À espera do assassino

Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala

ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO (TEXTO)
MAURILO CLARETO (FOTOS)

Revista Época, 25/11/2005 – 11:39 | EDIÇÃO Nº 393

MARCADA PARA MORRER
Maria de Fátima da Silva Nunes, a Santa, de Castelo de Sonhos, Pará, conta como é viver na mira de pistoleiros

‘Posso ser assassinada a qualquer momento. Quando eu abro uma porta, já espero receber um tiro. Tem gente que diz que sabe como é viver jurado de morte. Mas não sabe.  Estar marcada para morrer é viver sem sonho, é só ter momento. É não ter mais casa nem paradeiro, é não ser mais ninguém. É dizer para quem anda contigo que é para não andar mais porque vai morrer. É marcar os amigos de morte também e depois se sentir culpada. É uma sensação tão ruim. Parece que as luzes vão se apagando, que o mundo vai ficando escuro. Nem sinto mais saudade da vida porque não acho bonito nada. É bonito, mas eu é que não acho bonito. Tenho pavor da noite desde pequena. E agora, que virei uma fugitiva, tenho de andar no escuro, pelo meio do mato. Quando durmo, só sonho com defunto. Decidi uma coisa. Quando a máfia de Castelo de Sonhos me pegar, sei que vão me torturar. Mas eu vou fazer o possível e o impossível para não gritar. E não vou pedir misericórdia. Falam aqui que eu já estou morta, só falta cair. É isso. Ser jurada de morte é começar a ser assassinada ainda na vida.’

Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado. Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A tiros.

Santa – ou Maria de Fátima da Silva Nunes – pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília – ou Bartolomeu Morais da Silva -, foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.

O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório ‘Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense’, preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca ä no Brasil em dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos – e apenas três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez anos foram presos 607 camponeses.

Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tê-la ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.

Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas ä quem já cercou seu latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.

O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. ‘No meu castelo de sonhos você é a rainha…’ Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.

Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck tê-lo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio. Partiu como Márcio, voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.

Um consórcio de fazendeiros conhecido como ‘a Máfia de Castelo’assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas. A média de cada propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares – o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife somados. A maioria é mantida – e expandida – por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o chefe. ‘Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular’, conta um deles (leia a entrevista na pág. 102).

Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher, cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para ser sacada diante de uma denúncia. O ‘serviço’ foi encomendado a pelo menos três pistoleiros – e recusado. Quando ele foi assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.

Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para botá-los atrás das grades. ‘Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo’, diz. O último recado foi de que lhe cortariam a língua.

Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. ‘Devia um favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar’, anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o
que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. ‘Senti um gelo dentro do coração’, conta ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: ‘Matei 150. Já posso morrer feliz’.

Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca, desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro. ‘É, sumiu. Outro mistério’, comenta Leo Reck. ‘Se sumiu, outros vão poder viver.’ A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica: ‘Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo’.

Matador assalariado

Pistoleiro conta como, para quem e por que matou 16 pessoas em Castelo de Sonhos e em Mato Grosso. Hoje ele é caçado por matadores de fora da região para não abrir a boca

VÍTIMAS O pistoleiro confessou ter matado os dois trabalhadores abaixo

VÍTIMAS O pistoleiro
confessou ter matado os dois
trabalhadores abaixo

Os fazendeiros citados pelo matador de aluguel em entrevista gravada coincidem com os denunciados no relatório ‘Violação de Direitos Humanos no Pará’ como mandantes de crimes. Seus nomes também constam em inquérito policial como membros do consórcio que ordenou a execução de Bartolomeu Dias Morais, o Brasília. Um deles, Fiorindo Minosso, disse a ÉPOCA que ‘é tudo mentira, isso não tem pé nem cabeça’. Confira:

ÉPOCA – Como começou a matar?
Pistoleiro – Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba nas fazendas.

ÉPOCA – O que é guaxeba?
Pistoleiro – É a polícia dos fazendeiros.

ÉPOCA – Para quais fazendeiros trabalhou?
Pistoleiro – Trabalhei na fazenda Tigre (hoje em processo de desocupação pelo Incra). E também para o Maneca (preso como mandante da morte de Brasília) e para o Fiorindo Minosso. O resto foi particular.

ÉPOCA – Como é particular?
Pistoleiro – 50 gramas de ouro por cabeça.

ÉPOCA – Os fazendeiros pagam por morte?
Pistoleiro – Por mês. Uma humilhação. Me pagavam R$ 800.

ÉPOCA – Como é que funciona?
Pistoleiro – O fazendeiro passa a ordem pro chefe dos guaxebas e ele passa pra gente. A gente fica de olho para não invadirem as terras. Se aparecer na picada, é pra atirar e esconder o corpo. A gente pede aumento mas eles não dão. É só aquele valor no fim do mês, tanto faz matar como não matar.

ÉPOCA – E o que você fez com os corpos?
Pistoleiro – Eu carregava pro mato e enterrava. Quando tinha rio grande jogava dentro. Em Matupá (MT) enterrei um atrás do cemitério. Outros joguei debaixo da ponte do Rio Peixoto. Enterrei uns pra frente da sede do Panquinha, em Castelo, mas esses a Polícia Federal já achou. Numa estradinha que vai pra fazenda de um rapaz por nome Toninho tem mais quatro corpos no mato de umas pessoas que queriam a terra do Maneca. Os dois do Minosso foi o chefe dos guaxebas dele, Hamilton, que consumiu. Não sei onde tão.

ÉPOCA – E os da Tigre?
Pistoleiro – Eles tavam no movimento dos sem-terra. Foi o seu Antonio e um outro que tinha apelido Rabo de Couro. Gostava de usar aqueles chapeuzinhos porque veio do Ceará. Mas esse foi por acaso. A espingarda tava destravada e quando eu pulei da caminhonete disparou. Era só para tirar ele de lá, mas o chumbo pegou na garganta.

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro

ÉPOCA – Quantos trabalhadores você matou porque queriam fazer acerto?
Pistoleiro – Quatro.

ÉPOCA – O que sentia quando matava?
Pistoleiro – Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu lembro até hoje.

ÉPOCA – Você fazia alguma marca?
Pistoleiro – Só virava de peito pra cima e pulava duas vezes o corpo antes de ir embora. Superstição da gente pra não ser pego.

ÉPOCA – Já foi pego?
Pistoleiro – Graças a Deus só uma vez. Fui condenado a 16 anos, mas vendi tudo o que eu tinha, paguei R$ 72 mil pro advogado e pro juiz e saí. Estou na condicional.

ÉPOCA – Os pistoleiros de Castelo estão sendo eliminados. O que você vai fazer?
Pistoleiro – Vou embora, mas não posso falar nem onde nem quando. Minha história por aqui acaba. Não sei se tem continuação.

RETRATO DE UM FUNDADOR
Quem é o homem que construiu uma cidade na Amazônia

LILO EPOCA2Aos 70 anos, Leo Reck (foto), o fundador de Castelo de Sonhos, vive hoje a segunda fase da colonização do lugarejo aonde chegou em 1975. A convite, como diz, do governo militar, que o exortou a ‘integrar para não entregar’. Leo Reck precisa limpar a biografia para que no futuro, quando o distrito virar cidade, possa ter um busto na praça e uma história bonita para as crianças recitarem na escola em dias cívicos. A guerra entre Onça Branca, como era conhecido, e Rambo do Pará ficou para trás. ‘Cansei de recolher os corpos que Rambo deixava para enterrar. Larguei para os urubus’, conta. ‘Eu nunca matei ninguém e posso andar de cabeça erguida.’

Conversar com ele é como testemunhar a construção de um herói da pátria em tempo real. ‘Quando chegou o título provisório do Incra, descobri que me deram 180 hectares. Terra desse tamanho eu conseguia no Sul’, explica.’Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer uma cidade.’ E assim o velho Leo fez um traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil.Castelo de Sonhos, portanto, é uma cidade planejada. E só não é mais progressista, segundo ele, por causa do presidente Lula e da ministra Marina Silva, ‘que embargaram a Amazônia’. Refere-se à suspensão temporária da licença para corte de árvores na região da BR-163. ‘Não é porque morre algum aqui que atrapalha alguém. É aquele presidente comunista que atrapalha a gente’, destempera-se. ‘Seria bom demais se o governo não se metesse em Castelo de Sonhos.’

Leo Reck sente-se desrespeitado pela Polícia Federal, que passou a circular na Amazônia depois da execução da Irmã Dorothy Stang. Está habituado a outro tipo de lei: ‘Polícia aqui é o dinheiro. Se compra soldado por R$ 200, tenente um pouco mais. Uma morte aqui custa R$ 500’. Não se conforma: ‘Agora nos chamam de grileiros. Mas eu sou é desbravador. Tenho coragem agora, com a idade que tô, de ir lá para as bandas do Rio Negro, pegar uma motossera e plantar uma roça’. Depois de explicar que nos velhos tempos jornalistas viravam comida de urubu ou eram atiradas de aviões com as mãos amarradas, Leo Reck irrita-se com o gravador: ‘Desliga essa porra!’.

LEI TRABALHISTA
Paraguai insistiu demais para receber o pagamento
O atestado de óbito de Félix Gonçalves é uma ironia que ilustra a lei trabalhista em Castelo de Sonhos – e na Amazônia. Causa mortis: ‘Acidente de trabalho’. Apesar de a árvore que o matou ter conseguido decepar o tampo de sua cabeça com o exato formato de um golpe de facão, não deixa de fazer sentido. É costume na região esse tipo de acidente profissional. Quando o trabalhador insiste para ‘fazer acerto’, ou seja, receber o combinado, costuma morrer por justa causa. Conforme a viúva, Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu o pagamento de uma ponte que fez para a subprefeitura de Castelo. ‘O Leo Reck botou um pistoleiro ao lado do caixão e pressionou tanto para enterrar rápido que não deu tempo de todas as filhas se despedirem do pai’, conta.

BEM-VINDO A CASTELO DE SONHOS
Como a família Branger descobriu o Brasil da pistolagem

LILO EPOCA3
Eles não tinham nenhuma ideia sobre como as coisas funcionavam. A chegada da família Branger (foto) a Castelo de Sonhos foi um encontro entre dois mundos. ‘Quando meu marido falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me encantei’, conta Maria Palmira Branger, a Preta. ‘Todo mundo tem um sonho. O do meu marido era uma fazenda. Meus filhos precisavam de espaço. Pensamos que era um lugar que estava começando e precisava de gente com estudo.’ Deixaram Florianópolis em agosto de 2003 seguindo o conselho de um cunhado que vivia em Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes de terra onde plantava cebola e alho, Preta fechou as portas de uma confecção e os filhos trancaram a universidade. Partiam para a conquista tardia da Amazônia.

Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém acabou, na divisa de Mato Grosso com o Pará, Preta começou a chorar. ‘Era só mato. Eu não queria nem deixar o caminhão de mudanças descarregar’, lembra. Mas deixou. Nunca mais esqueceria desse momento-limite. Um ano depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou o filho caçula, Cledson, estudante de Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco atirado na estrada que os levou a Castelo de Sonhos. O corpo ainda estava quente. Cledson havia sido torturado por 24 horas antes de ser morto. O principal suspeito do crime é Emerson Minosso, filho de um dos maiores grileiros da região, Fiorindo Minosso. Tinham se tornado amigos. Cledson foi atirado dentro de uma mangueira com um touro bravo. Quando tentava sair era devolvido ao suplício. Quase não tinha pele nas costas. Cada centímetro do corpo estava roxo. Os ossos estavam quebrados. Dentro da boca carregava seus genitais. O tiro no ouvido direito foi apenas uma garantia do fim do belo menino de praia que havia se tornado o galã do faroeste.

A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde o dia anterior. ‘Primeiro o tenente falou que tinha de esperar 24 horas. Depois que precisavam fazer a segurança do rodeio. Na madrugada do domingo, disse que necessitavam dormir, mais tarde que tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a gritar. Só depois descobri que ele levou R$ 40 mil para não fazer nada enquanto meu filho era torturado e morto’, conta Preta. ‘A polícia eliminou os vestígios. Tinha carne debaixo das unhas dele, porque lutou. Não sobrou nada para identificar. Encontramos as roupas queimando no lixão.’

Emerson Minosso tentou entrar no velório, mas foi escorraçado. Mostrou a arma. Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por mais três dias. Quando teve a prisão preventiva decretada, já estava longe. Seu pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo mentira.

Várias versões circulam em Castelo de Sonhos para explicar o crime. Em uma delas, Emerson teve ciúme porque sua ex-namorada se interessou pela vítima. Em outra, a morte seria uma estratégia para que a família vendesse a terra por preço baixo e voltasse para onde veio. Nos dias posteriores os Brangers encontraram pistoleiros patrulhando a divisa entre as fazendas. ‘Fui aprender o que significava cada morte aqui’, conta Preta. ‘Me explicaram que quando jogam na estrada é para calar a boca porque estão agindo.’

Quando sepultava o filho, um matador sussurrou no ouvido de Zulmar: ‘Você quer que eu faça o serviço?’. Outros dois fizeram a mesma proposta. Ele recusou. Velou o filho no Dia dos Pais. ‘O corretor falou que era um lugar calmo, seguro. Quando chegamos, nos primeiros 60 dias houve 40 mortes. No Brasil não tem pena de morte, mas aqui tem’, conta o pai. ‘Pensava que só matavam peão rodado e pistoleiro. Achei que não matassem gente de bem’, diz a mãe. ‘Vi gente degolada boiando no rio. Vi um pai ser morto na frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma bala atravessar o corpo de uma pessoa e atingir o de outra numa festa. Vi um corpo entupir uma bomba de sucção. Tinha pedras no lugar das vísceras’, relata Calebe, o irmão. ‘O que nunca vi neste lugar foi briga a socos.’

O que Cledson viu está sepultado com ele no cemitério de Castelo de Sonhos. A família Branger decidiu ficar. ‘Consegui uma fazenda’, explica o pai. ‘Ganho muito dinheiro aqui’, afirma o irmão. ‘Nós éramos patinhos. Não entendíamos nada. Agora, aquela coisa boazinha que tinha em mim acabou’, diz a mãe. Dias atrás ela viu Fiorindo Minosso na rua. Gritou: ‘Seu desgraçado. Como tem coragem de olhar para mim?’. Castelo de Sonhos é um lugar pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A família Branger aprendeu que nelas há dois tipos de pessoas: vítimas e assassinos.

