Três histórias reais e uma despedida

Depois de 233 segundas-feiras, minha última coluna

Ele subia a rua em passos descalços, a sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, a camisa a braços mais curtos. A barba e o cabelo eram seus e eram livres. Ele subia a rua, mas seu rosto me dizia que poderia estar descendo. Não parecia importante para onde estava indo. O importante era o que segurava com firmeza entre as mãos encardidas: uma embalagem amassada de alumínio com arroz. Talvez tivesse mais do que arroz, mas no ângulo de onde eu o observava não podia ter certeza. Eu me perguntava se ele procurava um lugar para comer seu almoço tardio quando, de repente, ele freou os pés. Vi seu olhar se habitar em uma face que se tornava outra. Era um homem, agora, parado no meio da calçada, subitamente presente. Perplexa com a repentina mudança, segui o seu olhar.

Diante dele, uma moça bonita saía de uma agência bancária com uma amiga. Era para ela que ele olhava. A beleza dela o havia despertado. Estacionado no meio da calçada, ele não era apenas um homem, mas um homem tocado por um encantamento. E talvez não tantas mulheres assim tenham recebido alguma vez um olhar como aquele. Seu corpo fez então pequenos movimentos hesitantes, o que ele iria fazer?

Só existia o tempo de uma respiração antes de ela passar por ele sem vê-lo. Ele estendeu os braços e ofereceu sua pobre marmita.

Nenhum traço de vulgaridade, nada no seu gesto era barato. Era apenas tudo o que ele tinha. Pude ouvir a sua voz: “Você quer?”.

Meio assustada, meio constrangida, ela disse que não, obrigada, e saiu dando risadinhas com a amiga.

Ele apagou o olhar e começou a descer a rua, sem lembrar que antes estava subindo.

Tudo isso aconteceu em um minuto. Um minuto de São Paulo. Era início da tarde da quinta-feira passada, na rua Teodoro Sampaio, entre a Lisboa e a João Moura. Ao espiar seus passos pensei que alguém que cruzasse com ele, se o visse, veria apenas o que não era dele. As calças, a camisa, a sujeira. Sem saber que um minuto atrás ele havia empreendido um gesto desmedido: tinha oferecido tudo o que possuía e sido recusado.

Quis compartilhar esse minuto, transformá-lo em palavra, mesmo que a palavra jamais dê conta do movimento da vida. E com essa pequena história real me despedir desta coluna. Tem sido dias de muitos acontecimentos, às vezes de grandes tragédias, para onde se olha tudo parece grandioso. São tempos em que os fatos reivindicam o adjetivo de “histórico” antes de o dia acabar. Quis encerrar minha trajetória de mais de quatro anos neste espaço com um desacontecimento, a delicadeza mesmo nas horas brutas.

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Na semana de 30 de setembro a 5 de outubro, indígenas de diferentes povos e regiões do país planejam se reunir em Brasília para uma mobilização em defesa da Constituição. Escutar ou não o que têm a dizer definirá uma ideia de Brasil. Hoje, a bancada ruralista é a mais influente do Congresso Nacional. Suprapartidária, representa não a massa de agricultores, mas os grandes latifundiários. Se corresponde a uma minoria no conjunto da população, seu poder no Congresso é enorme. Um dos principais focos de sua atuação é avançar sobre as terras públicas, fazendo com que se tornem disponíveis para ganhos privados. Para isso, mira nas terras públicas destinadas aos povos indígenas, cujo direito originário a essas terras é reconhecido e assegurado pela Constituição de 1988. E trabalha para difundir entre a população três máximas: 1) a de que é necessário disponibilizar mais terras para a agricultura se o Brasil quiser se desenvolver; 2) a de que os índios têm terra demais e são um entrave ao desenvolvimento; 3) a de que só é um bom brasileiro aquele que “produz” – e produz em um modelo determinado, que limita a terra à condição de mercadoria.

Nenhuma dessas máximas se sustenta, mas seus defensores contam com a desconfiança de parte da população com os indígenas para transformá-las em “verdades” repetidas sem questionamento (leia aqui). Desconfiança que permitiu os genocídios que mancharam de sangue os últimos séculos e chegam aos nossos dias (leia aqui). Uma pesquisa da Embrapa já mostrou, para citar apenas um exemplo, que há 58,6 milhões de hectares só de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. Hoje há tecnologia para aumentar a produtividade dessas áreas – e a melhoria da produtividade é o que separa os setores competentes do agronegócio dos incompetentes, já que a terra não é ilimitada. Acreditar que há muita terra nas mãos dos índios, que têm sido os grandes protetores da biodiversidade, é quase uma afronta à inteligência da população. Basta verificar a quantidade de terras nas mãos privadas de alguns membros da bancada ruralista e fazer as contas.

É bastante interessante que o direito à terra seja tão vorazmente defendido quando se trata da posse privada, mas, no caso dos povos indígenas, esse mesmo direito seja constantemente contestado, ainda que eles estivessem aqui muito antes da chegada do primeiro europeu. O ponto é que os povos indígenas têm direito ao usufruto dos recursos de terras públicas – e o que os ruralistas querem garantir é a posse privada dessas mesmas terras e recursos. Assim, elas deixariam de ser públicas, destinadas à posse permanente dos indígenas, para a reprodução do seu modo de vida – ou, as muitas ainda não demarcadas, jamais voltariam a ser públicas para o usufruto coletivo dos indígenas.

Para alcançar esse objetivo, é preciso esvaziar o artigo 231 da Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas suas terras originárias. No parágrafo sexto desse artigo, está previsto que apenas em condições excepcionais, “ressalvado relevante interesse público da União”, esse direito pode ser afetado. Cabe a uma lei complementar definir em quais casos excepcionais isso pode acontecer – ou o que é “relevante interesse público da União”. A proposta que tramita no Congresso é o Projeto de Lei Complementar 227/2012. Nele, os casos em que o interesse “público” se sobrepõe aos direitos dos povos indígenas são tantos (mineração, assentamentos agrários, faixas de fronteiras com núcleos populacionais, posses anteriores à Constituição de 1988, entre outros), que, na prática, as Terras Indígenas não seriam mais dos povos indígenas. E o que era regra vira exceção, violando a carta constitucional.

Para complementar o golpe contra os direitos dos povos indígenas, está em curso, entre outros projetos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000. Ela retira do Executivo a prerrogativa de demarcar as Terras Indígenas e a transfere para o Congresso. A comissão que vai analisá-la já é dominada pela bancada ruralista. Somados, o PLP 227 e a PEC 215 vão, na prática, tornar remota a possibilidade de demarcar e homologar Terras Indígenas ainda não amparadas pelo Estado e, ao mesmo tempo, desamparar as já asseguradas. Completa-se o esquema perfeito para que as terras públicas de usufruto dos povos indígenas tornem-se disponíveis para ganhos privados.

É para barrar essa versão mais sofisticada de genocídio que lideranças de diferentes povos indígenas estarão em Brasília no aniversário de 25 anos da Constituição de 1988. Cada povo representa uma visão de mundo, uma cosmogonia particular, uma forma de se relacionar com a terra e com os recursos naturais. Um jeito diverso de ser brasileiro que, junto com o jeito de ser brasileiro dos ribeirinhos e dos quilombolas, permitiu a preservação do que ainda existe de floresta em pé. Se uma parte significativa da população brasileira continuar acreditando que nada disso lhe diz respeito e que a bancada ruralista a representa, os povos indígenas estarão sozinhos.

