Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados

 

O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.

E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?

O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.

Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?

Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.

Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.

Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?

A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.

A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.

Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.

Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.

É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra… Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.

Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.

Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.

(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)

Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.

O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.

Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.

E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?

E Fabiane seria, por isso, menos inocente?

Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.

Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?

Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.

Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.

Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.

(Publicado no El País em 12/05/2014)

O aborto na fogueira eleitoral

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha

Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

(Publicado no El País em 28/04/2014)

 

A potência de Adelir

Que dogmas tão profundos a gestante de Torres feriu para ter seu corpo violado pelo Estado na calada da noite

 

Na madrugada de 1º de abril, dois poderes, a Medicina e a Justiça, produziram uma cena histórica no Brasil. Nela, uma mulher em trabalho de parto, Adelir Lemos de Goes, 29 anos, foi arrancada de sua casa, na zona rural do município gaúcho de Torres, por um oficial de justiça e policiais armados. Em seguida, ela foi obrigada a entrar numa ambulância. Se não entrasse, prenderiam seu marido, Emerson Guimarães, 41 anos, técnico em manutenção industrial. Apavorada, com contrações a cada cinco minutos, preocupada com o susto dos filhos pequenos, Adelir foi escoltada até o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Lá, mais uma vez, foi obrigada por ordem judicial a deixar-se cortar. Contra a sua vontade, tiraram do seu útero, por cesariana, seu terceiro filho, uma menina. Naquela madrugada, Adelir descobriu que dois espaços que considerava privados, invioláveis, tinham sido invadidos no meio da noite: sua casa, seu corpo. Ao amanhecer, Adelir não pertencia sequer a si mesma.

Antes de se perfilar de um lado ou outro desse campo, a favor ou contra Adelir, é preciso tentar alcançar o que essa mulher sentiu, já que também nós costumamos nos sentir seguros em casa. Mesmo que a casa seja um barraco numa zona de risco, é pela certeza de um lugar no mundo que se luta, às vezes arriscando a própria vida. No meio da noite, uma casa torna-se ainda mais importante, como garantia de refúgio diante do temor atávico da escuridão. No caso de Adelir, era uma casa de madeira, parcialmente coberta por uma lona, porque ainda em construção. Quando sua filha, chamada de Yuja Kali, foi arrancada do seu útero, também foi uma invasão na madrugada. Quem já assistiu a uma cesariana sabe que é como arrombar uma porta e tirar de repente um bebê do único lar que conhece, jogando-o na luz e na temperatura de um mundo desconhecido e inóspito, em que ele fica longe do corpo da mãe que se recupera de uma cirurgia, submetido a uma série de procedimentos bruscos. Para Adelir e a pequena mulher que gerou, ambas arrancadas à força de suas casas, foi uma longa noite de horrores.

Naquela madrugada, Adelir apagou as luzes e acendeu velas enquanto vivia as contrações do trabalho de parto. E então o barulho de pneus e motor de carros quebra a calmaria da zona rural. E então alguém se anuncia oficial de justiça e ostenta um papel tão poderoso que ela pode ser carregada de sua casa. Adelir espia e vê nove policiais. O que, com aquele barrigão, ela poderia ter feito de tão errado para ser alvo de uma força de repressão daquele tamanho, tão rara nas ruas de Torres, mais ainda no interiorzão? Para que tantos homens armados diante de uma mulher barriguda?

Essa é uma pergunta interessante: o que tornou Adelir tão perigosa, de repente? Que poder tão nevrálgico ela desafiou para mover tantas autoridades durante a noite? O que, de fato, ela estava ameaçando, para mobilizar uma demonstração de força dessa ordem?

É preciso voltar ao dia anterior. Em torno das 15h de 31 de março, Adelir foi ao hospital com a doula Stephany Hendz, assistente treinada de parto, que acompanhava a sua gestação e a acompanharia no nascimento do bebê. Adelir tinha feito o pré-Natal no sistema público de saúde. Ela vinha de duas cesarianas, que considerava desnecessárias, e tinha buscado informações, leituras e grupos de apoio para ajudá-la a, dessa vez, ter um parto normal. Depois de examiná-la, a médica disse-lhe que, como a criança estava em posição pélvica (sentada) e ela já tinha feito duas cesarianas, precisava se submeter, de imediato, a mais um procedimento cirúrgico. Se não o fizesse, haveria risco de romper a cicatriz, causando a morte dela e do bebê.

Adelir não aceitou. Ela sabia que, nessas mesmas condições, muitas mulheres no Brasil e fora dele tiveram seus filhos por parto normal. Seu bebê estava bem, ela estava bem. Assinou um termo de responsabilidade e deixou o hospital. Tentaria um outro, em Santa Catarina, já que Torres está próxima do município catarinense de Araranguá. Adelir esperava encontrar uma equipe de saúde que respeitasse a sua escolha de ter um parto humanizado.

Ao dizer “não”, Adelir tornou-se perigosa. Como uma mulher, usuária do SUS, moradora da zona rural, recusa-se a cumprir a ordem de uma doutora? Como ela ousa escolher o que considera melhor para ela e para seu bebê? Não como uma inconsequente, mas como alguém que se preparou para o parto, informou-se, contratou uma doula para ajudá-la? Nem mesmo quando botam um termo de responsabilidade diante dela, sempre assustador para todos e mais ainda para os pobres, Adelir recua. Ela assina. E vai para casa continuar a se preparar para dar à luz sua filha.

