Vida que segue

Depois de cinco meses de UTI, Luciana levou sua filha prematura para casa

MÃE DE UTI  Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

MÃE DE UTI: Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa (Foto: Marcelo Min)

Quando viu Marcela pela primeira vez, Luciana Patrício, de 35 anos, sentiu medo. “Ela era tão frágil, parecia que não ia aguentar”, diz. Moradores de Sorocaba, ela e o marido alugaram uma quitinete perto do hospital. E Luciana não saiu mais de perto da criança. A qualquer hora do dia, lá estava ela. Sempre com a mão sobre seu bebê. Pareciam carnalmente ligadas, ela e a filha. A mão substituindo o cordão umbilical, rompido de forma abrupta.

Luciana passava os dias na UTI. As noites ficava sozinha. Teve um pesadelo. Nele, um gato entrava e pegava a filha. “Ela é tão pequena.” A certa altura, chegou a pensar que o melhor para Marcela seria morrer. Não suportava a ideia de ter colocado um bebê no mundo para ser espetado por agulhas. Religiosa, entregou a filha a Deus.

Quando Marcela piorou, a equipe de cuidados paliativos conversou com Luciana. “Eu precisava decidir o que fazer se a situação dela se agravasse. Eles queriam saber se eu queria que entubasse, se queria que ela fosse reanimada”, diz. “Foi importante falar sobre isso. Se a situação piorasse, eu não queria que ela sofresse mais. Eu tinha uma ideia diferente dos cuidados paliativos. Achava que não investiriam mais na minha filha. Pelo contrário, continuaram fazendo tudo o que era preciso.”

Marcela começou a melhorar. Luciana passou para a próxima etapa. Dentro da unidade, há um apartamento onde as mães ficam com seus filhos perto de ter alta. Lá, começam a cuidar dos bebês sozinhas, mas, a qualquer aperto, podem pedir ajuda. É uma forma de adquirir segurança para um momento tão desejado, mas difícil. “Foi maravilhoso saber que ela iria para casa, mas também deu muito medo. Ela precisa de muitos cuidados”, diz Lucia-na. “É estranho, mas eu sinto saudade do hospital. Por muito tempo, a equipe foi meu pai, minha mãe, meu marido, meus amigos, minha família, tudo. Se eu não estivesse num lugar assim, teria enlouquecido.”

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Tão lindo, tão podre

A história do telefone poderia ter sido escrita por Shakespeare

Quando fui visitar a exposição “Tão longe, tão perto”, esperava uma obra técnica. Imaginava aprender alguma coisa e só. Afinal, se você convida alguém para ver uma exposição sobre a história das telecomunicações, não espera ouvir um: “uau!”. Não da maioria das pessoas, pelo menos. Entrei achando “hum, bonito” e, de repente, comecei a me sentir numa das tragédias de William Shakespeare. Fiquei completamente envolvida e quase perdi a hora do próximo compromisso.

A exposição, promovida pela Fundação Telefônica, conta nossa aventura em busca daquilo que nos constitui como humanos: a capacidade de nos comunicar. Percorremos uma linha do tempo que é de todos. Ao mesmo tempo, construímos nosso próprio percurso, a partir da memória dos sons da nossa vida. Temos poucas chances, em um mundo tão barulhento, de silenciar e ouvir os sons que ouvimos sempre – de um jeito que não ouvimos nunca. Com o sentido de que eles nos constituem tanto quanto nossas células e nem sempre estiveram aqui. Ou algum adolescente urbano acha que há vida possível sem o bip do MSN na tela? Tudo isso pode ter começado há 200 mil anos, quando uma mutação genética teria dado origem à voz humana. Mas, sem voz, haveria o humano?

Esta foi exatamente a parte que me capturou. O físico Peter Schulz, curador da exposição, teve a ousadia de contar uma história demasiado humana. É uma história de gente, do começo ao fim. Nela, conseguimos sentir a glória, mas também a dor e a miséria dos grandes homens. E a inveja, as trapaças, as vilanias. Sim, sim, há algo de podre no reino do telefone. William Shakespeare (1564-1616) poderia ter escrito mais uma de suas peças arquetípicas se houvesse conhecido o escocês Alexander Graham Bell (1847-1922).

