Elas não são gays

Michele e Carla são casadas, têm filhos, mas afirmam não ser homossexuais

Quando conhecem alguém, Michele Kamers e Carla Cumiotto fazem questão de se apresentar sem deixar nada por dizer: “Somos casadas, fizemos inseminação artificial em São Paulo e temos dois filhos”. Elas preocupam-se em deixar tudo claro por acreditar que são as dúvidas e sombras que alimentam maledicências e preconceitos. E, como formaram uma família diferente do padrão convencional, querem que seu casal de filhos cresça numa sociedade preparada para recebê-los. Conheci essas mulheres extraordinárias dias atrás, quando as procurei com a proposta de contar sua história. O resultado desse encontro é a reportagem “A primeira nova família brasileira“, publicada na atual edição de ÉPOCA.

Michele e Carla conquistaram na Justiça o direito de registrar seus gêmeos, de 2 anos, no nome de ambas. Até agora só tinham o sobrenome de Carla, a mãe biológica. Michele não aceitava a ideia de ter de entrar com um pedido de adoção. Ela desejou esses filhos, acompanhou o processo de inseminação, via banco de esperma, esteve ao lado de Carla durante toda a gestação e no parto por cesariana, e cria junto com Carla os dois filhos na casa que ambas compraram. “Eu não poderia adotar meus próprios filhos”, diz. “Eles nasceram do meu desejo, tanto quanto do de Carla.”

É a primeira vez que a Justiça brasileira reconhece um vínculo exclusivamente afetivo, simbólico, como parental. Não há nenhum traço biológico ligando os gêmeos a Michele. Mas ninguém que conhece a família, assim como o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família de Porto Alegre, tem qualquer dúvida sobre o fato de eles serem tão filhos de Michele quanto são de Carla. A surpresa é que uma das maiores vitórias na área dos direitos dos LGBTTTS é de um casal de mulheres que afirma não ser homossexual – não por preconceito, mas porque acreditam que a questão é mais complexa do que parece. A sigla, cada vez maior porque há sempre uma nova diferenciação a incluir, significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Trangêneros e Simpatizantes.

Quando Carla e Michele disseram-me que não se identificavam como homossexuais, meu primeiro sentimento foi de estranhamento. Até então eu me considerava heterossexual – uma definição que identifica pessoas que costumam viver suas histórias de amor com o sexo oposto, mas que raramente é usada porque ninguém precisa ficar afirmando algo que é o convencional – e, principalmente, que é aceito. E homossexual era todo aquele que vivia relações afetivas e sexuais com o mesmo sexo. Simples assim.

Pelos amigos gays e por algumas reportagens que gostaria de ter feito, sempre soube que os arranjos eram muito mais complexos e interessantes do que isso. E que, ao reduzir a diferença a uma palavra ou mais palavras fechadas em seu significado, perde-se de vista um universo pleno de nuances. E nós, ditos heterossexuais, também somos reduzidos a algo que parece muito óbvio – e que de fato não é, ou pelo menos espera-se que não seja. Mas nunca fui provocada a pensar tanto assim no assunto.

Ao entrevistar o casal em sua casa, em Blumenau (SC), seus argumentos me levaram a uma série de novas questões. Ao final do primeiro dia, eu e o fotógrafo Marcelo Min pedimos uma garrafa de vinho, no hotel, e ficamos conversando sobre as tantas perguntas inusitadas que a reportagem nos provocava. Esse é sempre o melhor cenário para um repórter e para um fotógrafo que amam o que fazem: quando a pauta se mostra muito mais complexa do que parecia e nos desafia, também do ponto de vista pessoal, a indagações inéditas. Acredito que uma reportagem só acontece quando repórteres e personagens se transformam nesse encontro. E espero ter colocado nelas quase tantas pulgas quanto elas me colocaram.

Carla e Michele são psicanalistas, professoras universitárias, que pensam bem e têm um ótimo senso de humor. Formam um casal mais tradicional do que a maioria dos casais convencionais que eu conheço. Cada uma delas tem uma papel bem definido na relação: Michele ocupa a posição masculina e Carla a feminina – entendendo tanto o feminino quanto o masculino nas definições tradicionais inscritas na cultura. Carla sempre namorou homens – masculinos – e Michele é a primeira mulher de sua vida. “Não posso me identificar como homossexual porque sou atraída pela posição oposta”, diz Carla. “Gosto de homens e mulheres masculinos. Jamais beijaria uma mulher ou um homem feminino.” Na rua, Carla segue olhando para homens e, em geral, observa uma mulher quando se interessa por seus sapatos, bolsas ou roupas.

Michele namorou gente de ambos os sexos durante a adolescência, mas acabou fixando-se em mulheres femininas na vida adulta. Quando viu Carla, sua professora no curso de Psicologia, encantou-se pelo vestido justo, de um ombro só, e pelas unhas vermelhas. Ela mesma está bem longe do que seria o esterótipo de uma mulher masculina. Michele é bonita, veste-se com estilo, inclusive usando vestidos justos nas festas, usa brincos, colares e maquiagem, tem luzes no cabelo pelos ombros. Mas, por um sentimento intangível, qualquer um que se aproxima dela sabe que ela é masculina, mas não no sentido de se parecer a um homem, mas masculina como só uma mulher pode ser.

E, para ciúmes de Carla, que descobriu-se com a novidade de um marido circulando predominantemente entre mulheres, Michele mesmo sem querer desperta paixonites entre garotas homo ou heterossexuais. Mas também não consegue ver-se como homossexual. “Hoje existem diversos modos de ser mulher, inclusive ser mulher e ter uma posição masculina. Do mesmo modo que é possível ser um homem na posição feminina. Não é preciso cortar o pênis para ter um lugar social. Muita gente, ao mudar de sexo, está resolvendo na anatomia uma questão psíquica, uma questão de reconhecer-se no corpo que se tem”, diz. “Acho que uma mulher precisa ser muito mulher no sentido de não ter medo de ser confundida com um homem. Me vejo como uma mulher masculina que gosta de mulheres femininas.”