É uma escolha. Mas é importante que essa escolha seja consciente, porque é um projeto de nação e de futuro que está em jogo.

É também com esse questionamento que encerro esta coluna. Busquei ocupar este espaço com o sentido de iluminar os cantos escuros dos acontecimentos e, principalmente, para acrescentar dúvidas novas ao cotidiano de quem me lê. Acredito que mais importante do que concordar ou discordar é estar aberto para qualificar as questões de nosso tempo histórico e, com elas, alargar o mundo de dentro e o de fora.

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Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba.

Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.

Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2013)

 

Vizinho indiscreto

Um fotógrafo tem o direito de se posicionar diante da janela, com uma lente potente, para registrar cenas privadas e depois exibi-las?

Desde que, anos atrás, ouvi as primeiras notícias de uma nova tendência no mundo da fotografia, a de registrar a vida privada dos vizinhos, mudei meus hábitos dentro de casa. Passo bastante tempo entre paredes íntimas, porque trabalho em casa, e sempre gostei das cortinas abertas, a luz entrando, o máximo bem mínimo de amplitude numa cidade como São Paulo, com prédios, janelas e outros mundos dentro delas por todos os lados. Mas, com medo de uma lente indiscreta, passei a fechar as cortinas de forma que nenhum olhar desconhecido, ninguém que não tenha batido na minha porta pedindo licença para entrar, possa me alcançar. A possibilidade de me descobrir numa exposição de fotos ou num site da internet, mesmo que meu rosto não possa ser reconhecido, alterou a minha vida mesmo antes de se concretizar.

Em agosto, a justiça americana deu uma decisão favorável ao fotógrafo Arne Svenson, que havia sido processado por dois de seus vizinhos depois de expor retratos feitos de sua janela. Com uma lente de grande alcance, o olhar de Svenson penetrou para além dos vidros de um prédio no bairro de Tribeca, em Nova York. A série de retratos foi exibida na exposição intitulada The Neighbors (Os Vizinhos). Svenson teve o cuidado de não mostrar o rosto dos fotografados, mas as pessoas se reconheceram. Uma delas sentiu-se desconfortável ao identificar objetos do quarto da filha. A simples ideia de que havia alguém espionando a sua vida privada provocou mal-estar. As fotos foram oferecidas pela galeria por valores que variavam de US$ 6.200 a US$ 8.400.

A exposição provocou muita discussão e rendeu vários artigos na imprensa americana: o que fazer quando a liberdade de expressão de um invade a privacidade de outro? Na sentença favorável ao fotógrafo, a juíza diz: “Arte é liberdade de expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda (da Constituição)”. Mas será que a questão se resume a saber qual dos conceitos – liberdade de expressão ou privacidade – se impõe sobre o outro?

Arne Svenson afirmou que o veredicto foi “uma grande vitória para os direitos de todos os artistas”. E reafirmou sua intenção ao fotografar os vizinhos: “Eu acredito que aspectos inconscientes, não ensaiados da vida, são mais bonitos para fotografar, por serem mais abertos à interpretação, à narrativa”, disse ao jornal britânico The Guardian. “Um momento dramático tem o poder único da ação, mas os pequenos e conectados momentos são como marcamos nosso tempo na Terra.” E concluiu, lindamente: “Estou muito mais interessado em registrar a respiração entre as palavras do que as próprias palavras em si mesmas”.

No Brasil, Felipe Morozini fez 180 mil fotos de sua vizinhança nos últimos dez anos, da sacada de seu apartamento, localizado no 13o andar de um prédio do centro de São Paulo. Algumas fotos mostram pessoas nuas ou com roupas íntimas, em suas tarefas rotineiras. Morozini disse à Folha de S. Paulo: “Não me sinto desconfortável por mostrar essas pessoas. Não busco a falha do outro, mas a poesia”. No texto de apresentação da sua obra numa galeria, esse olhar que atravessa a janela dos vizinhos é apresentado de forma poética:

“É tudo verdade. Num prédio da Avenida São João, em São Paulo, um homem de corpo dourado e cabelos grisalhos todos os dias senta-se na varanda para olhar uma coleção de relógios. No outro prédio, todas as manhãs uma mulher bate bifes com um martelo de carne, no mesmo ritmo do sexo bruto que vive todas as noites. Um cachorro toma sol numa varanda cujo piso é trocado frequentemente: de ardósia para lajota para cimento. Um homem jovem numa janela segura uma câmera e diariamente invade em zoom a vida dos vizinhos, registrando esses hábitos e mazelas. Depois, analisa as imagens e acha pedaços de poesia inintencionais. Amplia então a fotografia de uma mulher nua, numa área de serviço cujas paredes são deliciosamente gastas pelo tempo. Ela segura um espelho, que reflete seu bico do seio. O acaso tem uma face erótica, revela a fotografia de Felipe Morozini. Que o artista tenha escolhido a luz, o dia em que roupas coloridas formavam uma curva na parede cinza, e tenha esperado o corpo da mulher repetir a linha escura vertical que centraliza a composição. Aceito. Mas não foi ele quem mirou o espelho para o mamilo no instante certo. Foi o acaso. Extrativismo estético autossustentável: o fotógrafo colhe migalhas do belo que existem naturalmente no mundo real”.

As fotos são de fato belas e emocionam. Dão transcendência à nossa rotina de minoridades. Nos enxergamos no pequeno gesto do outro, nos descobrimos próximos daquele que pensávamos desconhecer. Nossos passos claudicantes pela casa e pelos dias se revelam um balé poético. Tanto os retratos de Svenson quanto os de Morozini evocam as pinturas do artista americano Edward Hopper (1882-1967), com sua solidão pungente. Como alguém que gosta de fotografia e gosta de arte, o trabalho desses fotógrafos me dá muito prazer. Mas, como alguém que poderia estar no lugar do fotografado, me causa mal-estar. Como superar esse impasse?

Quando alguém confronta Svenson com a questão da moralidade na obra sobre seus vizinhos, ele costuma defender-se dizendo: “Eu não fotografo nada lascivo ou degradante. Não estou fotografando os moradores como indivíduos específicos, identificáveis, mas como representações da humanidade”. Acredito que ele acredita nisso. Porque é uma das verdades possíveis. Mas há outras.

Não é surpreendente que alguém que se reconheça nas fotos ou reconheça partes do seu corpo ou da sua casa seja incapaz de se ver como “uma representação da humanidade”. O complicador é que aquele que se reconhece só pode se reconhecer como um “indivíduo específico”. Nós, que nos reconhecemos nele, enxergamos apenas a “representação da humanidade”, mas ele, o humano singular, se vê primeiro como indivíduo. O complicador é que aqueles que ali representam a humanidade são também aqueles que vivem a sua vida singular. Essa é a força artística do retrato e também o seu dilema ético.

Quando Svenson diz que não fotografa nada lascivo ou degradante, ele também está assumindo, nas entrelinhas, que viu atos que interpretou como lascivos e degradantes e escolheu não fotografá-los ou, pelo menos, não exibi-los. Não é um enorme poder, o de escolher qual parte da vida íntima de um outro pode ser mostrada, e isso sem que este outro saiba sequer que teve seu cotidiano documentado? Ou o enorme poder de espionar a vida dos outros, alcançando aquilo que o outro pensava proteger atrás da sua janela? Raramente um crime, com frequência um ridículo ou mesmo um desespero?