Você acha que Bell inventou o telefone? Pois é, eu também achava. Passei a vida acreditando nisso e no monstro do lago Ness. Mas não, ele não inventou. Não sozinho – e talvez nem com a participação mais vistosa. A história do telefone, este aparelho que moldou a nossa cultura desde o fim do século XIX, é fascinante. Não pela grandeza de seus protagonistas, mas pela pequeneza dos grandes cientistas. Por ela, acompanhamos estes homens aspirando à divindade enquanto escorregam na mais tosca humanidade.

Poucas vezes se viu tantas trapaças ou acusações mútuas de trapaças como na invenção do telefone. Depois de Bell patentear como seu, no início de 1876, o invento levou mais de um ano para começar a ser comercializado. Mas apenas poucos meses para a primeira de dezenas de processos na Justiça. Algumas das controvérsias se arrastaram até a morte dos protagonistas e tiveram algum tipo de solução só agora, no início do século XXI. Como a de meu personagem favorito nesta tragédia, um italiano chamado Antonio Meucci.

Ele está para os italianos como Santos Dumont para nós, brasileiros. Enquanto nós brigamos para que o mundo reconheça a primazia de Santos Dumont na invenção do avião – e não os Irmãos Wright –, os italianos brigam para que o mundo admita que foi Antonio Meucci o inventor do telefone. E tem boas razões para isso – como também nós.

Meucci (1808-89) parece ter sido um daqueles sujeitos geniais que, enquanto inventavam geringonças que melhoravam o mundo, eram enganados por quase todos. Estou aqui, cheia de pruridos na ponta dos dedos para escrever sobre ele, porque há tanta paixão nesta história, não apenas nos protagonistas, mas naqueles que defendem um ou outro lado, que é difícil alcançar o homem.

O que parece claro é que Meucci era um sujeito de convicções – e pagou um preço alto por defendê-las. Boa parte da pesquisa para a invenção do telefone foi feita em seu exílio em Cuba, para onde fugiu com a mulher depois de ter sido preso duas vezes por participar do movimento de unificação italiana. Em 1849, quando Graham Bell tinha 2 anos de idade, ele já tinha desenvolvido em Havana um tratamento à base de choques elétricos para curar doenças como o reumatismo. Ao preparar-se para aplicá-lo, ouviu a voz do paciente, em outro quarto, através de uma peça de fio de cobre que os conectava. Percebeu que tinha ali algo mais importante que qualquer descoberta anterior e se mudou para Staten Island, nos Estados Unidos, na tentativa de desenvolver seu invento.

Na América, Meucci viveu cercado por refugiados italianos. Chegou a abrigar Giuseppe Garibaldi em sua casa. Não conseguia compreender a língua nem administrar bem seus recursos, naufragando em vários negócios. Foi ficando cada vez mais pobre. Ainda assim, seguia. Em 1856, montou um sistema telefônico para que, de seu laboratório, pudesse se comunicar com sua mulher, doente e paralisada numa cama. Em 1860, a descrição de uma demonstração pública de seu telefone foi publicada por um jornal de Nova York. Mas não parece ter sobrado nenhuma cópia.

Cada vez mais pobre, Meucci vendia os direitos de muitas de suas invenções para sobreviver. Nunca a que batizou de “telectrophone”. Um dia, o navio a vapor em que viajava explodiu. Ele sobreviveu, mas com queimaduras muito graves. Doente e desesperada, sua mulher vendeu os protótipos que encontrou a um comerciante de objetos usados. Entre eles, o do telefone. Tudo por 6 dólares. Quando Meucci deixou o hospital, talvez tenha pensado que seria melhor estar morto. Correu atrás dos compradores para recuperar o trabalho de uma vida. Foi informado que tudo fora revendido a “um jovem misterioso”.

Meucci atravessou noites de insônia e trabalho duro para reconstruir sua invenção. Conseguiu. Mas não a soma para reivindicar uma patente definitiva. Registrou uma espécie de patente provisória, em 1871. Conseguiu renová-la em 1872 e 1873. E não mais depois disso. Neste período, foi enganado outras vezes, teve documentos e modelos “perdidos” por empresários que prometiam ajudá-lo a realizar testes. As desventuras de Meucci parecem intermináveis.