Carla e Michele não frequentam guetos gays, como bares, restaurantes e danceterias. A maioria de seus amigos poderia ser identificada como heterossexual. “Todo o gueto – e não apenas o homossexual – visa excluir a diferença. Seja ele ideológico, religioso, racial ou sexual”, diz Michele. “E nós acreditamos que é o confronto com as diferenças que nos faz avançar, que nos apresenta novas possibilidades de existir, que nos permite a invenção de uma vida melhor. Nas ocasiões em que tentaram eliminar as diferenças, determinar que só existia uma forma de viver, foi muito triste, como no nazismo e no fascismo.”

Como a questão de ser ou não homossexual tangenciou as cinco horas de entrevista, Carla e Michele ainda me enviaram um email, com o objetivo de clarear sua posição. É Carla que escreve primeiro: “Não nos reconhecemos como homossexual justamente por que, ao se apresentar como ‘homossexual’ nos parece que o sujeito reduz e condensa o conjunto de traços identificatórios que o define a apenas um: ‘o homossexual’. Ou seja, como se a partir desse momento deixasse de ter nome próprio, de ser filho, de ter uma profissão, de ter uma identidade de homem ou mulher. Somos mulheres e entendemos que, na vida, se é homem ou mulher. Para depois, a partir das determinações discursivas da época em que se vive, assim como a partir das marcas infantis, e assim como dos ‘bons encontros’ na vida, cada um vai se referenciando a partir do masculino ou do feminino enquanto posição psíquica. E isso vai determinar seu jeito de amar, de namorar, de fazer laço, etc. Por exemplo: No primeiro dia em que ficamos, quando fui tocar o corpo da Michele, me surpreendi que não tinha um pênis. Isso é só para te inspirar e te dar um exemplo de que o quanto o conhecimento da anatomia e da realidade é menos determinante que a dimensão do simbólico enquanto representação. Isso é para brincar um pouco do quanto existem mil e um ordenadores e arranjos possíveis no campo da sexualidade e, principalmente, uma infinidade de arranjos possíveis para um casal”.

O texto continua, desta vez escrito por Michele. “Gostaríamos de deixar uma interrogação: o que é apresentar alguém como homossexual, na medida em que nunca vimos alguém se apresentar como heterossexual? Ou ainda, como poderíamos aceitar essa representação se a idéia do homossexual faz alusão à atração pelo mesmo sexo, se o encontro entre mim e Carla diz justamente da atração pela diferença de posição? Ou seria o estereótipo ‘homossexual’ uma forma de anular a reflexão e de manter a ilusão de que não temos ‘nada’ comum para fazer laço?”.

Considerei as questões colocadas por elas tão interessantes que quis trazê-las para essa coluna. Tudo o que nos provoca a pensar sempre nos faz avançar. Concordar ou discordar não é o mais importante. Acho que as pessoas dão valor demais ao “concordo” ou “discordo” – e assim perdem ótimas oportunidades de aprimorar sua reflexão porque sentem-se ameaçadas quando algo abala suas convicções. Provocações intelectuais valem a pena porque nos fazem refletir para além do que pensávamos antes – e tornam possível chegar a questões que também superam as iniciais. Valem a pena porque nos fazem duvidar de nossas certezas. E esse é um excelente exercício para nos tornarmos pessoas melhores, que pensam mais e melhor e conjugam a tolerância. Se o método servir para alguém, sempre que algo me parece muito novo ou mesmo absurdo, eu faço um exercício que começa por um silencioso, mas nem por isso menos sonoro: “Será?”.

É necessário ressaltar que a denominação homossexual e seus derivativos foram usadas por muito tempo para discriminar. Até pouco tempo o “homossexualismo” era considerado uma patologia, um desvio. E há quem ainda defenda essa teoria. Por outro lado, com imensa coragem e obstinação, o movimento gay conseguiu transformar uma definição que era pejorativa em ação afirmativa, fundamental para a conquista de direitos. Foi preciso afirmar a diferença para conquistar o direito de existir. Fechar-se em guetos se impôs como um espaço de proteção diante de uma sociedade preconceituosa – e uma estratégia para encaminhar as questões legais com maior poder de pressão. Hoje, o próprio desdobramento da sigla LGBTTTS, que não para de aumentar em função de novas definições, mostra um caminho de abertura. O trinômio GLS (gay, lésbicas e simpatizantes) não abarca mais todas as diferenças. E possivelmente teremos uma sociedade melhor quando as diferenças não precisarem mais ser explicitadas numa sigla.

É por esse caminho que me parecem ir Carla e Michele. Elas não ocultam nenhum elemento de sua condição. Pelo contrário, apresentam-se com uma transparência pouco vista, mesmo em militantes da causa. É preciso observar ainda que elas não circulam por guetos, mas na universidade, na escola dos filhos, nos restaurantes da cidade, no clube, nos próprios consultórios. E não em São Paulo, uma cidade que pelo tamanho permite a vivência de todos os arranjos – mas em Blumenau, uma cidade de porte médio, conservadora, com população predominantemente de origem alemã.

Ao escutar a argumentação de Carla e Michele, fiz várias indagações sobre minha vida e analisei meus arranjos amorosos em retrospectiva. Provavelmente eu nunca lidaria bem com um parceiro com uma posição masculina tão determinada. Percebo que tenho muito forte em mim as duas posições – e as alterno nos jogos amorosos e sexuais. Homens muito masculinos ou femininos demais acabam por me desinteressar. Sou atraída por gente que mistura, me fascino pelas nuances. E provavelmente por isso meu casamento tenha sobrevivido não às pequenas, mas a pelo menos uma grande crise.