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QUADRO EPOCA

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Freud e as fadas

Psicanalistas convocam personagens como Cinderela e Harry Potter para contar os conflitos de crianças e adultos de hoje

fadas diva capaDepois de comer um pouco de carne e beber do sangue da avó, Chapeuzinho Vermelho atendeu ao convite do lobo:

– Tire a roupa, minha filha, e venha para a cama comigo.

O striptease da menina é lento e completo. Passa pelo avental, pelo corpete e pelas meias. Ela joga cada peça no fogo porque o lobo lhe assegura que não precisará mais delas. Deitada com ele, a garota tem uma súbita vontade de urinar. O animal manda que faça na cama mesmo. Chapeuzinho recusa-se. O lobo permite então que ela vá, mas a amarra ao pé da cama com um cordão. Chapeuzinho consegue escapar e corre o mais rápido possível para casa.

Essa é a mais antiga versão para a clássica história contada até hoje para embalar o sono dos pequenos. Com o tempo, as passagens mais eróticas e perturbadoras, como canibalizar a doce avozinha, foram eliminadas. Era preciso atender às necessidades impostas pela moderna visão da infância, com sua exigência de inocência. Ainda que mais insossa, porém, Chapeuzinho Vermelho continua sendo ouvida com atenção por crianças que podem, no minuto seguinte, ligar a TV nos Power Rangers.

Por que histórias como essa sobreviveram? O que faz com que alguns contos de fadas permaneçam e outros pereçam? O que revelam sobre nós as partes eliminadas e as que subsistem? De que necessidade partem as transformações sofridas pelos personagens para se manter vivos, como a mãe má que vira madrasta e o pai cruel que se torna ogro? E, principalmente, o que Chapeuzinho, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria e tantos outros habitantes do mundo da fantasia desde os nossos tataravós têm a dizer ao cibernético século XXI? Essas são algumas das perguntas a que os psicanalistas gaúchos Diana e Mário Corso respondem na obra Fadas no Divã. O livro será lançado nesta segunda-feira na Livraria Cultura, em Porto Alegre.

A inspiração, como não poderia deixar de ser, veio da obra seminal do austríaco Bruno Bettelheim – Psicanálise dos Contos de Fada (1977). Diana e Mário, porém, vão além. Têm o mérito de não desprezar o que veio depois da tradição. Na segunda parte do livro, eles vão perguntar a Pinóquio e Peter Pan, Mafalda, Harry Potter e à Turma da Mônica, entre outros ”modernos”, sobre o que têm a dizer às crianças – e aos adultos – para ter conquistado o direito de perambular pelo milênio.

Casados há 21 anos, é como psicanalistas com duas décadas de clínica, mas também como pais, que Diana e Mário se lançam nessa jornada. E pais contadores de histórias – as da tradição, as da modernidade e as próprias. As filhas, Laura e Júlia, hoje são adolescentes. É possível dizer que o livro começou a ser gerado junto com elas – embora só tenha sido escrito a quatro mãos nos últimos três anos.

Um capítulo, inclusive, é dedicado a um conto familiar: ”Vampi, o Vampiro Vegetariano”. Nele, Mário compartilha com os leitores a intimidade da construção de uma história com as filhas pequenas. É um dos momentos mais emocionantes do livro. Mostra a importância dos pais narradores – e criadores. Como diz a psicanalista Maria Rita Kehl no prefácio do livro, ”esses (pais) são capazes de tecer uma teia de sentido em torno das crianças, e ao mesmo tempo deixá-la incompleta para que continuem a tarefa de produzir o romance familiar apropriado a suas pequenas vidas”. Em ”Vampi”, Mário é generoso ao revelar como medos e conflitos de seu pequeno núcleo familiar foram sendo resolvidos na trama – ou como certas verdades se impuseram.

Era para ter sido, no máximo, efeito colateral. Aconteceu, porém, com a maioria dos que tiveram a chance de ler Fadas no Divã antes que desembarcasse nas livrarias. Ao abrir o livro não são as fadas que vão para o divã, mas o leitor. Mário brinca que é uma espécie de ”auto-ajuda psicanalítica”. Cada vez que pediam aos amigos uma crítica rigorosa, eles voltavam entusiasmados com as sacadas que – agarrados às tranças de Rapunzel ou debaixo da asa solitária do Patinho Feio – tiveram sobre sua própria história.

O livro vem com bula, basta escolher o caminho. Os autores sugerem dois modos de usar as 326 páginas: pela ordem original, se o leitor for movido por interesses acadêmicos, ou de forma aleatória, seguindo preferências literárias. Neste caso, pode ir e vir à vontade – e pular capítulos sem susto. A obra foi escrita para todo tipo de gente. Não é preciso ser iniciado em psicanálise – basta ter alguma vez parado diante do espelho mágico e…

”Fizemos o possível para entregar ao leitor o fio de Ariadne, para que o Minotauro da chatice não nos devore…”, dizem. Esse risco não há. Mas muitos outros estão à espreita do leitor a cada página virada.

Entrevista com os psicanalistas Diana e Mário Corso

ÉPOCA – Como vocês tiveram a ideia deste livro?
Diana Corso – A cultura infantil era o que mais consumíamos nos anos de infância de nossas meninas. Com o tempo fomos descobrindo que existia um grande vácuo sobre o assunto, buscávamos literatura e além de escassa, freqüentemente era coalhada de preconceitos. Quase tudo era qualificado de influência perniciosa, que tornava as crianças autômatos agressivos, imediatistas, simplórios e consumistas, enfim, verdadeiros monstros gestados no ventre de produtos culturais malignos. Aquilo não era o que víamos na prática. Nossas crianças, filhos, amigos e pacientes cresciam, brincavam, elaboravam seus pequenos dramas e se divertiam embaladas por todo tipo de fantasias, desde os clássicos contos de fadas, até os filmes da Disney, do maravilhoso Castelo Rá-Tim-Bum, aos programas trash da televisão. A ficção era uma chave para se expressar e interpretar o mundo.

Mário – A ficção que criamos e consumimos é eloquente, ilustrativa, de um tempo e sua gente. Interpretá-la é tentar compreender isso. Falando de livros, filmes e outros fenômenos da cultura contemporânea, podemos divulgar idéias psicanalíticas e principalmente pôr a teoria a trabalhar, testando sua capacidade de interpretar novos fenômenos. Acreditamos que uma teoria só sobreviverá se ela souber adaptar-se e deixar-se questionar pela época em que vive, por isso nos lançamos nesse desafio de conjugar a psicanálise no tempo presente.

ÉPOCA – O que está se oferecendo as crianças hoje é bom, então?
Mário – Nosso estudo é justamente para evitar respostas fáceis e taxativas, do tipo ‘está tudo perdido, não é como antigamente’. Estamos diante dum universo enorme e mal explorado. A conclusão parcial que chegamos é que não devemos nos alarmar tanto. Se quiséssemos apenas julgar, primeiro teríamos que definir o que é bom, e bom para quem? Nossa premissa de que as histórias infantis não prosperam se o que ela tem para oferecer não for o que serve ao seu público, portanto as histórias que se tornaram populares são as que vieram a calhar. Sendo assim, gostando ou não temos que prestar atenção naquilo que cai nas graças das crianças. É como aqueles malditos jingles que grudam, por vezes são terríveis, mas se fazem lembrar… Para nós o que importa é que a ficção possa ser apropriada pelas crianças para fazê-las pensar, para desequilibrar suas maneiras de entendimento e fazê-las ir adiante. Ou seja, que forneça elementos para soltar a sua imaginação e ao mesmo tempo dar forma a seus conflitos.

ÉPOCA – A falta de limites das crianças contemporâneas seria menos uma conseqüência dos programas de TV e dos jogos de computador e mais um problema de educação?
Diana – A gênese dos problemas da infância contemporânea não pode ser vista sem levar em conta a vida real das crianças. Fica mais fácil dizer que elas estão ficando individualistas, precocemente erotizadas e violentas por causa da programação da TV do que concluir o óbvio: que elas reproduzem o que vivem em casa e na rua. As crianças são filhas do seu tempo, é claro, mas principalmente de seus pais.

Mário – Ficar jogando a culpa na mídia, nos games e nas personagens infantis é algo que faz eco porque convém aos pais, que não querem parar para pensar sobre o que transmitem como valores. Além disso, não se deve desprezar o fato de que são as crianças e os jovens, com sua adesão e entusiasmo, que selecionam os produtos culturais que farão sucesso. O que formata o seu gosto e suas preferências senão as referências emocionais e culturais da sua família? Com o livro, queríamos também colocar as coisas em seus lugares e diluir essa caça às bruxas, alimentando o debate sobre o que estamos esperando da infância hoje.

ÉPOCA – E o que estamos esperando?
Diana – Que realizem nossos sonhos… só isso. Para tanto bastam coisas ‘simples’ como ser inteligentes, mas do tipo criativo, que inventa soluções e rompe com o estabelecido (consideramos a tradição uma carga); fortes como ninjas, mas sensíveis como Polyanna; amadas por todos e amantes atléticas, mas independentes de vínculos que fossem lhes limitar o voo. Para os nossos filhos é preciso ‘apenas’ almejar tudo sem abrir mão de nada! Não se estranha, então, que uma criaturinha de meio metro ache que pode com seus gritos e esperneios conseguir que lhe seja comprado o objeto que quer ou dado o alimento que escolheu ou se tornar o centro das atenções. Ela só estará sendo tão importante e grandiosa como queremos que ela seja. O que ninguém se dá conta é do óbvio, as crianças são extensões narcísicas de seus pais, estão aqui para redimir nossas falhas. Se não entendermos essa marca inicial, não vamos entender nada. Quando chegam aos consultórios os pais nos perguntam de que planeta veio essa criança que eles mesmos formataram.

ÉPOCA – Como selecionaram as histórias?
Diana – Quanto às histórias modernas e contemporâneas, o primeiro critério foi o de ter sido um sucesso consagrado junto às crianças. Parece-nos a melhor peneira: se as crianças gostaram, é porque elas têm algo a dizer. Era também necessário que a história trabalhada fosse significativa para nós, pois sem um envolvimento pessoal não conseguiríamos tecer as hipóteses psicanalíticas. Nem todas elas foram de igual intensidade para todos: algumas provieram da nossa infância, compartilhada com nossas filhas, como os contos de fadas e a Turma da Mônica; outras foram escolhidas a partir de descobertas feitas por elas, como é o caso do Ursinho Pooh, do Mágico de Oz e de Harry Potter. Claro que clássicos do século XX, como Pinóquio e Peter Pan, não poderiam ficar de fora. Era necessário também que as narrativas escolhidas possibilitassem uma leitura psicanalítica mais rica, que nos permitisse compreender quais fantasias se precipitavam ali e nos ocorresse um caminho para interpretá-las. Algumas personagens foram examinadas por serem nosso objeto de paixão adolescente, como Peanuts, Mafalda e Calvin & Hobbes, o que nos possibilitou falar da representação da infância contemporânea. Muitas vezes tivemos que escolher os casos mais exemplares e os roteiros mais sintéticos, essa é a razão pela qual João e o Pé de Feijão venceu a concorrência do Gato de Botas. O livro analisa um universo muito vasto de narrativas e cada capítulo funciona como um pequeno ensaio.

ÉPOCA – Como escreviam? A quatro mãos?
Diana – Escrevemos juntos há tanto tempo que não dá para saber direito quando foi que começou. Mesmo os textos que pertenceriam a apenas um de nós têm tanta influência e palpite do outro que acabam sendo de certa forma compartilhados. Há uma parte em que nos diferenciamos, pois cada um tem seus assuntos prediletos. Antropologia e mitologia, por exemplo, é território de conhecimento do Mário, enquanto eu fico incumbida do que diz respeito à psicologia infantil e identidade feminina. Mas isso é somente para o chute inicial, depois um assume o texto do outro, transforma-o, se apropria dele. Funciona mais ou menos como uma trova, na qual um retoma desde onde o outro deixou, numa disputa lúdica, cujo resultado é um texto cadenciado, onde um corrige os vícios do outro… ou se contamina com eles.

ÉPOCA – Como foi o processo de escrevê-lo? Houve participação das filhas?
Diana – Como escrevemos no tempo ‘livre’, pois nossa ocupação profissional é a clínica, o livro se incorporou totalmente à vida familiar. O tipo de pesquisa que fazíamos tinha um lado objetivo, que era o de ler muitos contos de fadas e obras teóricas de referência, assim como os livros originais das obras contemporâneas (como Peter Pan, Ursinho Pooh), mas tinha uma grande faceta emocional. As obras e contos que escolhemos para interpretar eram as significativas para nós e para as nossas filhas, portanto o trabalho era freqüentemente tema de discussão familiar, não somente com a Laura e a Júlia, mas também com as outras crianças e jovens que frequentam a casa. Elas liam originais dos textos e o que escrevíamos, muitas vezes foram autoras das hipóteses propostas, outras contribuíram com críticas e precisões sobre personagens e tramas. Ao longo dos últimos quatro anos, também nossos familiares e amigos queridos acabaram se resignando com o fato de que havíamos nos tornado uns chatos monotemáticos, e aceitaram nos ajudar com evocações, hipóteses e leituras.

Mário – Houve um momento muito prazeroso para mim, quando encontrei nas minhas filhas o mesmo interesse e envolvimento pela Turma da Mônica que tive na minha infância. Certamente o encontro das gerações enriqueceu o capítulo sobre a obra do Maurício, ao meu ver uma grande contribuição do Brasil para o universo infantil popular. Essas personagens são a princípio simples, previsíveis, basicamente cada uma tem uma característica e pronto. Seu universo, o Bairro do Limoeiro, é protegido como o da infância. É nessa redoma que as coisas se complicam: inveja, competitividade, medos, fantasia, dificuldade de se fazer compreender, e assim por diante. Além disso, nas características de cada personagem estão retratados aspectos essenciais das crianças: as fobias do Cascão, tão corriqueiras, a onipotência da Mônica, tanto maior quanto se é menor, a voracidade da Magali (e seu antônimo, o Dudu), a guerra dos sexos do Cebolinha. A leveza do cenário e principalmente o humor, permitem que pequenos dramas sejam encenados.

