Um repórter ameaçado de morte

André Caramante, um dos mais respeitados jornalistas brasileiros na área da segurança pública, foi obrigado a mudar de país e esconder-se. Em entrevista, ele conta o que a situação de exceção vivida por ele e por sua família revela sobre a intrincada relação entre poder e violência

Em 14 de julho, André Caramante, repórter da Folha de S.Paulo, assinou uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. No texto, de apenas quatro parágrafos, o jornalista denunciava que o coronel reformado da Polícia Militar Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, candidato a vereador em São Paulo pelo PSDB nas eleições do último domingo, usava sua página no Facebook para “veicular relatos de supostos confrontos com civis”, sempre chamando-os de “vagabundos”. Em reação à matéria, Telhada conclamou seus seguidores no Facebook a enviar mensagens ao jornal contra o repórter, a quem se referia como “notório defensor de bandidos”. A partir daquele momento, redes sociais, blogs e o site da Folha foram infestados por comentários contra Caramante, desde chamá-lo de “péssimo repórter” até defender a sua execução, com frases como “bala nele”. Caramante seguiu trabalhando. No início de setembro, o tom subiu: as ameaças de morte ultrapassaram o território da internet e foram estendidas também à sua família.

O que aconteceu com o repórter e com o coronel é revelador – e nos obriga a refletir. Hoje, um dos mais respeitados jornalistas do país na área de segurança pública, funcionário de um dos maiores e mais influentes jornais do Brasil, no estado mais rico da nação, está escondido em outro país com sua família desde 12 de setembro para não morrer. Hoje, Coronel Telhada, que comandou a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) até novembro de 2011, comemora a sua vitória nas eleições, ao tornar-se o quinto vereador mais votado, com 89.053 votos e o slogan “Uma nova Rota na política de São Paulo”.

O que isso significa?

Os 13 anos em que André Caramante cobre a área de segurança pública são marcados pela denúncia séria, resultado de apuração rigorosa, dos abusos cometidos por parte da polícia no estado de São Paulo. A relevância do seu trabalho foi reconhecida duas vezes pelo Prêmio Folha de Jornalismo. Caramante já denunciou sete grupos de extermínio formados por policiais militares e civis, assim como por ex-policiais. Mantém sua própria planilha na qual registra os mortos pela polícia. E faz a denúncia sistemática da figura amplamente difundida da “resistência à prisão” como justificativa para execução, em geral dos suspeitos mais pobres. Por sua competência, Caramante ganhou o respeito da sociedade interessada em uma polícia eficiente, com atuação pautada pelo cumprimento da lei – e o ódio de uma minoria truculenta, os maus policiais, tanto militares quanto civis, e daqueles cujos interesses e projeto de poder estão ligados a eles.

Antes de ser jornalista, Caramante quis ser jogador de futebol. Morador da periferia de São Paulo, comprou a primeira chuteira vendendo papelão. Era “um meia-direita dedicado”, na sua própria avaliação, e usou a chuteira com brio nas peladas de várzea e nas peneiras na Portuguesa, no Novorizontino e no Palmeiras, clubes nos quais chegou a treinar nas categorias de base. A necessidade de ajudar com as despesas da casa o despachou para a arquibancada. Em especial a da Vila Belmiro, por um amor incondicional pelo Santos herdado do pai.

Aos 11 anos, Caramante começou a trabalhar como camelô, vendendo chocolates e sacolas no Brás, em São Paulo. Mais tarde, aos 17, o estudante de escola pública pagou a faculdade de jornalismo da Uniban com o salário de office-boy e com os vales-transporte que economizava fazendo o serviço a pé. “Não sabia se a faculdade era boa ou ruim, não entendia dessas coisas, apenas sabia o que queria fazer”, conta. “O livro Rota 66, de Caco Barcellos, tinha me mostrado o que era jornalismo.”

Em seu livro Rota 66 – a história da polícia que mata (Record), Caco Barcellos, um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, hoje na TV Globo, investigou o trabalho da Rota entre as décadas de 1970 e 1990. E provou que ela atuava como um aparelho estatal de extermínio, responsável pela execução de milhares de pessoas. A reação às denúncias obrigou o repórter a passar um período fora do Brasil, devido a ameaças de morte. Duas décadas depois do lançamento do livro que o inspirou, Caramante vive uma situação semelhante.

A notícia de que ele estava vivendo escondido, com a família, vazou na semana passada, em matéria da Revista Imprensa. Até então, Caramante pretendia manter o fato em sigilo. A decisão de esconder-se com a família foi difícil para o repórter que nunca quis virar notícia – e que sempre evitou ser fotografado. Enquanto era alvo único das ameaças de morte, Caramante manteve uma rotina normal. O jornalista só aceitou se mudar para um destino secreto quando sua família passou a ser ameaçada. Mesmo assim, para ele é ponto de honra seguir com seu trabalho de reportagem. Pela internet, envia informações ao jornal com frequência. E segue assinando matérias na área da segurança pública.

Quando um repórter é obrigado a mudar de país e se esconder com a família por fazer bem o seu trabalho e prestar um serviço à população, ao fiscalizar os órgãos de segurança pública, este não é um problema só dele – mas da imprensa, que tem o dever de informar, e da sociedade, que tem o direito de ser informada. É disso que se trata.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail entre sexta-feira e domingo, André Caramante, 34 anos, fala sobre a situação de exceção que ele e sua família estão vivendo, mas principalmente sobre as complexas relações entre violência e poder que a tornaram possível.

Em 14 de julho, você publicou na Folha de S.Paulo uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. Você se referia ao coronel reformado Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, que comandou a Rota, em São Paulo, até novembro de 2011, e, nestas eleições, disputou uma vaga para vereador pelo PSDB. O que aconteceu a partir desta matéria que o levou a, dois meses depois, ter de esconder-se com a família?
André Caramante – Cubro segurança pública há 13 anos, então, muito dessa situação não é exatamente novidade. Nestes 13 anos, sempre mantive minha lupa sobre os abusos cometidos por policiais, especialmente no que diz respeito à letalidade. Considero legítimo que a sociedade possa fiscalizar o Estado, especialmente seu braço armado. Não podemos considerar eficiente uma polícia que mata tanto quanto a do estado de São Paulo. Entre 2006 e 2010, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que todas as polícias dos Estados Unidos juntas. A cultura da nossa polícia militarizada permite que se mate sem que se conheça sequer a identidade do “oponente”. É tão normal e aceitável quanto utilizar uma figura jurídica inexistente para preencher o boletim de ocorrência – a “resistência (à prisão) seguida de morte”. A morte do empresário Ricardo de Aquino por policiais militares no bairro Alto de Pinheiros (em São Paulo) colocou a questão na agenda da mídia e das autoridades alguns meses atrás. Como ele, vários outros foram vítimas dessa cultura e do mau treinamento. É óbvio que alguns policiais agem na ilegalidade e a maioria age dentro da lei. Também faço um trabalho consistente de denúncia de grupos de extermínio formados por policiais militares e civis e ex-policiais civis e militares, tendo revelado ao menos sete deles. São grupos que, ao exemplo das milícias do Rio, tentam controlar as atividades ilícitas na cidade – máquinas caça-níquel e tráfico de drogas, às vezes cruzando o caminho do PCC – e geram mortes. Há grupos bem estruturados e com braços de inteligência. Um deles, inclusive, planejou a morte de um integrante do alto escalão do governo paulista, sem que tenha conseguido levar a cabo a ação.Meu trabalho de denúncia também abrange a corrupção na Polícia Civil. Hoje, as coisas se dividem mais ou menos assim no Estado de São Paulo: alguns integrantes da PM cometem violência e alguns da Civil escorregam na corrupção. São questões totalmente relacionadas a poder e dinheiro. Em dezembro do ano passado, publicamos uma investigação da Polícia Federal que mostrava policiais civis cobrando grandes valores para liberar da prisão suspeitos de tráfico de drogas. Somadas, as propinas chegavam a R$ 3 milhões. É uma conduta isolada? Esquemas assim não surgem do nada. É da cultura da instituição, e são as pessoas que constroem a cultura organizacional. Mudar não é uma questão de ser fácil ou difícil, mas de não ser interessante para as pessoas que estão lá.

Você vem denunciando essa situação há bastante tempo, mas só agora teve de esconder-secom sua família por causa de ameaças de morte. O que aconteceu?
Caramante – O que houve foi não digo o surgimento, mas a publicidade e o crescimento exponencial de um clima favorável à intimidação, no qual pessoas sentiram-se à vontade, ou mesmo incitadas, a disseminar “avisos”. A partir da matéria sobre o que estava acontecendo no Facebook houve um acirramento dos ânimos de quem antes já me via como inimigo, além do crescimento quantitativo dos que mantêm os olhos em mim e no meu trabalho de uma forma negativa.Houve uma onda de comentários no Facebook, no Twitter, em blogs e no site da Folha que foram desde “péssimo repórter” até “bala nele”. Era só “ativismo de sofá”, de gente que só despeja frases no teclado do computador? Provavelmente.Depois, alertas de caráter dúbio – “Quando acontecer algo com alguém da sua família…”, “Quando você for sequestrado…” – surgiam nos espaços de comentários do site da Folha em qualquer reportagem que eu escrevesse e até naquelas em que não tive participação, mas que traziam denúncias contra membros das polícias. Também orquestraram o envio de diversas cartas contra mim, enquanto profissional, para a Folha.Após pouco mais de um mês de bombardeio digital, as ameaças tornaram-se mais concretas, com fatos atualmente sob investigação das autoridades competentes.

Que fatos são estes?
Caramante – Não falo de um fato, mas de uma série, que se iniciou dias após aquela onda nas redes sociais. Foram ligações, comprovações por fontes altamente confiáveis,de que estavam levantando informações de familiares, motos em trajetos curiosamente iguais aos meus. Não acho possível dimensionar a gravidade do risco, e também chegou-se a um ponto em que não valia mais a pena ficar avaliando. Decidi ouvir gente mais experiente do que eu e, em conjunto com o jornal, foi tomada uma decisão: trabalho à distância.
Não estou fisicamente na redação desde o início de setembro, sem que tenha saído da ativa. Esta é uma situação em que o risco físico toma a cena, mas certamente ele não é o único. Venham de onde vierem, a ameaça e a intimidação têm o objetivo de desestabilizar, tirar de cena. Jogam com o risco psicológico também, testam quão boa é a sua cabeça e quão forte é a sua corrente.

Qual é o papel do Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, nesta série de ameaças?
Caramante – Em sua página, o coronel reformado começou a divulgar relatos de confrontos entre PMs da Rota e civis – estes sempre chamados de “vagabundos” –, além de divulgar fotos de pessoas que, segundo ele, eram suspeitos de crimes. Fiz um texto objetivo, relativamente curto, sobre isso. No dia da publicação no jornal, 14 de julho, ele postou no Facebook uma mensagem na qual me acusava de “defender abertamente o crime” e pedia uma mobilização contra mim. A conduta desse senhor deflagrou uma onda de tentativas de intimidação, de incitação à violência contra um jornalista – um profissional que apenas retratou o que o próprio coronel reformado registrou publicamente na rede social. Não estou dizendo que ele quis ou que ele não quis incitar atos violentos. Estou dizendo que acabou incitando.