Gosto, numa história de amor, da liberdade de ser uma coisa e outra. E, embora já tenha me sentido atraída por mulheres – femininas e masculinas –, nunca aconteceu. O que não significa que não acontecerá. E me exponho aqui em reciprocidade à exposição dessas duas mulheres, que entenderam que tinham a responsabilidade ética de se mostrar, para que outros brasileiros pudessem refletir sobre uma questão tão importante. Não acho que meu jeito é melhor que o de ninguém – nem que o de Michele e Carla sejam melhores ou piores que todos os outros possíveis. Acredito apenas, por tudo que vi, ouvi e senti, que elas formam um casal interessante e criaram uma família bonita.

Saí dessa experiência de reportagem com apenas uma convicção pessoal. Não sou heterossexual. Não porque pretenda começar a namorar mulheres, mas porque cheguei a conclusão de que essa definição diz muito pouco sobre a complexidade do que somos. Está na hora de criar nomes mais fluidos, acho eu. Se alguém me perguntar se sou homo ou hetero, vou dizer: “Sou uma mulher às vezes masculina, às vezes feminina, que gosta de homens às vezes femininos, às vezes masculinos”. É mais complicado, sem dúvida. Mas é bem mais estimulante. E libertador.

(Publicado na Revista Época em 01/06/2009)

Sérgio Vaz, o poeta que agita vida cultural da periferia de São Paulo

Ele é invocado, teimoso e original. Conheça o escritor que criou a Cooperifa, fenômeno que tem levado intelectuais e classe média à periferia

COLECIONADOR DE PEDRAS O poeta Sérgio Vaz tornou-se uma das vozes mais originais da periferia. Na foto, ele posa numa das “quebradas” da Zona Sul de São Paulo

COLECIONADOR DE PEDRAS
O poeta Sérgio Vaz tornou-se uma das vozes mais originais da periferia. Na foto, ele posa numa das “quebradas” da Zona Sul de São Paulo

O poeta Sérgio Vaz sofre de insônia. Por volta de 1 hora da madrugada, ele se aconchega à mulher, Sônia, e até dorme. Três horas depois, acorda com o coração em batida de rap no peito e as ideias falando alto, todas ao mesmo tempo na cabeça. Tem os olhos arregalados, as mãos não param quietas nem ele deitado. Ninguém, com exceção de Sônia, tem vontade de curar a vigília forçada de Sérgio Vaz. Por uma razão egoísta. A insônia desse homem entroncado, de personalidade marrenta e traços que parecem esculpidos por Mestre Vitalino – o célebre ceramista de Caruaru – tem despertado um Brasil que dorme mesmo quando acordado.

O dia começa pontualmente antes da hora na casa típica da periferia paulista, nos arredores de Taboão da Serra. Um portãozinho lá na frente e uma tripa de casas unidas por um corredor. A dele, onde vive com a mulher e a filha Mariana, de 16 anos, é a última. Na parede externa, Vaz mandou pintar uma praia com coqueiros no concreto para que pudesse pegar um sol nos churrascos de domingo. Com sua ironia afiada a cada madrugada, por uma mistura de amor e raiva, é na praia que ele recebe as visitas.

Quando acorda de supetão, antes de todos, mas com a sensação de estar atrasado para a aventura do mundo, Sérgio Vaz não come nada. Só engole um café com leite para não correr o risco de perder a insônia. Ele não come porque, a cada manhã, aos bocados e com todos os dentes, mastiga o biscoito fino do poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1954). Como diz o historiador Eleilson Leite, um dos maiores conhecedores da cultura de periferia, Vaz faz ainda um pouco mais do que o escritor antropofágico sonhou: ele próprio se tornou “o biscoito fino que veio da massa”.

“As pedras não falam, mas quebram vidraças”
SÉRGIO VAZ, poeta da periferia

O mais recente produto da falta de sono de Sérgio Vaz estreou na úlitma segunda-feira: o “Cinema na Laje”. Tempos atrás ele acordara com esta inquietação: “Por que na periferia não tem cinema?”. E, já no sofá da sala, concluiu: “Se não nos deram cinema, vamos criar um. De graça”. Na estreia, reuniu mais de cem pessoas, algumas num cinema pela primeira vez aos 42 anos de vida, como a faxineira Rosilda de Souza. O público comia pipoca, mas também algo um pouco mais substancioso: jabá com mandioca, costela de porco com angu. A caráter, paramentado de vermelho e dourado, o pedreiro Piauí virou lanterninha. Ali, eram todos ao mesmo tempo plateia e protagonistas. O filme de estreia era um documentário sobre a Cooperifa, o produto mais espetacular da insônia de Sérgio Vaz. Ou, como ele diz: “O filme de ação mais romântico da breve história da nossa humanidade comunitária”.

Dizer que Sérgio Vaz criou o maior sarau de poesias do Brasil não dimensiona o significado da Cooperifa. A cada quarta-feira, nos últimos sete anos, centenas de pessoas vindas de todos os cantos da periferia paulista recitam e ouvem poesia num boteco de quebrada. Office boys, taxistas, funileiros, sorveteiros, empregadas domésticas, eles pegam o microfone e tomam conta da literatura, que nunca tinha sido deles até então. “Trabalho a vida toda com poesia e nunca vi uma plateia reagir assim”, diz a crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda. “Sérgio Vaz e a Cooperifa democratizaram o uso da palavra, numa operação política brilhante.”