Enquanto escrevo, fico imaginando aquele homem apaixonado, tropeçando na língua inglesa e na esperteza alheia, ansioso por reconhecimento em um terno puído pelas ruas da América. Em 1876, Bell registrou a patente definitiva do telefone. Meucci o processou, mas perdeu. Morreu pobre, amargurado e quase anônimo.

Somente mais de um século depois, em 11 de junho de 2002, o Congresso dos Estados Unidos reconheceu sua participação na invenção do telefone. Se Antonio Meucci tivesse 10 dólares para pagar a renovação do registro provisório, possivelmente nenhuma patente poderia ter sido registrada por Alexander Graham Bell. Dez dólares em troca de uma vida.

O italiano Antonio Meucci não foi o único personagem trágico deste drama real. O americano Elisha Gray (1835-1901) requereu a patente do telefone poucas horas depois de Bell, no mesmo dia. Mais uma longa batalha judicial. Outro cientista, o francês Charles Bourseul (1829-1912), pode ter sido o primeiro a sugerir que o som é transmitido pela eletricidade. O alemão Johann Philipp Reis (1834-74) inventou um aparelho que transmitia notas musicais e uma ou duas frases em 1860. A primeira delas: “Das Pferd frisst keinen Gurkensalat” – O cavalo não come salada de pepino.

Todos estes homens representavam as grandes mentes do seu tempo. E realizaram grandes obras. Mas incineraram-se na paixão de serem únicos. Perguntei ao curador da exposição, o físico Peter Schulz, da Unicamp, quem, afinal, havia inventado o telefone. Ele me deu uma bela resposta: “Grandes desenvolvimentos envolvem muita gente e dificilmente ocorrem a personagens únicos. No caso do telefone fica evidente uma coisa: eles (Bell, Meucci, Reis…) são inventores do aparelho de telefone, mas depois disso foi preciso uma série de desenvolvimentos para que existisse a telefonia. Como fazer uma rede de telefones? Como fazer o sinal passar por quilômetros e quilômetros sem perder intensidade? Muitos outros foram necessários para que a ‘prática cultural’ chamada telefonia existisse. Eu acredito muito nos desenvolvimentos como aventuras coletivas”.

Minha próxima pergunta a Peter foi: Por que homens tão grandes, capazes de criar algo tão belo e mudar o mundo, se revelaram capazes de tantas baixezas? Peter respondeu: “A pesquisa científica é uma atividade humana como outra qualquer, sujeita a vaidades, fraudes, disputas, etc. A ciência passa uma imagem de neutralidade e objetividade que é falsa. O fato de as leis da física, por exemplo, serem as mesmas aqui ou nos confins do universo, não garante a objetividade da atividade do cientista. Qual é a escolha do que se pesquisa? Depende de quem paga a pesquisa. A física está cheia de problemas que não são pesquisados mais, não porque foram encontradas as respostas, mas porque saíram de moda. Existem alguns mitos sobre a neutralidade e ‘pureza’ da ciência que deviam ser revistos. O sucesso da ciência levou à sua idealização tanto dentro quanto fora da atividade científica. Do ponto de vista psicológico, a comunidade científica está cheia de Adrianos e Ronaldos”.

Terminei nossa conversa perguntando se a necessidade de ser “o” herói ou “o” gênio ainda movia a pesquisa científica hoje. Peter afirmou: “A necessidade de um herói foge do âmbito exclusivo da ciência, que, quando considerada como uma atividade humana qualquer, faz com que a questão do herói seja a mesma que no esporte, política, artes… O cultivo da ideia do herói, gênio, etc continua. A valoração do prêmio Nobel, por exemplo, alimenta esta idolatria. A exposição dos excêntricos também. Um exemplo típico é o matemático russo, (Grigori) Perelman, que recusou importantes prêmios e vive recluso. Acho que é insanidade mesmo, mas o público gosta… Não é muito diferente do culto à reclusão do J. D. Salinger ou mesmo de Rubem Fonseca, Greta Garbo… O grosso da atividade científica é bastante rotineiro, mas a pressão pela primazia é grande. Primazia pode garantir financiamento e oportunidades de trabalho melhores. A ciência é algo fantástico…mas continua sendo feita por seres humanos”.