Quem efetivamente está ameaçando você? E quais foram as ameaças?
Caramante – De onde vejo, apontar um ou outro possível autor pode dar grande margem a erro. Tenho minhas suspeitas, mas não cometeria o equívoco de acusar sem provas. Creio que haja dois tipos de ameaça. A primeira se aproxima do “ativismo de sofá”, de quem escreve no computador algo que jamais cumprirá. Os autores deste tipo de ameaça não são tão desconhecidos assim, e não é tão difícil encontrá-los nos canais digitais. A segunda, esta sim grave, é a ameaça de quem considera a possibilidade de agir. Aqui estão desde admiradores de policiais alvos de reportagens, pessoas que pouco têm a perder e vivem com parâmetros de raciocínio e moral diferentes dos nossos, até outros que há tempos me têm como um inimigo e podem aproveitar justamente esta visibilidade do caso do Facebook para tentar algo e “colocar na conta” de outro. O caso do Facebook, além de ser apenas uma parte da história, pode ser usado por outros para acobertar eventuais retaliações. Mas, veja, isto é o que eu deduzo com base na minha experiência, não há qualquer base de pesquisa ou de investigação científica.

O que você está dizendo é que pessoas que se ressentem há muito tempo com suas denúncias de abusos cometidos pela polícia estariam se aproveitando do caso do Facebook para se vingar e desviar a responsabilidade para o Coronel Telhada?
Caramante – Sim, é uma possibilidade.

Quando as primeiras ameaças se tornaram públicas, você disse que continuaria a fazer o seu trabalho. Imagino que deve ter sido difícil tomar a decisão de se afastar da redação. Como esta decisão foi tomada?
Caramante – É importante esclarecer que o termo “afastamento” não é apropriado para o meu caso. Continuo exercendo minhas atividades profissionais, onde quer que eu esteja. Não estar fisicamente na redação me causa impedimentos que são irrisórios frente à necessidade atual de garantia da integridade, minha e da minha família.

Quando você deixou de trabalhar na redação?
Caramante – Desde o início de setembro. Os advogados do jornal encaminharam às autoridades uma solicitação de investigação sobre as ameaças. Alterei completamente minha rotina e minha localização.

Foi difícil?
Caramante – Sou trabalhador desde os 11 anos e não tenho dúvidas quanto à profissão que escolhi. A decisão de estar fisicamente ausente da redação não foi nada fácil. Particularmente, via este passo como um sinal de recuo, um erro do ponto de vista do meu ideal e mesmo de estratégia em relação a quem tenta enfraquecer o trabalho da imprensa. O que fizemos, então, foi arquitetar uma ausência que fosse apenas física, com uma operação que permitisse que seguíssemos em frente. Existem inúmeras maneiras de fazer reportagem.

Qual foi a reação da sua família e como eles estão vivendo esse momento?
Caramante – Estão todos cientes e bastante atentos. Não é fácil estar ausente, mas não creio que seria muito melhor estar presente e vivendo com sombras. Meus filhos percebem a situação incomum que vivem atualmente, mas ignoram essa história toda. Felizmente, eles sentem-se seguros onde pai e mãe estão – não importa onde. Minha rede familiar está permeada pelo estresse, mas ela é muito forte. Sempre foi, desde muito antes de toda essa situação. Além disso, a corrente formada por colegas de profissão e entidades daqui e de fora também deixou claro que este não é um problema só meu. Entidades como Repórteres Sem Fronteiras, Knight Center of Journalism (vinculado à Universidade do Texas), Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Instituto Sou da Paz, coletivo Sindicato É Pra Lutar e movimento independente Mães de Maio se manifestaram publicamente em apoio à minha atuação e ao direito de informar.

É isso que está em jogo, o direito de informar?
Caramante – É uma questão ligada ao direito de informar e de ser informado, e meus companheiros de profissão sabem do que falo. Há, atualmente, no estado de São Paulo, uma grande preocupação por parte de autoridades da segurança pública de tentar evitar que muitos fatos sejam tornados públicos pela imprensa. Por conta disso, funcionários públicos que as autoridades acreditam manter contato com jornalistas passam a ser alvo de perseguição nas instituições às quais pertencem. Muitas vezes, essas perseguições são feitas com base apenas no “achismo”.

Que fatos são estes, que as autoridades da segurança pública não querem que se tornem públicos?
Caramante – Qualquer dado que não conste do relatório oficial publicado mensalmente no site da secretaria. Não é exagero. Falo de qualquer dado mesmo. Basta perguntar a quem cobre a área. Não é de hoje. Sempre foi assim. No estado de São Paulo, jornalistas são impedidos de consultar boletins de ocorrência, um documento público. Tudo – absolutamente tudo – tem de passar pelas canetas das assessorias de imprensa da Secretaria e da Polícia Militar. É uma operação extremamente centralizada e que visa impedir o repórter de ir a uma delegacia e obter informações sobre uma ocorrência.

Por quê?
Caramante – Vejo como uma tentativa de construir uma realidade que não existe aqui, como se vivêssemos na Suécia. A proibição do acesso a boletins de ocorrência integra uma estratégia de forte controle de informações. “Só sai o que eu quero.” Não importa a relevância do dado, esta é a diretriz. Delegados só dão entrevistas mediante autorização de assessores de imprensa. É meio estranho que uma autoridade seja submetida a esse tipo de imposição para tentar controlar a informação.

Esta foi a primeira vez que você foi ameaçado de morte?
Caramante – Não. Como vários outros colegas, já passei por situações semelhantes. Ouvi pelo telefone frases como “Cuidado, muita gente morre em assalto por aí”, seguida por meu endereço completo. Tempos atrás, policiais à paisana fotografaram minha família durante um passeio.

Você costuma denunciar os abusos cometidos pela polícia, especialmente contra os moradores das periferias de São Paulo e da Grande São Paulo. Você se considera, hoje, nesta situação, uma vítima da polícia?
Caramante – Não me considero vítima de nada. Tenho plena consciência de que não posso e não quero ser notícia. Sou contratado por um jornal para contar as histórias das outras pessoas, para fiscalizar um determinado segmento do poder público. E a minha preocupação é sempre esta: contar a história do próximo, registrar os fatos, levar a notícia para quem lê a Folha de S.Paulo. As páginas de um jornal marcam a história de um país. Eu sou uma peça dessa engrenagem que imprime a história no papel do jornal. A exposição desses últimos fatos me trouxe tristeza porque não é o que busco como repórter. Aí vão perguntar: “E por que você está dando entrevista?”. Estou dando entrevista porque, do muito que foi dito sobre a minha pessoa, pouco foi dito por mim. Porque quero esclarecer que não estou “afastado”. Afastamento dá a ideia de punição, de suspensão, e nunca houve nada nesse sentido da parte do jornal. Pelo contrário: sanamos a demanda urgente relativa à garantia da integridade e ao mesmo tempo planejamos a continuidade do trabalho. E mais: não existe isso de perseguir a Polícia Militar ou a Polícia Civil com meu trabalho. O que penso é que ninguém quer ter nessas instituições pessoas que não façam jus à condição de representantes do Estado.

Já entrevistei muitas pessoas ameaçadas de morte, algumas delas ameaçadas de morte por policiais, de diferentes estados. Minha percepção é de que estas últimas sentem um nível de desamparo maior, na medida em que, se aqueles que deveriam protegê-las, em vez disso ameaçam a sua vida, para quem então pedem ajuda? Sem contar que membros da polícia, por disporem do aparato do Estado, têm meios para comprometer a credibilidade da vítima, “plantando” falsas provas. Como você percebe isso?
Caramante – Quando você tem indicativos de que alguns dos representantes armados do Estado querem te desestabilizar, com certeza, a reflexão é sempre essa: para quem recorrer, como agir? Muitas vezes, essas mesmas pessoas tentam desmoralizar seu trabalho e sua conduta fora do campo profissional, mas tenho tentado me manter centrado. Converso com repórteres amigos para dividir alguns pensamentos e pensar em maneiras de me manter firme na caminhada.

Por que o estão ameaçando? Que “ameaça” você representa para que ameacem a sua vida? E por que agora, neste momento?
Caramante – Como te falei, não é de agora. É uma coisa que ficou mais acentuada. Pode ser que tenha alguma relação com o período eleitoral ou com outros interesses que ainda não consigo afirmar quais são. Um deles, por exemplo, pode ser a necessidade que muitos têm de manter o poder ou de chegar até o poder.

Quem? Pode explicar melhor?
Caramante – Não posso nomeá-los, pois aí já entraremos em informações referentes aos bastidores das polícias, e esses meandros estão muito ligados às minhas fontes e às minhas apurações. Hoje, em São Paulo, a questão da polícia vai além dos muros dessas instituições. A cidade nunca esteve, em período democrático, tão militarizada. Trinta das 31 subprefeituras ganharam comando de PMs da reserva na gestão Kassab. Com a criação da operação delegada, os policiais militares hoje atuam oficialmente não apenas para a corporação, mas também para a prefeitura – é o bico legalizado. Vemos então que as frentes de poder estão crescendo, e há muita gente na disputa. Sem contar os cargos na Câmara Municipal.

Por que isso está acontecendo? Por que, por exemplo, 30 das 31 subprefeituras de São Paulo ganharam comando de PMs da reserva nesta gestão?Como você caracterizaria esse projeto de poder?
Caramante – Esse processo ganhou corpo quando o coronel (agora reformado) da PM Álvaro Batista Camilo, também candidato a vereador, pelo PSD, se aproximou do prefeito Kassab, na época em que era comandante-geral da PM. Como é sabido, Kassab vem marcando sua gestão com uma postura de cerceamento. Já são notórias as tentativas de proibição de sopões a moradores de rua, de saraus na periferia, da feira da praça Roosevelt, no centro de São Paulo, e outras mais.

O que o fato de um repórter de um dos maiores jornais do país ser ameaçado de morte revela sobre a violência no estado de São Paulo?
Caramante – É uma questão que não diz respeito somente à violência. Esta é a parte tangível de todo o contexto que citei anteriormente. A relação polícia X poder é atualmente um ponto muito importante. Desde a abertura política, talvez seja este o momento em que São Paulo mais tenha a influência de policiais militares. Com poder em jogo, os ânimos se acirram, em qualquer área.

Por que agora? E o que está em jogo?
Caramante – Estamos em um momento propício por conta da já citada aproximação sem precedentes (da polícia) com outras esferas do poder público. Muitos oficiais da PM notaram, e agora tentam dar vazão a isso, que há outras e importantes áreas para onde estender seu campo de atuação – e de poder.

Você cobre a área policial há 13 anos. Documentou, como repórter, a ascensão do PCC. Você costuma dizer que vivemos numa guerra. Por quê? Como é essa guerra e em que momento dessa guerra estamos hoje?
Caramante – É uma guerra entre o grupo criminoso PCC e as forças de segurança do Estado. O PCC é forte porque controla o tráfico de drogas no estado de São Paulo. É inegável o fato de o estado de São Paulo, desde 1999, ter conseguido baixar suas taxas de homicídios dolosos (intencionais). Essa queda, porém, é fruto de controle duplo: se deve tanto a progressos na Segurança Pública quanto ao comando do PCC. Em muitas situações, é o PCC quem decide quem morre em São Paulo, nos chamados tribunais do crime. Hoje, outubro de 2012, a guerra está mais acirrada entre o PCC e os policiais militares da Rota, considerada uma tropa de elite da PM paulista e que conta com 820 integrantes. Investigações contra o PCC antes feitas pela Polícia Civil, que tem essa atribuição pela lei, foram remetidas à Rota, que tem função de policiamento preventivo, ou seja, trabalhar para evitar que o crime ocorra.Estou dizendo isso porque defendo criminosos e quero dar uma chance a eles? Não. Falo porque é ilegal. Quem investiga é a Polícia Civil. Há aí uma nítida tentativa de empoderar ainda mais os integrantes da Rota. É o Estado agindo ilegalmente.