Vaz começou tomando uma fábrica interditada, em 2001, para fazer uma mostra cultural. Depois, vagou por muitos botecos, até instalar-se no bar do Zé Batidão, na Piraporinha, Zona Sul de São Paulo. O bar é passado e futuro para Vaz. Foi lá que ele trabalhou dos 12 aos 22 anos, no balcão, quando o dono era o pai. Um patrão implacável, mas também grande leitor, o pai ao mesmo tempo oprimiu e inspirou. Enquanto os meninos perseguiam na várzea o sonho que também era dele, Vaz escrevia furiosamente em papel de pão. Ao conhecer mais personagens reais do que qualquer escritor sonharia, o palmeirense acabou virando poeta. “Eu queria estar jogando futebol. Para me libertar, lia e escrevia muito”, diz. “Com Os miseráveis, de Victor Hugo, descobri que não existia só a miséria material, mas a humana, a que atinge todas as classes sociais. Foi uma grande descoberta.”

Quando o sarau de poesias ficou sem lugar, Vaz procurou o novo dono de sua antiga “senzala”. Zé Batidão é um mineiro com olhos que tudo veem, fala mansa. Quando alguém acha que o Zé está indo, ele já foi e voltou meia dúzia de vezes. Tornou-se “o mecenas da Cooperifa”. Até biblioteca criou, entrincheirada dentro do bar. Sobre a estante, os troféus de seu time, o Sete Velas Caveirão, ofuscam os clássicos.

De volta ao cenário da adolescência, Vaz inventou um “quilombo moderno”. Não só libertou a si mesmo, como arrancou os grilhões históricos que impediam a periferia de alcançar a palavra escrita. “A periferia não tem museu, não tem teatro, não tem cinema. Mas tem boteco”, diz. “Então transformamos o bar do Zé Batidão em centro cultural.”

(Publicado na Revista Época em 06/03/2009)

Os novos antropófagos

Artistas da periferia de São Paulo lançam sua própria Semana de Arte Moderna

Eliane Brum (texto) e Frederic Jean (fotos)

Manifesto da Antropofagia Periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.
Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter…”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, querem substituir os barracos de madeira.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
A Periferia unida, no centro de todas as coisas.
Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.
É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que, armado da verdade, por si só exercita a revolução.
Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.
Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.
Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!
Sérgio Vaz
Poeta da Periferia

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ARTISTAS DE DOIS MUNDOS Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

ARTISTAS DE DOIS MUNDOS
Na foto, Sérgio Vaz e a comissão organizadora da Semana de Arte Moderna da Periferia, no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo.

O escritor Oswald de Andrade, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, fez uma profecia: “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”. Morreu sem vê-la realizada. Oitenta e cinco anos depois do marco do movimento modernista, Sérgio Vaz, poeta da periferia de São Paulo, pretende comer o biscoito fino, o próprio Oswald, o Bispo Sardinha, a “elite que viaja para Miami” e mais alguma coisa. E depois, diz ele, “vomitar”. Líder da Cooperifa, o maior sarau de poesia do Brasil, Vaz é o idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia, a Semana de 2007. De 4 a 11 de novembro, os artistas querem “provocar” o centro onde o destino do país é forjado – e onde também se determina o que é arte. Se fosse vivo, o modernista Oswald possivelmente teria um sorriso nos lábios ao ser devorado pelos antropófagos das margens de São Paulo.

A força da Semana de 2007 vem da primeira geração de escritores da periferia, forjada à margem da escola, na legião dos sem-museu, sem-cinema, sem-teatro, sem-biblioteca. Pela primeira vez, o Brasil tem não um, nem dois autores, mas um movimento literário nascido nas margens. Seus protagonistas se identificam pela origem, marcam essa diferença e buscam uma estética fundada nessa raiz. Eles se apropriaram de um código da elite – a palavra escrita – e começaram a escrever sua versão da História. Agora, preparam-se para sacudir o marasmo cultural de um país que viu muito pouco de original desde o tropicalismo dos anos 60.

“Antes eram os intelectuais que escreviam sobre a periferia. Hoje, alguns dizem que não sabemos escrever. Estamos chegando agora pra aprender, depois de 500 anos”, diz Sérgio Vaz, de 43 anos. “A arte sempre foi o pão do privilégio. Agora é servida no café-da-manhã da periferia. Com menos manteiga, talvez, mas arte. Nossa literatura tem menos esses, menos crases, mas é literatura. Agora que escrevemos sobre nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!”

quem e quem

1) Sérgio Vaz, 2) Jairo, 3) Sales, 4) Gunnar, 5) Wéley Noog, 6) Ademir, 7) Cocão, 8) Ana Bela, 9) Marcelo, 10) Mavortirc, 11) Juliana, 12) Robson Canto, 13) Casulo, 14) Preto Will, 15) Ricarda, 16) Rose Dorea, 17) Tadeu, 18) Euller, 19) Roberto, 20) Jair Guilherme, 21) Wagner Felipe, 22) Marcio Batista, 23) Lerói, 24) Anderson, 25) Vicente

Mais uma provocação. O antropófago da periferia vive na última de uma tripa de casas nos arredores de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Deixou uma carreira de auxiliar de escritório para ser poeta no Brasil. Vendeu 5 mil livros de poesia sem editora e sem livraria, de mão em mão. Só o quinto – Colecionador de Pedras (Global) – chegou ao mercado. Em 2001, Vaz criou a Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) ao ocupar uma fábrica abandonada para fazer um evento de arte. Já estava tentado pela Semana de 1922.

O sarau da Cooperifa passou de bar em bar até achar seu lugar no boteco do Zé Batidão, na zona sul de São Paulo. “Na periferia não tem museu, tem boteco”, diz Vaz. “Então transformamos o Zé Batidão em centro cultural.” Toda quarta-feira, três centenas de cidadãos periféricos ali desembarcam depois de um dia de trabalho duro para fazer e ouvir poesia. “Povo lindo! Povo inteligente! É tudo nosso!”, diz Vaz, abrindo a noite. E o boteco vem abaixo, a multidão se espalha pelas ruas. É tudo deles, sim.