Porque é uma irresponsável, como teria dito uma das médicas? Não é o que parece. O que se torna claro no comportamento de Adelir é que ela tem a coragem de se responsabilizar. E se responsabilizar é ser mãe. Adelir, nesse momento, já é mãe da sua filha. Ao decidir só aceitar a cesariana se a equipe de saúde comprovar que é de fato necessária, ela está decidindo o que é melhor para ela e para a filha que há nove meses acolhe, alimenta e cuida, com quem há nove meses convive dentro da sua barriga. Do seu corpo. Ao dizer “não” à médica, Adelir está protegendo sua filha.

Quem já ousou enfrentar um diagnóstico médico, seja na rede pública ou na privada, sabe como essa é uma batalha penosa. Pode, inclusive, apalpar o tamanho da coragem de Adelir. Os médicos – em geral, mas sem esquecer de uma minoria que luta bravamente por relações mais horizontais e respeitosas – consideram-se os donos dos corpos. Não só do deles, mas do meu e do seu. A medicina como um poder capaz de normatizar os corpos é uma construção social e histórica, com capítulos fascinantes. Para quem se interessar, há uma vasta bibliografia a respeito. Aqui, o que vale assinalar é que o gesto de Adelir não é banal. O significado de sua recusa é enorme. Na tentativa de preservar a escolha que considerava melhor para ela e para a filha, sem saber, Adelir, essa extraordinária mulher comum, moveu placas tectônicas.

É fundamental lembrar que Adelir tinha todo o direito de questionar a decisão médica. Tinha porque essa é uma prerrogativa legal de qualquer pessoa. E tinha porque o Brasil é um dos líderes mundiais de cesarianas, um dos títulos que envergonha o sistema de saúde brasileiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a cesariana é necessária em no máximo 15% dos casos. No Brasil, as cesarianas representam mais da metade dos nascimentos. Na rede privada, ultrapassam os 80%. Esse dado é sempre repetido, pouco enfrentado, porque serve a vários interesses mercadológicos. Também porque a cultura da cesariana está entranhada nos profissionais da medicina, a começar pelas universidades em que são formados. Considerada mais prática e rápida, mais adequada à sociedade de consumo, a cesariana é a primeira opção, quando deveria ser a última – sem que os riscos de uma cirurgia e desse nascer com hora marcada, antes que o bebê esteja de fato pronto, seja sequer avaliado como prioridade.

Adelir sabia disso. Ela mesma se considerava vítima de duas cesarianas desnecessárias. Basta conversar com mulheres grávidas para perceber que o medo de serem enganadas por seus médicos é um fator de estresse presente durante toda a gestação, que se aprofunda no momento em que a hora do nascimento se aproxima. Qualquer um que se dispuser a escutar mulheres que sonhavam com um parto normal e tiveram uma cesariana ouvirá que, perto do fim da gravidez, os médicos deram uma justificativa supostamente científica para determinar a cirurgia. Por medo de confrontarem-nos e colocarem seu bebê em risco; ou mesmo serem abandonadas, como alguns médicos ameaçam; por sentirem-se frágeis num momento tão delicado; porque é muito difícil se contrapor a um doutor que diz que seu bebê “poderá entrar em sofrimento se não fizer uma cesariana”, elas aceitaram a cirurgia e tiveram seu parto roubado. Se todas as desculpas usadas para fazer cesarianas no Brasil fossem de fato justificativas embasadas e escolhas corretas, o Brasil não exibiria as estatísticas que nos envergonham. Ou seria preciso fazer uma investigação sobre o que haveria de errado com o corpo das brasileiras, que já não conseguiriam parir seus bebês pelo método natural.

É possível questionar se, no caso de Adelir, a cesariana não era mesmo necessária. Se o que aconteceu com ela não teria sido dificuldade de aceitar seus limites, incapaz de abrir mão do seu desejo por um parto normal. Se Adelir não teria tido um surto de onipotência, tão comum no nosso tempo em que supostamente tudo pode. Mas não parece ser esse o caso. Mais tarde, Adelir diria ao jornal Zero Hora: “Não era uma questão de vaidade. Era uma questão de saúde. Eu nunca descartei a cesariana, mas queria que essa fosse a última alternativa”.

Não sou favorável a demonizações, elas costumam empobrecer o debate. As médicas que deram início ao processo de sujeitação de Adelir estão inscritas numa tradição da medicina que dá ao médico o poder de controlar os corpos. Talvez sequer tenham questionado as relações produzidas por essa ideologia algum dia – ou mesmo tenham suspeitado de que precisassem questionar. Mas, ainda assim, podemos supor que também para elas tenha sido uma decisão angustiante, que também para elas não foi e não tem sido fácil ter obrigado uma mulher a se submeter a uma cirurgia, com todos os riscos de uma cirurgia, contra a sua vontade, e arrancar um bebê do seu corpo. Talvez elas tenham ficado com medo de serem responsabilizadas se algo acontecesse com Adelir e seu bebê. Talvez não tenham sido ensinadas a conduzir um parto normal nessas circunstâncias. Talvez, nesse quadro, só soubessem fazer uma cesariana.

Acho difícil acreditar que quisessem o mal de Adelir e sua filha. Obviamente, essas ponderações não as eximem da responsabilidade por seus atos. Mas, se quisermos avançar nesse debate, é preciso olhar pessoas como pessoas. Nem Adelir é uma heroína, nem as médicas, o promotor e a juíza são vilões. Nem as médicas, a juíza e o promotor são heróis, nem Adelir é uma vilã. Duas narrativas opostas que se digladiam nas redes sociais como se a vida fosse fácil assim.