Por quê?
Caramante – Isso é um reflexo da atual cúpula da Secretaria da Segurança Pública, que tem um histórico de relacionamento intrínseco com a Rota. Nos primeiros escalões da segurança pública paulista, também, impera uma certa desconfiança quanto à atuação de parte da Polícia Civil nas investigações sobre o PCC. Fala-se em corrupção.

Na semana passada, a Folha publicou que arquivos da facção PCC revelam atuação em 123 cidades de São Paulo, com 1.343 homens em todas as regiões do estado. O governo de São Paulo tentou minimizar o impacto das informações e o poder do PCC. O governador, Geraldo Alckmin, afirmou que “há muita lenda” sobre facções criminosas no estado de São Paulo. O secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, declarou: “A facção é bem menor do que dizem. Não chega a 30 ou 40 indivíduos que estão presos há muito tempo e se dedicam ao tráfico. Nós temos asfixiado esse tráfico com grandes prisões”. O coronel da Polícia Militar Marcos Roberto Chaves da Silva, comandante do policiamento da capital, disse que existe “folclore” nas informações sobre o PCC. Qual é a verdade?
Caramante – Curioso como esse folclore é alinhado à realidade. No mês passado, por exemplo, a Rota matou nove pessoas envolvidas em um “tribunal do crime”, um julgamento no qual um homem suspeito de estuprar uma menina teria sua vida decidida pelos criminosos do PCC. Um dos nove mortos pela Rota era o “réu” do partido do crime, como os policiais chamam o PCC. Para justificar a ação, o governo disse que todos eram muito perigosos, que integravam o PCC. Passado o calor do acontecimento, o governo voltou à postura habitual de minimizar a importância, o tamanho e o poder do grupo. Se são apenas 30 ou 40 indivíduos, as oito mortes no mês passado reduziram significativamente o PCC. É isso o que vemos quando policiais militares são mortos quando estão de folga, como tem ocorrido constantemente em São Paulo? Será que o PCC deixou de decidir quem vive ou quem morre durante um “tribunal do crime”, quase sempre via telefones celulares usados por criminosos que estão presos e, na teoria, deveriam estar sem comunicação com as ruas? Quem vive na periferia de São Paulo sabe bem como as coisas são.

E como as coisas são? Como é o cotidiano de quem vive na periferia com relação ao PCC e à Rota?
Caramante – O PCC domina os pontos de tráfico de drogas em São Paulo. Para evitar a presença das polícias, tenta corromper alguns de seus integrantes e também busca evitar crimes nas redondezas dos pontos de tráfico, principalmente homicídios. No meio disso, quem não é nem do PCC, nem da polícia, assiste a tudo em silêncio, esperando que não “sobre” para si.

O governador Geraldo Alckmin trocou o comando da Rota, no final de setembro. Entre as razões, estaria a divulgação de que o número de pessoas assassinadas pela tropa aumentou 45% nos primeiros cinco meses deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado. Qual é a sua opinião sobre a Rota? Ela deveria acabar?
Caramante – Não só a Rota, mas toda a Polícia Militar. A PM tem uma estrutura que desconhece meritocracia e privilegia uma variação do nepotismo. Policiais dos escalões mais baixos são usados como degrau para filhos de oficiais que estão no topo da pirâmide. É como se o filho do coronel fosse, desde sempre, o coronel de amanhã, e o filho do praça já nascesse sabendo que jamais será oficial. Há exceções que o governo pode vir a bradar, claro, mas a regra é mais ou menos essa.Quantos oficiais foram mortos pelo PCC?Nenhum. É óbvio que não tem de morrer nem o official, nem o praça. Mas, hoje, só morre aquele trabalhador que está na linha de frente e também vive na periferia de São Paulo.Quem cobre segurança pública em São Paulo também sabe que os policiais da Rota saem às ruas com um ímpeto diferenciado e, às vezes, alguns deles cometem excessos. É o caso da morte do representante comercial Paulo Alberto Santana Oliveira de Jesus em Osasco, na Grande São Paulo, em setembro de 2011. Ele foi morto em casa, desarmado e com as mãos para trás. Em maio deste ano, das mortes de seis suspeitos de integrar o PCC na zona leste de São Paulo, um deles foi levado a uma rodovia e executado. Em ambas as situações, foi forjado um confronto armado, segundo dados apresentados por promotores. As seis mortes na zona leste são tidas como estopim para o atual acirramento da violência entre PCC e Rota.

Me parece curioso, para dizer o mínimo, que um repórter tenha de se esconder para proteger sua vida após ter denunciado que um candidato a vereador pelo PSDB e ex-comandante da Rota disseminava a violência no Facebook e ninguém, de nenhum partido, tenha falado disso durante a campanha. Você tem alguma hipótese para esse silêncio?
Caramante – No fim de setembro, um candidato a vereador em São Paulo, assim como esse ex-chefe da Rota, pediu a impugnação da candidatura dele e alegou que esse senhor aparecia em sua propaganda política fardado, o que não é permitido pela lei eleitoral. Esse mesmo candidato também foi alvo da ira dos simpatizantes do ex-chefe da Rota e recebeu ameaças. A promotoria eleitoral também pediu, na semana passada, a impugnação da candidatura desse PM reformado e alegou que ele utilizou sua página no Facebook para incitar a violência.

Por que você se tornou repórter de polícia?
Caramante – Porque quem tem a obrigação de nos defender não pode, sob hipótese alguma, atentar contra nós. Também queria que meu pai tivesse o orgulho de ver seu sobrenome no jornal por uma causa justa.Sempre admirei o trabalho de repórteres como (Caco) Barcellos. Há histórias e situações que precisam ser contadas. Admiro muito, também, José Hamilton Ribeiro, mestre na arte de contar histórias. Ouvi palavras de apoio dos dois recentemente. As de Barcellos recebi com reverência. O tenho como meu maior exemplo. As de seu Zé Hamilton, com emoção. Me pegou desprevenido. Me marcou.Quero agradecer cada mão estendida e cada palavra de apoio que foi dita em nome da garantia do direito de informar e ser informado.

“Repórter de polícia” ainda é uma boa definição para jornalistas como você?
Caramante – Acredito que o termo “repórter de polícia” deixou de existir. Hoje, cobrimos segurança pública e, por conta de uma evolução da cobertura nessa área, que deixou de ser tão vinculada às autoridades, como era no passado, somos repórteres de segurança pública.

E qual é a importância de se cobrir a área de segurança pública num país como o Brasil?
Caramante – É um tema intimamente ligado ao cotidiano das pessoas, e ainda temos muito a evoluir tanto no combate à criminalidade comum quanto à de parte das forças de segurança.

Você monitora o número de pessoas mortas pela polícia. Quantos foram mortos até hoje no estado de São Paulo?
Caramante – Sim, monitoro porque o jornal para o qual trabalho dá atenção especial para a questão da letalidade policial. Tenho meu próprio sistema de dados, no qual registro todas as mortes cometidas por policiais militares. Estes números não batem com os oficiais. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo divulga em sua página na internet apenas as chamadas “resistências seguidas de morte”, mas há outros casos que entram na vala comum dos homicídios dolosos cometidos por qualquer cidadão. Minha contabilidade mostra que, entre 2005 e agosto deste ano, policiais militares mataram 4.358 pessoas no estado. Destas, 3.401 foram em “resistência(à prisão) seguida de morte” – figura jurídica inexistente, repito – e 957 em homicídios dolosos, que vão desde brigas em bar, no trânsito, casos conjugais, até mortes como a do empresário Ricardo de Aquino. São 47,3 mortos por PMs a cada mês. Ou seja: 1,5 a cada dia. Este é o retrato de uma Polícia Militar extremamente letal e que precisa passar por reformas o quanto antes.

Em que medida as relações entre o aparato de repressão do Estado e a população explicitam a desigualdade e as fissuras da sociedade brasileira num estado como São Paulo?
Caramante – A Polícia Militar que atua dentro do perímetro do rodízio de veículos (de São Paulo), o chamado centro expandido, não é a mesma que atua na periferia. Temos duas polícias militares para cuidar da mesma cidade, e cada uma delas trata os cidadãos de maneira diferenciada, isso de acordo com o CEP da pessoa. Muitas vezes, policiais são mandados à periferia como forma de punição dentro do jogo de poder que não está nos manuais da corporação. Então, já vai para lá com um sentimento diferenciado. Recentemente, pesquisadores mostraram, com base em dados da Secretaria Municipal da Saúde, que 93% dos mortos pela Polícia Militar moravam na periferia de São Paulo. O estudo teve como base os anos entre 2001 e 2010. No período, dos mortos por PMs, 54% eram pardos ou negros.

Hoje há programas de TV que cobrem a área policial, nos quais suspeitos são tratados por jornalistas como condenados – e condenados sem direito algum –, marcas de tortura em detidos e presos são ignoradas e apresentadores incitam a violência da sociedade contra “vagabundos”. Você acha que esse tipo de imprensa colabora para que jornalistas como você, que trabalham com seriedade e denunciam também os abusos cometidos pela polícia, sofram ameaças?
Caramante – São profissionais da imprensa que recebem altos salários para fazer o que fazem. Eles são experientes e, creio, no fundo sabem que somente a Justiça pode condenar ou inocentar algum suspeito de determinado crime. Estão ali por cifras altas. É a mesma situação de um profissional de jornalismo que abandona a carreira numa redação para ser assessor e ganhar R$ 1 milhão por seis meses de trabalho numa campanha política. São opções e temos de respeitar quem as toma. Mas essas pessoas também têm de respeitar quem não pensa como elas.

Como é estar no lugar de vítima para você, que tanto denunciou a violação de direitos humanos dos mais pobres e indefesos?
Caramante – Vítima é a dona Maria da Conceição, mãe do Antonio Carlos da Silva, o Carlinhos, portador de deficiência mental que foi morto por policiais militares que integram o grupo de extermínio “Highlanders”, segundo a Polícia Civil e a Promotoria. Ele teve a cabeça e as mãos arrancadas após ter sido morto porque andava na rua e tinha dificuldades de comunicação.

Você pode contar melhor esta história?
Caramante – Carlinhos foi morto em outubro de 2008, na periferia da zona sul de São Paulo. Estava perto de casa quando foi obrigado a entrar em uma viatura da Polícia Militar que fazia ronda no local. Vizinhos assistiram à cena e relataram à família. Imediatamente, a mãe, dona Maria da Conceição dos Santos, a irmã, Vânia Lúcia, e o pai começaram a procurá-lo. Poucas horas depois foram até o 37º Batalhão, onde ouviram da boca dos PMs – que, segundo a Polícia Civil e a Promotoria, mataram seu filho – que não o tinham visto. Encontraram o corpo de Carlinhos, decapitado e com as mãos arrancadas, em uma cidade vizinha. Ele, que era portador de necessidades especiais, tinha dificuldades para se comunicar.

Uma das maiores dificuldades da situação que você está vivendo parece ser o fato de ter virado notícia. Por quê?
Caramante – Para começar, nunca me vi numa situação assim. Não é para isso que decidi ser repórter. A questão da exposição parece parte de uma realidade paralela, não se encaixa na minha trajetória. Optei por sempre passar despercebido.Quero poder continuar sentando numa delegacia sem que ninguém saiba quem eu sou.

Imagino que você tenha medo em alguns momentos ou o tempo todo. Como lida com isso?
Caramante – O medo pode ser uma ótima ferramenta para aguçar os instintos. Sim, pode ser devastador também. Tento utilizá-lo como um agente minimizador de riscos. Nos momentos mais difíceis de administrá-lo, busco lembrar por que estou nesta caminhada. Me vêm à mente pessoas das quais contei histórias. O foco são elas, não eu.