A Semana de 2007 começou a nascer nessa esquina, pelas mãos ásperas de poetas sem berço. Seu primeiro ato será uma caminhada dos artistas pela periferia. Nada vai acontecer no centro. Quem quiser conhecer o que se passa nas bordas de São Paulo terá de inverter o tráfego. Os grupos Manicômicos (teatro), Arte na Periferia (cinema), Espírito de Zumbi e Umoja (dança) são alguns dos autoproclamados “focos de resistência” que tentam fincar sua estética em ruas onde antes só corria esgoto. “Escolhemos um símbolo da elite paulistana pra provocar. Vamos à casa grande mexer com eles”, diz Vaz. “Que seja o estopim.”

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

Imagem dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, no Hotel Terminus, no centro de São Paulo

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RAIZ FORTE

O hip-hop está na raiz dessa árvore antropofágica. O movimento praticamente inventou a identidade periférica. Especialmente seu símbolo maior: os Racionais MCs e seu líder, Mano Brown. Capazes de vender milhões de CDs sem precisar nem de gravadoras nem de imprensa, eles provaram que é possível viver, fazer sucesso e sustentar a família fora do mercado. E sem sair da periferia.

Desde o fim dos anos 80, os “manos” e as “minas” passaram a proclamar: “Eu sou da periferia. Vocês são do centro, playboys”. Comportamento oposto ao dos pais, migrantes nordestinos que, de cabeça baixa, mentiam o endereço. O hip-hop dançou break sobre o mito da democracia racial. Agora havia “nós” – e havia “eles”. As diferenças – explícitas no cotidiano, mas não pronunciadas – estavam colocadas. E por quem, havia pouco tempo, só tinha voz quando cantava samba. Foi também a primeira vez que os ídolos não se mudaram da periferia como sempre fizeram os astros de futebol na primeira oportunidade.

O hip-hop mantém parte de sua força. Mas, neste início de milênio, uma figura nova assumiu a vanguarda: o escritor. Em 1960, uma negra semi-analfabeta chamada Carolina Maria de Jesus assombrou o Brasil – e o mundo. Ao fazer uma reportagem numa favela do Canindé, na beira do Rio Tietê, em São Paulo, o jornalista Audálio Dantas descobriu Carolina e “uns 20 cadernos encardidos em seu barraco”. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada vendeu 10 mil exemplares numa semana. Foi traduzido para 13 idiomas. Carolina só teve dois anos de estudo formal. Tornou-se a primeira favelada publicada no Brasil.

Na virada do milênio, três novos escritores mostraram que algo diferente acontecia nas margens das capitais brasileiras: o carioca Paulo Lins, com Cidade de Deus (Companhia das Letras), em 1997, e os paulistanos Ferréz, com Capão Pecado (Labortexto, reeditado pela Objetiva), de 2000, e Luiz Alberto Mendes, que descobriu a literatura durante mais de 30 anos de cárcere, com Memórias de um Sobrevivente (Companhia das Letras), de 2001.

A partir de 2000, Ferréz e a revista Caros Amigos organizaram três edições especiais com a produção de 30 escritores das periferias do Brasil, sob o título Literatura Marginal. Em 2005, uma coletânea do material virou livro. O escritor não era mais caso isolado, mas fenômeno coletivo. Na apresentação, Ferréz escreveu: “Cala a boca uma p…, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve. Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão (…). Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”.

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SUBURBANO CONVICTO

alessandro buzo
Quando Alessandro Buzo caminha pelo Itaim Paulista, nos confins da zona leste de São Paulo, os meninos o cumprimentam, reverência na voz: “Aê, Buzo”. Só daqui a uma década será possível avaliar o impacto da mudança: a referência de sucesso na periferia não é mais – ou apenas – o traficante, mas o escritor. “A elite achava que a gente não sabia nem ler”, diz Buzo. “E agora a gente escreve.”

Aos 35 anos, Buzo tem quatro livros publicados, o último deles um romance, Guerreira. Editou na base da prestação, pagou uma parte com feijão, arroz, macarrão e azeite, porque ganhava a vida vendendo comida. Há alguns meses, vive de arte, R$ 1.500 por mês. Ele sozinho é um movimento cultural. Criou uma biblioteca num bloco carnavalesco. Comanda o Favela Toma Conta, evento anual de hip-hop. Duas vezes por mês faz o Cine Favela, levando filmes brasileiros às periferias. É dono de uma “lojinha de periféricos” (livros, DVDs e CDs feitos nos guetos). Dá oficinas de escrita para os garotos da Febem. No dia 25, lança uma coletânea de 12 autores das periferias de sete Estados. E ainda faz literatura nos dois cômodos de sua casa na Favela do Buraco, onde vive com a mulher, Marilda, e o filho Evandro, de 7 anos. Alessandro Buzo declara-se “Suburbano Convicto, escritor da periferia”.

Oitava série incompleta, Buzo é filho de mãe doméstica e pai “que se mandou”. A mãe fugia da devastação da vida devorando livros comprados com trocados nos sebos. Um dia deu ao filho um presente raro: o Menino Maluquinho, de Ziraldo. Ainda moleque, Buzo endoidou pela história. Anos depois, maluco por cocaína e mesclado (maconha com pedra), diz que só não foi bandido porque a mãe que tudo lia avisou com antecedência que jamais leria carta de presidiário.

“Aqui o tráfico não é nem de maconha
nem de cocaína. Nós traficamos livros”
Alessandro Buzo“

Buzo conta que começou a escrever por indignação. O trem remendado e triste que carrega o povo da zona leste ao centro levou Buzo para a literatura. Ele queria expressar sua revolta com tanta gente amontoada, tanta indiferença. Escreveu um texto, espalhou pelo trem e, no dia seguinte, era celebridade.

O trem virou o primeiro livro. Vendeu pouco, os passageiros mal tinham dinheiro para comer, livro era de outro planeta. Buzo ia se desgarrando da literatura quando escutou o rap dos Racionais: O covarde morre sem tentar… você é do tamanho dos seus sonhos… junta seus pedaços e desce pra arena. Buzo se levantou. Ou melhor: sentou e escreveu mais. E o resto é – literalmente – história.