A dimensão shakespeariana da invenção do telefone nos leva para além dos aspectos curiosos. Se o telefone, como cultura, mudou e vem mudando toda a nossa relação com a vida e uns com os outros, assim como os conceitos de tempo e espaço, a forma como ela é apresentada também muda o que somos e como nos movemos pelo mundo.

Quando o professor ensina a uma criança que Alexander Graham Bell inventou o telefone, está dizendo muito mais que isso. 1) Que as invenções acontecem num lance de genialidade de poucos – e não num processo contínuo e cumulativo do trabalho de muitos. 2) Que tudo acontece de repente em uma determinada mente privilegiada – e não, como de fato é, com trabalho árduo e exaustivo, que muitas vezes dá em nada. 3) Que é possível e desejável fazer, seja lá o que for, sozinho, se quiser virar verbete de enciclopédia, estátua na praça ou nome de rua. Portanto, o trabalho coletivo e geralmente anônimo não teria valor aos olhos do mundo.

A forma como é contado o processo de descoberta também molda a nossa cultura. Quando aprendemos na escola que é Alexander Graham Bell o inventor do telefone – simples assim – estamos sendo deseducados. Ou formados para um mundo bem ruim. A história da invenção do telefone, como aprendemos na exposição, é muito mais rica, multidisciplinar, também para entender a matéria da qual somos feitos. E, talvez, para nos tornarmos melhores. Um bom professor faria, no mínimo, um belo debate sobre ética.

O conteúdo que comunicamos por meio destas maravilhosas invenções nos transforma. Fico pensando quem seríamos nós se pais e professores ensinassem que foi necessário não um cientista, mas muitos para construir uma obra em permanente construção. Que não são heróis, e sim homens, que mudam o mundo em que vivemos. Que a aventura – na ciência ou em qualquer âmbito do conhecimento – é sempre coletiva. E que dependemos uns dos outros neste esforço solidário. Se fosse este o conteúdo comunicado, o quanto seríamos diferentes? O quanto nosso mundo seria diferente?

Agora, se me convidarem para a exposição, eu posso dizer: “uau!”.

P.S. – Para quem se interessar: “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade” permanece no Museu de Arte Brasileira da FAAP (Rua Alagoas, 903, prédio 1 – Higienópolis), em São Paulo, até 23 de maio, de terça a sexta, das 10h às 20h, aos sábados, domingos e feriados, das 13h às 17h. A entrada é gratuita. Visitas orientadas para grupos, no programa educativo, podem ser agendadas pelo telefone: (11) 3662-7200. Mais informações pelo site www.taolongetaoperto.org.br .

(Publicado na Revista Época em 29/03/2010)

“Porca gorda”

Por que as pessoas acima do peso nos incomodam tanto?

Assisti à “Gorda”, peça teatral em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Ri muito. Em certo momento, meu riso ficou triste. Eu estava triste. Não pela gorda da peça, mas por me reconhecer no preconceito contra ela. No final, chorei.

Este é o enredo. Helena e Tony se conhecem num restaurante. Ela é gorda. Não gordinha. Gorda mesmo. Helena é vivida com muita competência pela atriz Fabiana Karla, de Zorra Total (TV Globo). Segundo a sinopse oficial, a personagem está 30 quilos acima do peso. Se compararmos com uma das modelos da moda, deve estar uns 50. Tony (o ótimo Michel Bercovitch) gosta dela. Ela é inteligente, divertida, sensual. Bonita. Helena gosta dele. Os dois se apaixonam. Mas, como um cara jovem, bem sucedido, MAGRO e disputado pelas mulheres MAGRAS pode escolher uma gorda, amar uma gorda, ser feliz com uma gorda?

A reação social diante da versão de amor impossível da nossa época é protagonizada por Caco (Mouhamed Harfouch), amigo e colega de trabalho de Tony, e por Joana (Flávia Rubim), sua ex gostosa, cujo maior temor da vida é engordar. São eles que representam, no enredo e no palco, pessoas como nós – sempre menos magras do que gostariam, magras o suficiente para não serem chamadas de gordas na rua.