As fotografias dos vizinhos evocam questões fascinantes deste mundo novo, no qual já se anunciou o fim da privacidade. Ainda que com objetivos e sentidos bem diversos, os retratos da vida íntima de homens e mulheres anônimos estão ligados tanto à espionagem que Obama fez de Dilma quanto às gravações e fotografias que pessoas comuns fazem o tempo todo dos flagrantes de outros, para postar em seguida no YouTube e no Instagram – fronteiras e pudores dissolvidos pela tecnologia. Estariam ligados também ao exibicionismo corrente, expressado pelo ato já corriqueiro de postar as melhores imagens de si mesmo, hábito pelo qual pessoas comuns se forjam celebridades na janela do Facebook?

Talvez a resistência a fotos como as de Svenson, Morozini e outros possa também ser compreendida pelo fato de constituírem uma traição à imagem controlada que tentamos desesperadamente difundir nas redes sociais como a nossa imagem “verdadeira”. Essas fotos roubadas, feitas à revelia, escapam do que se poderia chamar de “controle de qualidade da vida exibida”. Revelam às vezes o tédio e não a felicidade, o ridículo e não a glória, as olheiras e não os olhos maquiados, nosso cotidiano sem Photoshop. A solidão de quem tem centenas, milhares de amigos no Facebook.

Há aqui algo interessante, que aparece tanto na escolha dos fotógrafos quanto na resistência de alguns fotografados: a ideia, bem contemporânea, de uma “verdade” na vida privada. Como se nossas evoluções na esfera pública fossem meras “máscaras sociais” – e estas máscaras sociais fossem decodificadas como “mentiras”. Como se existisse um “eu verdadeiro”, despido de máscaras, que se revela em nosso último ou até mesmo único reduto: entre as paredes da casa. Mas não existe um “verdadeiro eu”, não existe um lugar “em que somos nós mesmos”. Somos todas as nossas máscaras e nossas verdades estão espalhadas. O fato de estarmos com remela nos olhos e com um pijama rasgado na bunda não nos torna mais “verdadeiros” do que de salto alto ou de terno, assim como a melancolia que escapa pelos nossos olhos ao mirarmos o vazio no sofá da sala não é mais ou menos verdadeira do que nossos gestos numa reunião de trabalho.

A vida privada tem sido confundida com “vida real”, o que explica a obsessão das pessoas ditas comuns com a privacidade das ditas celebridades. Assim como a obsessão dos fotógrafos pela vida privada das celebridades – e mais recentemente pela vida privada dos anônimos. Poucos parecem se importar com o fato de a vida privada das celebridades ser constantemente invadida por paparazzi, exceto algumas celebridades. Como se, pelo fato de serem pessoas “públicas”, que ganham a vida por serem públicas, não pudessem ter uma vida privada, longe dos olhos de todos os outros. Mais do que isso: o público que as torna celebridades teria direito de acesso ao “verdadeiro eu” das pessoas que venera, àquela que seria a sua “verdade verdadeira” e que só poderia ser descoberta com flagrantes à sua intimidade.

Quando aparece um outro tipo de paparazzo, o que espiona a vida das pessoas comuns, para muitos é uma violência bem mais óbvia. Por quê? Ou qual é a diferença para as fotos íntimas de celebridades? A suposta verdade dos comuns não interessa a ninguém? Não é o que os preços dessas fotos nas galerias têm mostrado. Ou por que seriam imagens de ninguém em particular ou “representações da humanidade”, como disse o fotógrafo Arne Svenson? Mas se o problema está no fato de as pessoas se reconhecerem na sua singularidade, como alguém com nome, sobrenome, rosto e vida? Se o problema começa na singularização daquele que é, ao mesmo tempo, “representação da humanidade” e algo que ele chama de “si mesmo”? E, nesta singularização, preferia não ser fotografado secretamente de cueca na frente do espelho?

É mais complicado do que parece. O ato de fotografar pode ser julgado em si ou apenas no sentido atribuído a essa fotografia? A mesma fotografia que muitos consideram poética numa galeria de arte poderia ser decodificada como ridícula e virar motivo de escracho se jogada em determinados sites da internet. Ou, usando um exemplo mais explícito, a foto do bebê no banho, que enternece os pais no álbum de família, pode ser erótica para um pedófilo. Se o sentido só pode ser dado depois, a fotografia dos vizinhos nos aproxima e nos conecta na solidão das metrópoles, ao dizer de todos e não apenas de um. Já as fotos das celebridades, mesmo – e talvez principalmente – quando são anunciadas como flagrantes de cenas que as aproximam das pessoas comuns, o que fazem é marcar a diferença. Ambos estão fotografando cenas privadas sem autorização, mas a oposição de sentidos tornaria aquele que expõe a intimidade de celebridades para o gozo do público um invasor e o que expõe anônimos não?

As perdas e ganhos se embaralham. Quem ganha com os retratos da vida privada? O fotógrafo, ao transformar cenas íntimas em arte que fala dessa época histórica. Nós, coletivamente, ao ganharmos um retrato de nossa humanidade, que nos faz transcender – e que transcenderá nossa vida ao alcançar as gerações futuras. Quem perde? Nós, também, individualmente, porque aquele que virou representação é também aquele que vive e que talvez não quisesse ser exposto abrindo a geladeira descabelado para pegar o leite pela manhã. E nós, coletivamente, na medida em que a única alternativa para não ter a intimidade exposta seja cobrir com cortinas nossas escassas janelas, por onde já entra muito menos luz do que gostaríamos.

De novo, como superar esse impasse? Ou o que é mais importante? E quem decide?

Quem observa com atenção a cidade, percebe que mesmo moradores de rua constroem paredes e portas invisíveis embaixo de viadutos ou mesmo nas esquinas. Lá dentro, evolucionam por peças sem paredes como se não fossem vistos por todos. Muitas vezes, diante dessas cenas, tão profundamente humanas, desviei os olhos, em sinal de respeito. Acho que nos humanizamos quando conseguimos enxergar – e respeitar – mesmo as paredes invisíveis. Me parece importante bater, mesmo em portas subjetivas, para que o outro tenha a chance de dar ou não sua permissão. Não é porque não enxergamos, que as portas e as paredes não existem. E não é porque a tecnologia permite, que podemos entrar na casa das pessoas, ainda que em nome da arte – ou do jornalismo – sem antes pedir licença. Mesmo que essa casa seja um amontoado de trapos embaixo de uma ponte.

Poder fazer/alcançar/fotografar/expor, graças à tecnologia, significa auto-autorização para fazer/alcançar/fotografar/expor?

Meu sentimento pessoal com relação à possibilidade de ser fotografada por um vizinho indiscreto é um misto de estranheza e pânico. Para mim, a casa me dá algo fundamental: algumas horas despida não de roupas, mas do olhar do outro. A possibilidade dessa nudez, que vai muito além das peças de vestuário, é importante para a minha sanidade. É o que me dá, às vezes, o espaço/tempo necessário para remendar a minha pele e enfrentar o mundo lá fora. Não é para todos que quero mostrar os meus rombos, assim como não é para todos que quero mostrar meus livros mais queridos ou as lembranças que escolhi para botar sobre a minha escrivaninha. E, mesmo que só eu reconhecesse o meu gesto numa galeria, me sentiria violada e exposta. E talvez começasse a ficar paranoica com esse vizinho que usa sua câmera fotográfica para me espionar e passasse a encenar a minha vida. Ou, como já passei a fazer, fechar as cortinas da peça da casa onde estou. Eu, que gosto tanto de luz.