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A SEMANA DE 2007

No Manifesto Antropófago, lançado em 1928, Oswald de Andrade data o início do Brasil por um episódio insólito: a morte do Bispo Sardinha, devorado por índios canibais. É uma ironia para definir o conceito de arte antropofágica: os primeiros brasileiros digeriram – literalmente – a cultura européia. Com o Manifesto da Antropofagia Periférica, os organizadores da Semana de 2007 escrevem um capítulo inédito. Nele, os novos antropófagos tratam pouco de estética, muito de política e de comportamento. Sérgio Vaz comenta os principais pontos:

1) Somos periféricos
“Ninguém gosta de esgoto a céu aberto nem de barraco. Mas nós queremos mudar a periferia – e não da periferia.”

2) Criamos nosso mercado
“Nós produzimos a nossa arte. Estamos criando um outro mercado, o nosso. Vamos comprar nossos CDs, nossos livros, nossos filmes.”

3) Sabemos consumir
“Ninguém nos diz o que devemos consumir. Não podemos boicotar o Cirque du Soleil porque nunca tivemos dinheiro pra pagar. Mas podemos boicotar Ivete Sangalo, livro de auto-ajuda, um monte de coisas. Não queremos nossas filhas dançando na boquinha da garrafa nem cantando Festa no Apê. Nem nossos filhos precisando de tênis Nike. Nós boicotamos o pirata, porque não somos cidadãos de segunda classe, e boicotamos o original porque é ruim ou é caro ou não precisamos.”

4) Queremos educação
“Revolução sem r é evolução. Queremos escola de qualidade. Não pregamos a saída pela arte. Não dá pra todo mundo virar artista. As ONGs querem ensinar o povo a cantar e a dançar. A gente não agüenta esse discurso ongueiro, que pega R$ 1 milhão pra ensinar a batucar. TV, pra nós, é entretenimento. Nos preocupa a televisão que educa. Queremos escola que eduque. Se a escola educar, nossos filhos vão saber ver TV.”

5) O artista tem de ser cidadão
“Queremos artista comprometido com a comunidade. Não queremos arte que imbeciliza, teatro que quando acaba dá pra comer pizza, música que vende guaraná de manhã, macarrão à tarde e carro às 15 pras 8. Somos contra artista enriquecer. ”

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LADRÃO DE LIVROS

sacolinha
Na abertura do primeiro romance, Graduado em Marginalidade, o escritor apresenta sua origem em oito linhas. Nela, os homens são reduzidos a um espermatozóide sem nome, mas com profissão: “De Isabel Alves de Souza, com um dono de escravos, nasceu Maria. A junção de Maria Alves de Sousa, com um trabalhador rural, gerou Geralda. De Geralda Alves de Sousa, com um pedreiro, nasceu Maria Natalina. Do namoro de Maria Natalina Alves, com um carpinteiro, nasceu Ademiro Alves”. Ademiro Alves é Sacolinha, o primeiro homem da linhagem com nome e sobrenome. E pseudônimo: Sacolinha é escritor.

Aos 24 anos, ele diz: “Se não fossem os livros, eu estaria a sete palmos de terra”. Sacolinha – filho de pai sumido e mãe feirante – trabalhou dos 9 aos 21 anos como cobrador de lotação: “Metrô Itaquera, Cidade Tiradentes, Jacupêssego, Iguatemi…”. Nessa linha urbana, diz que beijou na boca a primeira menina, despediu-se alegremente da virgindade, virou homem e foi batizado de Sacolinha.

Para chegar ao trabalho, eram 40 minutos de trem. Sacolinha terminara o ensino médio “semi-analfabeto, sem entender o que lia”, mas estava enjoado de olhar a cara dos passageiros. “Reparei então que tinha gente que lia e resolvi experimentar, pra passar o tempo.” O único parente possuidor de livros era um tio que estudava para padre. Sacolinha bem que pediu com gentileza, mas o tio não acreditou nas intenções letradas. O sobrinho conta que iniciou então uma bem-sucedida carreira de ladrão de livros pela própria família. Ampliou suas atividades por livrarias, bienais e conferências. Tem certeza de que não cometeu crime algum. “Eu precisava muito e não tinha dinheiro”, diz.

Aos 18 anos, Sacolinha começou a ler. Aos 22, conta que fez uma rifa para publicar o primeiro romance. Chefe de família, vivia com a mãe e dois irmãos em dois cômodos construídos abaixo do nível da rua. Não tinha água nem luz. Estragou os olhos lendo à luz de velas, mas iluminou-se todo. Ao encontrar Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de Despejo, sua vida sofreu uma freada brusca e pegou outro rumo: “Não acreditei que tava lendo um livro assim. Bati na mão e disse: ‘É isso que eu quero ser’”.

Sacolinha partiu em busca de professores de Literatura. “Me disseram que eu podia ler Ferréz e Paulo Lins, mas devia também ler os clássicos”, conta. Sua jornada pela literatura é um sobressalto: “Aluísio Azevedo descreveu de um jeito a primeira menstruação da Pombinha que me deu até vontade de menstruar. Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, tava muito chato. Até eu perceber que ele tava passando a chatice do cárcere pro leitor. Fantástico!”.

