Dólar na fralda

Quando se vive desejando. Até o fim

Aconteceu na semana passada. Ele tem 84 anos e está morrendo de câncer. A auxiliar de enfermagem do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, entrou no quarto para trocar sua fralda. Ele não permitiu. Ela insistiu. Precisava trocar a fralda, dar banho, fazer a higiene. De onde ele tirava forças para reagir com tanta veemência?

O dele era um não profundo.

Quando ela tentou mais uma vez, quase bateu nela. Ninguém tocaria nas suas fraldas.

Foi uma confusão. Até que a verdade se revelou.

Na fralda, ele guardava os mil reais da aposentadoria. Doze andares abaixo, no saguão, uma moça de 25 anos tentava subir para uma visita especial. Há algum tempo ela o ajudava com os afazeres domésticos, por assim dizer, duas vezes por semana.

Nunca antes na história do Brasil alguém escondeu dinheiro nas partes íntimas por uma causa legal. E tão inspiradora.

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Esta história real não é só curiosa. Ou divertida. É profunda. A enfermaria de cuidados paliativos trabalha com a ideia de que é possível viver intensamente até o fim. Da forma que é possível para cada um, com aquilo que é importante para cada um, no respeito à singularidade de cada um. Lá, não se morre sedado ou amarrado a tubos e fios, como acontece em tantos hospitais, em que os pacientes são alienados do fim da sua vida e nem mesmo conseguem se despedir de quem amam.

A equipe atua para deixar o doente sem dor, numa arquitetura delicada em que a medicação atenua os sintomas sem alijar a consciência. Cada decisão é tomada levando em consideração não apenas os aspectos médicos, mas a história de vida, sempre única e intransferível. Levando em consideração aquilo que é o que faz viver e tem sido tão esquecido pela prática médica tradicional: o desejo.

Não estamos vivos porque respiramos. Estamos vivos porque desejamos. E estaremos vivos enquanto desejarmos. Um pão de queijo, o calor do sol sobre o rosto, a voz de um filho, o amor de uma moça bonita.

Por isso essa história é tão excepcional. Seu simbolismo é explícito, uma literalidade. O homem que está morrendo – e que por toda vida desejou moças bonitas – deseja encerrar sua vida desejando.

Sobre uma cama de hospital, ele guarda o dinheiro na fralda. Fragilizado, ele ainda mantém o poder e a autonomia escondidos no que lhe restou de privacidade. O dinheiro que vai pagar a moça que lhe faz feliz aninhado junto à parte do corpo que lhe faz feliz.

Não havia mesmo como trocar aquela fralda, onde estava guardado o que sempre deu sentido à vida que se encerra. E que dará sentido, até o fim.

Quando chegar a minha vez de morrer, também espero estar conciliada com meu desejo – e com sua expressão mais profunda. Seja ela qual for.

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Nesta terça-feira, 15 de dezembro, faço minha estreia na TV. Depois de mais de 20 anos como repórter-canetinha, como são chamados os jornalistas dos meios impressos, sempre empunhando um bloquinho e uma caneta, peguei num microfone pela primeira vez. Fazia tempo que não me dava tanto frio na barriga, o que é sempre ótimo.

Fui convidada pela equipe do Profissão Repórter, da TV Globo, a voltar à enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual para contar a história – e as histórias – desse lugar extraordinário. Eu não poderia começar em melhor companhia: Caco Barcellos, um dos maiores repórteres do Brasil e uma das pessoas mais generosas que já conheci, dispensa apresentações; Thais Itaqui, uma jovem jornalista extremamente sensível e talentosa; e Mikael Fox, que além de ótimo repórter cinematográfico é um grande companheiro de trabalho. Ao contar essa história por imagens, não só ri e chorei, como às vezes ri e chorei ao mesmo tempo.

No ano passado, eu passei quase quatro meses no 12º andar do hospital, acompanhando a rotina da equipe de cuidados paliativos para uma reportagem de Época. Esta história pode ser lida nos seguintes links: A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava e Minha vida com Ailce. Agora, é a primeira vez que uma equipe de TV entra na enfermaria chefiada por Maria Goretti Maciel – uma médica que, tenho certeza, todos nós gostaríamos de ter por perto –, para acompanhar os surpreendentes enredos que se desenrolam naquele corredor.