Meu sentimento pessoal deve ser respeitado ou há algo, que a juíza americana chamou de liberdade de expressão, que deve se sobrepor a ele? Não sei. Será que a liberdade de expressão do fotógrafo, ao registrar secretamente a vida de alguém, não está cerceando a liberdade de expressão dessa pessoa dentro de sua casa? Possivelmente. E o que difere, afinal, voyeurismo de arte? O destino que se dá ao olhar? Ou o sentido?

Alguém tentar entrar fisicamente na casa de um outro sem permissão é ilegal. Mas, pelo menos na decisão judicial americana, a invasão de um olhar não autorizado, que capta uma cena privada e a torna pública, é legal. Mas, ainda que seja legal, é ética?

Tenho dúvidas. O que me parece claro é que essa discussão vai muito além da tensão entre liberdade de expressão e privacidade, como foi colocada. E precisamos discuti-la. Porque é fascinante, mas também porque pode haver um fotógrafo nesse exato momento, empunhando uma teleobjetiva na janela do prédio em frente, sinceramente disposto a fazer poesia da nossa vida privada. Mesmo que, diferentemente do personagem de Janela indiscreta, do clássico de Alfred Hitchcock, nossa maior subversão seja comer leite condensado de calcinha.

(Publicado na Revista Época em 16/09/2013)

 

Também somos o chumbo das balas

O Brasil não mudará em profundidade enquanto a classe média sentir mais os feridos da Paulista do que os mortos da Maré

Você está na sala assistindo à TV. Ou está no restaurante, com seus amigos. Ou está voltando para casa depois de um dia de trabalho. Você ouve tiros, você ouve bombas, você ouve gritos. Você olha e vê a polícia militar ocupando o seu bairro, a sua rua. É difícil enxergar, por causa das bombas de gás lacrimogêneo, o que aumenta o seu medo. Logo, você está sem luz, porque a polícia atirou nos transformadores. O garçom que o atendia cai morto com uma bala na cabeça. O adolescente que você conhece desde pequeno cai morto. Um motorista está dirigindo a sua van e cai ferido por um tiro. Agora você está aterrorizado. Os gritos soam cada vez mais perto e você ouve a porta da casa do seu vizinho ser arrombada por policiais, que quebram tudo, gritam com ele e com sua família. Em seguida você vê os policiais saírem arrastando um saco preto. E sabe que é o seu vizinho dentro dele. Por quê? Você não pergunta o porquê, do contrário será o próximo a ser esculachado, a ter todos os seus bens, duramente conquistados com trabalho, destruídos. Se você está em casa, não pode sair. Se você está na rua, não pode entrar.

O que você faz?

Nada.

Você não faz nada porque não aconteceu com você. Você não faz nada especialmente porque se sente a salvo, porque sabe que não apenas não aconteceu, como não acontecerá com você. Não aconteceu e não acontecerá no seu bairro. Isso só acontece na favela, com os outros, aqueles que trabalham para você em serviços mal remunerados.

Aconteceu na Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, na segunda-feira passada (24/6). Com a justificativa de que pessoas se aproveitavam da manifestação que ocorria na Avenida Brasil – o nome sempre tão simbólico – para fazer arrastão, policiais ocuparam a favela. Um sargento do BOPE morreu e a vingança da polícia começou, atravessou a madrugada e boa parte da terça-feira. Saldo final: 10 mortos, entre eles “três moradores inocentes”.

Os brasileiros foram às ruas, algo de profundo mudou nas últimas semanas, tão profundo que levaremos muito tempo para compreender. Mas algo de ainda mais profundo não mudou. E, se esse algo ainda mais profundo não mudar, nenhuma outra mudança terá o peso de uma transformação, porque nenhuma terá sido capaz de superar o fosso de uma sociedade desigual. A desigualdade que se perpetua no concreto da vida cotidiana começa e persiste na cabeça de cada um.

Quando a polícia paulista reprimiu com violência os manifestantes de 13 de junho, provocando uma ampliação dos movimentos de protesto não só em São Paulo, mas em todo o Brasil, houve um choque da classe média porque, dessa vez, muitos daqueles que foram atingidos por balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo eram seus filhos, irmãos e amigos. Como era possível que isso acontecesse?

Era possível porque a polícia militar – e não só a de São Paulo, como se sabe e tem se provado a cada manifestação, nas diversas cidades – agiu no centro com quase a mesma truculência com que cotidianamente age nas favelas e nas periferias. Quase com a mesma truculência, porque algumas vozes se levantaram para lembrar que nas margens as balas são de chumbo. Balas de borracha, como foi dito em tom irônico, seria um “upgrade”. A polícia fez, portanto, o que está acostumada a fazer no dia a dia das periferias e favelas, o que é ensinada e autorizada a fazer. E muitos policiais devem ter se surpreendido com a reação da opinião pública, já que agem dessa maneira há tanto tempo e as reclamações em geral ficavam, até então, limitadas às mesmas organizações de direitos humanos de sempre.

E então veio a Maré. E, em vez de balas de borracha, as balas eram de chumbo. Em vez de feridos, houve mortos. E, ainda que o massacre tenha tido repercussão, especialmente no Rio de Janeiro, ela foi muito menor e menos abrangente do que quando a violência foi usada no centro de qualquer cidade. Por quê? Seriam os brasileiros da Maré ou de outras favelas menos brasileiros do que os outros? Seriam os humanos da Maré ou de outras periferias menos humanos do que os outros? Sangrariam e doeriam os moradores da Maré menos do que os outros?

É preciso que a classe média se olhe no espelho, se existe mesmo o desejo real de mudança. É preciso que se olhe no espelho para encarar sua alma deformada. E perceber que essa polícia reflete pelo menos uma de suas faces. Parece óbvio, do contrário essa polícia não seguiria existindo e agindo impunemente, mas às vezes o óbvio é esquecido em nome da conveniência.

É fácil renegar a polícia militar como algo que não nos diz respeito, como sempre fazemos com as monstruosidades que nos envergonham. Sem precisar assumir que essa polícia existe como resultado de uma forma de ver a sociedade e se posicionar nela – uma forma que perpetua a desigualdade, dividindo o país entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que não têm nenhum direito porque, mesmo que trabalhem dura e honestamente, são criminalizados por serem pobres.

No momento em que os mortos da Maré incomodam menos que os feridos da Paulista ou de outros lugares do Brasil, se justifica e legitima a violência da polícia. Se justifica e legitima de várias maneiras – e também por aqueles que sentem menos a violência da Maré do que a da Paulista, apesar de ela ser numa proporção muito maior, a começar pela diferença das balas. Se justifica e se legitima e se perpetua porque, ainda que não confessado, mas claramente expressado, vive-se como se os mais pobres, os que moram em favelas e periferias, pudessem ter suas casas invadidas, seus bens destruídos e suas vidas extintas.

Se fosse você ou eu na Maré, reconheceríamos os rostos dos que tombam e estaríamos lá, aterrorizados com a possibilidade de sermos os próximos a virar estatística. O garçom que caiu morto com um tiro na cabeça é Eraldo Santos da Silva, 35 anos. Quem estava no restaurante contou que os policiais do BOPE atiraram no transformador para o local ficar às escuras e então mudar a cena do crime, retirando as cápsulas do chão. O garoto de 16 anos que foi assassinado se chama Jonatha Farias da Silva. A polícia disse que ele estava com uma arma na mão, mas várias pessoas que o conhecem desde criança afirmam ser impossível. Jonatha é descrito como um menino tímido e muito sozinho que perdeu a mãe de tuberculose aos 11 anos e vivia com um irmão mais velho num quarto de quatro metros quadrados. Engraxava sapatos e vendia biscoitos nos congestionamentos da Linha Vermelha para sobreviver, enquanto sonhava com ser mecânico. O motorista ferido quando dirigia a van alvejada por tiros é Cláudio Duarte Rodrigues, de 41 anos. Foi levado ao hospital por moradores, mas despachado para casa com a bala ainda alojada no glúteo. Só depois uma ONG obteve a promessa de uma ambulância para buscá-lo. Você ainda poderia ser a empregada doméstica que ouviu os policiais arrombarem a porta da casa do seu vizinho, ouviu seus gritos – “Me larga! Socorro!” – e o viu ser retirado de lá, dentro de um saco preto.