“O Brasil só vai melhorar quando o povo começar
a roubar livros em vez de armas, drogas e dinheiro”
Sacolinha

“Salvo pela literatura”, Sacolinha criou uma ONG para divulgar novos autores, organizou trocas literárias para abastecer bibliotecas, criou dois saraus de poesia, promoveu oficinas de escrita, entrou na faculdade de Letras e publicou um livro de contos. Desde 2005 é coordenador de literatura da Prefeitura de Suzano, na Grande São Paulo. “Se a porta do banco trava porque sou negro, feio e uso calça larga, não discuto mais com o segurança”, diz. “Meu projeto é muito maior: tenho de discutir com o público.” Sacolinha dá entrevista em sua nova casa-escritório: dois cômodos mobiliados em 45 prestações nas Casas Bahia. Serve vinho rosé. Guarda os manuscritos do primeiro romance em perfeitas condições – “para a posteridade”.
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A TOMADA DA CANETA

A primeira geração de escritores da periferia se formou à margem da escola. Em alguns casos, apesar dela. A conquista da escola se iniciou de forma inusitada: pela literatura das ruas, entrando pelo portão na mão dos alunos. “Literatura sempre foi uma palavra alienígena pra nós. Fica do outro lado do interditado. A gente sempre se viu mal representado como personagem”, diz o escritor Allan da Rosa. “Nossa missão é entrar dentro do sistema pra conseguir nosso espaço. E o sistema é letrado. Quem marioneta a parada são os letrados. Então vamos fustigar o sistema de dentro dele.”

Aos 31 anos, Allan é um dos poucos escritores que chegaram à universidade. Formou-se em História na USP e hoje faz mestrado em Educação. Filho de atendente de enfermagem e presidiário, começou a trabalhar aos 13 anos, como office boy. Depois vendeu churros, incenso, livros, seguros, jazigos de cemitério. Começou a escrever por causa do futebol de botão. Inventava times e criava uma biografia para cada craque. “Eu não tenho lembranças positivas de leituras dentro da escola. Tenho de fora, de outros rolês”, diz Allan.

Hoje, ele é um dos escritores reivindicados nas aulas por alunos de escolas públicas. “Quando a gente entra no sistema escrito, consegue poder. Não o poder substantivo, mas o poder verbo. Poder criar em vez de só sair de manhã, pegar duas horas de busão lotado e trabalhar prum cara onde você não pode nada. E depois voltar cansado demais pra viver”, diz ele. “A palavra falada é majestosa, a música é rainha. Mas a palavra escrita tem dentro dela algo que só ela tem. Que é poder chegar nas escolas com seu jeito de escrever, com seu tema e começar a tomar conta do que sempre usaram pra nos orquestrar.”

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MUÇULMANO DO GUETO

Ridson
A primeira piada racista que o menino Ridson ouviu foi em casa, contada pelo pai, um negro. Seu Lourival, baiano que migrara para São Paulo, padeiro de profissão, dizia que não tinha sotaque “porque já tava domesticado”. O filho achava graça. Quando o irmão mais novo tinha 6 anos, Ridson conta que o garoto começou a se recusar a tomar café e a comer feijão. Só aceitava leite e arroz. A mãe, Hosana, mistura de africano com europeu, estranhou. O menino então explicou: “Se eu comer só arroz e leite agora que sou pequeno, quando eu crescer vou ficar branco”.

Ridson tinha 10 anos. Nunca mais riu das piadas do pai: “Foi a primeira vez que percebi que algo de muito errado acontecia ao meu redor”. Ridson começou então a se transformar em Dugueto, nome que tatuou no braço direito para gravar na pele raça e geografia. “Eu sou negro. Minha identidade quem define sou eu”, diz. “E isso incomoda. Até hoje me perguntam por que digo que sou negro se ‘sou tão bonito e tenho olhos verdes’. Nenhum branco é racista até ter a seu lado um negro orgulhoso.”

Há dois anos, ele se transformou em Dugueto Shabazz. Havia descoberto sua terceira identidade – muçulmano. Shabazz, como Malcolm X, o ativista negro dos Estados Unidos convertido ao islã. Muçulmano negro do gueto, ele usa a caneta para denunciar preconceito e desigualdade. É uma das vozes mais contundentes do movimento literário da periferia. Além de escritor, é rapper. Já esteve na Venezuela, em Cuba e na França, onde conviveu com jovens muçulmanos dos subúrbios franceses, em 2005. Lá, conta ele, foi expulso de uma loja num ato de discriminação.

Educado, gentil, com voz baixa e suave, ele fala sobre dores e convicções numa mesquita. A seu redor, muçulmanos de várias partes da África, migrantes em São Paulo, formam uma babel de línguas e dialetos entre uma oração e outra. “Espero que não me faltem poesias porque tenho muita raiva”, diz Dugueto Shabazz. Tem 24 anos.

Espero que não me faltem poesias porque tenho
muita raiva. Não queremos cisão, mas reparação”
Dugueto Shabazz

Então fala longamente sobre uma nação ferida: “Acho que ainda vai haver uma grande cisão neste país. A sociedade branca e rica tem se incomodado cada vez mais com o orgulho negro. Nós queremos nossa contribuição reconhecida. Basta olhar a história. Quem deve pra quem? Quem está nas favelas, nas cadeias, na rua? Todos os dias há uma cobrança nos faróis, encarnada pelo menino que faz malabares quando deveria estar na escola, de 50 pessoas no coletivo e o cara atrás do blindado. Mas não percebem. Como muçulmano, busco a paz até o último instante. A gente não quer cisão, a gente quer reparação. Mas, se for para ter uma nação bicolor, então escolhemos ser negros – e não brasileiros”.

Dugueto Shabazz se cala para atender ao chamado da última oração do dia.
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A REINVENÇÃO DO LIVRO

Em 2005, Allan da Rosa decidiu fazer “livro pra quem não sabe ler”. A Toró, um selo editorial, nasceu dentro da Cooperifa. Já publicou oito escritores periféricos. “Toró vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a hora de fazer chover livros”, diz ele. A mudança estética, proposta pelo movimento literário periférico, já começa pelo objeto livro. O livro da Toró é impresso numa gráfica, mas chega nu. Cada exemplar é acabado em casa, alguns deles escritos à mão, em letra cursiva. Têm pano, bordados, conchinhas, corda. “Dizem que nossos livros não podem ir pra biblioteca porque não seguem os padrões. Paciência. Pra nós, é segundo plano que nossos livros estejam nas bibliotecas do centro. Queremos ser lidos nas duas horas de busão”, diz Allan.