O fato, aqui, é que as médicas Andreia Castro e Joana de Araújo mostraram-se incapazes de aceitar a escolha de Adelir. Buscaram na justiça os meios para impor sua decisão de fazer uma cesariana. Pediram ajuda para restaurar seu poder que, com uma recusa, Adelir tinha esvaziado. A justificativa: preservar a vida da mãe e do bebê, em risco iminente. No início da noite de 31 de março, o promotor de Justiça Octavio Noronha foi contatado pela Secretaria de Saúde de Torres. Por volta das 23 horas, entrou com a ação. Meia hora depois, a juíza Liniane Maria Mog da Silva deu a liminar.

A sequência de atos produziu a cena brutal: Adelir, em trabalho de parto, arrancada de sua casa e, em seguida, alijada do seu corpo. Medicina e Justiça se uniram para submetê-la, tornando público aquilo que é privado. Não fosse nossos olhos viciados em aceitar procedimentos invasivos com naturalidade, quando se inscrevem no âmbito da medicina, ter a barriga cortada e a filha tirada do útero, contra a vontade, seria uma cena de tortura forte até para o cinema. Que isso tenha se passado no aniversário de 50 anos do golpe que instaurou a ditadura civil-militar no Brasil é uma coincidência que pode provocar questões interessantes sobre as relações entre o Estado e os cidadãos na democracia.

A partir desse momento, esses dois poderes – a Medicina e a Justiça – constroem uma narrativa para Adelir, que pretendem impor como história única. Ela seria a mulher ignorante e irresponsável que botou em risco a vida da própria filha por conta de um capricho. Dessa construção mais elaborada para uma outra, a da “louca que tentou matar o próprio bebê”, foi só um clique nas redes sociais. É essa a mensagem de uma decisão – e de uma ação – como essa. Sabemos bem o que significa uma mãe supostamente não proteger o filho numa cultura como a nossa, que coloca a infância no pedestal do futuro. Precisamos entender, portanto, o tamanho do rótulo que tentaram – e talvez consigam – colar em Adelir, assinalando ela e todos os seus filhos, especialmente essa, que acabou de nascer, para toda a vida. Se conseguirem impor esse estigma, a perversão é quase sem nome.

No passado bem recente teria sido fácil impor essa história única sobre Adelir. No passado bem recente talvez Adelir não tivesse ousado discordar de um médico. Essa é uma mudança gigantesca. Nos últimos anos, milhares de mulheres no Brasil inteiro criaram fóruns de discussão, escreveram livros, fizeram filmes, produziram blogs, organizaram-se também institucionalmente para retomar a posse do próprio corpo na gestação e tirar o parto normal da marginalidade a que foi condenado pelo sistema de saúde brasileiro. Reabilitar o parto como ato natural e potente da mulher – e não como doença na qual os corpos são sujeitados a um outro. São mulheres de todas as profissões, e também médicas, cientistas, enfermeiras, parteiras e doulas. Nesses espaços, mulheres de todos os cantos do país e do mundo trocam informações como, num passado mais distante, antes que esse conhecimento fosse destituído pelo saber médico, consultavam mães, tias e avós. Quando necessário, promovem manifestações e atos públicos em favor do parto humanizado – e contra a violência obstétrica.

Renata Penna/Divulgação

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Essa rede tem sustentado simbolicamente Adelir e difundido uma narrativa que se contrapõe à outra, a da mãe desnaturada que precisou ser levada pela polícia ao hospital para fazer uma cesariana para salvar o bebê. A hashtag “SomosTodasAdelir” ganhou representação nas redes sociais.

Na sexta-feira (11/4), foram promovidos atos públicos em várias cidades brasileiras, denunciando o que aconteceu com Adelir como violação de direitos, violação concreta do corpo. Nessa narrativa construída nas redes sociais e nas ruas, Adelir é uma mulher violada pelo Estado.

Em São Paulo, dezenas de mulheres, muitas delas com bebês de colo, outras com barrigão de grávida, passaram a noite em vigília diante da universidade de direito mais tradicional do estado, no Largo São Francisco. Mulheres com diagnóstico semelhante ao de Adelir revezavam-se no microfone, na manhã de sábado, enquanto bandejas com pedaços de bolo passavam, como se estivessem numa visita de tia. Com a filha de 5 anos pela mão, Luka Franca, 28 anos, contou como, depois de três horas e meia de trabalho de parto, conheceu a menina pelo bumbum, já que ela estava sentada. “Vi aquele bumbumzinho roxo em formato de coração, parecia um picolé de desenho animado”, comparou, toda emocionada. “Esta é a Rosa. Mesmo estando sentada, ela nasceu com cabeça”, brincou. Tatiana Ubinha anunciou: “Depois de três cesáreas desnecessárias, eu rompi com o sistema”. Teve o quarto bebê, que carregava no colo, de parto normal, e está grávida do quinto. Natalia Tribeck contou que fez parto normal depois de duas cesáreas: “Descobri que meu corpo não era falho, o que era falho era o sistema”.

Na tentativa de desqualificá-las, muitos chamam essas mulheres de “as loucas do parto normal”. Poderia ser um elogio, não fosse o fato de que a tarja de “louca” sempre serve, a quem a coloca num outro, como uma desculpa para não escutar o que este tem a dizer. Sempre que as mulheres reivindicam a posse do seu corpo, ou são “loucas” ou são “vagabundas”. Seguidamente, os dois. Quando lutam por protagonismo e autonomia, em especial na gravidez, a estratégia é transformá-las em “exageradas”, “fanáticas”, “histéricas”. E, assim, tentar esvaziar seu discurso. Nesse embate, de novo essa tática ficou clara.