Mas isso não acontece com você, nem com seus filhos. Nem comigo. Mas, ainda que não aconteça, como é possível sentirmos menos? Ou mesmo não sentir? Ou ainda viver como se isso fosse normal? Ou olhar distraidamente para a notícia no jornal e pensar: “mais uma chacina na favela”?

Em que nos transformamos ao sentir menos a morte de uns do que a de outros, a dor de uns do que a de outros, mesmo quando olhamos para uns e outros apenas pela TV?
O que torna isso possível?

É preciso parar e pensar. Porque esses, que assim morrem, só morrem porque parte da sociedade brasileira sente menos a sua morte. É cúmplice não apenas por omissão, mas por esse não sentir que se repete distraído no cotidiano. Por esse não sentir que não surpreende ninguém ao redor, às vezes nem vira conversa. Essa polícia que mata nos reflete, por mais que recusemos essa imagem no espelho.

São vários os discursos que se imiscuem na vida cotidiana e penetram em nossos corações e mentes, justificando, legitimando e perpetuando a ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. Um desses discursos é a afirmação, que nesse caso foi assumida e amplificada por parte da imprensa, de que a polícia teria admitido que “três moradores mortos eram inocentes”. A frase tem tom de denúncia, ao afirmar que a polícia reconheceu a morte de “inocentes” na Maré. A declaração expressa, de fato, a ideia de que ao menos esses três não deveriam ter sido assassinados. Por oposição, cabe a pergunta: e os outros deveriam?

Essa frase diz ainda mais: se “três são inocentes”, aceita-se automaticamente e sem maior investigação que os demais seriam suspeitos de tráfico e outros crimes – e destes, quase nada ou nada é contado. É nesse ponto que se oculta algo ainda pior contido nesse discurso, que é a aceitação da pena de morte de suspeitos. Ou seja, os supostamente “não inocentes”, os supostamente “bandidos”, “traficantes”, “vândalos” poderiam, então, ser mortos? É isso o que se diz nas entrelinhas. Mas não seriam todos “inocentes”, até julgamento em contrário, dentro do ritual jurídico previsto pelo Estado de direito? Sem contar que a lei brasileira não prevê a pena de morte de julgados e condenados por crimes, nem sequer os hediondos. Mas o Estado, com o aval de uma parte significativa da sociedade, executa suspeitos.

A aceitação dessa quebra cotidiana da lei pelo Estado está presente na narrativa dos acontecimentos – e a imprensa tem um papel importante na reprodução desse discurso: “três deles eram inocentes”, “morreram em confronto”, “morreu ao resistir à prisão”, “troca de tiros” são algumas das expressões entranhadas nos nossos dias como se tudo explicassem. Como se isso fosse corriqueiro – e não monstruoso. Mesmo para a morte de “inocentes”, fora as mesmas vozes dissonantes de sempre, se atribui expressões como “efeito colateral”. E parece ter sido fácil para a classe média aceitar que o “efeito colateral” é a morte dos filhos, dos irmãos, dos pais e das mães dos pobres.

Em um artigo no site do Observatório de Favelas, que vale a pena ser lido (aqui), Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5/UFRJ, faz uma análise da frase dita na TV pelo consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel: “Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”. Ele criticava, em 18/6, a imagem de um policial militar atirando para o alto com uma metralhadora, perto de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Como afirma Eliana, parece um comentário “natural, racional e equilibrado”, mas, de fato, o que ele está dizendo? Que na favela pode. E, fora uma ou outra voz, como a dela, não causa nenhuma surpresa. Nem mesmo se estranha que na favela pode, nos protestos do centro não.

A palavra “confronto” encobre forças desiguais – e o que tem sido chamado de “confronto” seguidamente não é o que diz ser. Mesmo em confrontos de fato trata-se o que é desigual como se fosse igual, também simbolicamente. Como se uma das forças em confronto não encarnasse o Estado e tivesse, portanto, de respeitar a lei e seguir parâmetros rígidos de conduta – e não igualar-se a quem supostamente está no outro lado. Como se a polícia, como aconteceu na Maré, tivesse autorização para se vingar pela morte – lamentável – do sargento do BOPE, entrando na favela e arrebentando. E o sargento do BOPE Ednelson Jerônimo dos Santos Silva, 42 anos, é também uma vítima desse sistema avalizado por uma parte significativa da sociedade dita “de bem”.

A questão é que, se a polícia não tem autorização de direito, tem de fato. E tem porque a classe média sente menos a dor dos pobres. Tem autorização porque uma parcela da sociedade primeiro criminaliza os pobres – e, depois, naturaliza a sua morte. É por isso que a polícia faz o que faz – porque pode. E pode porque permitimos. A autorização não é dos suspeitos de sempre, apenas, mas de parte considerável dessa mesma classe média que vai às ruas gritar pelo fim da corrupção. Mas haverá corrupção maior, esta de alma, do que sofrer menos pelos mortos da Maré do que pelos feridos da Paulista?

A autorização para a morte dos pobres é de cada um que sente mais as balas de borracha da Paulista do que as balas de chumbo da Maré. Sentir, o verbo que precede a ação – ou a anula.

“Estado que mata, nunca mais!” é o chamado de um ato ecumênico marcado para as 15h desta terça-feira (2/7), com concentração na passarela 9 da Avenida Brasil, pelos moradores da Maré. A manifestação, anunciada como “sem violência e pacífica”, pretende lembrar os 10 mortos de 24 e 25 de junho, inclusive o sargento do BOPE. “Não é mais aceitável a política militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses locais fossem moradas de pessoas sem direitos. Responsabilizamos o governador do Estado e o secretário de Segurança Pública pelas ações policiais nas favelas. Exigimos um pedido de desculpas pelo massacre e o compromisso com o fim das incursões policiais nas favelas cariocas, sustentadas no uso do Caveirão e de armas de guerra”, diz a chamada na internet.

Este ato poderá se tornar um momento de inflexão nos protestos que atravessam o país. Saberemos então se os cidadãos das favelas estarão sozinhos, como sempre, ou acompanhados pelas mesmas organizações de direitos humanos de sempre – ou se o Brasil está, de fato, disposto a começar a curar sua abissal e histórica cisão.

(Publicado na Revista Época em 01/07/2013)

Protestando dúvidas

Faces e máscaras na revolta sem nome que ocupa as ruas do Brasil

Ainda não há um nome para o que aconteceu/acontece no Brasil. Só tentativas, associadas a fenômenos ocorridos em outros países, como Primavera Árabe, Occupy, Indignados. Não é algo original como “a revolta do vinagre”, como apareceu aqui e ali, também não é Passe Livre. Nenhuma tentativa de nomear os acontecimentos deu conta de sua complexidade, o que parece nos dizer alguma coisa. Talvez porque o nome ainda esteja em disputa, como tanto por esses dias. Talvez porque não seja possível nomear o que não compreendemos. Mas, sobre aquilo que permaneceu inominável, se disse muito. Na mesma proporção da ocupação das ruas por centenas de milhares de brasileiros houve uma produção de narrativas sobre o que acontecia. Fragmentadas, contraditórias, como os cartazes empunhados pelo movimento. Tento escutar algumas delas nesta coluna – não para explicá-las, porque só podemos tatear, mas em busca de pistas sobre o que essas narrativas revelam e mascaram. Se há algo que me parece claro é que máscaras ocultam faces, mas faces também ocultam máscaras.