Vivemos tempos estranhos. Basta ligar a TV ou acessar a internet para assistirmos a uma sequência sem fim de mortes violentas no noticiário, muitas vezes com detalhes escabrosos, sangue e vísceras. Mas a morte por doença ou velhice, a morte que a maioria de nós terá, esta se tornou um tabu. Para muitos, deve permanecer escondida, de preferência no ambiente asséptico dos hospitais.

Não é preciso ser Freud para perceber que as pessoas que não conseguem entrar em contato com o tema da morte são aquelas menos resolvidas com a vida. Agarram-se à ilusão de que se não enxergarem, se ficar bem escondido, pode ser que não aconteça.

O temor da morte é uma realidade atávica para uma espécie que tem consciência do fim. Mas a forma como encaramos o morrer é determinada pela cultura. Desde o século XX a morte foi se tornando cada vez mais oculta no Ocidente, como se fosse possível esconder que a vida termina.

As conseqüências desse silêncio que grita ecoam – mal – na vida social – e na de cada um de nós. Não só nos tantos exageros com que as pessoas tentam espichar a juventude a preços que seguidamente acabam custando muito caro, às vezes a própria vida, como na impossibilidade de cuidar de quem está doente e pode morrer. Para cuidar, é preciso primeiro enxergar.

É também esse medo que faz com que vivamos sem valorizar cada segundo, desatentos aos detalhes que tecem uma existência. Quando se faz de conta que a vida dura para sempre, esquecemos de prestar atenção na delicadeza que habita cada momento, na possibilidade irrepetível contida em cada segundo. Quando deixamos de olhar para a morte, deixamos de olhar para a vida. Parece-me que é um preço alto demais. Devemos aceitar nosso medo. Mas não podemos permitir que ele nos paralise, porque isso nos mataria antes do tempo.

A proposta da enfermaria de cuidados paliativos é poder olhar para o encerramento da vida como parte da própria vida. Natural e não necessariamente doloroso. Os enredos que se desenrolam naquele corredor comprido do 12º andar mostram que o fim também contém possibilidades se for vivido com verdade. Muito vale o perdão, as palavras finalmente pronunciadas, a reconciliação com os erros e acertos que existem em toda vida, um abraço apertado. Ou mesmo aquele prazer inesperado numa xícara de café.

A imprensa tem sido ágil ao mostrar a morte violenta. Às vezes com bastante propriedade, porque é preciso denunciar as muitas guerras não declaradas que vitimam especialmente os brasileiros mais pobres. Mas a imprensa tem se omitido ao tratar da morte mais prosaica, a morte da maioria, que não vai ter sua vida encerrada por tiro ou acidente.

Ao propor um programa sobre a morte em uma TV aberta, o diretor do Profissão Repórter, Marcel Souto Maior, foi corajoso. E eu me sinto honrada por participar deste momento. Quem assistir vai ter a oportunidade de aprender alguma coisa. E, melhor que isso, refletir para viver melhor.

Não existe bom jornalismo sem ousadia. Embora seja sustentada por anunciantes, a imprensa só sobrevive e conquista credibilidade se for além das imposições de audiência, no caso da TV e da internet, do número de leitores, no caso dos jornais e revistas. Do contrário, deixa-se reduzir a pão e circo.

Contar a história cotidiana da nossa época significa ter a coragem de tocar nos temas difíceis – aqueles que são difíceis exatamente por serem os mais importantes. Para um jornalista, ser corajoso não é uma escolha, mas uma responsabilidade. Com o público, com os leitores.

O ocultamento da morte, em nosso tempo, é um tema que repercute em todas as esferas não só da vida privada, mas também da pública, da política ao meio ambiente. Parece-me, por exemplo, que se conseguíssemos olhar com mais naturalidade para nossa morte, não teríamos consumido o planeta com a voracidade de quem precisa acreditar que a vida – a nossa e a da Terra – dura para sempre.

Também nós, jornalistas, não estamos vivos enquanto respiramos. Mas enquanto ousamos. Deixar de ousar, acomodar-se aos temas mais fáceis e palatáveis ao público, é a morte simbólica de um repórter, de uma publicação, de um programa de TV.