Há perspectiva de sair dessa situação em breve?
Caramante – Minha situação atual passa por constante avaliação da direção do jornal. Por enquanto, manteremos como está.

Como essa experiência está transformando você? Já é possível perceber alguns impactos e mudanças?
Caramante – Situações dessa intensidade são oportunidades para reafirmar algumas ideias e descartar outras. Houve impacto, e mudanças certamente virão. Mas estão em curso, e por isso prefiro guardá-las aqui comigo.

Que ideias você reafirmou e quais descartou?
Caramante – Reafirmei, por exemplo, a ideia de que tenho de permanecer alguém que conta as histórias dos outros, e também meu intuito de contribuir, minimamente que seja, para a melhoria dos setores que cubro. Deixei de lado a ideia de que riscos podem ser mensurados com algum grau de exatidão. Ninguém faz nada, até que alguém faça.

Como tem sido seu cotidiano nessa situação de ameaçado de morte?
Caramante – Realmente acho difícil falar sobre isso. Há preocupação referente não apenas à situação atual, mas a como será no futuro. Esta não é uma situação que tenha prazo de validade.Agora à noite, um dos meus filhos disse que preferia estar na nossa casa de verdade. Perguntei o motivo. “Lá é mais colorido.”

(Publicado na Revista Época em 08/10/2012)

 

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

Por que o amianto foi parar no meio do mensalão?

Em meio ao período de julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal realiza uma audiência pública com 35 expositores para debater o uso do mineral cancerígeno presente em cerca de três mil produtos do nosso cotidiano. Entenda como isso afeta – e muito – a nossa vida e o que está em jogo neste momento no Brasil e na corte

Nas próximas duas sextas-feiras (24 e 31/8), o Supremo Tribunal Federal realizará uma audiência pública sobre o amianto – também conhecido como asbesto. O tema afeta diretamente a população, que ainda bebe água de caixas d’água de amianto ou dorme sob um teto de telhas de amianto ou ainda tem em sua vida cotidiana três mil produtos fabricados com essa fibra mineral comprovadamente cancerígena. Apesar da importância da questão, já estamos na semana da audiência pública e pouco se ouve falar sequer de que ela vai acontecer – seja na imprensa, seja nas ruas, até mesmo nos corredores do próprio Supremo. A razão é óbvia: como é possível que se preste atenção em qualquer outra coisa realizada na corte em pleno período de julgamento do mensalão?

Mesmo que não estejam previstas sessões de julgamento do mensalão nestas duas sextas-feiras, ainda assim é legítimo questionar: se o principal objetivo de uma audiência pública é esclarecer os ministros em temas supostamente controversos, como os principais interessados estarão aptos a concentrar seus esforços em qualquer outra coisa que não seja o mensalão, ouvindo 35 expositores sobre um tema complexo, quando alguns já são flagrados cochilando e outros reclamam publicamente de exaustão devido à agenda semanal pesada?

A audiência pública foi pedida pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, que serve à indústria do amianto, no curso de uma ação que tenta derrubar a lei que proibiu a fibra mineral no Estado de São Paulo. Movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), esta ação (ADI 3937) alega a inconstitucionalidade da lei paulista. Mas é só uma entre várias ações relativas ao amianto que começaram a tramitar há mais de uma década no Supremo, o que permitiria supor que a corte já estaria bastante informada sobre o assunto. Mas, pelo menos no entender do relator, ministro Marco Aurélio Mello, não está. O Instituto Brasileiro do Crisotila pediu audiência pública e o ministro Marco Aurélio concedeu o pedido – marcando, dias antes do anúncio oficial do cronograma do mensalão, o debate para agosto.

Como tudo o que se refere ao amianto no Brasil, a audiência pública no meio do julgamento do mensalão é só mais um entre muitos capítulos estarrecedores. O quadro é o seguinte. A Organização Mundial da Saúde considera o amianto cancerígeno desde 1977 – há 35 anos, portanto. Segundo estimativas da OMS, cerca de 107 mil trabalhadores morrem a cada ano no mundo por doenças causadas pelo amianto. Documentos provam que a indústria já tinha informações sobre a relação entre amianto e doenças letais desde os anos 30 do século passado. Nos anos 90, a contaminação por amianto tomou proporções de escândalo de saúde pública em países da Europa, como a França, onde estima-se que 100 mil pessoas morrerão de doenças relacionadas ao amianto até 2025. Em toda a Europa ocidental, as estimativas apontam que o câncer causado por amianto matará 250 mil pessoas entre 1995 e 2029. O primeiro país europeu a vetar o mineral foi a Noruega, em 1984 – quase três décadas atrás, portanto. Desde 2005, a fibra está banida em toda a União Europeia. Atualmente, o amianto está proibido em 66 países.

O Brasil é o terceiro produtor mundial, o segundo exportador e o quarto usuário de amianto. A principal ação que tramita no Supremo contesta justamente a lei federal que permite “o uso controlado do amianto”. Seu relator é o atual presidente da corte, ministro Ayres Britto. Mas, como sabemos, ele aposenta-se em novembro. A ação foi colocada na pauta de julgamentos, mas não tem data marcada para ser votada.

Hoje, o amianto é proibido em cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pernambuco – e em mais de duas dezenas de municípios. A única mina de amianto no Brasil está localizada no município de Minaçu, em Goiás. Parte dos parlamentares que formam a chamada “bancada do crisotila”, dedicada a barrar o andamento no Congresso de projetos de lei para banir o amianto no país, tem estado bastante presentes no noticiário desde que estourou o escândalo de Carlinhos Cachoeira. “Crisotila” é o nome do tipo de amianto extraído no Brasil, cuja possibilidade de “uso seguro” é defendida pela indústria junto a ministros, parlamentares e população, apesar de uma ampla gama de pesquisas, realizadas pelos mais respeitados cientistas no mundo nesta área, provar que não há nenhuma maneira segura de usar amianto.

O escândalo do amianto configurou-se no Brasil na virada do milênio. Naquele momento, vieram a público as informações sobre a doença e a morte de dezenas de trabalhadores das fábricas de amianto. As doenças mais comuns causadas pela fibra mineral são a asbestose – conhecida como “pulmão de pedra”, na qual o doente é lentamente levado à morte por asfixia – e o mesotelioma – um tumor maligno, agressivo e letal na maioria dos casos, conhecido como o “câncer do amianto”. Uma em cada três mortes por câncer ocupacional está relacionada ao amianto.

Hoje, começam a surgir os primeiros casos de contaminação ambiental também no Brasil – pessoas que não trabalharam nas fábricas, mas moravam perto de fábricas de amianto ou tiveram contato com a fibra mineral de outro modo. Em uma série de reportagens publicada em maio, o jornal O Globo mostrou o caso da doceira Adelaide de Jesus Morino, que sofre de um mesotelioma. Ela mora a 200 metros da antiga fábrica da Eternit, em Osasco, na Grande São Paulo (leia aqui).

O estarrecedor com relação ao amianto é observar que o Brasil discute hoje o que os países mais avançados da Europa discutiram 30 anos atrás, alguns, 20 anos outros. Como se esta parte do mundo não estivesse globalizada – e as informações não estivessem disponíveis. No caso do amianto, o Brasil alinha-se com as posições de países como Rússia e China – o primeiro e o segundo produtores de amianto do mundo, cujas práticas econômicas, assim como a relação com os direitos humanos e trabalhistas, são bem conhecidas.

Enquanto a Europa discute como fazer a descontaminação ambiental das cidades nas quais havia minas e fábricas de amianto para evitar o aumento do número de mortes de cidadãos, o Brasil discute se é ou não possível o uso seguro do mineral cancerígeno. Em fevereiro, o Tribunal de Turim, na Itália, condenou o multimilionário Stephan Schmidheiny, antigo dono da gigante Eternit, e o barão belga Jean-Louis Marie Ghislain de Cartier de Marchienne, ex-dirigente da multinacional: a 16 anos de prisão, pela morte de cerca de três mil pessoas. Provou-se na corte que eles sabiam do potencial cancerígeno e, mesmo assim, calaram-se. Ações semelhantes são movidas em diferentes países da Europa, como você pode ler aqui. Enquanto isso, no Brasil, é marcada uma audiência pública para debater, entre outras questões, o impacto econômico do banimento do amianto.

Parece surreal? A mim, pelo menos, parece bastante. Mas, assim é que é. E por que é assim?

Para nos ajudar a entender o que está em jogo na audiência pública do Supremo que começa na próxima sexta-feira, entrevistei Fernanda Giannasi para esta coluna. Auditora fiscal do Ministério do Trabalho há 29 anos, ela é a grande referência na luta pelo banimento do amianto no Brasil – e uma das principais protagonistas no cenário internacional. É conhecida como a “Erin Brockovich brasileira”, numa referência à americana que venceu uma poderosa indústria que contaminara a água de uma pequena comunidade na Califórnia, causando doenças e mortes. No cinema, Erin foi vivida por Julia Roberts, em um filme que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz.

Nesta luta, Fernanda vem sofrendo todo tipo de pressão, já chegou a receber ameaças de morte, recentemente foi vítima – mais uma vez – de uma tentativa de desqualificação, como foi mostrado aqui. Nos últimos dois meses, ela vem dormindo entre duas e duas horas e meia por noite, para atender às necessidades da preparação da audiência pública. A luta pelo banimento do amianto depende, em grande parte, do idealismo de seus ativistas, já que os recursos são escassos e a infraestrutura é pouca. Fernanda teme que, apesar de todos os esforços empreendidos, a audiência seja esvaziada por conta do período sobrecarregado do Supremo. E poucos estejam dispostos a escutá-los com a atenção que o tema merece.

O que está em jogo nesta audiência?
Fernanda Giannasi – A tentativa de adiar decisões com a composição atual do Supremo. Segundo avaliações de decisões anteriores, a maioria dos ministros hoje é desfavorável ao uso do amianto. Assim, os advogados do lobby pró-amianto pediram audiências públicas em todas as ações relativas ao tema, com o objetivo de protelar as votações, na esperança, talvez, de que a próxima composição do Supremo seja mais favorável à indústria do amianto. Uma das ações que o ministro Ayres Britto colocou em pauta, na véspera de assumir a presidência do Supremo, foi a ação que analisará a constitucionalidade da lei federal do uso controlado do amianto. Se esta lei for julgada inconstitucional pelo Supremo, todas as demais ações perdem sua razão de ser – e o amianto será banido. Mas Ayres Britto é o relator – e se aposentará no final deste ano.

Mas não é importante discutir o amianto?
Fernanda – Primeiro, as perguntas que estão postas para a audiência pública são as perguntas que foram trazidas pelo lobby do amianto. Claramente têm uma intencionalidade: reforçar a ideia de que o amianto brasileiro, o crisotila, é diferente dos outros, que o uso seguro é possível e que as outras fibras que estão sendo usadas como alternativa têm um custo alto e a substituição do amianto causaria muitas demissões. Bem, eu pretendo esclarecer duas destas questões. A primeira é que o uso seguro do amianto não se tornou viável em nenhum lugar do mundo. Apenas para dar um exemplo, minha equipe já multou caminhões que na ida carregavam amianto e, na volta, torradas e panetones de uma das empresas líderes de mercado. Não é realista imaginar que se conseguirá neutralizar os riscos da manipulação de um produto cancerígeno da mineração à construção civil e ao transporte, sem contar o consumo. A segunda questão que pretendo esclarecer é o impacto econômico e social da substituição do amianto. O lobby do amianto fala em 200 mil empregos, nos quais inclui os empregados no transporte dos produtos e da construção civil. Ora, os caminhoneiros transportam todo o tipo de produto, com ou sem amianto, e os trabalhadores da construção civil usam todo o tipo de material, com ou sem amianto. De fato, segundo os cadastros do Ministério do Trabalho, no qual sou auditora fiscal há 29 anos, a indústria do amianto gera no Brasil 5.500 empregos diretos e indiretos – enquanto as 170 empresas que substituíram o amianto geram, apenas no estado de São Paulo, 10.500 empregos diretos. Estes postos de trabalho, sim, estão ameaçados, se o amianto for mantido e começarmos a importar produtos com amianto da China, como já estamos fazendo. Nossa fiscalização mostrou que produtos com amianto estão chegando até mesmo por meio de compras pela internet. O fornecedor fica em Macau, o cliente recebe pelo federal express. Recentemente, inclusive, houve um escândalo na Austrália, onde o amianto é proibido, ao comprarem 23 mil carros e descobrirem que as juntas automotivas continham amianto. Agora, estão fazendo um recall para devolver os carros à China.