Renata Penna/Divulgação

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Adelir não é uma ativista dessa causa. Apenas uma mulher que ousou sonhar com um parto normal – aspiração ambiciosa no Brasil das cesarianas.

Desde que o caso se tornou público, visões se digladiam em artigos que defendem a necessidade ou não da cesariana de Adelir, ora com argumentos médicos e científicos, ora com argumentos jurídicos. Essa discussão é importante. Mas apenas se as causas que fizeram do Brasil um dos líderes mundiais de cesarianas forem de fato enfrentadas pelo poder público e pela sociedade, para além das intenções e do marketing eleitoreiro. Esse debate é tão acirrado porque, além dos poderosos interesses de mercado, o que está em disputa é algo muito mais profundo: o controle sobre o corpo das mulheres.

De qualquer modo, seja qual for a posição de cada um nesse debate, é preciso pactuar que há algo muito errado com os sistemas de saúde e de justiça de um país quando a única solução encontrada é arrancar uma grávida de sua casa no meio da noite e forçá-la a fazer uma cesariana. Há algo muito grave acontecendo com os representantes desses poderes quando defendem que uma violência como essa é legítima.

Nesse sentido, vale reproduzir aqui a frase estarrecedora do obstetra Corintio Mariani Neto, secretário da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), em entrevista à Folha de S. Paulo:

– Ainda bem que alguém com bom senso entrou na justiça para resguardar a vida dela e do bebê. Se mais (juízes) agissem assim, o médico estaria mais protegido para trabalhar com gestantes.

O grifo é meu. Quando um obstetra e representante de uma entidade de obstetrícia defende que é preciso a intervenção da justiça (e por consequência da polícia), para que médicos trabalhem com mulheres grávidas durante o parto, é hora de parar tudo e rever os princípios. Inclusive os nossos, já que a declaração não causou nem um décimo da estranheza que deveria.

Adelir Lemos de Goes foi violada pelo Estado. Nos seus direitos, no seu corpo. Arrancaram-lhe não só a filha do útero, mas também a esvaziaram de poder em um dos momentos mais radicais da vida de uma mulher. Submeteram-na, coagiram-na. Por ser sujeito e reivindicar seus direitos, ela foi reduzida pela força a um objeto de intervenção médica e jurídica. Mas, Adelir, eu gostaria de dizer a você: que enorme potência teve o seu “não”.

(Publicado no El País em 14/04/2014)

Como se fabricam crianças loucas

Os manicômios não são passado, são presente. Uma pesquisa realizada no hospital psiquiátrico Pinel, em São Paulo, mostra que, mesmo depois das novas diretrizes da política de saúde mental no Brasil, crianças e adolescentes continuaram a ser trancados por longos períodos, muitas vezes sem diagnóstico que justificasse a internação, a mando da Justiça. Conheça a história de Raquel: 1807 dias de confinamento. E de José: 1271 dias de segregação. Ambos tiveram sua loucura fabricada na primeira década deste século

 

Em uma noite de novembro de 2007, a psicóloga Flávia Blikstein escutou de uma menina duas perguntas. E descobriu que não tinha respostas. Flávia trabalhava num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infantil, em São Paulo, e encontrava-se na ambulância para levar a garota para sua primeira internação psiquiátrica. Maria, como aqui será chamada, tinha 14 anos. Era negra, alta e magra. Falava pouco, frases curtas. Gostava de brincar de boneca e de desenhar. Às vezes pintava as unhas, arrumava o cabelo, anunciando a adolescência. Maria se molhava o tempo todo, em pequenos rituais. Abria a torneira, fazia uma conchinha com as mãos e molhava os pés, as pernas, os braços. Fazia isso em qualquer lugar, causando vergonha à mãe. Talvez Maria estivesse esculpindo com a água os limites do próprio corpo. Quando fez a primeira pergunta à Flávia, ela ainda tinha as pontas dos dedos úmidas, e o seu olhar também era molhado:

– Por que eu vou ficar aqui?

Flávia descobriu que não tinha resposta.

Maria fez então a segunda pergunta:

– Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

Flávia descobriu que não tinha resposta também para essa. Não tinha resposta porque, ao contrário do que costuma acontecer quando crianças e adolescentes nos mostram a face do abismo, ela tinha escutado as perguntas. Escutado mesmo. A “menina louca” tinha indagado sobre a estrutura do Estado e da sociedade que a obrigava a dar o primeiro passo para dentro de uma instituição psiquiátrica. Talvez Maria intuísse que esse passo poderia ser longo. Talvez Maria adivinhasse que os dentes do sistema estavam à sua espera, logo ali.

Flávia abraçou Maria. E pediu desculpas por não saber responder. Maria entrou, carregando olhos molhados e pontos de interrogação.

O que Maria perguntou à Flávia, perguntou a todos nós: por que, no século 21, crianças e adolescentes brasileiros, a maioria filhos de famílias pobres, continuam a ter suas vidas mastigadas num hospital psiquiátrico. A “criança louca” fez aos normais a pergunta mais lúcida: por que a condenavam a uma existência de manicômio. A habitar um mundo de dor, vagando entre paredes, desvestindo a si mesma para vestir um uniforme, sem direito ao desejo. Por que lhe negavam a humanidade tão cedo.