1) Cuidado, o próximo vândalo pode ser você.

“Vândalos” e “baderneiros” foram as palavras usadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e adotadas por muitos setores para se referir aos manifestantes, de forma generalizada, até a quinta-feira (13/6). Nesta data, a violenta repressão da polícia paulista deu uma contribuição decisiva para a expansão dos protestos, não só em São Paulo como em todo o Brasil, e para o apoio da população a um movimento que até então boa parte olhava com desconfiança ou mesmo reprovação. A partir das manifestações da segunda-feira (17/6), disseminadas por várias cidades do país, momento em que o movimento recebeu a adesão de atores com demandas bastante diversas entre si, o discurso hegemônico sobre os protestos mudou. Ao longo da semana passada as manifestações ganharam a (quase) unanimidade: aqueles que antes eram “vândalos” e “baderneiros” se tornaram protagonistas de um “despertar”, faces do “gigante que acordou”. Nesse momento, os “vândalos” – esta tornou-se a palavra mais usada, às vezes trocada por “baderneiros” ou “arruaceiros” – tornaram-se, no discurso do Estado, da imprensa e mesmo da população, uma “minoria infiltrada” contra a imensa “maioria pacífica”.

Vale a pena olhar esse discurso narrativo com mais atenção. Antes de continuar, é preciso deixar claro que sou contra depredações – foi duro assistir ao ataque contra o Itamaraty, o belo prédio de Oscar Niemeyer. Também é preciso dizer que aqueles que usam a violência contra prédios e pessoas constituem mesmo uma minoria. Feitas as ressalvas, é possível pensar que essa interpretação, que divide a população entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, pode encobrir uma complexidade maior: a) Primeiro, ela isola os “vândalos” da massa de manifestantes, aceitando como unanimidade que a única forma legítima de se manifestar é não causando danos ao patrimônio, seja ele público ou privado. Logo, quem entende que atacar o patrimônio é também uma manifestação – como aconteceu muitas vezes ao longo da história do Brasil e do mundo, inclusive em acontecimentos hoje celebrados como heroicos – é automaticamente colocado fora da manifestação no discurso, como se não tivesse nada a dizer nem estivesse dizendo algo com seus atos. Me parece que, ainda que se discorde das depredações – e de novo, repito, eu discordo –, é perigoso deixar de reconhecê-la como uma forma de manifestação. É perigoso porque, ao fazê-lo, se promove um silenciamento: ao deixar de escutá-la em suas diferenças, fecha-se a porta para a compreensão de um aspecto que, querendo ou não, é uma face importante das muitas tensões produzidas pelo fenômeno. E é perigoso deixar de reconhecê-la como parte, ainda que indesejável, para todos os outros manifestantes, hoje protegidos no amplo guarda-chuva representado pela “maioria pacífica”; b) Ao dividir os manifestantes entre “pacíficos”, que seriam os legítimos, e “vândalos”, os “infiltrados”, na medida em que são aqueles que “quebram” não só a ordem e a paz, mas o patrimônio, estabeleceu-se que existe uma massa do bem, aclamada por todos, contra uma massa do mal, que deve ser isolada – ou os limpinhos contra os sujinhos. Como se sabe, os maniqueísmos nunca fazem bem para a compreensão histórica. E, afinal, quem seriam os “infiltrados”, numa manifestação de massa, heterogênea e contraditória, além de agentes do Estado (e talvez eventuais quadrilhas criminosas, presentes apenas para obter ganhos materiais?); c) Há vários riscos contidos na aceitação fácil desse discurso. Um deles é deixar de perceber que, mesmo entre os “vândalos”, há diferenças – e essas diferenças também contam desse fenômeno. Outro risco é que todo comportamento considerado indesejável poderá transformar aquele que até então era “manifestante” num “vândalo”, um conceito que tem se mostrado bastante mutável, elástico e flutuante.

É compreensível que, diante do que não se entende e não se controla, se busque classificar. Classificar é também uma forma de controle. Em especial, quando essa classificação reduz e encaixota. Pode ser esse o caso: há uma caixa para os “vândalos”, que não precisariam ser compreendidos, e há uma caixa para uma maioria pacífica, que, sim, valeria a pena compreender em sua heterogeneidade. Se poderíamos pensar os protestos como uma “terceira margem” da rua, na medida do novo que representam, do entre ruas que expressam, também se reproduz na narrativa hegemônica sobre ele um “à margem”, uma exclusão, o lugar dos que não precisam ser escutados.

Ao longo dos dias, ao ouvir as referências constantes aos “vândalos”, especialmente na TV, me veio esse estranhamento. Vândalos não me é uma palavra estranha. Como a maioria, a ouvi muitas vezes, em ocasiões as mais diversas. Mas, dessa vez, tornou-se estranha pela forma como foi dita e repetida, dando pistas de que havia ali um outro sentido. Parecia ser mesmo um “povo bárbaro”, como na sua origem. Quase esperei pelos visigodos, os ostrogodos… talvez os hunos. Em certo sentido, no discurso sobre o atual fenômeno, os “vândalos” voltaram a tornar-se um “povo” – a tribo que não deveria estar ali, saqueando Roma. Não mais “à margem” da manifestação, mas a própria margem.

É preciso aprender com a história, diz o clichê. Nesse caso, a história de uma semana atrás. Não custa lembrar que, até então, “vândalos” eram todos aqueles que atrapalhavam o tráfego, no discurso dos mesmos que hoje os aclamam como “brasileiros que despertaram”. Quem serão os próximos “vândalos”?

(Parênteses. É um fato digno de atenção que aqueles que até duas ou três semanas atrás atacavam, ridicularizavam e às vezes até criminalizavam as manifestações dos movimentos sociais organizados pelo Brasil afora estejam achando altamente cívico o atual movimento das ruas, mais ainda quando os cartazes expressam generalidades. Isso deve significar alguma coisa.)

2) Os 20 centavos: ampliação ou redução do movimento?

Há uma compreensão de parte dos que estiveram nas manifestações desde o início, de que a manutenção de uma pauta clara, no caso a anulação do aumento da passagem de ônibus, num primeiro momento, para a tarifa zero do transporte público, a médio prazo, era fundamental. Além de ser uma reivindicação objetiva, ela dava conta de uma mudança profunda: a) falava da vida dos mais pobres, na qual o péssimo e caro transporte público determina (e se relaciona com) uma série de violências cotidianas e com a aniquilação da vida; b) dizia de uma transformação estrutural do atual modelo de mobilidade urbana, que prioriza o transporte individual em detrimento do coletivo, o que implica uma série de mudanças relacionadas.