Mas não é importante mostrar tudo isso em uma audiência pública no Supremo?
Fernanda – O debate é sempre importante e temos discutido essa questão, em todas as instâncias, há pelo menos 20 anos, com grande dificuldade e, mais no passado do que hoje, até com risco pessoal. O problema é que essa audiência foi uma surpresa para nós, que lutamos pelo banimento do amianto. E me arrisco a dizer que foi uma surpresa também para alguns ministros do Supremo.

Por quê?
Fernanda – Primeiro, porque a questão do amianto tramita no Supremo há mais de uma década. A primeira ação é de 2001. Já houve decisões e, portanto, os ministros estão bem informados e esclarecidos sobre o tema. Neste sentido, é curioso realizar uma audiência para debater algo que os ministros já estão prontos para votar. Ainda assim, nós sempre estamos dispostos a debater. Portanto, tão logo o pedido de audiência pública feita pelos defensores do amianto foi deferido pelo ministro Marco Aurélio, no início de maio, começamos a empreender todos os nossos esforços para trazer os especialistas internacionais mais relevantes na área para qualificar o debate. E então, de novo fomos surpreendidos: as audiências foram marcadas para agosto, no mesmo período do julgamento do mensalão. O país inteiro está mobilizado para este julgamento: ministros, imprensa, público. Já que chamaram uma audiência pública, gostaríamos de ter a presença massiva dos ministros, a atenção do público e da imprensa, para que realmente haja foco no debate. Mas receamos ter, em vez disso, um debate esvaziado. Esta é a nossa perplexidade: a quem interessa realizar uma audiência pública sobre um tema que tramita há anos e já está na pauta de julgamentos? E, além disso, uma audiência pública realizada no mesmo período do julgamento do mensalão? Qual é o objetivo de fato desta audiência pública?

Mas quando a audiência pública do amianto foi marcada para agosto, não havia ainda a definição do cronograma do mensalão. Pelo que consta no andamento do processo no Supremo, o ministro Marco Aurélio determinou em despacho de 23 de maio que a audiência fosse realizada em agosto. E a data do julgamento do mensalão foi anunciada pelo Supremo alguns dias depois, em 6 de junho. Não teria sido apenas uma coincidência?
Fernanda – Não. Ainda que o julgamento do mensalão não tivesse sido oficialmente marcado e anunciado para agosto, quando a audiência pública foi marcada já estava sendo acertada a data do julgamento entre os ministros. Já se sabia que esta era a proposta. Sei disso porque, assim que nossos advogados souberam que a audiência seria marcada para agosto, manifestaram sua preocupação a ministros do Supremo, mencionando o mensalão. No início, pensamos que seria cancelada por conta disso, mas o fato é que não foi.

Qual é o seu temor?
Fernanda – Que a maior parte dos ministros não acompanhe o debate com a atenção e o foco que poderiam ter em outro momento, já que estão totalmente dedicados ao mensalão, numa agenda que já é pesada por si só. E você não imagina o esforço que é para o movimento social participar dessa audiência. Eu estou indo a Brasília com as minhas milhas, vou pagar o hotel do meu bolso. O Eliezer (de Souza, presidente da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto) está indo de ônibus. Estamos hospedando gente nas casas de amigos, porque não temos dinheiro para hotel. Estamos tentando conseguir recursos para pagar a tradução simultânea. E só conseguimos trazer os convidados estrangeiros porque eles obtiveram os recursos para as passagens com suas próprias universidades e centros de pesquisa. E tudo isso para algo que pode nem ter repercussão na imprensa. Ainda nem temos certeza se a TV Justiça vai transmitir a audiência. De novo: a quem de fato interessa isso? Para quem é fácil mobilizar recursos nesse nível? Só pro lobby pró-amianto. Pra nós é um sacrifício e corremos o risco de termos um resultado pífio.

Está mais do que provado que o amianto é cancerígeno, já morreram milhares de pessoas e a previsão é de que morram centenas de milhares nas próximas décadas. Por que você acha que setores da indústria, do sindicalismo e mesmo da academia no Brasil se dedicam a continuar defendendo algo que mata gente?
Fernanda – É um lobby que tem sustentáculos em várias instâncias. Inclusive no próprio parlamento, com a “bancada da crisotila”, que agora ficou em destaque com o escândalo do Cachoeira. Dentro das universidade públicas mais renomadas, como USP e Unicamp, há pesquisadores que têm suas pesquisas financiadas pela indústria do amianto. Há sindicatos financiados pela indústria do amianto, como já provamos mais de uma vez. E hoje temos três ex-ministros do Supremo que advogaram ou advogam para a indústria do amianto depois de terem se aposentado. O primeiro foi o falecido Maurício Corrêa, que foi substituído pelo Carlos Velloso e, pelo que soubemos, até mesmo o Francisco Rezek está assessorando o lobby do amianto para as questões no STF. É aquela história, o que o homem persegue? Poder, dinheiro e prestígio. Hoje, prestígio já não há, com industriais e cientistas já respondendo por crimes em tribunais europeus. Mas poder, ainda que efemeramente, sim. Há notórios lobistas do amianto mantidos pela presidente Dilma Rousseff nos ministérios de Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. E riqueza rápida, certamente. É fácil perceber os indícios de riqueza na vida de alguns sindicalistas e acadêmicos.

Quantas pessoas já morreram no Brasil por causa do amianto?
Fernanda – Oficialmente, houve 2.400 casos de mesotelioma nos últimos dez anos. E o número vem crescendo ano a ano, com a melhoria dos diagnósticos e dos registros. Mas ainda vivemos o chamado “silêncio epidemiológico”. Os nossos registros oficiais não refletem o fato de o Brasil ser o terceiro produtor mundial, segundo maior exportador e quarto maior usuário de amianto. Isso não é porque a nossa crisotila supostamente seria mais segura, mas porque há problemas de registro. A Argentina comprava a nossa crisotila e tem mais casos registrados de mesotelioma do que o Brasil. Sem contar que há situações inexplicáveis, como uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que autoriza 17 empresas do amianto, entre elas a Eternit, a não informarem ao Sistema Único de Saúde quem são os seus doentes. Esta decisão existe desde 2006 e até hoje não foi revogada. Há basicamente dois mecanismos que tornam nossos dados invisíveis à sociedade: o primeiro é esta decisão imoral, e o segundo mecanismo são os acordos extrajudiciais. Temos quatro mil acordos extrajudiciais, celebrados pelas empresas com trabalhadores doentes, e seria necessário torná-los visíveis às instituições de saúde e à previdência, assim como ao público. Fizemos um enorme esforço e conseguimos ter acesso a pouco mais de mil destes acordos.

Há alguns analistas que comparam o lobby do amianto ao do tabaco. Você concorda?
Fernanda – É muito parecido com o lobby do tabaco, sim. São os chamados “mercadores da morte”. Se você tiver oportunidade, dê uma olhada num livro que os advogados da indústria americana do tabaco escreveram, chamado “O nosso produto é a dúvida” – ou seja, a cada nova certeza, eles produzem uma nova dúvida. E assim vão ganhando tempo e dinheiro enquanto as pessoas morrem. Com o amianto é a mesma coisa. Há o financiamento de uma ciência própria, com cientistas financiados pela indústria para produzir determinados resultados. E, a cada etapa que avançamos, o lobby do amianto vai gerando novas dúvidas, sempre para atrasar o processo. Do mesmo modo que agora, em outra instância, quando ações estão na pauta de votações, tratam de pedir uma audiência pública. E, assim como o cigarro, o amianto também é um lobby mundial. Os mesmos processos intimidatórios, as mesmas tentativas de desqualificar quem luta pelo banimento. As práticas se repetem.

Neste sentido, o que hoje acontece aqui é semelhante ao que acontecia na Europa décadas atrás. Atualmente, a preocupação de alguns países europeus é como fazer a descontaminação ambiental das cidades onde havia minas e fábricas. Assim como megaempresários do amianto, como os antigos donos da Eternit, são condenados por crime, como aconteceu no mês de fevereiro, em Turim. Se a Europa é o nosso futuro, no que se refere ao amianto, podemos contar como certo o banimento daqui a alguns anos?
Fernanda – Ninguém tem dúvida de que mais cedo ou mais tarde o amianto vai ser banido no Brasil. Mas eles apostam no mais tarde. Essa indústria está com os dias contados. O que eles querem conseguir é prazo. O amianto é superado no mundo desenvolvido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) fala em banimento, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) fala em banimento. Quem hoje defende o uso do amianto? Mesmo no Brasil, aqueles que antes estavam mais em cima do muro, hoje já estão começando a se posicionar. Restaram apenas os que não podem mudar de posição e quem está usando essa disputa para ganhar dinheiro rapidamente, mesmo que isso vá custar mais tarde a perda de prestígio, poder, dinheiro e, certamente, uma enorme mancha no currículo, quando não uma ficha policial. O que eles querem é uma sobrevida – que estão conseguindo à custa de vidas.

(Publicado na Revista Época em 20/08/2012)

 

Dançando com fantasmas

Netos de sobreviventes do Holocausto ampliam a verdade ao investigar o passado com a coragem que seus pais não puderam ter

Arnon Goldfinger vai limpar o apartamento de sua avó, Gerda, que morrera dias antes em Tel Aviv, e descobre que ela e seu avô, Kurt, mantiveram antes e depois da II Guerra, antes e depois do Holocausto, uma amizade calorosa com um casal de alemães. Não um casal qualquer, mas um encabeçado por um eminente oficial nazista. Claudia Ehrlich Sobral viaja para tirar dois dias de folga e assistir ao jogo do Brasil na Copa de 2006, na Alemanha, mas não consegue permanecer depois da partida. Ela antecipa o retorno a Roma por não suportar conviver com a ideia de que os pais e avós daquelas pessoas nas ruas mataram 6 milhões de judeus. Para Ben Peter, só restou Miriam, a avó de 96 anos. E com ela 1 milhão de negativos de fotografias feitas pelo avô, Rudi, que documentam em imagens a história do Estado de Israel. Agora, a loja de fotografias que guarda essa memória será demolida em Tel Aviv.

Como lidar com a memória que você não viveu – mas viveu? Essa questão tem sido respondida de forma fascinante pelos netos dos sobreviventes do Holocausto, através do cinema de documentário. Às vezes também pelos filhos, como no excelente “Seis milhões e um”, sucesso de público no Festival de Amsterdã do ano passado, sobre o qual já escrevi aqui. Mas, em geral, os filhos se descobrem paralisados pelo impacto da memória que não se fez memória, mas é carne aberta em uma vida cotidiana na qual o horror é também sobreviver ao horror. Ou se veem paralisados pela negação da memória, como a mãe de Arnon, que conheceremos mais adiante. Os netos, pelas razões óbvias, parecem mais inteiros para remexer pedaços.