O texto do americano Neil Labute é inteligente, rápido, fatal. Rimos muito. Primeiro, com ela. Helena é uma mulher bem-humorada. Como muitos gordos, defende-se fazendo piadas sobre seu tamanho. A velha regra: adiante-se, ria de si mesmo, antes que os outros o façam com a crueldade habitual. Se perder o timing, não acuse o golpe – ou nunca mais o deixarão em paz.

Aos poucos, começamos a rir muito dela (e não mais “com” ela), pelas piadas de Caco, ao descobrir que o amigo está namorando uma “porca gorda”. Fat Pig é o nome original da peça. Mas gostamos de Helena, testemunhamos o apaixonamento dos dois, sabemos que eles são felizes juntos. E passamos a nos sentir mal de rir, ainda que continuemos rindo. Não queremos ser como Caco – muito menos como Joana. Mas somos tão parecidos!

Nós – o senso-comum sentado na plateia – somos o mais próximo de um vilão que esta peça produz. O texto e os atores são competentes o suficiente para fazer com que a gente prefira não vencer. Torcemos para que Helena e Tony consigam ficar juntos, apesar de nós. Torcemos para que eles consigam vencer nosso preconceito e nos tornar melhores do que somos. Não sei se torceríamos assim num episódio da vida real. E esta é a questão que a peça também nos deixa.

O final é brilhante.

Acho que vale a pena pensar sobre as questões que esta peça provoca. Começando por: qual é o nosso problema com os gordos?

Sobre a transformação do padrão de beleza, das rechonchudas musas da Renascença às modelos esquálidas e/ou musculosas de hoje, já se escreveu bastante. A pergunta que me desperta maior interesse não se refere – apenas – ao fato de acharmos as gordas feias, de relacionarmos gordura com feiúra. A questão que mais me intriga é: por que muitos acham as gordas (e os gordos) repugnantes? Se você não disse ou pensou, já ouviu alguém dizer: “olha que gorda nojenta!”.

Horrível. Mas tão comum que nos obriga a ir em frente.

Com todas as diferenças que, para nossa sorte, garantem a diversidade do mundo, somos impelidos a ser politicamente corretos. Fazer piadas com aquelas que foram as vítimas de sempre até não muito tempo atrás, como negros, gays, deficientes etc, pega mal hoje em dia. Temos de ser politicamente corretos ou corremos o risco de ser processados – ou mesmo de acabar na cadeia. Por que o privilégio de não ser ridicularizado não foi estendido aos gordos? Sobre os gordos podem ser ditas as coisas mais cruéis. E ainda se manter do lado certo da força.

O que diz o senso comum sobre os gordos? Primeiro, que são feios. Em geral, o máximo de elogio que um gordo consegue arrancar é: “Que pena, tem um rosto tão bonito…”. Dizem que são preguiçosos. Se fizessem exercícios – e como ousar não se exercitar neste mundo? – perderiam aquela pança. Afirma-se também que são sem-vergonhas. Se tivessem vergonha na cara, respeito próprio, fechariam a boca e seriam magros. E, então, poderiam pertencer ao clube dos magros felizes (????!!!!).

Portanto, segundo o senso comum, além de feios e preguiçosos, gordos também teriam falhas de caráter. E, como tudo, para as mulheres acima do peso é ainda pior. Neste mundo em que se compram peitos, bocas e bundas no crediário, soa imperdoável não arrancar a gordura à faca. Já ouvi muitas vezes frases como estas, referindo-se a alguém com mais quilos do que o “permitido”: por que não faz logo uma cirurgia de redução de estômago? Seguida por uma cirurgia reparadora e uma lipoescultura? Simples assim.

Sobre o estado psíquico dos gordos, a percepção é confusa. Por um lado, persiste a ideia de que todo gordo é engraçado. É um pândego. Como bobo da corte ou comediante, ele pode ser aceito. Nós mesmos, só conhecíamos Fabiana Karla como atriz do Zorra Total. Ninguém imaginou que, ainda que fazendo o papel de “gorda”, ela pudesse ter outros recursos que não a graça. Que os gordos mostrem nuances que não virem piada nos surpreende. Que eles possam nos fazer pensar sobre outras dimensões da vida é inesperado. Que tenham questões existenciais que não girem em torno de uma balança é estarrecedor.