Na prosa e na poesia, além de falar de seu próprio mundo, de um cotidiano estrangeiro à classe média, os periféricos usam palavras inventadas nas margens, trazem o movimento e a riqueza da língua recriada nos guetos, às vezes misturada a dialetos africanos, obedecendo a outras sintaxes. Algumas palavras trazem s a grafia “errada” para estar literariamente “certas”. A escolha é expressão artística e ato político: a exclusão pela linguagem empurrou muitas crianças pobres para fora da escola. “A arte da palavra permite que a gente ventile as coisas, mas é preciso ter sensibilidade”, diz Allan. “O Gato Preto (escritor baiano) deu o título pro seu texto de ‘Colombo, Pobrema, Problemas’. Há um diálogo aí, ele sabe o que tá fazendo.”

O escritor das margens é novo também no modo de estar no mundo: ele não é uma figura submersa em si mesma, distante. Cada um é ligado a uma ação cultural. Ou a várias. A maioria deles tem casas de um ou dois cômodos. Tecem enredos sem solenidade, enquanto alguém frita um pastel, o filho joga bola. “A gente é trágico, sentimental, gosta de tocar nas pessoas”, diz Sérgio Vaz.

Escrever na periferia é um ato profano. A literatura nasce ao rés do chão, sem pedestal. Por ter atravessado séculos inalcançável, a palavra escrita precisa ser dessacralizada. Quando a Toró decide fazer livros à mão, escritos à mão, não é um capricho. É preciso que o leitor toque – também literalmente – a letra do escritor. Para que possa ser tocado pelo que sempre lhe esteve interditado. Na antropofagia periférica, por definição nada é sagrado. Muito menos as letras, agora capturadas entre as presas de antropófagos que até pouco tempo atrás se supunha sem dentes.

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PERIFÉRICO NO CENTRO
sebastiao
Sebastião Nicomedes é de outra periferia: o centro geográfico de São Paulo. Nascido em Assis, interior paulista, ele praticamente ressuscitou no centro depois de uma queda de 4 metros de altura. Tentava instalar o luminoso de uma loja quando, há três anos, despencou lá de cima. Quando acordou, Sebastião estava só. Machucado, sem poder trabalhar, ninguém apareceu para ampará-lo. Estava no chão. Até para se matar, coisa que diz ter cogitado, era preciso subir alguns degraus. Sebastião virou morador de rua. Percebeu então que só precisava ter uma caneta para reescrever sua vida. E lentamente foi escalando sua queda, agarrado às cordas das letras.

Hoje, Sebastião vive só na “cobertura” de uma pensão do Brás. Em agosto, o Teatro Sérgio Cardoso abrigou a segunda temporada de sua peça, Diário dum Carroceiro. Seu primeiro livro, Simone, Cátia e Outras Marvadas (Dulcinéia Catadora), foi lançado no ano passado. “Minhas histórias vêm do segundo mundo, que ninguém quer ver”, diz.

Quando anda pelas ruas do centro, ele vai apontando as placas arrancadas pela Lei Kassab para combater a “poluição visual”. Placas pintadas por ele, de que se orgulhava. As últimas provas materiais de que Sebastião Nicomedes teve outra vida. Seu celular toca. Do outro lado, uma voz avisa que mais um morador de rua morreu de frio. Sebastião sofre. “Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente que morre”, diz. “Escrevo pra não me armar de fuzil.”

Toda a literalidade de sua vida – começando pela queda real – não é um detalhe. Marca também sua escrita. Isso fica explícito quando, depois de muito tempo, ele confessa, envergonhado, que passa frio à noite. Até então não tinha cobertor, só uma colcha fina. Sebastião não interpreta o frio, não inventa o frio, não nomeia o frio. Sebastião – quando escreve sobre o frio – sente o frio.

Tempos atrás, ele andava assediado por ONGs e governos. Por ser uma figura simbólica, recebia propostas. Numa, ganharia R$ 900 por mês para trabalhar num albergue. Sebastião conta que caminhou até a porta, viu os moradores de rua, percebeu que caberia a ele expulsar os bêbados, “os que mais precisam”. “Não era um emprego, era um cala-boca”, diz. Virou as costas.

“Minha escrita é o clamor da alma de cada indigente
que morre. Escrevo pra não me armar de fuzil”
Sebastião Nicomedes

Naquela noite, deixou seu quartinho pobre na pensão e dormiu na rua. Ao amanhecer, escreveu de uma lan house do centro um e-mail. Nele, conta ter decidido não manter nada de seu, exceto a alma: “Ontem eu refiz um caminho de busca para reencontrar esse cara que ressurgiu das cinzas. Catei um papelão e fui dormir na rua. Fiquei a maior parte do tempo acordado. Lembrei dos meus anseios e das coisas que queria ter. Eu não pedia grandes coisas. Um lugar pra me proteger da chuva, um travesseiro, um chuveiro, um fogão pra comer o que me desse vontade, sem esperar hora e ordem pra fazer o que quero. E fazer o que mais gosto: escrever. Quando acordei pela manhã, nos primeiros raios de sol, o clarão forte ardeu-me os olhos. Levantei e vi que tudo o que pedi eu tenho. Eu não pedi carro, não pedi cheques e roupas de marca, relógio, ouro ou tela plana. Eu tenho exatamente tudo o que sonhava”.

Fotos: Frederic Jean/ÉPOCA, Anderson Schneider/ÉPOCA, André Valentim/ÉPOCA e I.E.B.

(Publicado na Revista Época em 20/02/2009)

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