Para nós, fazer um programa sobre a morte foi um ato de vida. Em todos os sentidos.

Ninguém precisa se lembrar de respirar ao acordar. Mas é preciso lembrar, a cada manhã, de desejar. Este é o ato que nos humaniza. E que nos manterá vivos, até o fim.

(Publicado na Revista Época em 14/12/2009)

Entre os muros da outra escola

Está na hora de enfrentar a violência também no ensino privado

Eu a conheci anos atrás. Conquistou-me de imediato. É cada vez mais raro encontrar uma criança bem educada, que diz por favor, obrigada e com licença. Que pede desculpas se esbarra em você sem querer. Que dá oi e dá tchau. Que pergunta se você está bem. Ela é assim. É agora, aos 11, quase 12 anos. Era aos 5, quando nos encontramos. Gostava de barbie e de desenhos animados, mas vez ou outra assistia a algum filme do expressionismo alemão com interesse. Ouvia Palavra Cantada e Chico Buarque com igual deleite. Éramos ambas – e somos até hoje – fãs quase fanáticas dos livros do Harry Potter. Filha de mãe escritora, pai economista, ela tinha, ao mesmo tempo, estímulo para voos intelectuais mais largos e respeito por seus gostos infantis, o que sempre me pareceu um jeito sábio de educar. Para mim, ela sempre foi impossível de não se gostar.

É triste não poder aqui colocar o nome desta menina tão especial. Mas seu nome não será revelado para protegê-la de seus colegas, precaução por si só chocante. Na semana passada eu soube por sua mãe que ela deixaria a escola que cursa há anos. Foi sendo expulsa pelos colegas, sem que os professores nada fizessem. Estuda numa das escolas de elite de São Paulo. Bom projeto pedagógico, turmas pequenas, inclusão de crianças com necessidades especiais. Tudo de bom e de moderno, aparentemente. O que, então, aconteceu, para que uma boa aluna, uma garota afetuosa e bem educada, tenha de partir porque a escola se tornou um filme de horror?

Muito se escreve e se fala sobre a violência nas escolas públicas. E o tema é sério e relevante. Mas está na hora de prestarmos mais atenção no que ocorre na outra ponta da desigualdade social refletida no sistema de ensino brasileiro: as escolas privadas de elite. Diante da piora progressiva da qualidade da escola pública, a classe média vem esfolando o orçamento para matricular seus filhos em escolas privadas, com a convicção de que assim têm mais chance em um mundo competitivo.

Por que a classe média não brigou – e não briga – pela qualidade do ensino público em vez de se bandear para a educação privada? Eu mesma cursei o ensino médio em escola pública (uma péssima escola pública, diga-se), mas tomei o mesmo caminho de boa parte dos pais de classe média ao matricular minha filha: esfalfei-me durante 11 anos para pagar um dos colégios privados mais caros de Porto Alegre. Por que não fui brigar por qualidade de ensino dentro da escola pública? Por amor pela minha filha, sem dúvida, mas também por empatia de menos pelo destino dos filhos dos mais pobres, provavelmente. Na hora de escolher, optei por resolver o problema “dos meus”.

Muitas vezes, eu deixava de pagar todas as contas para pagar a escola. Nunca atrasei o colégio para que ela não sofresse constrangimento, nem a luz para não ficarmos no escuro. O restante das despesas atrasei todas durante boa parte desse período, o que me rendia noites recorrentes de insônia e humilhações sem fim diante de gerentes de banco. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça matriculá-la numa escola pública, tão certa eu estava de que fazia o melhor – para a minha filha.

O péssimo desempenho do Estado na educação e a falta de cidadania de gente como eu permitiu que essa situação se perpetuasse até níveis inacreditáveis. O resultado estamos amargando faz tempo, mas não tenho dúvida de que será muito pior em sentidos que ainda não alcançamos por inteiro. As escolas talvez sejam as maiores reprodutoras de desigualdade. Não apenas na questão da qualidade, que determina destinos. Mas no convívio cotidiano, no (não) exercício da solidariedade e do respeito às diferenças. Seja nas públicas ou nas privadas, o que encontramos é uma convivência entre iguais. Nossos filhos não conhecem a diferença, não são beneficiados pela riqueza da diversidade. Não conjugam a tolerância. Quando confrontados com a diferença – e não apenas a socioeconômica –, expulsam-na.