Por outro lado, o senso comum também diz que, se é gordo, só pode ser infeliz. A maioria de nós acredita e repete isso. Fulano come demais, é infeliz. Fulano não consegue fechar a boca, é infeliz. Fulano compensa a infelicidade comendo. Ora, desde quando magreza se tornou sinônimo de felicidade? Você, magro ou magra, é loucamente feliz? Está rolando de rir vida afora? Ops, magros não rolam.

O mais disfarçado dos preconceitos vem embalado pelo discurso da saúde. É verdade que a obesidade está crescendo no Brasil. E é verdade que isso é sério. E é legítimo e relevante pensar e discutir o fenômeno com responsabilidade.

Mas será que não há um exagero nisso? Ou pelo menos do uso preconceituoso que se faz de uma questão tão séria? Hoje, quando olham para um gordo, além de feio, preguiçoso e sem-vergonha, muitos enxergam também um doente. Gordura virou sinônimo de doença. E nossa sociedade, que morre de medo de morrer, foge da doença. E das pessoas doentes. Os gordos parecem ser os leprosos de nosso tempo. E esta seria minha primeira hipótese para a repugnância que as pessoas gordas parecem evocar.

Não se trata de afirmar que a gordura não está relacionada a doenças – ou que a obesidade não seja uma doença. A Organização Mundial da Saúde afirma que é, quem sou eu para discordar. Só tento mostrar que é preciso tomar cuidado para não cometermos as mesmas crueldades que nossos antepassados consumaram ao exorcizar epiléticos, isolar leprosos. Todas essas práticas sempre foram realizadas em nome do “bem”. Guardadas as proporções e o momento histórico, nossa sociedade pode estar transformando os gordos, com os instrumentos desta época, nos culpados pela nossa impotência diante da doença e da morte.

Hoje a vida tornou-se uma patologia. Difunde-se que muito do que sentimos não deveríamos sentir. O ideal seria só sentir alegria num corpo magro, musculoso e eterno. Para cada sentimento e estado que extrapole estes limites impossíveis há uma patologia e uma penca de remédios e procedimentos cirúrgicos para “curá-la”. Acredito que vale a pena ter um pouco de cautela, enfiar alguns pontos de interrogação na cabeça, antes de sairmos rotulando todos os gordos como doentes. E, pior, com uma doença que dependeria só de boa vontade individual para ser curada.

Eu sou mais ou menos magra. Longe, bem longe do peso de uma modelo, mas ninguém me chamaria de gorda na rua. A maior parte da minha família é magra. E todos nós temos doenças. Eu tenho quatro hérnias de disco. Meu pai, mesmo com um metabolismo fenomenal e índices de colesterol e triglicérides perfeitos, tem problemas cardíacos desde jovem. Meu irmão do meio não tem um grama de gordura a mais no corpo, come alimentos saudáveis e se exercita com método: a cada semana corre quatro dias, faz musculação e natação em outros dois. Ainda assim, é um pré-diabético.

Parece-me lógico que o envelhecimento traga doenças. A vida nos gasta. Nosso corpo também tem prazo de validade. Pela biologia, estamos prontos para morrer assim que alcançamos a idade reprodutiva, transmitimos nossos genes e criamos nossa prole. Conseguimos, à custa da Ciência (e ainda bem que conseguimos!) espichar nosso tempo de vida e até com qualidade crescente. Mas, infelizmente, não vamos nos livrar das doenças. Nem de morrer. É duro olhar para os limites. Mas não fazê-lo pode ser pior.

Os gordos podem ser vítimas de nosso medo de morrer. Pagam um preço alto pela nossa dificuldade de lidar com a desordem inerente à existência humana. Tornamos suas vidas insuportáveis – inclusive as lojas bacanas, que se recusam a oferecer números maiores que 42 – porque eles apontam em seus excessos aquilo que nos falta a todos: controle sobre a vida. Esta é uma hipótese, apenas. Acredito que existam muitas outras.
Acho importante tentar compreender porque insistimos em jogar os gordos na fogueira contemporânea. Por todas as razões que dizem respeito à vida de todos – e principalmente para não infligirmos sofrimento ao outro que nos ameaça com sua diferença. Só sei o óbvio: tanto medo, capaz de causar repugnância, revela mais sobre os magros do que sobre os gordos.