ÉPOCA – Empacaram em algumas histórias?
Diana – Nem sempre o processo fluía. Houve histórias que pareciam estar prontas no teclado, enquanto outras se revelavam um osso duro de roer. Cinderela, por exemplo, que nos convocava a falar de conceitos psicanalíticos impopulares e difíceis de explicar, tornou-se uma odisseia. Outras nos venciam pela complexidade e riqueza do texto, como foi o caso de Peter Pan. Houve também partes muito divertidas: quando escrevemos o capítulo dedicado aos personagens das histórias em quadrinhos, Mafalda, Calvin e Charlie Brown (um humor para gente crescida, mas com personagens crianças) tínhamos ‘razões científicas’ para ler quadrinhos durante horas a fio, às gargalhadas, assim como para comprar coleções completas de nossas histórias preferidas.

ÉPOCA – O que aconteceu com Cinderela? Que conceitos impopulares eram esses?
Diana – Cinderela é uma história que é simples mas condensa vários níveis de significações. Por exemplo: pensar o fetichismo é incontornável, afinal, ela é lembrada por seu pé delicado. Embora seja uma história ‘de mulherzinha’, ela também é a chave para entendermos a erótica masculina: faz parte do desejo dos homens apegar-se a um traço, uma cor de cabelo, um pé bonito, um par de seios, de nádegas, para se interessar por uma mulher, sem esse atributo, nada feito… Além disso, é uma princesa que tem seu lado ‘sujo’ de Borralheira e sua aparência deslumbrante no baile, sabe ser princesa e ‘vagabunda’, como bem cabe ao jogo erótico. Como se não bastasse, ela é mestre no jogo da sedução, é uma mascarada que encanta e foge, e várias vezes. Isso sem falar nas rivalidades fraternas e na dupla face da mãe: a fada madrinha e a madrasta. Por isso agrada a tantos, mas foi um osso explicá-la.

ÉPOCA – Vocês escrevem que os contos iluminam cantos escuros. Quais são as histórias preferidas de cada um de vocês e por quê?
Mário – Eu não sou muito original. A história que me comovia, na minha memória um conto de terror, era o Patinho Feio. É uma história para todos, a melhor tradução para o desamparo infantil, da sensação de insignificância que temos para o com mundo. Nunca me tornei belo, mas a sensação de desamparo eu já seguro melhor.

Diana – Quando era bem pequena minha personagem predileta era a Branca de Neve. Aliás houve um período em que eu exigia que me chamassem assim, tão identificada eu estava com a personagem. Certamente a fonte de tanta empatia era sua condição de órfã desamparada, pois eu perdi meu pai muito cedo e meu padrasto demorou seis anos para chegar. Mais tarde, era o jogo de esconde-esconde da Cinderela com seu príncipe, assim como a apoteótica revelação da sua identidade secreta o que mais me excitava. Na contramão desse gosto está meu desgosto, por Pinóquio, com cujas trapalhadas sempre me identifiquei e sofri junto. Por isso é uma história significativa, tanto que me é quase insuportável.

ÉPOCA – Qual é a origem da maioria dos contos de fadas que sobreviveu até hoje? De onde eles vêm, já que não vêm das fadas?
Mário – Os contos de fada são, com poucas modificações, oriundo dos contos folclóricos, também chamados ‘Contos Maravilhosos’. Já a origem desses se perde no tempo. Existe um grande desafio nunca respondido pela Antropologia: por que os contos folclóricos se parecem, considerando culturas distintas e muitas vezes isoladas? Talvez a única explicação seja uma origem comum remotíssima, de quando a cultura humana ainda não havia se diversificado tanto. Já outros autores, como Mircea Eliade, por exemplo, acreditam que esses contos são restos, cacos, de antigos mitos, agora dessacralizados. Enquanto gênero, os contos de fada por vezes se aproximam das fábulas, às quais também são histórias curtas, em que os deuses estão geralmente ausentes. Não fazem parte de um todo maior, uma cosmogonia, como os mitos, e tentam passar uma sabedoria. Os contos e as fábulas se opõe aos mitos e às sagas, pois embora estes últimos possam ser também histórias curtas, eles constituem sempre uma peça de um grande painel. Nas fábulas, a moral da história é o fecho e é explicitada, enquanto nos contos de fada isso fica diluído e nem sempre há exatamente uma moral, o mais importante é um desfecho resolutivo.

ÉPOCA – Como foi, usando as palavras de vocês, ‘que esses restos do passado vieram parar nas mãos das crianças de hoje’? O que faz com que sobrevivam? Ou por que ainda ecoam em nós?
Mário – Evidentemente que a sociedade contemporânea tem pouca semelhança com a de nossos tataravôs, não somente no sentido da tecnologia, mas também da vida privada. É do lado das mulheres e das crianças que as grandes modificações se processaram, no sentido da libertação das primeiras e da valorização das segundas. Na realidade, em nossos sonhos utópicos, desejávamos modificar ainda mais, libertando-nos do casamento e da família enquanto núcleo de poder e neurose. Não deu. Com o passar dos anos, terminamos por consolidar ainda mais os vínculos entre pais e filhos, já que a família deixou de ser grande e cheia de ramificações, reduzindo-se a um pingo de gente presa num apartamento. Com o casamento ocorreu o mesmo, pois ele se tornou a grande tábua de salvação contra a solidão e o desenraizamento que sentimos. Não importa que não dure, continuamos casando compulsivamente. Os contos de fadas se prestam para retratar dramas íntimos de forma metafórica: sair de casa, expulsa pela madrasta, enfrentar um ogro, encontrar no amor a solução de todos os males, travar uma luta mortífera com figuras poderosas e aventurar-se na floresta, correr o risco de virar iguaria de uma bruxa canibal. Tudo isso são absurdos que, por incrível que pareça, podem ilustrar nossos conflitos inconscientes. Se outrora os contos folclóricos narraram de forma fantástica questões relativas à sexualidade e aos problemas de filiação, hierarquia e herança, hoje, trazidos para a intimidade doméstica, alguns desses relatos servem para finalidades similares. O mundo pode ter mudado totalmente, mas tornar-se mulher ou homem, assim como enfrentar o crescimento e a morte ainda são nossos problemas. No que diz respeito a certas questões, tudo mudou… para que pudesse continuar do mesmo jeito.

ÉPOCA – Os contos de fadas são muito mais antigos que a visão moderna de infância, datada do século XIX. Eles se tornaram infantis apenas quando o conceito de infância muda?
Diana – De fato, os contos de fadas e a magia sobraram para as crianças quando passaram a ser pensadas enquanto seres humanos em construção e sua fragilidade foi reconhecida. Concomitantemente, a sociedade promoveu a racionalidade enquanto sua maior aquisição. A elas, seres incompletos, coube a identificação com o que restava em nós de primitivo, algo que se acreditava que seria superado com tempo e pedagogia. Mas, apesar da queda da Bastilha, ainda crescemos em um reino, embora reduzido a alguns poucos metros, com seus reis e súditos. Hoje os pais estão mais para monarcas apavorados e inseguros do que para déspotas esclarecidos. Porém, para seus filhos pequenos ainda são figuras enormes e poderosas, não é de surpreender então que as crianças tenham se apropriado, e que os adultos tenham promovido isso, dos restos de um passado socialmente distinto, mas psicologicamente evocativo. É a insegurança infantil da infância que promove os pais a essas encarnações monárquicas: quanto menores somos, maiores terão que ser nossas figuras protetoras, quer seja pela sua nobreza ou pelos super-poderes. Na modernidade não foram só as crianças que mudaram, que ganharam legitimidade e atenção especial, os adultos também são outros. A elas ainda é reconhecido o direito à dependência e à incompletude, enquanto aos adultos, criados no seio do individualismo racionalista e empreendedor, nada deve restar de identificação com os assustados camponeses e sua visão mágica do mundo. Tudo balela: a almejada auto-suficiência e o pensamento científico são constantemente derrotados pelo sonho do amor romântico, assim como crescentes ondas de misticismo tomam conta de tudo. A sociedade contemporânea se infantiliza cada vez mais, e uma das razões é o fato de que o direito ao pensamento mágico ficou teoricamente reduzido à infância. No fundo, nunca crescemos tanto quanto gostaríamos.

ÉPOCA – O que fez com que alguns contos sobrevivessem e outros perecessem? Ou pelo menos parte deles?
Diana – Em primeiro lugar é preciso entender que os contos de fadas são como um caleidoscópio, onde peças se combinam de formas diversas para formar desenhos diferentes. Ler coletâneas de contos folclóricos das diversas origens é surpreendente, pois muitas histórias revelam-se versões, repetições ou combinatórias das nossas clássicas conhecidas. Provavelmente, as sobreviventes foram aquelas que apresentaram as melhores sínteses, o que ajudou com que caíssem nas graças de alguns dos responsáveis pelas versões consagradas, como Perrault ou os irmãos Grimm. Foram estes os maiores responsáveis pelas versões que hoje utilizamos, graças ao seu esforço de adaptação das histórias folclóricas à moral e estética de seu tempo. Justamente do trabalho de encaixe destes narradores é que provém a maior parte das censuras, de histórias ou de partes delas, assim como as distorções.

ÉPOCA – Alguns exemplos…
Diana – No final do século XVII, Perrault contou uma Bela Adormecida que é deixada em seu castelo enfeitiçado com a criadagem, mas sem a companhia de seus pais, os quais devem se resignar a que o tempo do despertar da filha já não será o de seu reino. O príncipe que a desperta envolve-se com ela em uma relação de amantes, que se mantém clandestina por dois anos e somente será assumida após a morte do pai do moço, quando ele precisa fazer aparecer sua rainha. Porém, do lado de fora do castelo da Bela quem a espera é a sogra, uma ogra que tenta comer a nora e os dois netinhos, Sol e Aurora, nascidos durante os anos de concubinato. Pouco mais de um século depois, os irmãos Grimm construíram a versão que Disney consagrou: a família adormece toda junta, os pais não são superados dessa forma tão radical, o príncipe a desperta com um beijo e vivem felizes para sempre. Como se vê, faltam as partes mais picantes e emocionantes. A história fica mais adequada para o uso da família, principalmente a idealizada pela mente romântica dos compiladores alemães, onde se faz de conta frente às crianças que o sexo não existe, e a morte e a violência são ocultas ou amenizadas. Algumas histórias, como Bicho Peludo ou Capa de Junco, ficaram esquecidas devido a seu conteúdo francamente incestuoso. Conhecemos algumas versões de Pele de Asno, onde o pai que quer casar com a filha é convenientemente substituído por um tio.

ÉPOCA – Os contos de fadas contêm mais horror que os noticiários mais sensacionalistas de hoje. Se houvesse censura, eles não baixariam dos 18 anos. Tem incesto, degolas em série, transformações de pessoas em animais, pais que abandonam os filhos na floresta, pais que querem levar as filhas para a cama, bruxas que querem comer gente, lobos que comem avós, horrores sem fim. Tudo o que é considerado sórdido na humanidade está lá. É este o segredo de sua perenidade? Como podem ser infantis?
Diana – Na infância, nosso pensamento é naturalmente hiperbólico, tudo ganha proporções dramáticas. As crianças gostam dos contos de fada pois ali encontram uma similitude no modo de ver o mundo. Tudo é mágico, muito maravilhoso e muito perigoso. O pensamento infantil, se pudesse ser censurado, também ficaria para depois dos 18 anos. No pensamento infantil tem incesto, execuções sumárias e massacre de todos aqueles que se interpuserem entre as crianças e seus desejos, tem canibalismo, adultos assustadores e animais fantásticos. Tudo isso de forma metafórica, inconsciente e até lúdica, bem entendido. Os contos de fadas administram esta pequena loja dos horrores da mesma forma que as crianças: tudo pode ser aludido, sem que nada tenha de ser explicitado. Provavelmente esta é, sim, uma das fortes razões de sua sobrevivência.

Mário – O que nos atrapalha entender a natureza dos contos de fada é a nossa auto-imagem moderna. Gostamos de nos imaginar governados pela razão, quando na verdade somos arrastados pelas nossas paixões e desejos. Nos educamos para pensar e escolher racionalmente, mas muitas vezes o peso dos mitos e das superstições fazem valer sua força. Como os cidadãos do Ancien Régime não tinham essa preocupação de serem racionais, nem tinham a exigência de uma sensibilidade politicamente correta, talvez apreciassem mais intensamente os contos de fada.

ÉPOCA – Muitos contos de fada sofreram modificações para se tornarem mais palatáveis aos tempos de hoje. Quais foram as mudanças mais significativas e famosas? E o que elas significam?
Mário – Creio que a modificação mais interessante é a do Príncipe Sapo. Hoje todos sabemos que ele ganha um beijo e vira príncipe. Ora, na história original a princesa se irrita com a sua asquerosa presença e o joga contra uma parede. É esse ato violento que o desencanta. Surpreendente, não? O que era violência vira amor, essa é a tônica de tantas outras modificações, que suavizam e pasteurizam as tramas. Vivemos uma ÉPOCA de maior sensibilidade para com as crianças e os elementos mais grotescos foram sendo removidos. Quem representou muito bem esse processo foram os irmãos Grimm, que a cada nova edição iam depurando, principalmente atuando na proteção da imagem da mãe. A construção e idealização da figura da mãe como a encarnação do amor que une a família nuclear tornou-se essencial. A família pequena, quente e claustrofóbica como a que temos hoje, levou centenas de anos para ser lapidada. Os irmãos Grimm fizeram sua parte eliminando as mães más, transformando-as em madrastas. O vínculo que o sangue selou não devia ser maculado… Mas esse processo de censura pode atingir uma história inteira, como em Bicho Peludo ou Pele de Asno, por exemplo. São histórias cujo mote é o desejo incestuoso dos pais pelas suas filhas. Nossa nova sensibilidade reprimiu esses contos que circulavam como outros quaisquer nos séculos passados.

ÉPOCA – Quando lemos o livro, não são as fadas que estão no divã. Mas o leitor. O livro, além de nos recordar das histórias da infância que seguem nos habitando (ou assombrando), pode funcionar como uma espécie de terapia. Foi essa a idéia? Poderíamos chamar de auto-ajuda psicanalítica?
Mário – O livro foi pensado como uma contribuição teórica. Nesse sentido é para quem trabalha ou se interessa pela infância (inclusive a própria). Efeitos em quem lê são um contrabando bem-vindo. Aprender psicanálise de um modo verdadeiro significa analisar-se, ou seja, sentir em si os efeitos do próprio inconsciente (aquilo que a gente faz ou pensa e não sabe o porquê) e descobrir que é possível compreender-se a partir daí. Se o nosso texto conseguir tocar o leitor e fazê-lo pensar sobre sua vida ficaremos realizados. Provavelmente o que conseguiremos será precipitar conclusões ou associações que já estavam se insinuando na cabeça do leitor, por isso a leitura pode acabar sendo mais lenta, reflexiva, tendendo a produzir devaneios. Esse é um efeito que não se pode pretender quando se escreve, ele acontece ou não, esperemos que nesse caso sim. Algumas pessoas que o leram enquanto escrevíamos se sentiram pessoalmente tocadas, veremos…

Diana – Esse efeito também é conseqüência do fato de que escrevemos a partir da nossa própria experiência de divã: as leituras que fazemos dos contos contém conclusões pessoais, algo do que aprendemos com o próprio sofrimento neurótico, isso talvez facilite a empatia do leitor. Mas não podemos esquecer que o objeto, especialmente os contos de fada, também são potencialmente capazes de mexer com nossas entranhas subjetivas. Eles ativam pensamentos que temos arquivados desde a infância. Talvez nosso livro possa despertar as histórias infantis adormecidas nos adultos.