As histórias do início deste texto são contadas em três documentários, que acabaram de ser exibidos no 16 Festival de Cinema Judaico, em São Paulo. Como lidar com a memória é uma questão de todos nós. O que torna esses documentários – ou esse modo de lidar com a memória – dignos de serem vistos é a coragem dessa geração, desses netos, de não fugir das contradições. Assim como sua capacidade de ampliar as nuances tanto quanto possível.

É muito claro que os judeus são as vítimas do Holocausto – e os nazistas, os algozes. Mas há um universo de questões para além desse fato incontestável. E são elas que os netos dos sobreviventes têm nos proposto, numa colaboração inestimável à compreensão do processo histórico – e da delicadeza da alma humana, mesmo quando varada pelo horror. É essa geração que, pelo menos no cinema, está adicionando camadas de complexidade a um dos acontecimentos mais brutais da História da humanidade.

A seguir, uma reflexão sobre esses três olhares novos, para pensarmos juntos sobre como ecoam em nós, judeus e não judeus.

O Apartamento

Este extraordinário documentário começa com filhos e netos entrando alegremente pelo apartamento deixado por Gerda Tuchler para “limpá-lo”. “Estes persas não têm valor nenhum”, é uma das primeiras frases da mãe de Arnon, ao examinar os tapetes. Logo percebemos que nada ali parece ter valor nem para ela, nem para nenhum dos outros. Objetos são jogados em sacos de plástico e móveis inteiros são atirados pela janela, estatelando-se vários andares abaixo. Aquela memória não tem valor algum – é lixo. Por quê? Talvez os descendentes pressintam que há algo de incongruente naquela aparência, ou veem só aquilo que lhes fora dado para ver: um passado sem história.

Gerda havia emigrado com o marido para a Palestina, em 1936, pouco antes da II Guerra (1939-1945), quando Hitler aumentava cada vez mais as restrições aos judeus. Desde então, vivera em Israel como se ainda estivesse em Berlim, transformando aquele apartamento em seu pedaço particular da Alemanha. Ao morrer, com 98 anos, praticamente não falava hebraico, só alemão. Conversava em inglês com Arnon, seu neto que gostava de livros. Conversava em uma língua neutra. Mais tarde, no curso da filmagem, Arnon lembraria que nunca haviam falado nada “realmente importante”. Ao começarem a examinar os documentos de Gerda, Arnon e a mãe descobriram que seria mais difícil “limpar” a memória do que parecia a princípio.

Arnon descobriria que seus avós, judeus cultos e de boa posição social (Kurt havia sido juiz na Alemanha), tinham viajado pela Palestina, nos anos 30, com um casal de alemães. Arnon ficou curioso, porque nunca ouvira falar desse assunto nos jantares de família. Logo, ele descobriria fotos e cartas mostrando que a amizade entre os dois casais havia continuado por muito tempo depois do fim da guerra, com visitas periódicas de seus avós à Alemanha e viagens conjuntas de férias.

Mas quem eram os Mildenstein? Arnon acha uma pista. Liga para um telefone e, do outro lado da linha, encontra a calorosa filha do casal alemão. Ao contrário dele e de sua mãe, ela conhece muito bem os Tuchler, sobrenome dos avós de Arnon. Conviveu bastante com eles, têm recordações e presentes para comprovar. Está feliz de ter contato com a família dos grandes amigos de seus pais.

Arnon cruza o oceano e é recebido pela filha dos Mildenstein. É ela quem começa a lhe contar a história. Mas é só um pedaço da história, o quebra-cabeça está longe de ser completado. Arnon sabe disso. Para a filha, o pai era um homem que gostava de judeus, que havia se recusado a colaborar com o nazismo – e a prova disso era a sólida amizade com os Tuchler. Mas onde estaria o resto da verdade?

Arnon começa a investigar – voltar atrás já não é possível. Pessoas, documentos, arquivos. Sua mãe é levada a reboque, hesitante, quase a contragosto. Ao final, Arnon prova que o barão Leopold Von Mildenstein, que teve uma carreira como executivo da Coca-Cola no pós-guerra, trabalhara no famigerado Departamento de Propaganda de Goebbels. E fora um dos mentores da política que levou os judeus aos campos de concentração. Morreu sem ter respondido por seus crimes, como tantos que conseguiram se ocultar nas franjas dos interesses da Guerra Fria, alguns deles protegidos pela CIA. Arnon descobriu também que sua bisavó, a mãe de Gerda, uma mulher chamada Susanne Lehmann, fora enviada para um campo de concentração, onde morrera. Como tantos judeus alemães, ela se recusara a emigrar com a filha, por não acreditar que “o seu país” pudesse lhe causar mal. “Acho que eu nem a conheci”, diz a mãe de Arnon no início do filme. Antes de descobrir fotos com Susanne – e cartas jamais entregues onde ela contava da saudades que sentia da neta.

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Arnon Goldfinger e sua relutante mãe investigam o passado e encontram perguntas sem respostas (Foto: Divulgação)

Por quê? Esta é a pergunta com que Arnon tem de lidar. Por que Gerda e Kurt apagaram a memória da mãe assassinada em um campo de concentração e continuaram a ser amigos íntimos de um nazista? “Um nazista podia odiar os judeus, como política de Estado, sem que isso o impedisse de ter relações com um judeu culto, de seu nível social. Assim como para um judeu, podia ser importante, para ser capaz de seguir vivendo depois do que aconteceu, saber que existiam alemães que não queriam tê-los expulsado de seu próprio país, que não os odiavam” – disse a Arnon um acadêmico especializado em estudos do Holocausto.

É uma explicação possível – mas é também uma verdade capenga ou uma mentira com a qual é possível conviver como verdade. Arnon sabe disso. Sabe também que jamais saberá. Mas chegou à encruzilhada: como lidar com a memória? No caso dele menos óbvia, mais espinhosa. Ele diz algo mais ou menos assim (no escuro, não dá pra anotar as palavras exatas): “Talvez eu nunca saiba o porquê de meus avós manterem uma amizade com nazistas. Mas agora preciso decidir o que eu vou fazer com essas informações”.

Arnon volta à casa bucólica da calorosa filha dos Mildenstein, em uma cidadezinha de contos de fadas onde parece que o mal jamais terá permissão de entrar. Ele volta para fazer o que considera certo, “em nome da amizade”, mas o fato é que volta como um anjo vingador. Devolve à mulher um horror que lhe pertence, mas que ela fingiu desconhecer ou não pôde ver. Seu pai foi um nazista, é o que Arnon diz a ela. Seu pai foi um criminoso. Como eu, você vai ter de lidar com isso. A amizade que nunca poderia ter acontecido é encerrada pelos descendentes. E a contradição é exposta às milhares de pessoas que assistirão ao documentário. Agora, todos têm suas marcas expostas – também a filha do nazista.

Há duas figuras trágicas na história real contada por Arnon com indiscutível coragem: as filhas, seja dos sobreviventes, seja do algoz. Uma é a filha do barão Mildenstein, que agora terá de lidar com o estigma de ser filha de um nazista, sem ter sido culpada pelos crimes do pai. A outra é a mãe de Arnon, durante todo o filme apatetada com uma memória que não foi buscar, mas que seu próprio filho a obrigou a encontrar. Vítima tanto da mãe quanto do filho. Mas o filho, pelo menos, ao restituir a complexidade da verdade, dá a ela a chance de deixar de ser apenas vítima. Essa mulher vive em Tel Aviv, em um apartamento no qual tudo é novo e impessoal, dos móveis à decoração, sem vãos onde coisas possam ser ocultadas. Como a memória lhe foi negada pela mãe, ela é uma página vazia. Sem passado, vaga a esmo. O que farão agora essas mulheres quebradas? O que farão agora que o frágil alicerce sobre o qual estruturaram suas vidas foi ao chão?

O que Arnon faz, com o ímpeto da geração que veio bem depois do cataclisma, é mostrar que não há como limpar a memória. Em algum canto do apartamento atulhado que é a nossa vida, verdades incômodas nos espreitam. E há esqueletos mesmo em armários supostamente insuspeitos. Não há como limpar a memória, mesmo quando ela foi empilhada em blocos bem arrumadinhos – seja por um indivíduo ou um grupo, ou mesmo pelo Estado. Há que se encontrar um jeito de lidar. E, em geral, ele passa por desarranjar o prédio inteiro para descobrir as partes que faltam. Ou apenas para constatar a falta. E viver com ela.

Os Fantasmas do Terceiro Reich

A forma que Claudia Ehrlich Sobral encontrou para lidar com o mal-estar que sentiu na Alemanha foi escutar não a dor dos judeus – mas a dos alemães. Não a dor dos descendentes de sobreviventes do Holocausto, como ela, mas a dos descendentes dos nazistas. Seu documentário, feito para a televisão no formato padrão, revela que há dor – e muita – do outro lado. Diferentemente da filha de Mildenstein, que conseguira dar um jeito de desconhecer os demônios do passado, os personagens reais encontrados por Claudia convivem com a dor há muito – e dois deles deram soluções radicais à descoberta de que o pai ou o avô era a versão mais aproximada de um monstro. Seus personagens são o que talvez a filha de Mildenstein tenha se tornado depois do encontro com Arnon Goldfinger.

Ursula Boger voltou um dia da escola contando em casa que a professora falara do que acontecera com os judeus em Auschwitz. “Seu avô esteve em Auschwitz”, foi tudo o que lhe disse a mãe. Ela então inicia um profundo mergulho na escuridão para descobrir que seu avô tinha sido o inventor de um dos piores métodos de tortura aplicado nos campos de concentração – aquele em que um judeu era pendurado, com pés e mãos amarrados, e espancado. O rosto devastado de Ursula é mais contundente do que qualquer uma de suas palavras. Quando você descobre que seu avô foi um dos piores criminosos da História, com quem você compartilha vergonha e dor? Ursula repete várias vezes o quanto é brutal a sua solidão.

Bernd Wollschlaeger, filho de um tenente-coronel nazista que viveu sem responder publicamente por seus atos, lidou com a culpa pelos crimes do pai rompendo com todos os vínculos concretos e simbólicos que o ligavam a ele. Bernd, que vinha de uma longa linhagem de oficiais condecorados do exército alemão, converteu-se ao judaísmo, emigrou para Israel e tornou-se um oficial-médico do exército israelense. Tornou-se em tudo o avesso do pai, encarnou o pior “inimigo” do pai – e nunca mais o viu. O que possivelmente tenha significado uma pena pior do que a morte para o ex-oficial da SS que nunca demonstrara qualquer arrependimento.

Bettina Göring foi talvez ainda mais além. Ela é sobrinha-neta de Hermann Göring, o segundo homem na linha de comando do Terceiro Reich, o que significa carregar um dos mais terríveis sobrenomes do nazismo. Até se matar com uma cápsula de cianureto no dia anterior ao seu enforcamento, em 1946, Göring fora um orador eloquente, que apreciava frases de efeito. Tanto que disse ao seu carcereiro que morreria, mas permaneceria na História. O que de fato aconteceu, mas possivelmente jamais como imaginara. Mas a frase do tio-avô que ecoaria em Bettina seria outra: “Os cromossomos são coisas engraçadas. Hereditariedade é mais importante do que ambiente. O gene pode saltar uma geração, e a criança nascer mais parecida com o avô do que com o pai”.

Temerosa de legar o monstro que poderia carregar dentro de si, Bettina se submeteu à esterilização. E cortou a linha de descendência. À custa de uma parte de si, “matou” o tio-avô muito além de uma vida. Para lembrar o que jamais será esquecido, Bettina Göring eliminou a memória que para ela era a mais ameaçadora – a genética.