Flávia não pôde esquecer as perguntas, menos ainda a sua falta de respostas. Dedicou-se a buscá-las. Encontrou-as no arquivo do Núcleo da Infância e da Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel. O Pinel é uma das instituições de referência para internação de crianças e adolescentes com problemas mentais no estado de São Paulo. Flávia sabia que aquilo que se costuma chamar de arquivo morto era bem vivo. Então, botou-o para falar. Fechou-se na pequena sala bordada de estantes durante todos os sábados de um ano inteiro. Analisou 451 casos, correspondentes a 611 internações ocorridas entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Destes, 79% das crianças e adolescentes haviam sido internados apenas uma vez. Os 21% restantes tiveram de duas a sete reinternações. Alguns casos, que continuaram a voltar ao Pinel, ela acompanhou também nos anos de 2010 e 2011. Flávia queria saber qual era o percurso que levava crianças e adolescentes ao hospital psiquiátrico como primeira providência – e não como exceção pontual e por tempo determinado.

O arquivo do Pinel ficava logo abaixo da enfermaria das crianças e adolescentes. Enquanto pesquisava, Flávia podia ouvir os gritos. Percebeu, porém, que mais do que gritos havia um silêncio longo. Um silêncio, nas suas palavras, “estranho e profundo, um silêncio que não imaginamos num lugar cheio de crianças e adolescentes”. Dentro do arquivo, não. Os prontuários contavam histórias. Ainda que a voz de meninos e meninas ressoasse mais nas ausências, nas entrelinhas, os prontuários diziam de infâncias aniquiladas numa vida de manicômio. E mostravam por que caminhos a fabricação de crianças loucas é uma verdade profunda do Brasil. Flávia chamava o arquivo de “sala das almas”. E as almas falavam.

Duas crianças, que se transformaram em adolescentes no hospital psiquiátrico, contaram histórias que poderiam ilustrar livros escabrosos sobre os manicômios do passado, mas que se passaram na primeira década desse século. Aqui, elas serão chamadas de José e de Raquel. José permaneceu confinado por 1271 dias – ou três anos e cinco meses. Raquel, por 1807 dias. Ficou trancada dos 11 aos 16 anos – e de lá foi transferida para outra instituição psiquiátrica. José e Raquel estavam segregados no Pinel, a mando da Justiça, sob reiterados protestos da equipe técnica. Foram depositados como coisas no Pinel porque ainda é este o destino dado a crianças como eles no Brasil.

Por quê?

É preciso prestar muita atenção às respostas que Flávia encontrou. Sua escuta de três mil horas dentro do arquivo transformou-se numa dissertação de mestrado em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Somando-se a trabalhos fundamentais de outros pesquisadores do tema, tanto em São Paulo como em vários estados do Brasil, a investigação mostra por que os manicômios persistem apesar das diretrizes da política de saúde mental e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Lei nº 10.216, de 2001, orientada pela reforma psiquiátrica, prioriza o atendimento em rede, em serviços inseridos na comunidade, perto da família, e determina que a internação só pode ocorrer depois de esgotados todos os recursos extra-hospitalares. Não é o que acontece em casos demais.

“Medievais”, “desumanos” e “criminosos”. Essas são algumas das palavras usadas para definir os hospícios desde que a luta antimanicomial se intensificou a partir do final dos anos 1970 e conquistou avanços significativos nesse século. A pesquisa mostra, porém, que mesmo instituições e profissionais que tentam fazer diferente são seguidamente vencidos pelas engrenagens e pela escassez de serviços públicos de base. Na prática, ainda hoje, é de manicômio e de vida manicomial que se trata em uma parte significativa dos casos, uma realidade só possível pelo descaso quase absoluto da sociedade com o destino dessas crianças, em geral filhas de famílias pobres. Ao fazer o arquivo morto falar, Flávia constrói respostas que precisam ser escutadas se quisermos, de fato, estancar o crime de fabricar crianças loucas – e, muitas vezes, também o de conseguir enlouquecê-las.

Raquel nasceu em 1994. A mãe estava presa por tráfico de drogas, não porque era chefe de uma organização criminosa, mas porque vendia uma pequena quantidade para sustentar seu próprio vício. Esse destino é comum nos presídios do país, é também gerador de órfãos de mães vivas. Pobre demais para dar conta dela, a avó colocou Raquel num abrigo aos cinco anos. A menina é de imediato descrita como “agressiva”. E, por esse motivo, é afastada das outras crianças. Passa a morar com o que se chama de “mãe social”, isolada numa casa nos fundos do abrigo. A escolha, como mostra Flávia, evidencia que, desde sempre, a resposta à agressividade de Raquel é a exclusão. Obviamente, também não deu certo. De abrigo em abrigo, Raquel virou aquela que “não dava certo” em abrigo nenhum.

Talvez valesse a pena perguntar se a agressividade, ao se olhar para o contexto e as circunstâncias, não era o principal traço de sanidade de Raquel. Mas o direito à história é o primeiro a ser arrancado das “crianças loucas”. Ela já tinha quase tantos rótulos quanto anos de vida: filha de presidiária, abandonada, agressiva, não dá certo… Raquel só era vista por estigmas e fragmentos.

Negra como Maria, ela foi internada pela primeira vez em 2005, aos 11 anos. Entrou no sistema por ordem da Justiça. Antes de seguirmos o seu destino, é crucial entender as duas formas de entrada nas instituições psiquiátricas, identificadas pela pesquisa. Nelas se encontra uma das chaves para compreender a fabricação das crianças loucas no Brasil atual. Assim como os caminhos pelos quais é mantida viva a função histórica dos manicômios como lugar de segregação daqueles que são decodificados como perigosos para a ordem social, ainda que sejam apenas pobres e abandonados.