Foi o que aconteceu com a menina desta história. Tempos atrás, ela ligou para a mãe no recreio, implorando para que fosse buscá-la. “Eu não suporto mais ficar aqui”, disse. Suava muito, desesperava-se. Sua mãe respondeu que ela precisava permanecer. E ela está resistindo como pode até o final do ano, para então trocar de escola.

Liguei para minha pequena amiga para saber o que estava acontecendo e propus uma entrevista. Em off, para que ela não fosse mais trucidada na escola do que já é. Ela topou. E aqui está a transcrição literal da nossa conversa, para que seu testemunho possa nos ajudar a pensarmos juntos num problema que é de todos.

Eu: O que aconteceu?
Ela: Eu não sou aceita. Meus colegas me acham meio estranha. Acho que me acham idiota.

Eu: Mas por quê?
Ela: Eu não gosto das conversas deles, me sinto mal. Acho que tenho um jeito diferente de pensar que eles acham bobo.

Eu: Mas que jeito é este?
Ela: Eles gostam de ficar ridicularizando os outros. Eu não quero fazer isso.

Eu: Mas quem eles ridicularizam?
Ela: Nossos colegas que têm dificuldade (portadores de necessidades especiais). Eles às vezes precisam fazer provas mais fáceis. Aí chamam eles de burros, de idiotas. Eu acho isso muito injusto. Queria poder fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer. E os professores não fazem nada.

Eu: Quem mais eles ridicularizam?
Ela: Gente que não usa roupa de marca, que não gosta do que eles gostam.

Eu: E do que eles gostam?
Ela: De funk, por exemplo. Adoram funk. Eu não gosto de funk, daquelas letras. É muito sem conteúdo. Mas gosto da Hannah Montana e da Rihanna. Eles também gostam daqueles programas de TV que ridicularizam as pessoas. Acham que isso é engraçado. E ficam falando das marcas das roupas que usam. Ah, essa calça é da marca tal. Esses dias uma menina disse para a outra: “Ah, o seu pai é milionário”. Aí essa menina respondeu: “Mi não. Bi-lionário”. Pensei: “E você é bi-polar”. Pensei, mas não disse.

Eu: E o que começaram a fazer contigo?
Ela: Eles não falam comigo. Eu pergunto, não respondem. Sabe, teve uma festa, uma balada, mesmo, que convidaram todo mundo. Eu fui uma das poucas que não fui convidada. Aí só ficavam falando nesta festa. E eu não sei por que eu não fui convidada. Eu nunca fiz nada de ruim para nenhum deles. Não entendo por que não gostam de mim. Minha melhor amiga também começou a me ignorar. Eu chego, ela sai de perto. Ela começou a ficar popular na escola.

Eu: E o que é ser popular na escola?
Ela: É usar roupa de marca e sair pisando em todo mundo.

Eu: O que mais te faz sofrer?
Ela: Ficar sozinha no recreio. Eu queria brincar, conversar, mas não tenho com quem. Só eu e o menino com problema mental ficamos sozinhos no recreio. É muito ruim ficar sozinha no recreio. Eu fico muito triste.

Eu: E por que você não fica com o menino com problema mental?
Ela: Porque ele é menino. Eu não tenho muito o que conversar com menino. Mas eu queria poder fazer alguma coisa. Porque ele fica lá sozinho, desenhando. E eu sei como é ruim ficar sozinha no recreio.

Eu: Por que você acha que seus colegas são assim?
Ela: Eles são que nem os pais deles. Nessa coisa das marcas, do dinheiro. Mas quem cria meus colegas, mesmo, não são os pais. Eles nunca ficam com eles. Eles estão trabalhando ou em jantares. Meus colegas são criados pelas babás. Elas são as mães de verdade deles.