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Bettina Göring, sobrinha-neta do segundo homem no comando do Terceiro Reich, esteriliza a si mesma para não produzir descendência, com medo de gerar outro monstro (Foto: Divulgação)

Depois de alcançar a humanidade daqueles que antes lhe causavam náusea, Claudia pôde passear em paz pelas ruas da Alemanha. Em seu documentário, ela emprestou carne à frase famosa de Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz: “Os culpados são os culpados. Os filhos dos culpados não são culpados”.

Mas é o filho de um sobrevivente judeu que diz a frase mais redentora do filme. Samson Munn promove encontros na Áustria entre descendentes de nazistas e descendentes de vítimas do Holocausto – “porque nossas raízes foram cortadas com nossos pais e avós, e eles temem que suas raízes estejam envenenadas”. O que Samson diz de muito especial é: “Não me interessa alinhar-me com os judeus. Me interessa alinhar-me com a humanidade inteira.”

A Vida Através das Fotos

– Quanto tempo faz, Ben?

– Muito tempo.

A pergunta é feita por Miriam Weissenstein, a avó. Ben é o neto. Ambos testemunham a retirada de uma gigantesca foto na qual uma mulher jovem, sorridente, de coxas bonitas, é imortalizada num passo de dança sem passo. O chão não é tocado, o corpo inteiro da mulher está no ar, desafiando a lei da gravidade, mas também o tempo. É Miriam esta mulher. Ou já foi Miriam. Ela agora tem 96 anos, e a loja de fotografias está sendo demolida, desalojando 1 milhão de negativos que documentam a história do Estado de Israel. O velho prédio dará lugar a um novo na cidade de Tel Aviv. Ben e Miriam perderam a batalha pela geografia de suas lembranças. E estão ali, assistindo ao desmonte da memória.

A tragédia dessa cena está toda no olhar de Miriam. Ela vê arrancarem da vitrine a si mesma em movimento. Esta outra de si que só sobrevive ali naquela foto. A Miriam que vê arrancarem sua versão mais jovem e potente está numa cadeira de rodas. Mas é esta Miriam gasta pelos anos que ainda faz a roda da vida girar. A jovem morreu, restou na foto. A velha a acolhe.

Toda a vida de Miriam e de seu marido, o fotógrafo Rudi Weissenstein, foi documentar em imagens a construção do Estado de Israel. O que significa que toda a vida deles foi se assegurar – e assegurar aos outros – que Israel existia. De repente, ao fim desse caminho, esta história, que era presente, passa a ser passado. Merece exposições e homenagens pela Europa, mas não merece mais o seu lugar concreto naquela rua de Tel Aviv. Apesar de toda a luta de Miriam e do aliado que lhe restou, o neto Ben, é preciso dar lugar a um novo prédio de gosto duvidoso.

Qual é a velha Israel colocada abaixo? E qual é a nova que surge sobre seus escombros? Falta-me conhecimento para responder, mas acho a pergunta das mais interessantes.

Talvez, apesar de todas as dificuldades e contradições que acompanhamos pelo noticiário, já exista ali uma crença na continuidade da vida que permita destruir para construir outra coisa – algo que, para a geração de Miriam, aquela que precisou construir um país, seja impossível compreender. Ben, ao contrário, pode mudar todo o acervo para bem perto dali, no novo espaço reservado, sem ter a sensação de que algo de essencial se perdeu na troca de endereço.

Para Miriam, só há um endereço. A vida toda se justifica pela construção deste endereço. Para Ben, graças ao que a geração de Miriam construiu, as possibilidades são múltiplas. Afinal, quando a geração de Ben faz seus documentários, o que está fazendo é dar um novo endereçamento à memória. A reconstrução ou recriação pode partir da destruição ou da desconstrução, dependendo do sentido que cada um dá. O certo é que a construção não pode ser monopólio da primeira geração – nem das que virão depois, com suas diferentes atribuições de sentido. Um sentido único, permanente e inquestionável é um tipo de morte.

Entre os três documentários, este, dirigido por Tamar Tal, é o mais delicado. Porque se propõe a algo que para alguns é menor, mas que de forma nenhuma é. Se Miriam contém em seu corpo consumido toda a história de Israel e de sua geração, o neto resgata a necessidade da continuidade da vida em seus pequenos atos. Em nenhum momento do filme há menção ao que fez Miriam migrar da Tchecoslováquia para Israel. A tragédia que une avó e neto não é a do Holocausto, mas uma mais prosaica, ainda que pavorosa. A filha de Miriam, a mãe de Ben, foi assassinada pelo marido, que depois se suicidou. De certo modo, avó e neto lidam com o drama humano universal enquanto tentam dar um novo lugar ao legado histórico de uma nação construída a partir do sangue, sobre sangue – ainda hoje. E é a geração de Ben que decidirá os próximos capítulos.

É verdade que, ao testemunhar a demolição de sua loja de fotografias, Miriam testemunha a mudança do país que ajudou a construir. Mas é também verdade que ao ver a jovem que ela foi ser retirada como fotografia da vitrine que não mais existirá, ela também está às voltas com a velhice do próprio corpo. Neste caso, as ruínas da loja já estão dentro dela há muito, em seu corpo destruído pelo tempo.

São muitos os simbolismos desse filme. Mas talvez o mais importante deles seja o de que a vida só vence, de fato, se for capaz de tecer uma teia de pequenos afetos cotidianos.

Prosaicos, talvez, mas fundamentais. É nos vãos amorosos das discussões travadas, das constantes implicâncias e dos olhares que escapam entre Miriam e Ben que sabemos que a vida se impôs.

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Ben Peter e sua avó, Miriam Weissenstein, lutam juntos para proteger o legado histórico, sem esquecer que a vida humana sobrevive nos pequenos gestos (Foto: Divulgação)

Como lidar com a memória do horror, afinal? Se na História é fundamental mantê-la viva, para que o horror jamais seja esquecido e repetido, na existência individual, íntima e cotidiana, na vida que segue, é preciso encontrar aquilo que faz viver. Ou então só há um estado de morte no qual restamos congelados, que é um outro tipo de campo de concentração. Para vencer é preciso amar –apesar de todas as peças que faltam. E amar, muitas vezes, significa remexer nos cacos para criar um novo sentido com a verdade possível. Tanto a verdade quanto o sentido sempre aquém, sempre incompletos. Sempre fascinantes.

(Publicado na Revista Época em 13/08/2012)

Com a vênia, Seu Manoelzinho

O dia em que matei o Mensalão e fui ao cinema

Ao contrário de Lula, eu concluí que não tinha nada melhor para fazer do que assistir ao julgamento do Mensalão. Parei tudo e me postei diante do aparelho, ligado na TV Justiça. Na sexta-feira, segundo dia de julgamento, depois de mais de duas horas de explanação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, interrompeu-o para sugerir que se fizesse um intervalo. Gurgel retrucou que ainda não havia chegado à metade e precisaria de pelo menos mais uns 15 minutos. O procurador se preparava para continuar, quando se ouviu no plenário a voz inconfundível do ministro Marco Aurélio Mello. “Talvez não tenhamos fôlego fisiológico…” O argumento mostrou-se de pronto incontestável. O presidente anunciou o intervalo, “com a devida vênia”.

Do meu sofá azul, eu quase aplaudi. Jamais tinha visto alguém avisar que precisava urinar com tanta finesse. Aqui em casa agora não se usa outra coisa. Só mesmo um ministro do Supremo seria capaz de botar toga no xixi. Ouso especular que nem Elizabeth II, das altitudes do seu jubileu, seria capaz de ser tão majestosa. E lá se foi Marco Aurélio para o reservado – ou pelo menos espero que tenha ido, já que eu não estava lá para comprovar o lícito.

O fato é que, desde aquele momento, não fui mais capaz de concentrar-me no julgamento. De repente, me senti asfixiada por tantas vênias. Fui tomada por uma vontade irrevogável de ir às ruas. Eu precisava da vida como ela é para a maior parte das pessoas. E aqui não há nenhum desmerecimento ao Supremo, porque acho que a vida também é como é por lá, à sua própria maneira – e tão, às vezes até mais, como no caso em questão, fervilhante de paixões quanto. Mas eu precisava com uma urgência quase química me misturar à gente que fazia xixi.

Ainda sem entender bem essa necessidade meio tresloucada, mas obedecendo aos instintos, um par de horas mais tarde eu estava enfiada em uma sala escura. Havia passado horas assistindo ao espetáculo que ocupa o palco central do país – e intuí que precisava correr para as margens para resgatar eu não sabia bem o quê. Por razões que nem é preciso de Freud para explicar, acabei escolhendo, entre as tantas possibilidades da programação, um evento gratuito chamado “Cinema de Bordas”, promovido pelo Itaú Cultural. De bordas porque reúne aqueles cineastas que estão fora do centro. Aqueles que, sem recursos financeiros e técnicos, bem longe dos circuitos comerciais, fazem cinema improvisando o que falta – porque não concebem uma vida em que falte o cinema.

Sentei-me ao acaso. Mas não era um dia de acasos. De repente passou por mim um homem de metro e meio de altura, no máximo, bem magrinho, vestindo uma camiseta listrada de branco e verde que parecia nova, calça jeans e uma sandália preta. Pelo jeito que andava e mais ainda pelo que olhava, tentando não olhar, mas espiando se estava sendo olhado, dava para ver que o sujeito era tímido. Foi sentar-se à minha esquerda, um corredor entre nós. Percebi que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Alguém chamou: “Seu Manoelzinho”!

Tive um sobressalto. Era ele, o cineasta que eu já vira uma vez na TV, mas nunca antes em carne e lenda. Um homem que havia feito quase meia centena de filmes na pequena cidade de Mantenópolis, perto da divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, sem cruzeiro, cruzado, cruzado novo, real, já que ele fazia cinema há tempo suficiente para ter vivido a carência de todas as moedas da República pós-ditadura. Seu Manoelzinho tinha feito toda uma obra cinematográfica apenas com uma câmera velha e um gravador ainda mais alquebrado, tendo por atores homens, mulheres e crianças da roça, ou vizinhos da periferia da cidade.

A partir daquele instante, a vida para mim estava tanto na tela quanto fora dela. Logo na exibição do primeiro da sequência de quatro filmes, ouvi uma risada como há muito tempo eu não ouvia. Era uma risada que eu dava quando criança – e que fui perdendo com as contenções do protocolo adulto. As tais das vênias. Era uma risada desassombrada, que dava vontade de rir com ela. Era a risada do Seu Manoelzinho, que se divertia com os zumbis que claudicavam na tela. Conheci o encantamento de Seu Manoelzinho pelo cinema antes de conhecer o cinema do Seu Manoelzinho. E soltei eu uma risada de criança, porque é também um encantamento com o mundo que o cinema resgata no coração da gente. A vida humana é um absurdo a maior parte do tempo, e os zumbis estavam ali para nos lembrar disso.

O filme do Seu Manoelzinho era o último dos quatro. Chamava-se “A Maudição da Casa de Vanirim” – e “maldição” estava escrito para além da norma culta, com “u” em vez de “l”. Mas, ali, o que seria um erro deixava de ser para se transformar em uma informação a mais. Seu Manoelzinho vinha de “Uóshinton” para alugar uma casa em “Maiamis” – e aqui, de novo, não era a língua de Muçum, o comediante dos Trapalhões, mas a língua mesmo, fiel à verdade dali. E Maiamis era a zona rural de Mantenópolis, com estradas de terra, morros e uma vegetação de roça, onde ele alugara uma casinha caiada de branco onde o maior luxo era um telefone visivelmente deslocado.