ÉPOCA – E as novas histórias, como Harry Potter, elas podem ser consideradas contos de fadas? Com o que rompem, com relação às histórias da tradição, e o que trazem de novo?
Mário – Essas novas histórias fornecem elementos úteis à subjetividade infantil tal qual os contos de fada, mas decididamente não são novos contos de fada. Harry Potter, assim como Pinóquio ou Peter Pan, podem até ter um final reconfortador, mas essas personagens são complexas e ambíguas. Trazem para a infância elementos do romance moderno, onde a aventura tem um papel tão relevante quanto o crescimento subjetivo da personagem ao longo da história. As personagens dos contos de fada são unidimensionais, só são boas ou só são más, o que facilita sua apreensão pelas crianças bem pequenas, mas não devemos subestimar as crianças, elas bem cedo fazem uso e se beneficiam de histórias onde o mundo é mais complexo. Nos contos de fada os heróis não têm impasses, todos querem crescer, ter um lugar no mundo, casar e ter filhos. Peter Pan não quer nada disso, enquanto Pinóquio se arrepia quando o assunto é estudar ou trabalhar. Ou seja, nas histórias infantis modernas a magia se mantém, mas tudo está em questão, inclusive – e principalmente – crescer.

ÉPOCA – Com relação à segunda questão que vocês se propõem a responder no livro, o que estas histórias do século XX dizem sobre o tipo de gente que estamos nos tornando?
Mário – Elas nos dizem o que o resto das produções culturais dizem. Estamos nos tornando mais individualistas, portanto com uma necessidade maior de diferenciar o nosso destino do destino dos outros. Como já não há lugares prontos, é mais trabalhoso para cada um construir o seu. Harry Potter e sua orfandande talvez seja um bom exemplo disso. Todos somos como órfãos, pois não há muitas garantias do lugar que ocupamos, não sabemos bem o que significa a origem familiar que temos e mesmo quando ela se impõe de alguma forma, preferimos corrompê-la, fazer da vida uma versão pessoal. Precisamos sentir que estamos fundando nosso próprio destino. Como Peter Pan, gostaríamos de ser sempre jovens, como Pinóquio gostaríamos de levar uma vida sem tantos fardos, de não pagar um preço tão elevado para nossa estada no mundo. Como Dorothy, do Mágico de Oz, adoraríamos seguir acreditando que existe um pai que possa nos guiar nesse mundo confuso. Além disso, gostaríamos que o mundo fosse seguro como o é para o Ursinho Pooh. A questão é que em todas essas histórias esses personagens têm suas expectativas ou ingenuidades criticadas ou frustradas: Potter tem que aprender muita coisa e está longe de ser um herói auto-suficiente, Pan não cresce, mas vai perder seus amigos para a vida adulta, Pinóquio se resigna a estudar e trabalhar, enquanto Pooh tem suas ingenuidades expostas pelo seu dono, que o chama de ‘velho urso bobinho’. Na verdade, as histórias infantis atuais não são muito alentadoras. Ao contrário dos contos de fada, elas não querem que as crianças se iludam muito com o que nos espera adiante. Elas são mágicas, mas ao mesmo tempo muito realistas…

ÉPOCA – O livro clássico do Bruno Bettelheim, Psicanálise dos Contos de Fadas, foi uma fonte de inspiração? Quais são as principais diferenças e divergências com o Fadas no Divã?
MárioPsicanálise dos Contos de Fadas de Bettelheim foi, sim, a nossa inspiração, um livro que abriu caminhos para o entendimento do papel das histórias infantis. Mas ele tanto está envelhecido quanto comete um pecado que o enfraquece. Existe em Bettelheim uma supervalorização da forma e do conteúdo que não faz sentido para nós. Quanto ao conteúdo, para ele os Contos de Fada, por serem folclóricos e antigos, trariam em si uma profundidade psicológica naturalmente embutida. Na verdade, não há uma simbologia universal em cada trama. Certas questões têm perdurado através dos tempos, mas a leitura que nossos bisavós faziam das mesmas histórias não era como a nossa. Quanto à forma, pensamos que a fantasia e sua eficácia independem do meio ao qual estão vinculados. O que vale são os efeitos que produzem sobre a criança e não se são provenientes de uma história milenar, como Cinderela, ou de um programa de TV descartável, feito em Hong Kong, ao estilo de Power Rangers. As crianças se apegam àquelas histórias que conseguem tocar em alguma questão importante para elas. Por desdenhar a cultura de massa, Bettelheim ficou cego para a produção cultural infanto-juvenil que veio num crescendo durante todo século XX. É claro que recomendamos os Contos de Fada, que são extremamente ricos, mas o importante é ver o que as crianças estão realmente consumindo e o que elas conseguem fazer com isso.

ÉPOCA – Bruno Bettelheim acredita que os contos de fadas passaram por uma espécie de seleção natural de Darwin: ou seja, sobreviveram até hoje os que continuaram tendo o que contar ou os que se adaptaram melhor às circunstâncias, exigências e perguntas do novo mundo. Como esta seleção não é ‘natural’, como ela funciona?
Mário – A seleção é cultural. Vivemos num mundo cada vez mais atento à sensibilidade infantil, acreditamos que devemos poupar as crianças das coisas mais brutas e mais cruas, logo, os contos de fada sofreram uma adaptação aos novos tempos. Eles conservam os elementos centrais, mas estão mais depuradas das ditas ‘grosserias camponesas’. Os traços centrais da censura vão na direção de preservar a família, para tanto os pais maus viram tios ou ogros, e as mães más viram madrastas. O sexo deve ser menos aparente, então as alusões são abrandadas. A violência deve ser contida e o amor prevalecer, como que o século XX não iria deixar suas marcas nos contos de fada?
ÉPOCA – Vocês fazem uma crítica ao apresentar o livro: que apesar de nunca ter se investido tanto e tão obsessivamente na infância – e se esperado tanto das crianças – é muito reduzido e inexpressivo o espaço dedicado à crítica para a ficção que lhes é oferecida (livros, filmes etc). E que, quando ela é feita, em geral é catastrofista, com respeito aos efeitos nefastos de games e desenhos animados violentos. A que vocês atribuem este paradoxo?

Mário – Esquecemos a maior parte da nossa infância e nem sempre lidamos bem com o que resta dela. A amnésia da própria infância se dá porque é difícil constatar que vivemos nossos primórdios alienados nos desejos dos nossos pais, que éramos tão pouco senhores do nosso destino. A criança é frágil, dependente, ilude-se fácil, vive com medo de ser abandonada ou desprezada, sentindo-se minúscula frente ao que se espera dela. Os intelectuais não estão fora disso. Também desconhecem a criança que um dia foram. A produção teórica sobre a cultura infantil sofre as conseqüências dessa relação ambivalente com a própria infância e, quando as resistências são vencidas, ocorre que as ficções e fantasias que faziam sucesso já não estão mais em cartaz. Poucos conseguem conectar-se com o que a próxima geração está assistindo e isso só acontece, parcialmente, quando se têm filhos. Mas nem sempre nossa alma está ali realmente vibrando quando assistimos algo como Pokemon, afinal já não somos mais crianças e nossos desenhos animados eram outros… A tendência é um estranhamento, um raciocínio auto-centrado, acreditando que ali não há uma fantasia com uma pulsação verdadeira. Uma boa critica vêm de quem realmente viveu uma fantasia e não a viu de longe. A indústria cultural tem justamente sanado esse problema com produtos uni-temporais, que tentam atingir pais e filhos. Neles, as gerações podem, como nos contos de fada, falar sobre uma fantasia compartilhada. Esses filmes, sim, possuem uma boa crítica e sabemos sobre o que está sendo ofertado às crianças. Na verdade esses novos produtos culturais, que interessam a gente de todas as idades, retomam algo que é um dos segredos dos contos de fadas: são universais, comuns a pais, avós e crianças, e permitem um diálogo entre as gerações.

Diana – Somos poucos os que realmente sentamos com as crianças e topamos ouvi-las e brincar com elas. Não é difícil de compreender essa dificuldade, pois elas sabem ser repetitivas (chatas) e ter um raciocínio cruel, que deixa o adulto embretado. ‘Mãe, o fulano vai morrer?’, ‘Vamos ficar pobres?’, ‘Porque a gente não dá todas nossas coisas pra essa gente que precisa?’, ‘Eu odeio a professora, tomara que ela seja atropelada por um ônibus!’. Os programas que são oferecidos às crianças e jovens e consagrados pelo seu gosto são muitas vezes grosseiros e cruéis, mas ao pensar tão mal deles esquecemos quão escabrosas sabem ser as idéias que as crianças se permitem ter, já que a relação com seus desejos e tendências inconscientes é menos recalcada que a nossa. Elas costumam expressar sinceramente aquelas coisas que temos vergonha de contar até para o nosso analista.

ÉPOCA – Vocês dizem que as narrativas familiares são muito importantes, que os pais devem criar suas histórias porque só elas podem contar algo importante sobre aquela família, quase como a recriação e transmissão de uma mitologia daquele mundo familiar. E que devem fazer isso sem planejar as histórias, sem medir palavras, como uma livre-associação psicanalítica. O quanto isto é importante? E, no avesso, o que contam aos filhos os pais que não contam histórias suas?
Diana – Fomos pais contadores de histórias. A maioria delas criações coletivas familiares, e não foi muito difícil descobrir (tempos depois, bem entendido) que as tramas que inventávamos eram decantadas do inconsciente familiar. Foi por isso que incluímos no livro uma história que o Mário contava para as meninas. Através da análise dela tentamos demonstrar como é que acabamos falando com as crianças sobre o que nem nós sabíamos que estávamos pensando, como sexo, o amor entre os pais, a morte, as dificuldades da vida. Nas histórias inventadas, assim como nas pré-existentes que escolhemos para contar, palpita o inconsciente de uma família, seus segredos, impasses, frustrações e sonhos. Freud já dizia que os escritores podem antecipar-se, em sabedoria e capacidade de compreensão do inconsciente, aos analistas. Pois bem, as histórias narradas em família oferecem aos pequenos essa mesma sabedoria. Se não houver quem lhe conte histórias, a criança as coletará na televisão, nas conversas dos adultos, no rádio. A única certeza é que a imaginação é artigo de primeira necessidade, feijão com arroz da nossa sobrevivência psíquica, instrumento fundamental de elaboração e construção da nossa identidade.

ÉPOCA – Uma das transformações é a mãe má em madrasta. Quando não podemos mais suportar que nossa mãe seja má? Que época e que mundo é esse em que a mãe precisa ser idealizada?
Mário – A família moderna é fruto de um grande investimento de educadores e moralistas. A Mãe (assim com maiúscula) é uma invenção recente (meados do XVIII, XIX e XX). Nessa invenção, a mãe é representada como um ser maravilhoso, pura bondade, rainha do lar, sempre com a intervenção correta para com os filhos. Essa posição tem a vantagem de fazer parecer que nossa forma de organização social, a família nuclear, é algo da ordem natural. Aparecem como vínculos que se originariam no dom de procriação feminino e se perpetuariam do lado de fora do ventre, com as mesmas características de aconchego e dedicação. Nessa versão idealizada, a mãe nunca quer o mal de ninguém e sempre aponta o melhor caminho para os filhos. O problema não é que tenham inventado semelhante anjo, o problema é que há muitos seres humanos com filhos que se julgam assim, sem falhas, sem mácula, sem maldade, puro amor. Dessas santas é melhor manter distância, pois tanta pureza só pode ser mantida às custas de ignorar (e atuar) os impulsos e sentimentos mais inconfessáveis. Logo, todo cuidado é pouco com essa mãe. É claro que o mundo das fadas acompanhou esse processo, e as mães más viraram madrastas.

ÉPOCA – A batalha das filhas/princesas/afilhadas com as mães travestidas de madrastas/bruxas/madrinhas, segundo o livro, é uma batalha pela conquista da identidade feminina, que implica identificação e superação, a um custo nada baixo. Nos contos, é uma batalha de vida e morte. E na vida, tem como ser diferente?
Diana – O livro não está de marcação com as pobres das mães. Há, por exemplo, o capítulo dedicado a João e o Pé de Feijão, aonde o que vem ao caso é vencer um pai-ogro gigantesco e terrível para passar de menino a homem. A identificação é um processo doloroso, porque se torna necessário superar e derrotar justamente aqueles que mais se admirou e amou: os pais. A relação do menino com seu pai é uma disputa franca e clara, embora dê medo derrotá-lo, pois fica-se desamparado. Já entre a menina e a mãe, essa disputa envolve um problema amoroso, pois a mãe foi, também para a menina, sua primeira paixão. Como então abandonar um vínculo, vencê-la como uma rival qualquer, se de seus olhos, de seu toque, veio nossa imagem corporal, de sua voz nossa primeira identidade? Por isso a separação entre a menina e a mãe, assim como a identificação necessária para tornar-se mulher, é um processo mais tumultuado, que contém mágoas, ressentimentos e agressividade, enfim, tudo que marca o fim de uma história de amor. Assumir uma identidade sexual, seja masculina ou feminina, passa necessariamente por receber um aval para usá-la, ser reconhecido pelos pais nesse lugar. Nos contos isso nunca é fácil: João, por exemplo, cutuca o ogro roubando-lhe todo tipo de tesouros enquanto ele dorme, até que por fim ele acorde e o persiga. Só nesse momento o monstro reconhece no menino o ladrãozinho que o vinha depenando e sai em sua perseguição para o embate final. Observando bem, a madrasta de Branca de Neve vai buscar a pobre coitada, que está escondida na cabana dos anões, sem pretensão de incomodar ninguém, para livrar-se dela ou para prepará-la para a chegada do príncipe? Os feitiços que ela usa para vencer a rival são também mimos de mulher: um pente, cadarços para o espartilho e uma maçã. No final das contas, é ela que acaba tirando Branca de Neve da inocência, oferecendo-lhe o fruto proibido, ensinando-lhe a cuidar dos cabelos e a afinar a cintura. É um drama bem caótico sim, mas é útil.