Eu: E como eles tratam os professores?
Ela: Essa minha ex-amiga chama a coordenadora de “idiota” e de “imbecil” na frente dela. Não é pelas costas, é na frente. Ela acha que o pai vai pagar para ela passar de ano. Numa excursão, teve um colega que disse para o monitor: “Essa sua profissão é uma m…”. Eles são assim. Acham que vão herdar o dinheiro dos pais. Mas eu tenho impressão que vão gastar todo o dinheiro bem rápido. E aí não sei como vão fazer para trabalhar.

Eu: Você chora muito?
Ela: Antes eu chorava. Teve um dia que pedi para minha mãe me tirar de lá. Liguei para minha mãe no recreio. Não sei por que eu fiquei assim tão mal. Eu suava. Sabe, fiquei desesperada. Mas agora aprendi a lidar com isso. Estou administrando melhor a situação. Levo um livro para o recreio. Agora estou lendo “Coraline e o mundo secreto”. Você viu o filme? Foi baseado no livro.

Eu: E quando você decidiu mudar de escola?
Ela: Quando fui sentar ao lado de um menino e ele disse: “Desinfeta daí”. Eu fiquei sentada onde eu estava. Mas sei que ele não diria isso para outra menina. Acho que falou para mim porque eu não fui convidada para aquela festa. Eu estava aguentando, mas aí foi a gota d’água.

Eu: Você acha que no novo colégio vai ser diferente?
Ela: É uma escola maior. Tem mais gente. Então, deve ter alguém mais parecido comigo, né?

Espero que sim. Desliguei o telefone com medo dos pequenos monstros que conseguem expulsar de seu mundinho alguém tão doce quanto a minha amiga. O que eles vão fazer com o mundo maior quando crescerem? Que tipo de elite nossas escolas estão formando, para além de se dar bem no vestibular e no mercado de trabalho? O cotidiano nas escolas privadas do país pode ajudar a explicar o que acontece hoje nas esferas de poder da vida brasileira.

A crueldade infantil não é novidade. O massacre daqueles que usam óculos, são gordos ou diferentes de alguma maneira é um clássico. Bullying é a palavra inglesa para o abuso físico e psicológico cometido contra indivíduos e grupos mais fracos. Nos últimos anos, tem crescido o número de reportagens na imprensa sobre o bullying na escola. Parece-me que há algo novo neste cenário. E bem mais perverso do que as formas habituais de maldade infantil.

Minha amiga foi sendo expulsa porque está sozinha. Sua esperança na nova escola é conseguir formar um grupo com valores mais semelhantes aos dela para resistir. Para, de alguma maneira, sentir-se parte, para então ter alguma possibilidade de interlocução com outros modos de existir. O modelo brasileiro de ensino – resultado de uma das maiores desigualdades do planeta e do declínio da escola pública – caracteriza-se por um mundo escolar cada vez mais igual dentro dos muros. Nos respectivos guetos, o espaço para toda a diferença parece ter sido suprimido.

Estou generalizando? Pode ser. Mas apenas converse com um professor de escola privada de elite para que ele conte suas peripécias cotidianas com estes mais iguais que os outros. Já tenho sido vítima destas crianças sem limites, sem cultura e sem educação que me atropelam nos corredores dos shoppings e restaurantes, que gritam suas exigências e fazem cenas públicas, sem que seus pais tomem qualquer atitude além de prometer algo em troca de sua colaboração.

Acho que está passando da hora de entender que há um tipo de violência sendo exercido e perpetuado nas escolas privadas de elite. E que essa violência é refletida também lá, nas escolas de periferia, onde a agressão é armada. As violências destes mundos escolares só aparentemente antagônicos se retroalimentam. Uma existe também por causa da outra. Há uma infância supostamente protegida e com todos os acessos abertos ao conhecimento e ao melhor que o dinheiro pode comprar – e outra desprotegida de tudo, que só recebe o pior. Separadas por grades, muros e cercas eletrificadas, uma desconhece a outra. Muitas vezes vão se cruzar mais tarde, pela violência, em alguma esquina da cidade. E são os pais e as mães destes meninos desprotegidos que alguns dos protegidos desrespeitam nos corredores de suas escolas iluminadas, ao encontrarem-nos limpando o chão ou exercendo serviços que consideram, como disse o menino na excursão, “uma m.”.