Acompanhado por uma família numerosa, Seu Manoelzinho logo via-se às voltas com uma assombração mascarada, que depois de matar uns quantos filhos e turistas durante uma noite que era sempre dia, porque para gravar à noite é preciso mais recursos, era despachada para o além a tiros. Por Seu Manoelzinho, que, como eu descobriria mais tarde, é sempre o herói e ator principal de todos os seus filmes.

Fui tomada pelo filme, mas também por um dilema. Era uma história de assombração, e eu imaginava que Seu Manoelzinho, logo ali ao meu lado, tinha planejado medo e susto, mas o filme era uma das obras mais engraçadas que eu vira em toda a minha vida. Se eu risse, como toda a plateia fazia, estaria ofendendo Seu Manoelzinho? Percebi então que Seu Manoelzinho era um dos que mais ria. E que eu não estaria rindo dele, mas com ele, o que fazia toda a diferença. No dia seguinte ele me contaria que sabia se o filme era bom pelo riso da plateia. Porque, como cineasta, para Seu Manoelzinho o importante era divertir as pessoas. E aí não importava se era arrepio ou gargalhada, mas sim provocar algo que não havia antes. Alterar a vida pelo momento de um filme, o enorme poder da arte que Seu Manoelzinho havia intuído com uma liberdade que eu só alcançava agora, a partir do olhar dele.

Seu Manoelzinho dava no cinema o que o cinema sempre dera a ele – e por isso também parecia se divertir tanto quanto diretor-roteirista-produtor-e-ator principal quanto como plateia. Ele tinha 2 anos quando a família foi abandonada pelo pai, e a mãe, dona Fernandina, teve de se virar para criar três meninos, com uma vida de roçar a roça dos outros. Manoelzinho até foi para escola, como ele me contaria no dia seguinte, em uma conversa prolongada, na qual se sentou de lado, e não de frente para mim, envergonhado de falar com uma desconhecida. “A gente só ia pra escola pra comer, com tanta fome que ficava louco pra ouvir a sineta da merenda”, explicou. Por causa do tamanho da fome, não conseguia se concentrar no “quadro-verde” e, assim, não pôde aprender a ler nem escrever. Passava os dias oferecendo o pão que compravam numa padaria para revender ao povo da roça, precisado de sustância para aguentar o peso da enxada.

Até que, aos 8 anos, descobriu o cinema no salão paroquial da cidade, ao assistir a um filme marcado na sua memória como “O roubo do trem-correio”. O apaixonamento ganhou eternidades com “Django”, “Sabata”, “Keoma” – e com todos os Mazzaropis. Para ganhar a entrada do cinema, já que só comia pão porque também vendia, passou a fazer a propaganda dos filmes desfilando com cartaz pela cidade. E, mais tarde, quando abriu um outro cinema, com o luxo de um alto-falante, Manoelzinho também anunciava os filmes pelas ruas: “Atenção, senhor e senhora, hoje não perca o sensacional filme que tem por título Portada do Inferno…”

Eram filmes de faroeste, ou pelo menos foram estes que capturaram o menino Manoelzinho. E até hoje ele se espanta: “Era como nos antigamentes lá em Mantenópolis, em que havia muito homem valentão na cidade, que andava armado e botava bronca no lugar. Esses homens nunca tinham visto um filme de faroeste, mas mesmo assim já viviam no estilo do faroeste.” Como era possível?

Para Seu Manoelzinho, era portanto a vida que imitava a arte, o faroeste da realidade copiando o bangue-bangue do cinema. Fiquei especulando se era por essa percepção às avessas que ele quis tanto não só assistir à cinema, mas fazer cinema, algo que deveria soar bastante estapafúrdio na roça de Mantenópolis, ainda mais vindo da boca de um analfabeto. Se a vida imitava o cinema, então bastava fazer cinema para mudar a vida, ele pode ter intuído. De fato, o que aconteceu é que, no final dos anos 80, um conhecido do então jovem Manoelzinho voltou dos Estados Unidos com uma velha câmera VHS. E ouviu possivelmente a proposta mais inusitada da sua vida: “Rapaz, tô doido pra fazer um faroeste. Você filma pra mim”?

E assim surgiu “A Vingança de Loreno”. E descobrimos aqui que Manoel Loreno é o nome do Seu Manoelzinho. Para fazer o filme, veio homem a cavalo de tudo quanto é canto da região, até de 90 quilômetros de lonjura veio um a galope. Ele chama e não importa quantos aparecem, dá um jeito “de arrumar cena pra todo mundo”. E assim Seu Manoelzinho sentou-se pela primeira vez embaixo de uma árvore para fazer o que faria em todos os seus filmes dali em diante: desenhar cena por cena. Em dois dias o filme estava pronto. O povo da roça tinha virado ator de faroeste, e Seu Manoelzinho cineasta. Agora era seu o filme que um menino gritava pelas ruas, montado numa bicicleta: “Não percam logo mais um sensacional filme de Manoel Loreno”!

“A Vingança de Loreno” foi exibido pela primeira vez numa quadra de esportes de Mantenópolis para umas 2 mil pessoas, calcula ele. Sem telão, passaram em duas televisões de 20 polegadas, postadas uma de cada lado. “E o povo se apaixonou tanto pelo meu filme que pediu pra repetir”, conta. A estreia foi tão estrepidosa que acabou virando uma sessão dupla do mesmo filme. Mais tarde, Seu Manoelzinho se tomaria de amores pela mulher, “que era muito bonitinha”, ao vê-la morrer dentro de um córrego pelas mãos do “Espantalho assassino”. Os dois filhos que fizeram no casamento seriam seus filhos também no cinema dali em diante. E a praça da cidade viraria um cinema a céu aberto só para exibir os filmes de Seu Manoelzinho.

Só gosta de faroeste, de causos de trapaça e de assombração, Seu Manoelzinho? Não é bem assim, explica. Ele mesmo já abriu uma exceção para colocar entre suas preferências a adaptação para o cinema de “Romeu e Julieta”. O fato é que, quando Seu Manoelzinho enveredou para o romance, o povo desgostou do seu cinema. Ele mesmo esclarece: “Amor o pessoal não gosta muito. O povo gosta mais de dar risada. Romance é muita conversa”.

Alguém pode pensar que o cinema do Seu Manoelzinho só tem valor por causa da vida do Seu Manoelzinho. Engana-se. Filmados em sequência, seus filmes de ficção expõe o absurdo da realidade com uma verdade que jamais vi em qualquer documentário. Nos filmes de Seu Manoelzinho a ilusão do cinema é desfeita o tempo todo, já que ele não esconde os artifícios usados para criar a história. E o que se conta, para além do enredo em primeiro plano, é o improviso que a vida nos exige, obrigando-nos a uma constante reinvenção do roteiro previsto e sempre fadado ao fracasso.

O telefone que toca na casa de Maiamis só toca porque ao lado dele foi colocado um despertador. A música de fundo só existe porque há um gravador esbodegado tocando a fita no momento da filmagem – e a fita se enrola a certa altura. O sangue é “quissuqui de groselha”, e os tiros são bombinhas que os atores acendem com o cigarro, “porque todo mundo fuma por lá”. Os atores passam na frente da câmera mesmo quando não deveriam estar ali, e houve uma personagem que voltou na pele de outra atriz, sem nenhuma explicação. Já aconteceu até de se ouvir a voz do Seu Manoelzinho, saindo do papel de ator principal para assumir o de diretor, ao gritar: “Fala mais alto”!

Em um texto sobre o cinema do Seu Manoelzinho, a professora Bernadette Lyra, uma das curadoras da mostra, diz: “Neles (os filmes), tudo se passa sem truques e sem outra mediação que aquela da câmera mesma confrontada com os percalços da realidade do tempo/espaço e das necessidades alternativas em que as filmagens se produzem e se realizam”. E, em outro ponto: “É lembrete e testemunha de que no cinema tudo não passa de um grande artifício, mesmo quando um filme quer se fazer passar por documentário fiel da realidade”. E ainda: “A reação dos espectadores (…) é imediata, corporal e participativa. O público ri. Ri diante do desmascaramento daquele artifício com que o cinema de origem realista costuma fazer passar a ficção pela realidade. Ainda que o fenômeno seja involuntário por parte de um realizador como Seu Manoelzinho”. E conclui, lindamente: “Acontece que não é o movimento coerente da história que interessa a Seu Manoelzinho, mas sim o movimento da vida”.

É em um momento no qual a vida toma, mais uma vez, rumos inesperados por causa da arte, que me encontro com Seu Manoelzinho. Desde que apareceu pela primeira vez na TV, ele se vê às voltas com os atrapalhos da fama. “Tô muito famoso demais, mais conhecido que prato de 10 centavos”, diz. Não é que não goste da fama, como me explica, o problema é que a fama veio desacompanhada do dinheiro. Ao verem Seu Manoelzinho na televisão, o povo de Mantenópolis, que sempre atuou de graça nos filmes – ou só pela graça de virar ator –, agora exige cachê. Quem antes lhe dava trabalho como servente de pedreiro, já não lhe oferece mais porque pensa que enricou. Fora aqueles que carregam Seu Manoelzinho para cursos de produção, roteiro e direção, de onde ele volta dizendo: “Eles não entendem o meu cinema”.

Aos 53 anos de uma vida de cinema, Seu Manoelzinho descobre que não tem dinheiro nem para os filmes, que antes nunca precisaram de dinheiro para serem feitos – nem para a vida, já que hoje sobrevive de pequenos cachês em eventos, como este último, e da venda de cópias de seus filmes nas feiras de Mantenópolis e da região. Sobrevive também de Bolsa Família.

Resvalar das bordas ao centro, em efêmeros instantes, colocou Seu Manoelzinho numa encruzilhada. Preocupado com o dinheiro que não tem, ele teme ser obrigado a encerrar a carreira, justamente agora, quando sonha filmar “A Vingança de Loreno 2”. Precisa de quanto, Seu Manoelzinho? “Uns 20 mil.” E acrescenta, todo expectante: “Será que a TV Cultura não me ajuda a fazer o filme”? Não tenho resposta.

Despeço-me de Seu Manoelzinho, que se prepara para enfrentar quase um dia e uma noite inteiras de ônibus, na viagem de São Paulo a Mantenópolis. (Ele já experimentou voar, mas me garante que nem as aeromoças têm confiança “naquele trem”.) E retorno hoje ao julgamento, pensando em como se ligam os milhões de dinheiro público, supostamente usados para pagar deputados, com os 20 mil de que precisa Seu Manoelzinho, para levar cinema ao seu povo. A realidade só ganha sentido quando conseguimos fazer as conexões.

Antes de partir, Seu Manoelzinho explica por que se recusa a fazer papel de vilão no cinema. “Os vilões eu mato tudo. Só o herói faz a fita inteira. Eu não ia pelejar tanto pra fazer um filme pra morrer antes do fim.” São frases precisas para o momento. De certo modo, o que todos tentam enquanto se desenrola o espetáculo, também ali, no plenário do Supremo, é não morrer antes do fim. Alguns agarrados ao personagem, outros tentando um twist (virada) no roteiro para redefinir o papel.

“Nos filmes, eu sou herói”, diz Seu Manoelzinho. E na vida? “Na vida tô sendo também.” Seu Manoelzinho é, porém, algo muito maior do que um herói. Como seu cinema nos mostra, a vida dá um jeito de desarranjar o artifício. Para além da tela, seja a do cinema ou a da TV Justiça, sempre podemos contar com Seu Manoelzinho para nos lembrar que nosso desejo sobrevive tanto aos heróis quantos aos vilões. A vida será sempre nosso melhor espetáculo.

(Publicado na Revista Época em 06/08/2012)

 

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