Em pouco mais da metade dos casos – 55% – o pedido de internação psiquiátrica foi feito por familiares e por diferentes serviços da rede de saúde. Nos outros 45%, crianças e adolescentes foram internados por ordem judicial. Estes são os dois caminhos de entrada nos hospitais psiquiátricos. A pesquisa mostrou, porém, algumas diferenças fundamentais para compreender o problema: no período pesquisado, a Justiça internou mais cedo, por mais tempo e mais vezes. A maioria dos casos era de adolescentes, mas as crianças respondiam por 20% das internações por ordem judicial. Pela via da rede de saúde, menos de 6% eram crianças. Por ordem judicial, o tempo médio de internação era quase o dobro (55 dias contra 30). A Justiça também foi responsável por 92% das internações com duração maior do que 150 dias. Entre os 14 casos que sofreram internações de quatro a sete vezes, 12 tinham sido confinados por ordem judicial.

Entre eles, Raquel. Dos 11 aos 16 anos, ela foi internada seis vezes no Pinel. A queixa da primeira vez: “Paciente institucionalizada há oito meses (nome de outro hospital), com transtorno de comportamento, heteroagressiva (agressividade dirigida a terceiros), em tratamento ambulatorial pouco resolutivo”. Depois de seis dias, o Pinel deu alta e a menina foi encaminhada a um abrigo. Oito dias mais tarde, ela foi novamente internada por ordem judicial: “Paciente portadora de transtorno de conduta grave. Uma vez no abrigo, voltou a ficar agressiva. Crítica seriamente comprometida, ameaçadora”. Outros 19 dias de internação, e o Pinel pediu à justiça que ela tivesse alta. Passada uma semana, o pedido foi atendido, e ela voltou ao abrigo. Mais três dias e Raquel de novo foi internada no Pinel por ordem judicial: “Ao retornar ao abrigo volta a apresentar quadro importante de liberação de agressividade e falta de controle de impulsos”. Raquel ficou trancada no Pinel por 1004 dias.

Nessas três primeiras vezes, tornou-se evidente que a justiça internava e o hospital liberava, porque não havia razão para manter Raquel confinada. Documentos anexados ao prontuário mostram que a direção da instituição enviou diversos relatórios à justiça, tanto informando da alta médica da paciente quanto pedindo encaminhamento a um abrigo e tratamento ambulatorial. Num dos documentos, a direção afirma: “Nosso hospital está fazendo o papel de Abrigo para esses adolescentes. Sabedores dessa ilegalidade pedimos com urgência uma resolução para esse problema”. E, em outro ofício: “Atualmente a adolescente continua residindo na enfermaria para tratamento de pacientes agudos, encontra-se longe da escola e com enormes prejuízos psicológicos e sociais”.

A cada três meses, o Pinel mandou ofícios à justiça. Só foi atendido depois de quase dois anos e nove meses. Mas a vida de Raquel fora do hospital durou apenas uma semana. Mais uma vez ela foi internada na instituição. O motivo: “Evolui com episódios recorrentes de agressividade, fugas necessitando atendimento em unidades de emergência. Há dois dias em acompanhamento no CAPS sem aderência ao tratamento”. Depois de mais 413 dias de internação, Raquel fugiu do hospital. Voltou espontaneamente dois dias mais tarde. Para onde mais ela iria, já que o longo período de confinamento esgarçou ainda mais os frágeis vínculos familiares e a impediu de criar novos?

Raquel permaneceu internada mais 244 dias, antes de ser encaminhada a outro abrigo. Quinze dias fora do hospital, e a justiça mandou-a de volta: “Jogou fora seus remédios, quebrou o vidro da brinquedoteca, feriu-se, pegou o telefone para se enforcar e fugiu para uma cidade vizinha dizendo que ia procurar seus avós”.
Na sexta vez, está registrado no prontuário: “A paciente verbaliza que a maior dificuldade que enfrentou no retorno ao abrigo foi uma sensação de inadequação na convivência com adolescentes sem problemas psiquiátricos; infelizmente, criou-se um vínculo inadequado iatrogênico (provocado pela própria prática médica) de segurança com o ambiente de internação, o que se configura como Hospitalismo”.

Em outras palavras. Raquel não sabia mais viver fora do hospital psiquiátrico, seus vínculos estavam dentro da instituição. Se tinha a algum afeto, era ali. Era no hospital que ela sabia como se comportar, identificava uma rotina, fazia amigos entre outras crianças e adolescentes como ela ou realmente doentes. Considerava profissionais de saúde como parentes. E, mais tarde se saberia, quebrava coisas e agredia pessoas quando era mandada para o abrigo porque sabia que assim voltaria àquele que era o único lugar parecido com um lar que tivera na vida.

Nessa época, a direção do Pinel mandou mais um ofício à justiça: “Aproveito a oportunidade para dizer da indignação dessa equipe técnica que, por diversas vezes, acionou o judiciário solicitando a desinternação desses adolescentes que, na ocasião, precisavam apenas de um abrigo para moradia e dar continuidade ao atendimento ambulatorial, tendo assim seu direito constituído”.

No total, Raquel ficou trancada no Pinel cinco anos. Sublinha-se: sem necessidade. Sua vida cabe em três caixas do arquivo. Mas esse não foi o fim de sua trajetória manicomial. Em 2010, aos 16 anos, ela foi transferida para outro hospital psiquiátrico.