No momento em que o movimento é apropriado por outras forças e essa bandeira passa a ser ampliada com a adesão de atores muito diversos entre si, em especial da classe média tradicional, parte desses manifestantes originais entende que o que pareceu uma ampliação foi, de fato, uma redução. Afinal, é bastante fácil reivindicar o fim da corrupção ou a paz, palavras de ordem tão bonitas quanto etéreas. Alguém sairia às ruas para pedir mais corrupção e mais violência? Difícil. Alguém se pronunciaria contra reinvindicações tão unânimes? Obviamente não. Paz e fim da corrupção, para citar apenas duas bandeiras que apareceram nos cartazes e nas entrevistas dos manifestantes, estão no cardápio de todos – assim como nas promessas vagas de governantes de qualquer partido. O que os manifestantes originais pretendiam – e pretendem – era algo que mexia com estruturas e privilégios, que dava conta de um modo de ver o mundo: tarifa zero para o transporte, assim como se optou em momentos históricos anteriores pela criação do SUS e pela gratuidade da educação pública.

Em parte, me parece que os manifestantes que avaliam existir uma redução qualitativa do movimento – e não uma ampliação – têm razão. Em parte, não. Ainda que o povo tenha ido às ruas com reivindicações amplas e mesmo contraditórias entre si, foi essa adesão que levou à redução da tarifa em São Paulo e em outras cidades, o que não é pouca coisa. Como era a única demanda objetiva, era a resposta objetiva que se poderia dar na perspectiva de arrefecer as ruas. O que acabou não acontecendo (ainda).

O movimento ganhou outras formas com a ampliação da adesão – e também outra força. Se há um risco na amplitude das reivindicações – algumas delas tão vagas quanto contraditórias, outras bastante precisas –, é poderosa essa expressão de repúdio a escolhas feitas pelos governantes, ao modo de fazer política, à falta de qualidade da vida cotidiana e à carência de representatividade no espaço público/político. Quando nos perguntamos se haverá mudanças concretas a partir dessas manifestações, me parece que precisamos compreender que a mudança já aconteceu. Mesmo que as ruas voltem a se apaziguar, nesta ou nas próximas semanas, a mudança já aconteceu. Outras poderão acontecer, mas há algo profundo que já mudou. Na vida pública, coletiva, mas também na individual, existe algo que já penetrou pelas frestas da nossa subjetividade.

Há uma preocupação sobre quem se apropriou do quê, sobre os riscos de uma guinada conservadora, sobre o uso por um ou outro partido, sobre o suposto desvirtuamento do movimento, sobre manipulações as mais diversas. São preocupações importantes. Mas isso é política. Ou alguém pensou que seria um passeio na Avenida Paulista? O jogo é pesado, é de gente grande (mesmo quando jovem). E é também nas ruas que essa disputa – política – precisa ser travada.

Nesse embate, talvez exista ainda algo de pungente e mais subjetivo, para além dos interesses imediatos: o desejo de não ficar de fora de algo tão especial, tão “histórico”, como foi dito e repetido, ainda que não se entenda direito o que é.

(Parênteses. Houve um certo susto com relação ao que é o povo nas ruas – e não apenas por parte das autoridades. Quando o povo vai às ruas, é sempre incontrolável e imprevisível. É ingenuidade pensar que será apenas bonito, como se, de repente, as pessoas todas expressassem somente bons sentimentos. São humanos os que estão nas ruas, com todos os seus desvãos. São os mesmos que xingam no trânsito, cometem pequenas ou até grandes vilanias no dia a dia, vomitam discursos de ódio protegidos pelo anonimato. O Brasil é um país violento, ao contrário do que se diz, e não só por conta dos homicídios e dos arrastões, mas pela violência contida nas relações cotidianas de todos nós, do mau atendimento em toda parte à intolerância com o outro em sua mínima diferença. Se há algo que as redes sociais já nos mostraram é o quão profundos são os desvãos humanos, aqui, em todo canto. É com isso que temos de lidar, tanto dentro quanto fora. Compreendo a decepção de alguns com “o povo”, mas, lamento, o pacote é completo.)

3) “A voz das ruas deve ser ouvida e respeitada”, disse a presidente, que até então preferia não escutá-la.

É ampla e complexa a pauta de porquês que colocou mais de um milhão de brasileiros nas ruas. Mas é bastante provável que pelo menos uma parte dessa composição de insatisfações esteja relacionada à pouca disposição de Dilma Rousseff para escutar os movimentos sociais. Lula era um político imensamente mais hábil do que Dilma. Mesmo quando sua popularidade aumentou, no segundo mandato, ele pelo menos ouvia movimentos sociais – ou “fingia ouvir”, como atestam alguns. Muitas vezes fazia o oposto do que havia dito e garantido que faria, mas recebia seus representantes, cuidava para que os interlocutores se sentissem amplamente acolhidos e saíssem satisfeitos. Essa era uma entre as muitas explicação para que quase nada colasse nele, já que as pessoas acabavam atribuindo os revezes à estrutura do gove rno, a assessores mal intencionados, jamais a um presidente tão carismático. Dilma, não. Se a presidente pensa diferente, não sei, mas todos os sinais que deu, desde que tomou posse, é de que não queria nem achava importante receber os movimentos sociais – os que restaram e não foram cooptados pelo governo.

Enquanto fez amplas concessões a setores como a bancada ruralista, para garantir apoio no Congresso, e deixou áreas consideradas menos estratégicas para serem ocupadas por políticos da estirpe de um Marco Feliciano, a presidente visivelmente se irritava com os pedidos de audiência e as reivindicações dos movimentos sociais. É algo da personalidade dela, como já ficou claro, mas seria injusto acreditar que é apenas uma escolha – ou limitação – pessoal da presidente. A exiguidade crescente dos canais de interlocução com a sociedade devem-se também a uma arrogância do PT, como partido no poder.

Confiante de que a popularidade tanto de Lula quanto de Dilma seria mantida pelos beneficiários de programas de transferência de renda como o Bolsa Família, como de fato tem se demonstrado até aqui, assim como pela inclusão real e importante de uma parcela significativa da população na última década, o PT parece ter acreditado que não precisava mais nem ouvir, nem negociar com os movimentos sociais. Assim como talvez tenha se preocupado menos do que deveria com a necessidade de contratar militantes nas últimas campanhas eleitorais, justo ele que costumava botar uma massa vermelha e convicta nas ruas.

Se a população mais pobre e desorganizada, que o cientista político André Singer denomina de “subproletariado”, tinha passado a garantir as urnas, para que se esfalfar com as reivindicações dos movimentos sociais, geralmente em nome das bandeiras históricas do partido? Ao escolher com quem precisava negociar e com quem não era mais necessário negociar, o PT afastou-se de aliados fiéis, assim como de suas bases tradicionais. Ao fazer crescentes concessões a novos e inconstantes aliados, movidos por interesses muito divergentes do que o PT defendia num passado muito recente e que mudam de lado em um segundo conforme conveniências privadas, desagradou a parcela da sociedade que historicamente esteve ao seu lado. Sempre em nome da “governabilidade”, guarda-chuva que supostamente tornaria tudo não só justificável como aceitável. É verdade que a máxima de que “os fins justificam os meios” foi adotada por todos os partidos no poder desde a redemocratização, mas também é verdade que do PT se esperava mais. E de quem se espera mais, também se cobra com mais veemência.

Não sei afirmar em que medida isso influenciou o movimento das ruas, apenas dizer que é uma pista a ser levada em conta na tentativa de compreender o fenômeno, já que o partido das ruas se descobriu apartado das ruas. E suspeito que não seja apenas por conta da ignorância dos jovens sobre a história do país e do lugar do PT nessa história. Inclusive porque foi o PT que, muitas vezes antes, esqueceu-se de sua própria trajetória. E se esforçou para que a esquecêssemos.

