletó curto nas mangas, os sem-tetos que lavam as roupas nos parques para vesti-las embaixo de viadutos imundos.

Nos abraçamos ali, entre escovas, esmaltes e secadores de cabelo. Descobri que eu precisava tanto daquele abraço quanto ela. Duas estranhas abraçadas, cada uma com o nariz enfiado no pescoço da outra, misturando o sal das nossas lágrimas e do nosso suor. Duas mulheres em posições sociais diferentes, mas que se reconheciam no desamparo. Sem cercas para nos apartar, nos enxergávamos.

Quando percebi, eu dizia coisas para ela como: “A vida às vezes é bem dura, mas passa”. Ou: “Come antes de pegar o ônibus para não desmaiar”. Ou ainda: “Paga o aluguel, cuida dos teus filhos e depois volta”. Soube então que seu nome era Eliane. Éramos duas Elianes chorando abraçadas pela dor de ser mulher num mundo tão assustador.

Não era esmola o que dei ali. Nem era esmola o que ela aceitou. Era algo que nos igualava, que permitia que nos abraçássemos e chorássemos juntas. Ela achava que Deus tinha guiado os seus passos. “Eu ia por uma rua, mas Deus me mandou ir por outra”, disse ela. Já eu acredito mais nos pequenos milagres humanos. E acredito que eles acontecem quando vencemos nosso medo e nos reconhecemos nos olhos do outro. Toda violência, acho eu, começa quando deixamos de nos enxergar, erguendo – também literalmente – muros entre nós. Apartados uns dos outros, é óbvio que quando nos encontramos não há reconhecimento, só desconfiança.

Não foi por acaso que ela desabou naquela porta. O salão tem porta para a calçada e um banco onde é possível sentar. Sua arquitetura acolhe, não afasta. Deve ter sido o único banco que Eliane encontrou nos muitos quarteirões por onde andou arrastando a sua dor. Naquele mundo de mulheres ela chegou como estrangeira. Mas suas palavras foram ecoando em cada uma de nós, até que ultrapassaram a soleira da porta junto com ela. Ela então se tornou uma de nós, mulheres tentando desenredar a vida.

Salões de beleza, seja nos bairros nobres ou nas favelas, são universos onde os dramas do mundo feminino se desenrolam. Há uma força poderosa nesse desejo de se embelezar. Somos todas muito parecidas com os pés nus estendidos no colo de outra mulher. Essa trama delicada é tema de um filme bonito que está nas locadoras chamado Caramelo (Nadine Labaki, 2007).

Nele, as vidas de cinco mulheres se entrelaçam num salão de beleza de Beirute, no Líbano. Layale, amante de um homem casado, sonha com o dia em que ele vai se separar para ficar com ela; Nisrine está de casamento marcado, mas não é mais virgem e não sabe como contar isso ao noivo muçulmano; Rima sente atração por mulheres; Jamale tem medo de envelhecer; e Rose cuida da irmã mais velha.

Me senti num filme real naquele final de manhã. Um filme só de mulheres. Quando a outra Eliane partiu, ficamos fungando em silêncio. E Rose terminou de pintar minhas unhas com esmalte Maçã.

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Eliane deveria voltar na terça-feira seguinte para começar a trabalhar na casa da dona do salão. Nunca apareceu.

O que teria acontecido? O final desta história não é simples.

A terça-feira em que ela deveria voltar, 8 de dezembro, foi o dia em que São Paulo parou por causa da chuva. Eliane disse que morava nos confins da Zona Leste. Teria ela sido acossada pela chuva? Ou alguma de suas crianças? Como acontece a cada ano, dezenas morrem de algo tão previsível quanto a chuva no estado mais rico do país. Só naquela terça-feira morreram pelo menos seis na Grande São Paulo. E centenas ficaram desabrigadas.

Fico de olho nas notícias sobre os mortos, mas até agora não encontrei ninguém com suas características. Ela pode estar ferida, o barraco pode ter desabado, um filho pode ter ficado doente. Ela não deixou nenhum endereço. Ficou apenas de voltar com certeza.

Ou seria um golpe? Aceitando essa hipótese plausível, teríamos nós, escoladas moradores da metrópole, caído numa velha pantomina. A favor de nós, para que nos sintamos um pouco menos idiotas, pode-se dizer que ela era uma grande atriz. Sim, porque estava gelada, suava frio, tremia muito e chorava lágrimas copiosas.

Há outras possibilidades. De que ela estivesse mesmo desesperada e com fome, mas precisou contar uma história mais trágica para nos sensibilizar. Ou ainda, que estivesse em síndrome de abstinência de algum tipo de droga, o que explicaria o quase desmaio, os tremores e o suor frio. Mas ninguém lhe daria dinheiro para comprar crack, por exemplo, se falasse a verdade. Neste caso, o desespero seria real, o motivo mentira.

A verdade nunca é fácil nem está toda no mesmo lugar.

Quando fazemos reportagens, precisamos duvidar de tudo. Vamos a todos os lugares, falamos com todos os envolvidos, checamos os documentos, ouvimos o contraditório e relatamos o que encontramos, para que os leitores possam chegar a suas próprias conclusões. Mas, na vida cotidiana, não temos esse tempo. As escolhas, em geral, precisam ser rápidas. Estender ou não a mão a alguém que pede ajuda?

Não há certezas. E, na dúvida, qual é o final que prefiro para esta história?

Por um lado, gostaria de não ter caído num golpe. Ninguém gosta de se sentir idiota. Por outro, se não era um golpe, ela pode estar morta ou ferida o suficiente para não poder ligar pedindo ajuda. Isso seria bem pior, obviamente. Por paradoxal que seja, o melhor é ter sido vítima de um golpe e feito um papel ridículo.

Possivelmente nunca saberei a verdade dela. Mas é importante conhecer a minha verdade. A pergunta que importa agora é: o que eu faria se algo assim acontecesse novamente?

Eu faria o mesmo.

Pertenço à parcela das pessoas que prefere deixar a porta aberta a se trancar atrás dela. Sempre há um risco de entrar um golpista pela porta, mas por ela também entra quem precisa de um colo, entra o novo e até o extraordinário. É uma convicção profunda que me move pela vida. E espero sempre ser capaz de escolher este final para a minha história.

(Publicado na Revista Época em 21/12/2009)

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