O diagnóstico que sustentou a condenação de Raquel a uma vida manicomial é bastante revelador: “transtorno de conduta”. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), “os transtornos de conduta são caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante. Tal comportamento deve comportar grandes violações das expectativas sociais próprias à idade da criança; deve haver mais do que as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente e se trata de um padrão duradouro de comportamento (seis meses ou mais)”. Essa “patologia”, assim como outras que compõem a CID, é contestada por parte dos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, assim como por profissionais de outros campos do conhecimento. Mas, ainda que se aceite que essa doença de fato existe, o tratamento recomendado é inserção comunitária – e não asilamento.

Em sua investigação, Flávia mostrou que o diagnóstico de “transtorno de conduta” tem sido usado de modo generalizado – e quase displicente – para justificar internações em hospitais psiquiátricos. Tanto na internação pela via da rede de saúde como na internação por ordem judicial, o principal diagnóstico é esquizofrenia. Mas o “transtorno de conduta” tem aumentado. Numa comparação com uma pesquisa anterior, na qual Julia Hatakeyama Joia analisou os prontuários do Pinel entre fevereiro de 2001 e agosto de 2005, Flávia constatou que os chamados “transtornos do comportamento e transtornos emocionais” – dos quais “transtornos de conduta” correspondem a 75% dos casos – cresceram como motivo de confinamento. Em 2002, eram causa de 5,26% das internações. Passaram para 7,14% em 2005. E alcançaram 15,2% das ocorrências em 2009. “Em muitos casos, é diagnosticado em crianças com episódios de descontrole e agressividade, sem que exista uma análise sobre sua história e contexto de vida”, afirma a psicóloga. Outro dado comparativo de extrema relevância é que, entre 2001 e 2004, a proporção de internações no Pinel por ordem judicial era de 23% do total. De 2005 a 2009 saltou para 45%.

O “transtorno de conduta” é bem mais recorrente na internação por ordem judicial do que na internação pela via da rede de saúde. É o diagnóstico de um quarto das internações com duração maior do que 150 dias e por mais de um terço dos casos de crianças e adolescentes internados de quatro a sete vezes. É o rótulo de Raquel – e também o de José. Meninos representam quase 80% das crianças e adolescentes internados, um dado cujas razões precisam ainda ser melhor compreendidas.

José tinha 10 anos quando deu o primeiro passo para dentro do Pinel, por ordem judicial. Tinha passado, segundo o relatório da instituição, por “maus tratos, negligências e privação afetiva”. Apresentou “comportamentos desafiadores e transgressores, o que resultou em rejeição e abandono familiar, principalmente de sua mãe”. A mãe decidiu entregá-lo para o pai, na Bahia. No dia da viagem, José recusou-se a ir. Ele não queria se separar da mãe. Para não ser obrigado a viajar, por duas vezes tentou se jogar diante dos carros, na rua. A “crise de agitação” levou à sua primeira internação. A duração: 623 dias.

Quando teve alta, José foi encaminhado a um abrigo. Permaneceu apenas três dias antes de ser internado novamente. Dessa vez, ficou trancado por 255 dias. José fugiu. Para onde? Para a casa de mãe. Mais uma internação, por “agitação psicomotora com intensa heteroagressividade, baixa tolerância à frustração, sem crítica, e risco de vida”. Dessa vez, ficou 84 dias na instituição antes de fugir novamente. Para onde? Para a casa da mãe. Na quarta e última internação, ele permaneceu 309 dias no Pinel. Foi então encaminhado para um abrigo. De onde fugiu. Para a Bahia, em busca de um lugar e de um afeto.

No total, José ficou 1271 dias trancado no Pinel: três anos e cinco meses. Sobre José e Raquel, a equipe técnica do hospital enviou um ofício à Justiça, em 2008: “(…) Estão em alta médica, mas permanecem nesta enfermaria psiquiátrica para tratamento de pacientes com transtornos mentais agudos, privadas de ter uma vida digna, por não terem retaguarda familiar e não existirem vagas em abrigos”. Sobre esse destino, Flávia afirma: “As internações são motivadas por uma combinação complexa, que resulta numa situação de vulnerabilidade. A resposta da internação psiquiátrica, além de redutora de complexidade, é ela mesma produtora de maior sofrimento. A internação por ordem judicial revela uma concepção sobre a infância e a adolescência pautadas no medo e no perigo. Propõe uma resposta única a todas as situações, sem considerar diferenças, singularidades e contextos. Reduz crianças e adolescentes ao status de paciente psiquiátrico perigoso, produzindo sua cronificação”. É assim que se fabricam crianças loucas.

Vale a pergunta: fugir pode ter sido um ato de sanidade de José, na tentativa de não ser enlouquecido? De algum modo, apesar de tudo e de todos, ele parece acreditar que existe um lugar para ele, um lugar com afeto. José, Raquel e Maria nos mostram que não há desamparo maior do que o de uma criança num manicômio. Ninguém está mais sozinho nesse mundo do que José, Raquel e Maria. Expostos a uma sociedade que, além de não protegê-los, os enlouquece. Eles fogem, como José, eles quebram tudo, como Raquel, eles fazem perguntas, como Maria. Mas estão sozinhos. E cada um de seus atos de resistência é mais um carimbo de sua suposta loucura num arquivo morto.