ÉPOCA – Por que a inveja materna é fundamental para que a filha possa se tornar mulher? E o que resta à mãe na vida, já que nos contos só lhes resta morrer – literalmente? Não bastaria que a filha fosse embora de casa?
Diana – Não basta para a filha ir embora, esconder-se. A mãe tem que participar ativamente dessa separação. É nesse sentido que a inveja materna constrói a identidade da filha. Ela terá que aprender a ser mulher com a mãe, entre tapas e beijos. Quanto à mãe, a inveja é inevitável, pois seu viço declina (independente de quantos recursos ela use contra o trabalho cruel da gravidade) na mesma proporção que o de sua filha desabrocha. Para a filha essa inveja é como o despertar do ogro, o reconhecimento de que ela é uma rival à altura.

ÉPOCA – Vocês escrevem que a adolescência é um período de adormecimento e ilustram essa tese com histórias como Branca de Neve e Bela Adormecida. Por que é necessário estar dormindo para seduzir um homem? Ou é simplesmente um ‘despertar para o sexo’?
Diana – A adolescência não é vivida no mesmo lugar e tempo que a maturidade: durante os anos da juventude os amores são experimentais, os lugares que frequentamos são em geral públicos ou estão vazios de seus donos (praças, parques, shopping centers, a rua, as casas das famílias cujos pais estão ausentes), de tal forma que os acontecimentos demonstrem seu caráter avulso, provisório. Por isso é que os jovens adoram dizer que ‘não dá nada’, quando estão, onipotentemente, recusando-se a escutar os avisos e recomendações dos mais velhos. Estão vivendo um tempo de inconsequência, exilados da seriedade da vida, uma espécie de presente contínuo. Nesse sentido, estão despertos para o sexo, mas adormecidos para o mundo. O momento do despertar das princesas, quando elas acordam para o casamento (como em Branca de Neve e na Bela Adormecida dos irmãos Grimm), equivale para elas também à saída desta vida de estagiário, de adulto em treinamento. Quanto ao sono, ele é uma metáfora da disponibilidade erótica. Convém observar que nesses sonos enfeitiçados elas costumam manter as cores da vida, o rubor, as cores que cativam seus príncipes, os quais estão longe de ser necrófilos. Sua espera é passiva, mas de uma expectativa excitada. O gosto pelos amantes em posição de passividade, abandonados à serviço do desejo de outrem não é exclusivo do amor adulto: as mães se derretem frente a seus anjinhos adormecidos, inermes, entregues à sua adoração, seus obscuros objetos de desejo.

ÉPOCA – Ao ser uma princesa adormecida, à espera do primeiro mané real que chegar até lá, ela não se exime de assumir a autoria de seu desejo? Por que essa figura sobrevive no tempo em que as mulheres se tornaram caçadoras assumidas e leitoras compulsivas de revistas femininas?
Diana – Não é pelo fato de que uma mulher tenha aprendido a arte da caça que ela vai abrir mão do desejo de ser caçada. Aliás, as histórias de fadas que foram expurgadas (como Bicho Peludo, Capa de Junco), aquelas que não se tornaram tão populares, são pródigas em princesas que caçam seus príncipes enquanto se fazem de caçadas. Um bom exemplo é a própria Cinderela, a qual se paramenta toda, vai ao baile, enlouquece o príncipe e some, fazendo-o procurá-la que nem um louco, rodando o sapatinho por todas as moças do reino. Se a seleção social, através do tempo, tem dado destaque às princesas inermes, que ficam se fazendo de mortas enquanto o beijo não vem, a leitura que as mulheres fazem disso não é, nem nunca foi, simplória. Antes de deitar, numa aparente entrega total, não há mulher que não prepare a cena, ajeitando cada detalhe, e isso não é de hoje. A fêmea humana sempre foi temida, considerada ardilosa, fofoqueira e pouco confiável, vide as tantas que acabaram na fogueira. Os contos de fadas sempre lembram que as moças até podem jogar o jogo da passividade, mas basta a maturidade chegar e a bruxa ou a madrasta revelam todo seu fel. Mulher madura boazinha nos contos de fadas é mulher morta, como a mãe da Branca de Neve…

ÉPOCA – Neste mundo em que tenta se impor a juventude como período único e eterno da vida, especialmente às mulheres, o que as mães/madrastas/bruxas dos contos de fadas têm a nos dizer? As plásticas, botox, cremes, academias e outras mirabolâncias/feitiços as impede de matar todas as filhas/princesas realmente jovens de hoje?
Diana – Realmente, se temos algum tabu hoje, esse é o envelhecimento. Aliás ele surge exatamente quando a longevidade tornou-se possível graças aos avanços da Medicina. Foram eles que geraram a expectativa não da vida prolongada, mas da juventude eterna. Apresentar sinais da passagem do tempo, como as rugas de expressão que deixam estampado no rosto nossas caretas mais típicas, é como andar por aí com uma bomba relógio na testa, mostrando que resta pouco prazo. Admiramos nos jovens sua condição de potencial, de promessa, eles não escolheram ainda seu amor, sua profissão, seu modo de vida, por isso nos parece que eles têm o mundo em suas mãos, pois escolher é perder. Acredito que a qualquer momento da vida estamos em condições de reinventar outro destino, dar guinadas (por isso sou psicanalista), e quando fazemos isso na maturidade é de forma menos ingênua, e, porque não dizer, mais sábia. Se investirmos todas as nossas energias em ocultar a idade (e isso custa muito tempo, trabalho e dinheiro), como o hábito faz o monge, seremos imaturos como nossa imagem sugere, o que, convenhamos, numa pessoa mais vivida é bem patético. Conseqüentemente, acabaremos sem condições emocionais para aproveitar a vida do jeito que a sabedoria do tempo nos ensinou. Aliás, quanto mais sabedoria, menos remendos na imagem necessitamos. Quanto às mulheres, como no nosso baralho o amor é uma carta que vale mais do que no baralho masculino, somos mais dependentes da imagem, a qual consideramos decisiva para ser amadas. Porém essa é uma diferença que está diminuindo entre os dois sexos, cada vez mais encontramos homens na frente do espelho dizendo: ‘espelho, espelho meu, haverá um homem mais belo do que eu?’.

ÉPOCA – Na maioria dos contos, a casa paterna/materna é sempre uma ameaça. Mais seguro se está na floresta. Por quê?
Mário – A casa paterna nem sempre é uma ameaça, ela torna-se quando exigimos que a criança cresça, pois ela se sente expulsa. Nesse momento a floresta (representando tudo que é fora de casa) confunde-se com o lar, pois o aconchego, segundo a criança, já não existiria. Não raro as crianças tomam as tentativas educacionais dos pais como maus tratos. A mensagem ‘cresça’ é escutada como ‘não gostam mais de mim’. Outro momento em que esta questão pulsa é quando o jovem desperta para o sexo e, como sabemos, o destino dessas pulsões só pode ser o dos habitantes da ‘floresta’. Nesse momento a floresta apresenta sua face ameaçadora, terrífica, obscura, como são os segredos do sexo para quem está começando.

ÉPOCA – Que lugar tem o espelho, falante ou não? Quem ou o que é – e nos diz?
Diana – Assim como o ‘auto-móvel’, que não sabe mover a si mesmo sem um motorista, a auto-imagem depende de que alguém testemunhe, confirme e afirme em alto e bom som eu que somos bonitos, amados e tudo de bom. Como se vê, não temos muita ‘auto-nomia’! É aí que entra o espelho em seu caráter metafórico. Nós o olhamos um número maior de vezes do que seria necessário para ver se o cabelo, a maquiagem ou a barba ficaram bons, e isso é porque ele é mudo. Fosse como o da madrasta da Branca de Neve talvez tivéssemos alguma independência dele. Poderíamos ficar nos repetindo suas palavras – és a mais bela das mulheres- como um mantra auto-reconfortante. A imagem corporal que temos foi construída quando éramos bebês graças à voz, ao toque, ao olhar da nossa mãe (ou quem ocupe lugar similar), por isso ela será para sempre uma fonte de diálogo com essa alteridade, esse olhar de fora que o espelho representa.

ÉPOCA – De todos os contos, o que mais se prestou a apropriações eróticas nos dias de hoje foi Branca de Neve por causa dos sete anões. O que aconteceu com o anões? O que eram e o que são?
Mário – Sinceramente não conheço estatísticas de uso erótico das histórias de fada, mas faria sentido. Os anões nos parecem uma fusão do ‘fora do sexo’ ou seja, eles têm o tamanho das crianças e as barbas e a idade da velhice. Quando Branca de Neve procura um lugar onde sua beleza não incomode é ali que encontra um lugar seguro. Nos mais variados contos de fada os anões estão sempre em busca de um tesouro ou guardando um tesouro, o seu objeto de cobiça nunca é erótico/amoroso. Logo sexualizar os anões seria, se a simbologia se mantém, sexualizar as crianças e os velhos, o que de fato cria um eco em todos, pois na verdade são seres sexuados desde sempre, embora isso seja um tabu.

ÉPOCA – Por que, ao contrário das mães, os pais são sempre perdoados, mesmo quando seu desejo é incestuoso, como em ‘Pele de Asno’?
Mário – Os pais nem sempre são perdoados. Quando o herói é masculino, como em João do pé de feijão, por exemplo, o pai-ogro termina morto. As mãe boas não são perdoadas por que nem ao menos foram acusadas, pobrezinhas, morreram no começo da história. Quem vai para a fogueira mesmo é a madrasta. Em Pele de Asno não há uma figura de pai dissociado, onde um possa morrer e o outro maravilhoso estará sempre no nosso coração. Só nos resta fazer as pazes com ele, então. Até por que os contos de fada trazem uma verdade psicológica importante, depois de sair de casa fica mais fácil conviver com os pais. Acredito que o perdão das princesas que foram desejadas pelos pais chega depois que elas se dão conta que estavam mais envolvidas nesse processo que gostariam de admitir. Em suma, o desejo que esses homens-pais expressaram por elas ajudou com que se tornassem mulheres (porém, este deve ser suposto, jamais atuado). Senão, por que pediriam aos pais mais e mais vestidos deslumbrantes, mesmo sabendo que eles os davam movidos pela paixão incestuosa? Assim é o processo de construção da identidade feminina: é necessário que pai esteja lá na medida certa.

ÉPOCA – Mesmo como as vilãs dos contos, o veneno/maldição que as mães/madrastas/bruxas dão às filhas/princesas/afilhadas é justamente a sexualidade (seja pela maçã, seja pelo fuso da roca), o que torna esta morte apenas uma passagem da vida de menina para a vida de mulher. Neste sentido, as vilãs não estariam libertando as princesas?
Diana – Com certeza. As vilãs como a bruxa de Branca de Neve estão dando às princesas os atributos necessários para despertar para o desejo sexual (nas três vezes que a visita, a madrasta entrega a ela um pente, cadarços para o espartilho e o fruto proibido). Em muitos contos de fadas, as jovens mulheres recebem de auxiliares mágicas, mulheres mais velhas, objetos que representam a identidade feminina e com os quais conquistarão seus príncipes. Porém, nesses casos, a sucessão se dá sem conflitos, o que não ocorre quando a mulher mais velha ainda mantém seu viço, ainda não abdicou de seu lugar entre as mulheres desejáveis. Via de regra é assim que ocorre na vida, pois quando a filha fica com aquele corpinho invejável, a mãe ainda é uma mulher jovial, que gosta de sexo e quer ser desejada. É aí que a inveja materna, representada por disputas de beleza ou algumas farpas verbais (mulheres lutam com as línguas, não com os punhos) cumprem uma função importante: a de assinalar à jovem que a mãe a reconhece como uma rival à altura, uma a mais entre as mulheres. Quando isso ocorre, a criancinha amada da mamãe, aquela que era arrumada como uma bonequinha, morre. Em seu lugar desperta uma jovem mulher, que poderá, nas histórias da vida com final feliz, tornar-se uma amiga de sua mãe, mas não será mais seu bebê encantado. Sendo assim, se alguma libertação acontece, é a de que com essa disputa o idílio entre mãe e filha se encerra de vez, assim essas mães vilãs estariam libertando as filhas-princesas de si mesmas.

ÉPOCA – O que acontece depois do ‘felizes para sempre…’ E quando e porque os ‘felizes para sempre’ passaram a encerrar os contos de fadas?
Mário – A ideia de Bettelheim ainda é a melhor explicação. Ele nos diz que a expressão significa, na verdade: ‘Agora não haverá mais angústia de separação’. Em boa parte das histórias há um desencontro radical inicial e o final é o re-encontro num patamar mais elevado. O que as crianças e, convenhamos, os adultos querem acreditar é que nunca mais vamos nos separar dos seres amados que nos cercam, nunca mais vamos ter perdas amorosas. Nem todas histórias da tradição tinham o fecho com essas palavras, mas o conteúdo tinha esse mesmo sentido. Atualmente é um mote tão obrigatório assim como o: ‘Era uma vez…’ Os contos de fada são por definição resolutivos ao contrário dos mitos que tendem ao trágico. Logo, depois do felizes para sempre pode haver outra história que, por mais tenebrosa que seja, também terá um final feliz.

ÉPOCA – Qual a personagem infantil mais moderna? A que retrata melhor o nosso tempo?
Mário – Acredito que seja o Pinóquio. Embora escrito no fim do século XIX, talvez seja o mais atual. O drama dessa marionete, que quer a qualquer preço chegar a ser um menino, centra-se na incomunicabilidade entre pai e filho. Eles não se entendem, vivem momentos muito diferentes. Gepeto quer que ele seja obediente como um…marionete, enquanto Pinóquio é neurótico, desobediente e confuso como um… menino! No mesmo processo que se constrói a maturidade do filho, o pai vai aprendendo os ossos do ofício, tanto que, já nas primeiras páginas do livro de Collodi, Gepeto chora lágrimas de arrependimento quando descobre quão trabalhoso é ser pai e descobre que é tarde demais para voltar atrás. Pinóquio traz principalmente uma verdade cruel para os pais: eles vão ter que aguentar os filhos fazendo os mesmos erros que eles próprios cometeram. Pinóquio é um banho de água fria nas utopias pedagógicas, considera que a transmissão da experiência é quase impossível. É preciso errar para crescer, e ser pai é também saber aguentar isso.