A escola deveria promover a intersecção dos mundos. É nos bancos escolares que as diferentes realidades – não só a socioeconômica, mas também ela – deveriam se cruzar e dialogar. É na desigualdade de ideias, de culturas e de visões de mundo que se aprende e se avança. Esta desigualdade do bem, porém, foi banida do modelo de ensino. Em vez disso, a escola transformou-se em reprodutora da desigualdade perversa: a socioeconômica, com todos os seus (des)valores correlatos. A escola é resultado da desigualdade socioeconômica e de uma sucessão de políticas desastrosas de ensino. Mas, se é criatura deste mundo, é também criadora, ao reproduzi-lo. Ao transformar-se numa linha de produção da desigualdade que beneficia os mais iguais de sempre, deixa de educar. Este, me parece, é o dilema atual. Ou, pelo menos, um dos grandes.

A ilusão dos pais de filhos em escolas privadas é de que, ao colocá-los lá, garantem a sua proteção. Seus filhos não perdem nada. Quem perde são os filhos dos outros, que não conseguem pagar a mensalidade. Engano. Perdemos todos. A eliminação da diversidade trará consequências mais perversas do que me parece que pais e autoridades têm percebido. Sem diferença não há diálogo. É possível educar sem diversidade? Há aprendizado de fato sem dissonância? Duvido.

Nas escolas de elite, os estudantes ameaçam professores e funcionários não com pistolas, mas com outro tipo de arma: “Sou eu que pago seu salário!” ou “Meu pai vai mandar te demitir!”. Quantos professores já não ouviram frases como essa ao tentar impor limites na sala de aula para esses projetos de déspotas? Já testemunhei professores esvaindo-se em lágrimas e jurando mudar de profissão. E não davam aulas em escolas com esgoto a céu aberto.

“Estas crianças são criadas pelas babás”, disse a mãe da minha amiga. “Ou seja: elas já mandam desde pequenas naquelas que deveriam ser uma autoridade. Se elas podem demitir a pessoa que está no lugar de autoridade, o que se pode esperar?” Ela tem razão. E é bom começarmos a refletir com mais seriedade sobre esse fenômeno contemporâneo.

Minha filha sofreu muito na escola privada. Ela não tinha tênis nem roupas de grife, entre outros defeitos inaceitáveis. Eu disse a ela que o mundo era duro e que ela precisava enfrentar esse tipo de gente desde sempre. Ela enfrentou. Na vigésima vez que o filhinho de papai ridicularizou a sua roupa, ela bateu no menino. Foi uma boa saída? Claro que não. Mas foi o que ela conseguiu fazer diante da minha surdez.

O mais curioso, mas nem tanto, é que em vez de minha filha ser punida por ter agredido o colega, foi parabenizada pelos professores. Um a um eles vinham cumprimentá-la e dar parabéns. De algum modo, ela vingava a humilhação cotidiana de todos eles. Mas seria esta uma boa pedagogia? Estaria esta resposta à altura de alguém que estava ali para ensinar? O episódio não teria sido uma boa oportunidade para discutir, refletir e aprender? Parece-me que também os professores, por diversas razões – e também pela humilhação cotidiana –, não conseguiam estar no lugar que deveriam, não era possível ali a dialética entre mestre e discípulo.

“Talvez tudo o que esses garotos sabem dos pais é que são ricos. Criados por babás, tentam manter esse traço, esse significante do rico/pobre para manter em si os pais que de certo modo não existem”, comentou minha filha, hoje adulta, depois de ler este texto. “Não estou justificando”, disse. “Só pensando.” Seu comentário me fez perceber que estas crianças e adolescentes que fazem sofrer também devem sofrer muito. Afinal, eles não são monstrinhos, como tendemos a pensar. Se fossem, seria mais fácil. São gente. E gente sofre.

Desejo sorte à minha pequena amiga na nova escola. A melhor resistência é continuar sendo ela mesma. Mas temo pela sorte de todos nós no futuro próximo se não enfrentarmos a violência não apenas nas escolas da periferia, mas nos prédios imponentes e caros do lado privilegiado do mundo. Uma violência que começa não fora, mas dentro de casa, tendo os pais como cúmplices – quando não como exemplos.