Ao analisar os prontuários, Flávia conseguiu identificar claramente as diferenças entre a internação via rede de saúde e a internação por ordem judicial. Essas são conclusões cruciais do trabalho, porque apontam o que funciona e o que não funciona, apontam saídas. Na rede de saúde, a maior parte dos encaminhamentos é feita pela emergência de hospitais, o que não é o melhor percurso. Apenas 8% são enviados para internação por Unidades Básicas de Saúde ou por CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) infantil, que deveriam ser a porta de entrada para crianças e adolescentes com sintomas de doenças mentais. Esses dados demostram a falta desses serviços, causando desamparo na população que necessita de assistência pelo SUS. Em vez de começarem o tratamento pela rede básica, inserida na comunidade, o iniciam pelo fim e por aquilo que é uma exceção necessária num mínimo de casos: a internação. A hipótese de Flávia é de que, se houvesse mais serviços comunitários de saúde mental, como está previsto na legislação, é provável que a necessidade de internação fosse bem menor. Em vez do hospital psiquiátrico, uma rede articulada, com investimento maior em equipes de saúde mental, na capacitação e implantação do Programa de Saúde da Família e de centros de atenção psicossocial. “A patologização das crianças em situação de vulnerabilidade social evidencia a precariedade da rede de atenção e cuidado, e também a insuficiente articulação entre as políticas públicas nos campos da educação, saúde, habitação e lazer”, afirma.

A diferença é clara na análise dos dados. Nos casos encaminhados pelos Centros de Atenção Psicossocial, a média de dias de internação é mais baixa do que pelos outros caminhos. Quando crianças e adolescentes são cuidados pelos CAPS depois da alta, apenas 3% são reinternados. “Isso mostra que os serviços comunitários funcionam, mas são em número insuficiente”, afirma Flávia. “Nos pacientes encaminhados pela rede de saúde, o hospital funciona como enfermaria de crise. A maioria é de adolescentes de 15 a 17 anos, em seu primeiro surto psicótico, que são cuidados e liberados. Já na internação por via judicial, o hospital funciona como instituição de asilamento.”

O desafio exposto pela pesquisa é também o de completar a reforma psiquiátrica no Brasil. Crianças e adolescentes, segundo a legislação, devem ser tratados dentro da comunidade, junto à família, sem afastamento da escola. A doença, se de fato existe, deve ser compreendida como uma das várias características – e não como a verdade única sobre aquela criança e adolescente. Mesmo a internação, se for necessária, deve ser entendida como uma parte da história – e não como a história inteira. A internação é um momento, não um destino.

Flávia permanecia das 10h até as 21h de cada sábado na sala das almas do Pinel. Numa noite, estava tão mergulhada nos prontuários que se esqueceu da hora e se atrasou para sair. O guarda do portão recusou-se a deixá-la ir. Eram as regras. Ele não estava ali para pensar sobre elas, mas para cumpri-las. E Flávia soube o que era estar entre muros – e não ser escutada. Depois de um tempo que pareceu largo demais, Flávia conseguiu provar que era uma psicóloga, fazendo um trabalho de pós-graduação para a PUC. Acredita que o fato de ser branca, loira e de olhos azuis possa ter ajudado na sua “soltura”. Mas, ao abrir o portão, o segurança alertou: “Na próxima vez, fica”. Por um momento, trêmula, Flávia teve uma tênue aproximação do que sentiram Raquel, José e Maria, apenas três entre as centenas de “crianças loucas” fabricadas nesse século.

Ao final de sua estadia no arquivo morto que ela descobriu ser vivo, Flávia finalmente tinha as respostas para Maria.

1) Por que eu vou ficar aqui?

– Porque as instituições que compõem a rede de atendimento à criança e ao adolescente trabalham de forma desintegrada e não conseguem atender às suas necessidades.

2) Quem tá aí? Quem vai dormir no quarto comigo?

– As crianças e os adolescentes que tiveram seus destinos produzidos ativamente pela desresponsabilização e pelo abandono.

Maria perguntou. Flávia escutou. Escutou de fato não quando a ouviu, mas quando fez o movimento de buscar as respostas. Elas estão aí, mas só provocarão mudança se o Estado, os governos e a sociedade as escutarem. Se nós as escutarmos. É, afinal, de escuta que se trata.

Flávia desconhece o paradeiro de José. Raquel foi libertada ao completar 18 anos. Mas o que há para Raquel depois do que fizemos com ela? É possível, é moral, é decente dizer à Raquel: vá estudar, vá trabalhar, vá construir uma vida? “É uma marca tão profunda que pessoas como Raquel, mesmo saindo da instituição, continuam institucionalizadas”, diz Flávia. “A institucionalização parece uma grande máquina que suga a potência humana, criando seres humanos sem desejo. A institucionalização é a patologia mais grave da saúde mental.”

Aos 19 anos, Raquel hoje perambula pelas ruas e albergues de São Paulo, ao redor das instituições. Às vezes declara-se “louca” e é internada por curtos períodos. Raquel sempre pergunta pelo seu melhor amigo:

– Onde está José?

(Publicado no El País em 17/03/2014)

Escutem o louco

O homem que empurrou uma passageira nos trilhos do metrô desnuda o momento perturbador vivido pelo Brasil

 

De repente, o taxista aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval (28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso, continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu, confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.

Há algo de trágico nos loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o que diz aquele que o cometeu.

Mas o que essa escolha – a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o pessoal do mundo.”

O que há de particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em que vive.
Ao interrogar sobre os sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias. Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus. Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo. Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.

O discurso do louco é encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” – foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu, as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou: Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.

Diante da violência que irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco. Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.

No início de fevereiro, a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram depredados.

Os protestos de junho de 2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20 centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de 20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro, tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada como uma promessa para o segundo seguinte.

Então o louco vai lá e empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo, tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela cordialidade.

Talvez estejamos todos não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação, interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.

Os protestos iniciados em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer. Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência de todas.

É preciso ser muito surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas construções do imaginário.

Escutem o louco. Para não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.

(Publicado no El País em 03/03/2014)

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