Trecho do livro Fadas no Divã, de Diana e Mário Corso

O Rei Sapo

A mais célebre história de um noivo animal e da transformação do repulsivo em atraente é com certeza O Rei Sapo. Nele, um monarca enfeitiçado depende do afeto de uma princesa para voltar à forma original. Uma das mais clássicas cenas evocadas pelos contos de fada é justamente a da bela princesa beijando um repulsivo batráquio, permitindo-lhe o retorno da metamorfose. A possibilidade de um sapo virar príncipe é um bom argumento para o fato de que as aparências não devem ser impedimento para uma relação. Seguidamente as mulheres recorrem a essa história como metáfora, quando argumentam que vale a pena investir em determinado pretendente, apostando mais no que ele se tornará do que naquilo que é no presente. Mas vale a leitura do conto, tal como estabelecido pelos irmãos Grimm, para nos surpreendermos com um fato importante: a princesa também tem lá sua feiura.

Trata-se da filha mais jovem do rei, como sempre, a mais bela de todas as princesas. Nos dias quentes, ela tinha por hábito brincar com sua bolinha de ouro perto de uma fonte, mas uma vez deixou cair seu precioso objeto na água profunda, fazendo o brinquedo desaparecer. Desesperada, pôs-se a chorar como um bebê, aos gritos. Nesse momento surge um sapo, prometendo alcançar-lhe a cobiçada bola, mas somente se ela concordar em levá-lo para a casa dela. Além disso, teria de lhe aceitar como companheiro de brincadeiras, compartilhar com ele seu prato e admitir sua companhia até na própria cama. A jovem concordou, mas sem a mínima intenção de honrar uma promessa feita a tão desprezível criatura – e aqui ela se mostra uma pessoa bem pouco bonita. Depois de obter a bola de volta, ela foge correndo do sapo, mas ele vai até o castelo e bate à porta, exigindo o cumprimento da palavra da princesa caçula.

Horrorizada com a aparição do sapo, a princesa relata o ocorrido ao pai que, ao invés de apoiá-la, exige-lhe que faça jus à promessa. Assim, tomada de nojo, é obrigada a admitir o batráquio em sua mesa e em sua cama; na hora de dormir, ela não aguenta mais o assédio dele e raivosa o atira contra a parede. Ele, então, se transforma num belo príncipe e ela, numa enamorada princesa.

É surpreendente que o gosto popular recente tenha se apegado a uma cena que simplesmente não existe na narrativa clássica dos irmãos Grimm: a da princesa beijando o sapo. Não só nossa heroína jamais se disporia a isso, como também a transformação não era provocada por um ato de amor e sim de violência. Na atual versão popular, o sapo esclarece à jovem que ele é um príncipe enfeitiçado e, em nome da perspectiva da transformação, ela se sacrifica e vence o nojo, beijando-o. Já nesta narrativa mais antiga, a princesa se envolve com o animal sem esse consolo, a aparição do belo príncipe é uma surpresa que a recompensa pelos maus bocados por que passou.

Ao sermos fisgados pelo amor, temos como conseqüência a saída da casa dos pais para vivermos a relação, porém, isso nem sempre é pacífico. Por mais que os contos insistam que o amor é uma promessa capaz de recompensar pela infância e pela família perdidas, partir é mais fácil para os heróis que têm madrastas bruxas, pais fracos, egoístas ou que são mesquinhos movidos pela fome. Quando o lar convida a ficar, sair será uma operação dolorosa e brusca, que pressuporá algum tipo de expulsão, comumente personificado por um casamento imposto contra os desejos da jovem. Na história do Rei Sapo, o pai da princesa lhe impõe a companhia do ser viscoso em seu leito, submetendo-a à violência desse convívio. O gesto agressivo da jovem está à altura do caráter torturante da situação em que se viu envolvida, mas também é um gesto dramático de rompimento, de revolta contra a autoridade do pai e contra as exigências do sapo. A independência não pode ser construída de submissão, crescer é também perceber a limitação da força e do poder da autoridade parental.

A versão popular do beijo não enfatiza o ato de rebeldia da princesa. Naquele caso, a jovem se dispõe a uma troca vantajosa: ela faz um esforço para vencer o nojo em nome de um amor possível (voltaremos ao tema da repulsa mais adiante). De qualquer maneira, ela se submete, mas o fará somente se isso lhe convier. Um sacrifício movido por uma razão pragmática não é um ato de obediência, é uma troca.

De qualquer maneira, o que é conhecido como um beijo, originalmente foi escrito como um arremesso, sendo assim, não há como suavizar essa trama. Para ocorrer, um amor depende de que um rompimento com a família de origem esteja em curso ou consumado, é necessário que o amor entre pai e filha tenha encontrado uma nova dimensão.

Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a realidade e, quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações que elas contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem. Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas, na qual sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois determinados consertos ou instalações só poderão ser realizados se tivermos a broca, o alicate ou a chave de fenda adequados. Além disso, com essas ferramentas podemos também criar, construir e transformar os objetos e os lugares.

Uma mente mais rica possibilita que sejamos flexíveis emocionalmente, capazes de reagir adequadamente a situações difíceis, assim como criar soluções para nossos impasses. Certamente essas qualidades dependem de que tenhamos recebido um suporte adequado na infância, ou seja, uma família que nos ofereceu a proteção e o estímulo necessários para crescer, um nome e uma missão na vida. Porém, independente do quanto nossa família tenha nos providenciado um bom acervo emocional, os problemas, as dúvidas e as exigências surgirão, como uma esfinge devoradora que se interpõe no caminho. Bem, essa é a hora em que uma boa caixa de histórias é de grande valia.

Por acreditar no poder da fantasia, nos lançamos na tarefa de refletir sobre o que as histórias antigas, que ainda são narradas, e as novas, que surgiram modeladas por valores contemporâneos, têm a dizer às pessoas que recorrem a elas. Supusemos que há uma relação pragmática com a ficção, usamos o que nos é útil. Porém, essa utilidade não depende de mensagens diretas, pois, se esse fosse o caso, apenas se consumiriam livros de auto-ajuda e manuais variados, o que felizmente não é verdade. Muitos adultos caem nessa cilada, fato que somente os torna mais pobres de espírito, na medida em que esse tipo de leitura não os alivia das obsessões, nem os livra de suas ruminações labirínticas.

Por sorte, as crianças são muito mais espertas, elas são adeptas irrestritas da ficção e quanto mais mágica, onírica, radical e absurda, melhor. Pode-se também traçar um paralelo interessante com a poesia, através da qual as palavras se tornam ferramentas polivalentes. Crianças adoram trocadilhos, rimas divertidas, sentidos surpreendentes e humor, e é nisso que as julgamos sábias, pois o domínio da língua flexibiliza o entendimento da realidade e faz nosso pensamento mais versátil e ágil. Enfim, é uma sorte que na mesma época em que estamos em formação, arrumando as malas que conterão os fundamentos que vamos levar na viagem pela vida afora, sejamos consumidores vorazes de ficção.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2005)

O Povo do Meio

Esses brasileiros não votam, são analfabetos e oficialmente não existem. À margem do país, estão jurados de morte

Eliane Brum (texto) e Maurilo Clareto (fotos)

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva e família

Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R.Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, rasos de letras, plenos de paradoxos. São analfabetos ou, como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fins de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.

Descendentes de soldados da borracha, nordestinos levados para os confins da selva pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, por lá ficaram e multiplicaram-se formando uma só família com menos de duzentas pessoas entrelaçadas em intrincada teia de parentescos. Vivem como os índios viviam antes de terem contato com o que se chama de civilização. Caçadores e coletores, comem o que a floresta lhes dá. E ela lhes dá muito. Castanha no inverno, caça, pesca e óleo das árvores de copaíba e andiroba o ano todo.

Assim seguiriam com a vida em seu país sem moeda, não fosse terem sido descobertos pelos homens que são chamados de grileiros. Esses predadores da floresta são velhos conhecidos da Amazônia. Enviam seus pistoleiros carregados de armas e licença para matar. Empunham títulos de terra forjados numa rede de corrupção que começa nos cartórios e chafurda em intermináveis caminhos da Justiça. Apregoam-se donos de milhares, milhões de hectares de floresta. Poucos aparecem como o que são. A maioria vive nas grandes cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, usam testas de ferro para cometer seus crimes enquanto sentam-se com as unhas polidas para assistir a concertos de música clássica.

Como no tempo de Pedro Álvares Cabral, os representantes dos grileiros ofereceram primeiro espelhinhos aos Raimundos: no caso, um punhado de reais para deixar a floresta. Depois, exibiram o cano da espingarda. Hoje, o Povo do Meio está jurado de morte. Só o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, um dos poucos rostos conhecidos, disputa na Justiça uma área que pode chegar a 7 milhões de hectares – um território com o tamanho da Holanda e da Bélgica somadas. Se conseguir, vai obrigar todo o Povo do Meio a abandonar suas terras.

“Só me arrancam daqui com uma arma na cabeça”, diz Raimundo Belmiro, 39 anos, nove filhos. Raimundo, um dos líderes da comunidade, é um homem quieto, com a coragem de quem faz o que o caráter manda apesar do medo. “Um dia eu voltei do mato e os homens de fora estavam na minha casa. Depois vieram outros e não pararam mais de chegar. Me ofereceram 10 mil reais pela minha terra. Eu disse não. Eles então começaram a cercar meu lugar por todos os lados. Passam no rio em rabetas cheias de pistoleiros armados. São armas garantidas, de repetição, não como a minha espingarda de caça que tem 23 anos. Querem me botar medo. E conseguem. Sou um homem jurado de morte.”

Raimundo e sua família acordaram naquela manhã sem nada para comer. Cada um embrenhou-se num ponto cardeal da mata em busca de alimento. Antes do meio-dia, Fernando, de treze anos, caçou uma anta de quase trezentos quilos e Francisco, de catorze, trouxe duas queixadas. Raimundo explica: “A floresta é assim, rica de um tudo. Por isso tô marcado pra morrer, mas fico”.

O país dos Raimundos

Raimundo reedita a história de Chico Mendes, promovido a herói nacional depois de um assassinato anunciado que ninguém impediu. Seu mundo, porém, fica ainda mais longe. Com quase 8 milhões de hectares, a Terra do Meio transformou-se numa das derradeiras possibilidades de preservação da Amazônia. Encravada no estado do Pará, tem esse nome porque fica entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri. Cercada por territórios indígenas e florestas nacionais, seu paradeiro geográfico acabou protegendo-a por muito tempo da devastação: a oficial, representada pelas várias tentativas desastradas de ocupação da selva, especialmente pelos governos militares; e a privada, liderada por predadores disfarçados de empreendedores, usando a palavra bonita do agronegócio. Terra de ninguém, é reivindicada por muitos.

Nos anos noventa, o assalto dos grileiros a suas fronteiras recrudesceu com a operação da máfia do mogno. Nos últimos meses, a notícia do asfaltamento da Transamazônica e da Cuiabá – Santarém multiplicou a pressão. A sudeste, em torno de São Félix do Xingu, a região se transformou num faroeste. É lá que acontece a maioria dos flagrantes de trabalho escravo, extração ilegal de madeira e mortes por conflitos de terra que alimentam o noticiário nacional. Na fronteira nordeste, cuja porta é Altamira, a invasão avança em ritmo apressado. É a noroeste, à beira de um igarapé chamado Riozinho do Anfrísio, que vive a população de Raimundos – cada casa a horas, até dias, de canoa de distância uma da outra.

O nome vem de Anfrísio Nunes, um sergipano que, como outros tantos, recebeu autorização do governo para explorar os seringais da Amazônia. Seus descendentes também reivindicam a posse da terra. “O Anfrísio levou mais de duzentas famílias de arigós do Nordeste para cortar seringa no Riozinho”, conta sua enteada e nora, Vicencia Meirelles Nunes, de 74 anos. “Naquele tempo os índios dizimavam famílias inteiras de arigós. O Anfrísio criou dezoito órfãos de gente morta pelos caiapós e pelos araras.”

Os Raimundos são justamente os descendentes dos “arigós”. Abandonados à própria sorte quando a borracha deixou de ser lucrativa, moldaram seu destino à revelia do Estado: sem escola, sem saúde, sem registro de nascimento. Não querem a posse da floresta, só querem viver nela. Sua concepção de mundo não inclui cercas.

A travessia de Herculano

Herculano Porto

Herculano Porto

Para mostrar ao Brasil que seu povo existe, um homem miúdo chamado Herculano Porto, de sessenta anos, foi escolhido para empreender uma viagem à cidade de Altamira. Único chefe de família com documento, só ele estava apto a realizar a travessia. Tornou-se o presidente da comunidade. Depois de um dia remando na sua canoa, esse homem com perfil de passarinho e olhos de gato alcançou a boca do Riozinho do Anfrísio. De lá, pegou um barco a motor. No caminho, chegou a topar com uma onça que atravessava o rio. “A gente achou que era um veado e botou o barco por cima”, conta.

Era 7 de setembro quando Herculano iniciou a viagem de volta. Havia cumprido sua missão: carregava duas bolas de futebol e um documento elaborado pela Comissão Pastoral da Terra no qual a comunidade pedia ao governo federal a criação de uma reserva extrativista. Abaixo da reivindicação, seu povo teria de gravar os polegares para valer como assinatura.

Entre Herculano e seu país acessível somente por água estendiam-se 328 quilômetros de rios. Sua saga só terminaria dias mais tarde, ao final de uma trama fluvial que conduz sempre para dentro. Depois do Xingu, o Iriri aprofunda-se na Terra do Meio sobre um labirinto de pedras. É preciso vencer meia dúzia de corredeiras, cada vez desembarcando e subindo a pé para depois içar o barco com cordas em meio à correnteza. Na empreitada, as mãos arrebentam até sangrar.

Homem alfabetizado na língua da água, Herculano não temia as armadilhas do rio. Só era assombrado pelos conselhos do proeiro, Benedito dos Santos, que em 62 anos de vida amazônica foi seringueiro, garimpeiro, cafetão, caçador de onça e jagunço. Não tem história contada por ele em que não morram uns dois ou três. “Já botei muita gente pra fora de terra pros doutor nesta Amazônia. Tem mais facilidade tomar conta com agressão. Essa história já se repetiu tantas vezes e nunca vi posseiro ganhar. Sempre vai ter essa briga de terra no mundo”, ia desfiando rio afora. “Homem, vende logo seu pedaço antes que lhe joguem fora.” Herculano esboçava um sorriso falhado de dentes, mas farto de persistência.