Nem por um segundo acredito que o lugar desqualificado da política convencional e dos partidos no imaginário dos manifestantes nas ruas seja responsabilidade exclusiva do PT. Nenhum partido escapa de compartilhar a responsabilidade pela desqualificação da política – e alguns possivelmente tenham contas maiores a acertar com a sociedade. Não é de hoje que as ruas vêm expressando seu descontentamento, sua sensação de não ser parte das decisões tanto dos governos quanto do legislativo, já que o voto é fundamental, mas não pode ser o único instrumento de participação numa democracia. No início deste ano, 1,6 milhão de pessoas assinaram a petição “Fora, Renan!”, o homem que saiu do Congresso pela porta dos fundos, para não ser cassado por corrupção, e voltou como presidente do Senado. Esta e outras manifestações foram pouco escutadas ou mesmo ridicularizadas como “coisa de ativistas de sofá”. Esqueceram-se de perceber que as ruas virtuais são bem reais. O que era virtual, no sentido de apartado da realidade, talvez fosse a propaganda de um Brasil próspero e feliz, com desejos restritos a bens de consumo.

É triste a expulsão de manifestantes com bandeiras de partidos nos protestos de quinta-feira (20/6). Concordo que seja autoritária, violenta e estúpida. Assim como é triste o ataque aos prédios das instituições, na medida em que mesmo os anseios mais díspares expostos nos cartazes dos manifestantes só poderão se realizar com o fortalecimento das instituições – e não com a sua destruição. Mas é preciso reconhecer que quem primeiro desqualificou os partidos e as instituições foram seus próprios membros. A crise de representação expressada pelos manifestantes nas ruas há muito vem sendo exibida nas redes sociais pela frase “Fulano não me representa” ou “Beltrano me representa”.

No pronunciamento de sexta-feira (21/6), Dilma Roussef disse que era preciso “ouvir a voz das ruas”. As próximas semanas mostrarão se Dilma acredita que é preciso ouvir a voz das ruas – ou acredita apenas que é preciso dizer isso para estancar a perda de popularidade e não comprometer a reeleição. O mesmo vale para governadores e prefeitos de todos os partidos.

(Parênteses. Há uma ironia irresistível nessa história. Lula apresentou Fernando Haddad como “o novo”, na campanha para prefeito de São Paulo, e funcionou. O bom era “o novo”, era “o novo” que o povo queria, o velho não servia para nada, inclusive porque implicava responder por uma história, enquanto no novo a história estava por ser escrita e no papel em branco cabe tudo. Esse truque de marqueteiro arregimentou adeptos e há muito político rodado se lançando como “o novo” por aí. Bem, “o novo” finalmente se apresentou nas ruas da cidade. E agora?)

4) O que é Copa, o que é futebol – o que é deles, o que é nosso

Uma pequena cena da periferia de São Paulo pode dar algumas pistas sobre as manifestações contra a Copa do Mundo na “pátria de chuteiras”. Às 23h de quarta-feira (19/6), o poeta Sérgio Vaz hasteou a bandeira do Brasil no bar do Zé Batidão, na Zona Sul da capital paulista. Era o encerramento daquele que talvez seja o maior sarau de poesias do país, a Cooperifa, frequentado por moradores das quebradas e por alunos da rede pública da região. Naquela quarta-feira particular, alguns dos poetas mais jovens estavam roucos de tanto gritar nos protestos. Vaz sublinhou o que já havia dito no início do sarau: “Estamos hasteando a bandeira não por causa da Copa das Confederações, não por causa da vitória do Brasil no futebol, mas por causa da conquista do povo nas ruas”.

Era uma pequena cena compondo o painel – multifacetado e polifônico – de um grande momento. Sua força é que, horas antes, Neymar fizera um gol espetacular e dera um passe para um segundo gol contra o México, mas isso era menos importante. O que se tornara digno de comemoração foi o que havia acontecido alguns minutos depois do final do jogo: o anúncio, pelo governador Geraldo Alckmin e pelo prefeito Fernando Haddad, da redução do valor das tarifas do transporte público, para atender ao clamor do povo nas ruas.

Vale a pena reservar um parágrafo para a descrição do lugar no qual se desenrola essa cena. Aos fundos do bar, sobre uma estante de livros em que se misturam clássicos do cânone a novelas românticas de banca de revista, estão os orgulhosos troféus do “7 Velas Caveirão”, time que foi patrocinado pelo mineiro Zé Batidão, o dono do bar. Sérgio Vaz sonhava, muito antes de ser poeta, com ser craque de futebol. Boa parte dos que ali estavam são torcedores fanáticos ou quase. Entre os programas da Cooperifa está um intercâmbio com times de futebol de várzea: em troca de uniforme, os jogadores levam suas famílias para ouvir de rap a Castro Alves nas quartas-feiras. Futebol e poesia, ali, habitam a mesma palavra. Ainda assim foi preciso dizer que o gol do Neymar não estava naquela bandeira do Brasil, no momento em que o povo dela se reapropriava.

Ao negar a importância da vitória do Brasil no jogo da Copa das Confederações, o que se afirmava era exatamente a posse do futebol como algo do povo – e não do Estado, nem das empreiteiras que expulsam a população e arrebentam favelas para construir estádios. Ao recusar o custo social da Copa é o futebol que se afirma. Não o futebol dos cartolas, das quadrilhas, dos contratos milionários e dos jogadores movidos a cifrões, mas o futebol como elemento constitutivo de identidade, no momento em que essa identidade ganha fluidez e contornos indefinidos nas ruas do país.

Não acho que os protestos foram planejados para a Copa das Confederações, pelo menos na medida em que ninguém poderia prever a proporção que tomaram. Mas também não acho que o momento seja apenas uma coincidência. Ainda vamos precisar compreender melhor o lugar do futebol e da Copa nessa convulsão das ruas. Quando sonhou com a Copa do Mundo no Brasil, Lula possivelmente pensou com a cabeça da década de 70, com a simbologia da ditadura que marcou a época da juventude dele e de tantos. Mas, ao recusar o custo social da Copa, o povo talvez esteja dizendo: “A Copa do Mundo não é nossa; o futebol, sim”.

(Parênteses. Sérgio Vaz ainda lembraria, com sua ironia certeira: “Aqui na periferia as balas continuam sendo de chumbo. Estamos reivindicando a evolução para balas de borracha”.)

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Em sua crônica da semana passada, na Folha de S. Paulo, o ótimo Antonio Prata fez a síntese precisa do momento: “Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância”. Desde então, tornou-se quase um estilo começar um artigo dizendo que “ninguém está entendendo nada do que está acontecendo” – alguns com sinceridade, outros como mote para dizer que ele ou o veículo que representa, sim, está entendendo alguma coisa.

Aos que fazem essa afirmação com sinceridade, gostaria de dizer que concordo. Mas gostaria de dizer também que sempre foi assim. Toda reflexão sobre a história em movimento é um esforço para compreender o momento no qual estamos todos tateando a partir de referências do passado e investigações do presente – sempre fragmentadas, incompletas e aquém, por maior que seja o nosso empenho. O que oferecemos ao leitor são nossas melhores e mais profundas dúvidas – e é com dúvidas que vamos construindo a narrativa complexa do cotidiano. O risco seria, com medo da ruptura também em nossos padrões de pensamento, repetirmos certezas viciadas para não escutar o novo. Se existe uma potência possível, ela se dá na coragem de sustentar nossas incertezas.

Uma das melhores frases para esses dias sem nome foi postada pelo poeta Carlito Azevedo, no Facebook:

– Quem não estiver confuso, não está bem informado.

(Publicado na Revista Época em 24/06/2013)

 

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