(Publicado na Revista Época em 28/09/2009)

 

O doping dos pobres

Promover saúde não é sufocar a dor da vida com drogas legais

Parte da minha família tem origem rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão à lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estóico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “fulana sofre dos nervos”.

Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado na bodega do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.

Eu criava ouvidos de Dumbo – não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existia vírus ou bactéria ou até mesmo nervos capaz de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.

Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia médica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões – e se inscreveu na cultura.

Há algum tempo penso nos muitos significados dessa enorme mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem – e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.

Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: “seus” medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.

Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.

Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem dêem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de 9 anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.

A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.

É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Ou seja, devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar, que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.

O que tenho visto é um doping social. Combate-se a maconha, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?

Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever este texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.

“Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um benzodiazepínico (tranquilizantes – ansiolíticos e hipnóticos). Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”.

“As pessoas são levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta uma psicóloga. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida. Vemos o tempo todo gente que foi viciada em ansiolíticos nos postos de saúde.”.

“A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, afirma um psiquiatra. “Vivemos uma época de sedativo social. O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”.

Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nesta proporção, com essa enorme variedade de medicamentos disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.

Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?

De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar – ou pelo menos controlar – muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento – mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.

Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas nem sempre – talvez até raramente – seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, medos, lutos. Tanto pela perda de quem amamos como pela perda de amantes como pelas pequenas perdas de cada dia.

A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um a sua maneira. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo conosco e com o nosso mundo?

Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você está deprimido porque não tem mais forças para suportar esse cotidiano ou está doente porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Sua alternativa não é se entupir de tarja-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma vida melhor, pressionar o poder público, criar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.

Ser ativo e ser parte é ter saúde. Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas.

Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha quebrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou a sua vida. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.

Penso que o conceito de saúde – e de saúde mental – não existe se não abarcar projeto de vida.

O primeiro texto que escrevi, aos 9 anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.

Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Estive algumas vezes à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.

Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, ele o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.

Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.

(Publicado na Revista Época em 31/08/2009)

Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

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(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

Marcão da Pipoca luta contra expansão imobiliária

Ao lado do mais novo cartão-postal de São Paulo Marcão e sua família já não têm mais vizinhos, mas ainda defendem seu lar

Marcelo Min (fotos) e Eliane Brum (texto)

UMA PEQUENA ALDEIA GAULESA  O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo. Das mais de 800 famílias, a sua é a única que permanece no local

UMA PEQUENA ALDEIA GAULESA
O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo. Das mais de 800 famílias, a sua é a única que permanece no local

José Marcos Carneiro Santana e sua família habitam um mundo que não existe mais. Ele fez sua casa quando cartões-postais de uma São Paulo monumental, como a ponte estaiada e a Avenida Berrini, nem existiam, quando tudo era lama e ninguém queria aquele pedaço de charco. José Marcos e os tantos como ele tiveram de querer. O Jardim Edite, um amontoado de barracos colados uns aos outros, só tinha flores no nome. Desapareceu no fim de maio, levando com ele a vida cotidiana de mais de 800 famílias. Sobrou José Marcos, sua mulher e seis filhos, resistindo numa casa que ele, muito religioso, pintou da cor do céu. No tabuleiro do mercado imobiliário, só resta ele a derrubar, o último peão.

Está lá porque entrou com uma ação de usucapião e obteve uma certidão, registrada em cartório, que lhe garante ficar no local enquanto não sai a sentença definitiva. Quando a empreiteira mandou que pegasse suas trouxas e fosse embora, José Marcos colou a certidão na parede. Todos foram varridos dali, menos ele. Sobrou ainda outra casa, cujo dono – de classe média – afirma ter escritura e não estar em área pública. Isso também a Justiça terá de decidir.