Para alcançar a boca de sua terra na estação da seca são sete dias num barco de linha. Isso se tudo correr bem. É comum os passageiros terem de acampar numa passagem mais difícil por semanas até conseguir vencê-la. Pelo caminho, homens como Herculano vão sondando o rio e a mata em busca da comida – em especial um tipo de quelônio chamado tracajá. Eles têm a selva por restaurante. Para ganhar tempo, só fazem uma refeição ao final do dia, depois que o sol se deita e as pedras do leito do rio tornam-se invisíveis e fatais. Banham-se arrastando os pés no fundo, cuidando para não pisar nas arraias, com seu ferrão de punhal. A alguns metros os jacarés perscrutam com seus olhos de lanterna, à espera de um incauto que se aventure mais longe. Herculano e os seus não arriscam. Pertencem a esse mundo, são natureza. Atam a rede nas árvores e deitam-se para uma noite de sono sussurrado.

Nessas madrugadas, o silêncio da selva é feito de ruídos. Herculano Porto conhece cada um deles pelo nome. Tem a floresta dentro da cabeça. Os animais não atacam. Como o ecossistema ainda é equilibrado, há comida para todos e o homem é um predador que nem as onças desafiam sem um motivo forte. Nas águas, apenas as sucuris devoram pessoas como seres de um mundo quase perdido. Logo depois de Herculano passar, uma delas matou um homem quando ele nadava. A cobra triturou seus ossos. Depois o engoliu.

Enquanto Herculano singrava os rios de seu mundo primitivo, parte de sua terra era oferecida na internet por 6 milhões de reais pela imobiliária Sofazenda, de Varginha, em Minas Gerais. A oferta anunciava as maravilhas do Riozinho do Anfrísio: “Dezenas de qualidades de madeiras de lei, em densas florestas, ricas em mogno…”. Assim como “grande reserva de minério, cassiterita, ouro, diamante e outros”. Procurado pela repórter, o corretor Aldamir Rennó Pinto explica que a área foi tirada do catálogo “porque estava enrolada”. Oferece outra, de 390 mil hectares, por 27 milhões de reais. “Inclusive, a outra terra estava dentro dessa que estou lhe oferecendo. Ela pertence aos herdeiros do Anfrísio Nunes e já estou com os títulos, tudo certinho.”

Analfabeto, Herculano enfrenta a golpes de dedão o universo da grilagem cibernética. Quando finalmente desembarcou em casa, descobriu que seu castanhal havia sido posto abaixo. Faltava apenas a derrubada das árvores maiores. E depois o fogo. Para Herculano, um castanhal contém o passado, o presente e o futuro. É quase o reflexo do homem. Também marcado para morrer, Herculano havia cumprido sua missão. Mas, quando o documento com as digitais de seu povo alcançar o país oficial em Brasília, ninguém terá a dimensão do tamanho da odisseia.

A disputa das almas

Até a chegada dos invasores, a Terra do Meio havia girado sem dinheiro. Os grileiros levaram moeda e cobiça. Foram penetrando pelas frestas das almas, dividindo para semear a discórdia. Francisco dos Santos, o homem que mais conhece o rio e suas manhas, foi o primeiro a ser assaltado por tentações. Chico Preto, como é chamado, vendeu-se por vinte reais ao dia para botar e tirar peão e pistoleiro do interior do Riozinho do Anfrísio. “Eu luto pela reserva, mas eles pagam em dia e aqui é difícil ganhar dinheiro de outro modo”, diz Chico. “São pessoas alegres, prestativas, nem parece que matam gente.” Seu enteado, mais um Raimundo, tornou-se o homem de confiança de um grileiro conhecido por Goiano, cujas atrocidades já viraram lenda. Opera na boca do rio o rádio que denuncia a chegada de estranhos. “É melhor vender a terra porque vão tomar de qualquer jeito. Aí botam a gente pra fora sem nada”, defende esse Raimundo dissidente.

Os grileiros aproveitam-se do abandono para oferecer o que o Estado não dá. “Quero levar melhorias para aquele povo. Escola e posto de saúde. Já botei um carro à disposição deles”, diz Edmilson Teixeira Pires, 51 anos, que reivindica a posse de algumas dezenas de quilômetros quadrados. Já riscou uma estrada a partir da Transamazônica, onde instalou mais de uma casa e dezenas de peões. Só não chegou ao rio porque encontrou em seu caminho Luiz Augusto Conrado, 51 anos, conhecido como Manchinha por conta de uma mecha de cabelos brancos que ostenta desde bebê. “Pode recuar. Na minha terra vocês não entram”, avisou.

Manchinha conhece bem a caridade dos doutores. Antes de casar com Francineide, parteira do Riozinho do Anfrísio, foi escravo em fazendas no Pará por mais de dez anos. Depois virou garimpeiro em Serra Pelada. Viu de tudo, menos ouro suficiente para mudar a sina. Sabe muito bem de que matéria é feita sua resistência: “A floresta é o único lugar que tem fartura pra pobre. Os homens vão nos cercando e a gente precisa da castanha, da caça, da pesca. Vão nos matando porque encolhem a terra. Quando uma das estradas, das tantas que tão cortando por aí, chegar ao rio, acaba nós e o mato”.

Ameaçados de extinção

Se os invasores vencerem essa que é uma das últimas guerras da Amazônia que ainda é possível ganhar, com a selva desaparecerão 346 espécies de árvores, 1.398 tipos de vertebrados, 530 qualidades de peixes. Boa parte dessas variedades são endógenas – ou seja, só existem na Terra do Meio. O mundo ficará mais pobre em biodiversidade, que é o tipo de miséria irrecuperável. Mas, além da perda de milhares de espécies, o planeta estará também menos sortido de gente. O Povo do Meio é um dos últimos de sua estirpe, ceifada junto com a floresta. O isolamento – e o abandono – construiu nos confins do Brasil a extravagância de uma cultura sem imagem que ainda persiste no século XXI.

É por isso que se tornou uma terra de Raimundos. Sem TV, eles nunca batizaram filhos de “Maicon” ou “Dienifer” – nem ficaram sabendo que João e Maria viraram nomes chiques. São consagrados a São Raimundo Nonato, que, por ter sido extraído do útero da mãe morta, ao tornar-se santo virou protetor das parteiras. Todo o imaginário é costurado de ouvido. As cenas são formadas a partir de fragmentos da Rádio Nacional da Amazônia, o único contato com o Brasil. É assim que reinventam as jogadas de futebol a partir dos lances escutados – e jamais vistos.

Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho são ídolos sem rosto, cujas façanhas são reinterpretadas na cabeça de cada Raimundo. É no futebol que esses homens da floresta forjam seu RG de brasileiro. A identidade é a bola, trocada por duzentos quilos de castanha no Regatão, espécie de shopping fluvial que passa meia dúzia de vezes por ano para o escambo da produção local pelos artigos da cidade.

Raimundo Nonato da Silva, o brasileiro que não sabe quem é Lula, tem um campo de futebol diante de sua casa de pau a pique coberta de babaçu. Nos domingos, seus meninos trocam a faquinha da seringa pela bola. É nesse cartório de chão batido que registram seu nascimento. “Era bom saber o nome do presidente do Brasil por saber, mas diferença não faz”, afirma.

Quem não conhece a sina de Raimundo poderia achar que ele é variado das ideias. Desde que nasceu, herdeiro de um soldado da borracha que caiu morto no seringal – “Meu pai se chamava Zuza, sobrenome Zé” –, viveu uma vida sem Estado. Sabe apenas que para além do rio há um lugar chamado cidade, que concebe, enigmaticamente, como “um tipo de movimento”. Para ele, tanto faz mesmo o nome do presidente. A ideia de país não pertence ao seu imaginário. É o Brasil que precisa descobrir Raimundo, antes que seja tarde.

Reportagem publicada na Revista Época

Ao amigo presidente

Eleitor gravou todas as promessas de Lula e fez o próprio balanço do primeiro ano do governo

O brasileiro Hustene Pereira terminou o primeiro ano do governo Lula sem emprego e, a suprema ironia, com bursite. Foi o que o médico do plantão lhe disse depois de examinar as radiografias: ‘Tá com doença de presidente’. Não era exatamente essa a herança que ele esperava do homem que ajudou a eleger. Doía mais o coração que o braço direito quando, nos últimos dias de dezembro, Hustene trancou-se no único dormitório da casa e só saiu depois de assistir a seis horas de fitas gravadas em vídeo. Nelas, ele tinha registrado todas as promessas de Lula para que pudesse fazer seu balanço pessoal do governo. Saiu do quarto constrangido.

Desgostar do governo mas não conseguir xingar o presidente é o que há de realmente novo em sua vida. Ele acha que o país não mudou, mas continua tendo uma empatia enorme por Lula. Ao preencher quatro páginas em letra corrida numa carta endereçada ao Planalto, Hustene reclamou do desemprego, que joga gente como ele no abismo, do Fome Zero, que parece atolado no marketing, de que Lula saracoteou muito no estrangeiro quando os problemas estavam bem aqui, em sua barba aparada. ‘Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir’, diz. Assim mesmo, despediu-se com um ‘forte abraço ao amigo Lula’.

Hustene não é petista, é lulista. Sem ser filiado ao PT ou militante, ele votou em Lula em 1989, em 1994, em 1998 e finalmente em 2002. E votaria mais ä quatro vezes se fosse preciso. ‘Eu assisti à posse chorando. Tinha certeza de que voltaria ao mercado de trabalho’, cobra. ‘A gente não está pedindo absurdos. Um homem não quer esmola, vale-isso, vale-aquilo. Quer salário. A dignidade do homem é levantar, sair para trabalhar e pagar as contas.’

O último trabalho registrado na carteira de Hustene terminou em 17 de outubro de 2001. Em fevereiro do ano seguinte, ele ilustrou uma reportagem de ÉPOCA sobre desemprego. Dava rosto à estatística de milhões de pais de família que se descobriram do lado de fora da porta – depois de experimentar o gosto das ofertas nas prateleiras do consumo e de prometer aos filhos que se estudassem mais venceriam na vida. Ele sempre havia trabalhado no escritório de empresas, orgulhoso de sua datilografia e escrituração fiscal. Passou dos R$ 1.000 de salário. Em mais de dois anos de desemprego conseguiu fazer dois bicos como trabalhador braçal. No segundo, já completa um mês. Acorda às 4 horas para ajudar na carga e descarga de bebidas e alimentos. Ganha R$ 15 por dia quando há serviço. Em média, R$ 200 por mês sem benefícios.

‘Aos 44 anos de idade, estou no zero’, conclui. Ele não é do tipo que se entrega. Hustene é do gênero esperneante. Cansado de ouvir que não conseguia trabalho porque só tinha a 7ª série, bateu na porta do supletivo. Em dois anos de desemprego se formou no ensino fundamental, e faltam três matérias para ganhar o diploma do ensino médio. No meio, fez um curso de computação. Na escola, copiava tudo o que ouvia. Não perde documentário ou noticiário da TV e assim vai complementando a educação. Fez questão de escrever a carta a Lula para se certificar de que ele, Hustene, existe.

Acha que um homem precisa de futebol, fé e ideologia para não perder a sanidade. Fincou três pilares no assoalho de sua brasilidade: Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. O que sente pelo presidente é próximo do que nutre pelo Timão. Tanto um como o outro o decepcionaram no ano que passou. ‘Lula e o Corinthians empataram em 2003’, diz. ‘Jogaram para não cair.’ Mesmo assim, continuará torcendo por ambos. Não por um amor incondicional, mas por pertencerem ao reduzido rol de escolhas que definem o caráter de um homem.

Ao usar uma das metáforas preferidas do presidente, Hustene não está confundindo futebol com política. Está dizendo que perder a esperança tanto em um como no outro lhe custaria mais do que pode pagar nesta altura da vida. ‘A esperança que eu tive nestes anos todos era a de um trabalhador no governo. Se ele falhar, o que me resta? Rezo a Nossa Senhora de Fátima que ele não chute o pênalti para fora.’

Hustene escreve à noite na cozinha para não se sentir só, a mulher, a neta e dois filhos dormem no quarto, os dois mais velhos no chão da sala. Em forma de diário, manteve o ‘camarada Che’ informado. ‘Che, hoje o Brasil tem alguém digno dele’, na vitória. ‘Que o espírito guerrilheiro acompanhe o Lula nesta batalha’, na posse. ‘Aos 40 anos somos nós reserva do passado’, em junho. ‘Somos sufocados por uma herança neoliberal’, em julho. ‘Falta pulso’, em outubro. ‘É quase um ano de um governo com que tanto sonhei e não vi coisas concretas, mas espero ver ainda’, em dezembro. ‘Olha, Che, não desabafarei mais este ano. Estou preocupado com o Lula.’

No primeiro ano do governo, o Natal de Hustene passou sem peru nem presentes. O nome continuou sujo no SPC. A carteira de trabalho seguiu em branco. Hustene prometeu manter sua esperança em Lula por mais três anos. Só espera que, ao final, não lhe dêem para a vida a mesma solução que o médico deu para a bursite: ‘Não tem cura, só nascendo de novo’.

(Publicado na Revista Época em 05/01/2004)

O homem-estatística

Os novos pobres brasileiros vivem nos grandes centros urbanos, têm experiência profissional, são casados e chegam a ficar um ano desempregados. Hustene Pereira é um deles. Foi apontador de indústria, operador de produção, auxiliar de escritório e até garçom. Há quase cinco meses procura um emprego

ELIANE BRUM
Revista Época

Hustene Pereira ficou pobre quando descobriu que não poderia mais comprar Danoninho. Nem biscoito recheado, leite condensado, refrigerante, cerveja, salsichas, margarina light. Entre ele e as promessas dos anúncios da televisão se instalara um abismo. As necessidades que durante décadas aprendera a cultivar de repente haviam retornado à essência de fumaça. Hustene ficou pobre quando perdeu os símbolos de sua vida. Primeiro, foi a carteira de trabalho, que já não servia para nada. Depois a experiência profissional se esvaziou de significado nas filas do desemprego. Em seguida, teve o cartão de crédito arrancado, o talão de cheques bloqueado, o plano de saúde encerrado. Quando Hustene percebeu, não tinha perdido só o Fusca 1970 para o agiota e 30 dos 32 dentes da boca. Haviam lhe roubado a história. Tinha traído o pai e os filhos, pregado na cruz da exclusão da nova pobreza brasileira.