Talvez, num dia próximo, não seja preciso escrever em termos de “nós” – e “eles”. A vida é diversa. Sempre houve os magros, os gordos, os altos, os baixos, os de olhos azuis, os de pele escura. Esta riqueza é um patrimônio humano que fez muito bem à espécie. Ser capaz de reter gordura, aliás, garantiu nossa sobrevivência por milênios. Quando os gordos lutam para ser magros, estão brigando contra a biologia. Algo nada fácil de fazer. Muito menos de vencer.

Se engordamos – por herança genética ou outras razões –, não há um só caminho a seguir, uma única estrada para a luz. Pelo menos acredito que não. Emagrecer não é a única alternativa – seja para atender ao padrão de beleza vigente ou para responder ao modelo de saúde atual. A vida é um pouco mais complexa que isso. E há muitas maneiras de medir sua qualidade – assim como o significado de uma existência plena varia de uma pessoa para outra tanto quanto sua disposição genética para esta ou aquela doença.

Se um dia eu engordar muito e tiver problemas de saúde por causa do peso, possivelmente vou optar por continuar comendo minha feijoada semanal. Porque comer o que gosto é uma dimensão essencial da vida para mim – importante o suficiente para não abrir mão dela. Para outra pessoa, privar-se de seus pratos preferidos pode valer a pena em nome de uma vida mais longa ou de vestir um tamanho 38. Cada um tem suas prioridades. É bom lembrarmos que o pensamento dominante atual sobre a saúde não é apenas um produto do avanço da medicina, mas um produto da cultura. E do mercado.

A “gorda” da peça teatral não quer ser magra. Depois de um percurso sofrido na adolescência, ela gosta do que é. E nós, na plateia, também gostamos. Em determinado momento, percebemos que, se ela reduzir o estômago e fizer uma super dieta, algo essencial dela se perderá. Não é apenas uma questão de arrancar gordura do corpo. O que está em jogo é bem mais do que isso.

“Gorda” nos dá a oportunidade de enxergar mais que um acúmulo de células adiposas em outro ser humano. Ao olhar para Helena, a personagem da Fabiana Karla, nos deparamos também com o tamanho extra-large de nosso preconceito. Mesmo quando embalado em nossas melhores intenções.

(Publicado na Revista Época em 22/03/2010)

Escrivaninha Xerife

Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes

Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar por aqui e pular para outra.

Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.

É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.

Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.

Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos – com uma vara que é sempre meio curta – e os expomos às intempéries do real.

Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.

Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que para os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.

Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que virá.

Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro – e fora de mim – há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em projetos paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.

Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.

Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais cedo ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.

Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma – e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.

Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer.

Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “olha”. Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.

Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.

O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.

Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de mim mesma.

Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.

Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo – e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo –, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.

Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos – e precisávamos – nascer de novo.

Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra comentou: “Se tem alma, não traz para casa!”.

O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.

Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.

O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.

Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo de reinventar minha vida.

Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e a de todos nós.

Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas.

Torçam por mim! (Por nós!)

(Publicado na Revista Época em 01/03/2010)

História de amor no Haiti

O que Jeanette disse a Roger, soterrada pelos escombros do terremoto

Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.

De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros. “Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor. Jeanette tem algo a dizer. O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso!”.

Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar.

Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto.

O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.

Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.

O que você diria se fosse Jeanette?

A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é. Inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.

Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.

Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?

Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente. A vida é para hoje, a vida é para já.

Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.

De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.

Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.*
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Este ano começou com muitas tragédias, aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta. O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.

Um estudo citado por Coutinho, The Death Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para estabilizar e reconstruir o país.

A série de tragédias deste início do ano não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis, começando dentro da nossa casa.

Chove em São Paulo enquanto escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexo imediato do prazer, na hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.

Apenas na madrugada de quinta-feira (21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda bem que temos um governador para nos avisar.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila. E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir, bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem. Por chuva.

Cada um de nós tem sua parcela de responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos, do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o barranco sobre o barraco. Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.

Quando Jeanette me faz pensar sobre o que realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar.

* Se você ainda não assistiu, vale muito a pena testemunhar o resgate de Jeanette.

(Publicado na Revista Época em 25/01/2010)

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