José Marcos salvou seu canto de mundo, por enquanto, ao se especializar em vender pipoca perto de faculdades de Direito. Ele conta que gosta de “um pessoal mais conceituoso”. “Entrei no ramo da pipoca lá na USP, no Largo São Francisco”, diz. Depois, estabeleceu-se no campus de outra universidade, a Unip, no bairro de Santo Amaro. Há uns 20 anos tem lá um “imperiozinho bem formado”. Nele, é conhecido como Marcão da Pipoca. Quando os rumores da retirada da favela subiram de tom, José Marcos conversou com seus clientes, estudantes de Direito, enquanto preparava sua especialidade com provolone. “Você tem a posse passiva”, os quase “doutores” disseram unânimes. José Marcos contratou por lá mesmo um advogado e pagou em prestações espichadas.

Penetrar no mundo aos pedaços de José Marcos e de sua família produz estranhamento. É uma grande cova fresca, onde a terra se mistura com fragmentos da vida que existia ali. Uma janela, um sapato velho, uma flor de plástico. Da ponte estaiada, uma montanha de terra encobre a visão do que parece um cenário de guerra. A casa azul e seu mundo em dissolução ficam ocultos. Miguel Isaías, neto de José Marcos, foi gerado ali. O barraco de Késia, a mãe, foi posto abaixo. Ela caiu entre os escombros quando foi buscar a água que cortaram e machucou a barriga de quase nove meses. Foi levada ao hospital para que o filho nascesse e, agora, o amamenta em meio à devastação.

DUAS PAISAGENS, MESMO ÂNGULO  Na foto à esquerda, o Jardim Edite. À direita, o que sobrou. A prefeitura afirma que construirá um conjunto habitacional para parte das famílias retiradas

DUAS PAISAGENS, MESMO ÂNGULO
Na foto à esquerda, o Jardim Edite. À direita, o que sobrou. A prefeitura afirma que construirá um conjunto habitacional para parte das famílias retiradas

Atrás do monte de terra, morreu outro morador, Manezinho, quando um muro desabou sobre ele, em meados de maio. Manezinho estava sentado diante do barraco de onde jurou “só sair morto”, quando avistou uma calha de latão. Ao alcançá-la, porque vivia de juntar sucata, ruínas inseguras caíram sobre ele. Suas últimas palavras foram: “Eu pedi”. A empreiteira fez um enterro “com um caixão bonito”, nas palavras de José Marcos. Diziam que Manezinho bebia além da conta, e ninguém parece ter ligado muito. Ele se tornou vítima de uma guerra invisível.

Depois de uma disputa judicial, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) prometeu construir ali um conjunto habitacional para 240 das 842 famílias do Jardim Edite. Os moradores poderiam escolher entre receber R$ 8 mil para comprar uma casa noutro lugar, um auxílio de R$ 500 por dez meses de aluguel ou ser encaminhados a outra unidade. O valor médio do metro quadrado da região é de R$ 4 mil, para apartamentos residenciais, segundo a Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp). É uma área em expansão, com valorização crescente. Ao longo das avenidas alinham-se alguns dos mais caros hotéis da cidade e prédios de luxo ocupados por grandes empresas. A única intersecção do Jardim Edite com a vizinhança chique era o tráfico de drogas. Carrões BMW, Volvo ou Citroën estacionavam na favela com os faróis apagados, para desgosto da maioria dos moradores.

José Marcos resiste porque a pipoca fez uma ponte que lhe permitiu alcançar a Justiça. Ele não acredita que os moradores da favela poderão voltar. Chegou ali nos anos 70, vindo de Minas Gerais com o sonho de gravar um “long-play” de samba. A vida revirou, e sua música virou o estalo da pipoca na panela. Ali conheceu sua mulher, virou evangélico e teve seis filhos. “Para mim, essa casa é muito linda”, diz. “Se for obrigado a vender, eu vendo, mas pelo valor correto.”

A família sente falta dos vizinhos, mas gosta do silêncio. Agora não há mais forró à noite, não há mais nada. Só eles e seu estranho mundo, uma miragem entre a ponte estaiada e os prédios da Berrini. Há um filme de Frank Capra chamado Do mundo nada se leva (1938). Nele, uma excêntrica família decide resistir em sua casa ao avanço de um grande empreendimento imobiliário. O filme, que ganhou o Oscar, tem final feliz. José Marcos e sua família também lutam pelo seu happy end na casa azul. Mas, do seu mundo, quase tudo já foi levado.

(Publicado na Revista Época em 18/06/2009)

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