O Brasil urbano e metropolitano, consumidor de valores e produtos, não chafurda no mangue de Josué de Castro nem peregrina pela terra calcinada de João Cabral de Melo Neto. Despenca, sim, nas ruas das metrópoles que a literatura germinada na pobreza recém-pressente, fascinada ainda pelo que há de clássico – e brutalmente imutável – no brasileiro miserável, nutrido de vermes e descalço de sapatos e letras do nordeste sertanejo, das barrancas ribeirinhas da Amazônia e de berços geográficos da fome como o Vale do Jequitinhonha.

Foi desse mundo e dessa literatura descarnada que a dinastia de Hustene Alves Pereira veio nos anos 60, com o pai e o avô, do Rio Grande do Norte para a cidade de Osasco, na periferia de São Paulo. E engravidou-se de subjetividades outras para montar um novo retrato. Não em preto e branco, mas radicalmente colorido como as imagens da televisão. Marcado em sua vida pelo dia inesquecível em que ele, office-boy, entrou nas Lojas Columbia com o dinheiro para comprar uma TV colorida para a mãe. Sujeito de sua história, sentou-se num bar e tomou uma cerveja para comemorar. Depois pegou um táxi e acendeu um cigarro. “Última geração”, disse ao motorista. “Digital. Basta tocar os dedos e o canal aparece.” Foi assim, na troca de uma Semp preto-e-branco por uma Sharp em cores, que o clã familiar abandonou as raízes clássicas e ingressou em outra sociologia, deixou o rastro de migrante nordestino e instalou-se definitivamente no anel metropolitano da maior cidade brasileira.

Por isso, quando Hustene se descobriu pobre, o fez com todas as cores. Antes sua estirpe acreditava que nada tinha – e o que queriam era só mais água e menos fome – porque Deus os havia feito de um molde de sofredores. Primeiro o pai, Raimundo e metalúrgico, e depois Hustene, no serviço limpo do escritório das indústrias, construíram uma nova gênese. Dos verdadeiramente despossuídos, porque possuíram e perderam. Hustene tornou-se muito mais pobre que seus antepassados descritos no cinema de Nelson Pereira dos Santos.

Esse é o retrato de Hustene, um brasileiro de 42 anos, conhecido na vizinhança como Pankinha porque um dia teve pose. Dono hoje apenas dos signos que ainda não lhe saquearam: Corinthians e Nossa Senhora de Fátima. Corinthians, ele acredita, nasceu com ele, imiscuído clandestinamente em seu DNA sem que o pai são-paulino percebesse. Desde 1974 ele monta álbuns gigantes, construindo com recortes de jornal a própria versão da história do “timão”. Não se limita aos jogos, mas acompanha a vida dos jogadores, os filhos que nascem, os casamentos que se fazem e desfazem, as louras peitudas que se sucedem na vida de cada um.

Nossa Senhora de Fátima despontou em seu caminho quando o terceiro dos quatro filhos nasceu meio morto e ele abriu a Bíblia em busca de um sinal. Intimou: “Se for para me trazer felicidade, faça com que sobreviva. Se não, o leve embora”. Diego vingou e já saiu do hospital circunspecto, adulto antes mesmo de lhe aparecerem os dentes, por conta dessa responsabilidade toda que lhe pesava sobre as costas, lavrada com ninguém menos que a mãe do Salvador. Aos 14 anos hoje, assumiu o lugar do pai no sustento do lar sem que ninguém lhe pedisse. Gasta os dias descarregando caminhões abarrotados com 650 galões de 20 litros de água cada um e entregando-os de casa em casa. Pela labuta recebe R$ 15 por semana, depositados na mão da mãe a cada sábado para comprar o feijão, o arroz e o ovo da resistência nutritiva da família.

Ao voltar de cada jornada de trabalho, tem tempo apenas para o banho antes de despencar para a escola noturna em que cursa o primeiro ano do ensino médio na esperança de tornar-se arqueólogo. Ao vê-lo voltar da lida, o pai afoga-se no suor da camisa do filho e admite: “Agora você é o homem da família”. Pede dinheiro para o cigarro e depois chora. Então pega o diário e escreve a Nossa Senhora. Foi a ela que contou, em 14 de outubro de 2001: “Um dia, mãe, irei vencer na vida com certeza”. Disse isso alquebrado, porque, depois de progredir por toda a década de 80, superando os R$ 1.000 líquidos de salário, foi deslizando o despenhadeiro dos 90, encerrando o século e o milênio mal alcançando os R$ 700 brutos, esfalfado de horas extras em empregos com avareza de benefícios. Dois dias depois de anunciar à santa a certeza de seu sucesso perdeu o emprego.

Na abertura de 2002, acuado no único quarto da casa, fugiu dos fogos porque descobriu que para alguns o ano não termina. “Querida Nossa Senhora de Fátima. Início de um novo ano. Espero poder arrumar um novo emprego o mais urgente possível. Não comemorei a entrada de ano porque sem dinheiro, emprego, comemorar o quê? Só comemorei porque estou vivo”, escreveu na primeira página. E assim foram se sucedendo os dias sem que as dores se alternassem. “Querida mãe, hoje, como era de esperar, o primeiro dia útil, os meus cobradores não se esqueceram de mim. Tudo bem, eu devo e quero pagar, mas como, se nem emprego eu tenho?”, no dia 2 de janeiro. “Sabe, mãe, as coisas estão tão difíceis que não sabemos mais o que fazer”, no dia 8. “Estou ainda ‘desempregado’, esta palavra causa medo, vergonha e incrimina qualquer pessoa de bem. Espero um dia poder me livrar desse mal”, no dia 14.

À medida que os dias vão escorrendo, a letra de Hustene, tão orgulhoso da caligrafia e do ginásio tirado quase até o fim, vai piorando, esparramada pelas páginas em vogais e consoantes gordas de dor e quase tão indecifráveis como a realidade que o abalroou. “O mundo é um moinho, vai triturando a gente e fazendo da gente uma farinha. Moendo, moendo. E de nós uma escória granulada.” Hustene desenha então seu auto-retrato em traços de melancólica ironia. Na sacada da casa de três peças que não conseguiu terminar, enquanto os adolescentes dormem no chão da sala, embrabece com Nossa Senhora na madrugada. “Mãe, se faltar o feijão e o arroz na mesa eu vou ao supermercado, entro correndo, sem armas porque só tenho um estilingue, e vou preso porque roubei para a minha família comer”, desabafa. “Não faço mal pra ninguém, tou ferrado, família passando o que tá passando, tou vendo meu filho ralando pra trazer pão pra dentro de casa. Por que as portas estão se fechando?”

Nessas madrugadas solitárias, Hustene arrisca-se a debruçar-se sobre a sacada porque sabe que ninguém o verá. “De dia fico escondido. Tenho vergonha que alguém me veja e pense que sou vagabundo”, explica. À noite ele assoma, como um vampiro, um boitatá, criatura deformada por maldição – a dele, a do desemprego e da pobreza –, marcado como um chefe de família decaído, que perde o lugar na luz do sol e na casa quando não consegue mais cumprir sua função.

Quando o primeiro ônibus carregado de trabalhadores passa na esquina, às 4 horas, Hustene vai dormir derrotado. Acorda com a campainha do telefone, que só recebe ligações porque a conta foi cortada. A voz feminina do Itaú cobra a dívida do empréstimo e do cartão de crédito, numa rotina encerrada sempre com a mesma resposta. “Sou brasileiro, minha pátria é caloteira, puxei à minha mãe. Pode botar no SPC.” Em seguida suspira, pede perdão a Raimundo, o pai, por ter se tornado mau pagador. Quando a esposa, Estela, foi fichada no SPC por não ter pago as prestações do conjunto de sofás verdes da sala, atravessou a cidade para informar que o nome correto não era “Estelita” como registraram, mas Estela.

Depois Hustene despe a camiseta do Corinthians “para não discriminarem no caso do patrão ser do Santos, Palmeiras ou São Paulo”. Enverga a camisa em tom pastel de procurar emprego, o único jeans. Calça o último par de sapatos, bem engraxados na véspera. Estela coloca em sua mão o dinheiro do ônibus. É ela quem administra a escassez com a precaução de deixar sempre na carteira 20 centavos, na certeza de que darão cria. Hustene parte sobre rodas, um luxo, para não chegar suado ao Centro de Solidariedade ao Trabalhador, mantido pela Força Sindical, em Osasco, diante do qual se formam todos os dias filas de centenas em busca de uma vaga. Vão todos e Hustene tecendo utopias sobre o dia em que pegarão o emprego de presidente da nação e assinarão a carteira do Brasil inteiro.

Ao entrar no prédio, ele deixa de rir. Acostumou-se a esconder o vazio da boca para não espantar um improvável empregador. Duas horas depois está no topo do edifício, escutando a psicóloga. Já ouviu o mesmo discurso sete vezes. “Bom dia”, ela diz. E pede que todos repitam mais alto e mais alto, com a certeza de que as chances de conseguir uma vaga são diretamente proporcionais à alegria espontânea do desempregado. “As empresas são caça-sorrisos”, garante ela, para desespero de Hustene, que instintivamente leva a mão aos lábios e sente-se banido do mercado de trabalho para todo o sempre, sem dinheiro sequer para uma prótese. “Qual é o objetivo de todos nós? Não é chegar ao topo? Degrau por degrau”, segue ela. E um “é” mais alto e mais alto emerge das gargantas cadeadas pelo desespero. A psicóloga inspira-se em “um tal de Roberto Shinyashiki”.
Logo Hustene descobre que está malvestido para aquela festa. “Jamais calça jeans”, decreta a moça. Por sorte, a camisa pastel está corretíssima para a fashion week do desemprego. Mas o maço de Hollywood dele não deve assomar de jeito nenhum. Hustene e os seus ainda são obrigados a bater os pés e as palmas várias vezes antes de ser dispensados. “Trabalhador se vê pela carteira”, murmura, magoado. Mais uma hora e lá está ele diante da lourinha do guichê. Só há uma vaga de auxiliar de serviços gerais, mas exige ensino fundamental completo. Para Hustene faltou um ano. Em um minuto ela o dispensa mandando-o estudar mais. Amanda, de 17 anos, a filha mais velha, que passou a acompanhá-lo na peregrinação, está terminando o ensino médio e tem curso de computação, mas é recusada por falta de experiência. Barrados pai e filha, duas gerações despachadas para a rua. É essa justamente a parte que Hustene não entende, agarrado à ilusão de que os filhos terão um lugar por causa do diploma.

“Eu fiz latim no ginásio”, desespera-se Hustene, espiando a auto-estima estirada no asfalto. “Será que não tenho condições de passar um pano?” Não tem. É o que descobre no calçadão da cidade, diante de cada placa de oferta de emprego. “Agora precisa ter ensino médio completo para ser faxineiro”, constata. Uma cigana lhe oferece o futuro na mão, mas até para a sorte é preciso ter verba. Sem mais nada para fazer, decide pesar-se. Sobe na balança e espera. Não vê o cartaz que exige 50 centavos para registrar os 4 quilos engolidos pela expulsão do mercado de trabalho.

Refaz os quase 10 quilômetros da volta a pé, debaixo do sol do meio-dia. Vai para todo lugar caminhando, na marcha forçada que batizou de “malhação do pobre”. Já recebeu convites para se bandear para o outro lado, do tráfico de drogas às ligações clandestinas de TV a cabo. Recusou todos. A honestidade de Hustene é muito mais complexa que a mera obediência à lei, tão fácil quando se está contemplado no projeto do país e uma guerrilha cotidiana de resistência no caso de excluídos como ele. Trilhando a desesperança com o sapato gasto, Hustene é uma imagem triste, mas encarna a melhor novidade. Ao contrário da dinastia de miseráveis que deixou para trás nos sertões do Brasil, ele se recusa a participar de qualquer programa assistencial, como renda mínima, frentes de trabalho, cesta básica. Aceita apenas o salário-desemprego.

Para o brasileiro Hustene, tudo o que não vem do trabalho é esmola. “Não quero esmola nem do governo nem de ninguém. Quero é pagar minhas contas. Quero é trabalhar. Não queria nem seguro-desemprego. Não estou produzindo para ganhar esse dinheiro”, desabafa, como se não houvesse gotas do próprio suor na assistência social brasileira. “São Paulo é o coração do Brasil, acolhe todo mundo. Eu me sinto um inútil. Tou produzindo o que para São Paulo e para o Brasil?” Filho de metalúrgico, já freqüentou o PCdoB. Deixou de acreditar quando perdeu o emprego. Restou-lhe a militância silenciosa de sua devoção ao “companheiro” Che Guevara.

Nos descaminhos de asfalto que palmilha, Hustene empreendeu uma viagem de descoberta do país. Diante de cada porta fechada, percebeu que o Brasil havia desistido dele e de sua família e haviam esquecido de avisá-lo. Não é uma vaga de emprego que lhe negam, é um lugar no projeto da nação. “O que mais me dói é que não consigo emprego por exigência de estudo. Aí não vou poder continuar dando estudo para os filhos. Vão ficar pai, filhos e netos trabalhando sem educação, no serviço que aparecer. Ficaremos todos sem escolha”, desespera-se. “Eu trabalhava em escritório, tinha datilografia e escrituração fiscal. Meus filhos iam comigo trabalhar e ficavam orgulhosos. Agora me tornei analfabeto, fiquei fora da informática. Se conseguir um emprego será de faxineiro. Vou começar do zero e não estou no zero. Não sou contra a tecnologia, mas é uma concorrência desleal. E meus filhos não têm computador. E eu não terei o dinheiro para mandá-los para a faculdade. E assim estaremos todos acabados.”

Essa é a alma do precipício que as mãos de Hustene apalpam a cada dia, os dedos agarrando-se às gramas das bordas. Em março receberá a última parcela dos R$ 336 do seguro-desemprego. Depois, serão só os R$ 15 semanais trazidos por Diego, os R$ 50 mensais dos bicos de Rodrigo, as toalhas bordadas e os tapetes de crochê feitos por Estela. Em fila, os eletrodomésticos conquistados em uma vida inteira de trabalho aguardam a penhora. Nem assiste à novela porque tem “muita luxura”.

Debruçado sobre o abismo metropolitano, Hustene tem um plano: “Eu e o amigo Tião, que tem mais de 50 anos, já combinamos. Vamos fazer uma viagem até uma montanha e esperar um disco voador. “

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