A Igreja do Livro Transformador

O escritor Luiz Ruffato conta como foi salvo pela literatura

Luiz Ruffato costuma contar que é filho não do primeiro, mas do segundo pipoqueiro mais importante da cidade mineira de Cataguases. O primeiro fazia ponto na Praça Ruy Barbosa, perto dos cinemas e bares. Já seu pai assentava o carrinho na Praça Santa Rita, a da igreja. A pipoca ornava mais com o footing do que com a reza, portanto o concorrente faturava mais. A história serve como uma fita métrica capaz de mensurar a lonjura do salto que fez do filho do segundo pipoqueiro mais importante de Cataguases um dos escritores mais interessantes do Brasil de hoje, com vários prêmios e livros traduzidos em países como França, Itália e Portugal. Quase um milagre, num país tão desigual. Mas, como lembra Ruffato, um milagre da Igreja do Livro Transformador.

Desde que ouvi Luiz Ruffato contar sua história, em Paraty no ano passado, que ficava ensaiando o convite para que ele a compartilhasse com vocês aqui nesta coluna. Há escritores cujos livros a gente ama, mas quando os conhece encarnados, são tão arrogantes e mesquinhos que dá nhaca da obra. Por isso, em geral até prefiro não conhecer os autores dos livros que amo para não misturar as almas – e perder os livros que já possuem um pedaço da minha. No caso de Ruffato, o risco não existe. Ele é uma das pessoas mais encantadoras e generosas que já conheci. Encontrá-lo é como chegar em casa.

Nesta entrevista ele nos conta a história de como foi salvo pela literatura. Se fosse uma igreja mesmo, a do livro transformador, seria o que os religiosos chamam de “testemunho”. Mas a literatura nos salva pelo avesso: porque nos enche de perguntas em vez de respostas, nos inquieta, nos dá comichão e insônia, perturba mais que pernilongo e nos transtorna para todo o sempre ao mostrar que o mundo é grande e sempre além. A literatura acaba nos salvando exatamente porque nos põe a perder dos destinos determinados.

No caso de Ruffato, o destino idealizado pelos pais era de que subisse na vida virando operário especializado, o que ele até foi por uns tempos. O que ele vai nos contar aqui é como de entregador, balconista e torneiro mecânico terminou virando jornalista e depois escritor. Por quais caminhos acabou migrando para Juiz de Fora, entre outras paradas, e depois desembarcando em São Paulo, onde chegou a morar na rodoviária do Tietê por um mês. E também vai nos contar por quê. Sim, porque Ruffato só admitia escrever se encontrasse uma boa razão. Uma forte o suficiente para alimentar o homem e a busca.

Ao perseguir seus porquês, ele tornou-se um dos poucos escritores brasileiros a escrever sobre o universo da classe média baixa. Carrega para as páginas da ficção a subjetividade do trabalhador urbano, até então praticamente um exilado da literatura brasileira. E, para contar essa saga, buscou uma forma que pudesse dar conta desses personagens desenraizados, fragmentados no movimento imposto pela sobrevivência.

Eles eram muitos cavalos (Record) é o livro que deu reconhecimento a Ruffato, pelo qual recebeu os prêmios Machado de Assis e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Agora, ele escreve o quinto e último volume da saga que chamou de Inferno Provisório (Record), dos quais quatro já foram publicados: Mamma, son tanto Felice, O mundo inimigo, ambos premiados pela APCA, Vista parcial da noite, pelo qual ganhou um Jabuti, e O livro das impossibilidades.

Dividi sua história em tópicos, para facilitar a leitura. Como nos romances de Ruffato, é possível começar pelo fim ou mesmo pelo meio. E depois ir ao começo. Ou seguir a trajetória mais ou menos linear. Cada leitor descobre seu rumo. Abusei um pouco do fato de a coluna ser minha e marquei as partes que achei mais lindas.

Boa leitura. Espero que você também faça parte desta Igreja!

A bibliotecária que estava lá

“Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto, e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades pela sobrevivência cotidiana.

Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras, até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado…).

Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases, minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem, talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.

E assim foi. Em fevereiro, aos 12 anos, eu, de uniforme novo, estreava a minha timidez nos corredores do Colégio Cataguases. Mas tudo era tão diferente! Até então, eu estudava à noite no Ginásio Comercial Antônio Amaro, uma escola mantida pela comunidade, que nem sede tinha, todo ano alugava o imóvel de uma escola pública para o curso noturno, e trabalhava de dia. Além de ajudante do meu pai, entregava as trouxas de roupa que minha mãe lavava e passava, e já havia sido caixeiro em um botequim.

No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina) e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar tranquilo, silencioso, pouco frequentado… E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca, o meu refúgio.

Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que, por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela. Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias… Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e carreguei para casa.

Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino? Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: Peguei não, pai, foi a moça lá que me deu… Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!

Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude…

Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia (balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado pelo vírus da leitura.”

O livro que foi um abalo sísmico

“Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente. O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo exército alemão em Kiev.

Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia, fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri que o mundo era barbárie e era civilização…

E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão…) eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto, da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam Cataguases, ver o que haveria alhures…”

Comendo sonho e vivendo feijão

“Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe… Por essa época, havia uma novela na televisão, O Feijão e o Sonho, baseada num romance de Orígenes Lessa, que mostrava exatamente a luta de um professor cheio de sonhos e veleidades literárias, envolvido em terríveis dificuldades financeiras e enovelado na mediocridade de uma pequena cidade do interior…

Minha mãe, muito prática, me fez ver que se quisesse alimentar a idéia de um futuro melhor teria de arrumar uma profissão séria – e que não seria evidentemente a de escritor… Assim, entrei para o Senai, onde me formei em tornearia-mecânica, ao mesmo tempo em que fazia um curso noturno de contabilidade. Se no Senai pensava no feijão, à noite um professor, Alcino Antonucci, me desviava para o sonho, orientando as minhas leituras e incentivando meus primeiros passos na escrita.

Finalmente, um pouco antes de completar 17 anos, percebi que teria de cortar os laços com minha cidade, em definitivo. Por essa época, as grandes greves do ABC haviam interrompido o fluxo natural de mão de obra especializada de Cataguases, e os meus colegas de Senai estavam indo trabalhar na Fiat, na região de Belo Horizonte, ou nas grandes siderúrgicas do Vale do Aço mineiro.

Acabei no meio do caminho: parei em Juiz de Fora, onde trabalhava durante o dia como torneiro-mecânico e fazia cursinho à noite visando o vestibular da Universidade Federal. Entrei no curso de Comunicação Social num momento interessante, pois, vivenciando os estertores da ditadura, podíamos conciliar a luta política com as descobertas pessoais. No meu caso, uma formação literária alicerçada pela generosa orientação do poeta e professor Gilvan P. Ribeiro (antes, no cursinho, duas professoras também me incentivaram, Imaculada Reis e Hilda Curcio).

Neste período, além das minhas atividades políticas, participava de grupos de estudos e de um grupo de poetas que editava um folheto quinzenal, Abre-Alas, com apresentações aos sábados de poesia falada e militante na principal rua de Juiz de Fora, o Calçadão da Halfeld.

E lia, lia muito. Lia livros emprestados de amigos, livros de bibliotecas públicas, livros comprados em sebos, lia tudo que me caía nas mãos, mas principalmente a literatura contemporânea, pois estávamos em pleno boom da literatura brasileira e latino-americana.”

Ler para ser arrancado do lugar

“Eu comecei a me interessar por livros, ou melhor, pela leitura, muito cedo. Lembro-me que meu irmão gostava de ler o Jornal do Brasil aos domingos. Era um calhamaço que eu, de bicicleta, ia comprar numa banca do centro da cidade. Eu separava o caderno de Internacional e, deitado na varanda de casa, no calor sáunico de Cataguases, passava a manhã me informando dos rumos da Humanidade…

Junto com o Jornal do Brasil, eu trazia o jornal O Cataguases, que praticamente não tinha notícias, apenas divulgava os atos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário… No entanto, um grupo de escritores da cidade encartava nele um suplemento cultural, o Totem, de literatura… de vanguarda!!! Sim, de vanguarda… Capitaneados por Joaquim Branco e Ronaldo Werneck, difundiam poetas brasileiros e estrangeiros que experimentavam o poema-processo, a arte-postal, o concretismo, o neoconcretismo, o poema-visual… E, mesmo não entendendo absolutamente nada, eu gostava daquilo…

Ou seja: um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental… Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens… Então, desde essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.

Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica – até hoje, às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber… Depois, de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares… Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do meu lugar de conforto, que me transforme.”

De bar em bar, vendendo palavras

“É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos 15 anos, um pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa, não, como seria natural, na poesia…

Minha mãe guardava a pasta de cartolina que enfeixava as páginas datilografadas como um tesouro – isso, muito antes de eu publicar meu primeiro livro, profissionalmente… Em Juiz de Fora, durante o cursinho, ganhei uma bolsa (que me isentava do pagamento das três últimas mensalidades do ano) ao vencer um concurso de contos (o primeiro e o segundo lugares!). Depois, quando entrei para a universidade, animado com o clima de urgência do grupo do qual fazia parte, publiquei meu primeiro livro…

Incentivado por um amigo, prematuramente falecido, José Henrique da Cruz, lancei O homem que tece, poemas, em formato de bolso, rodado em off-set, edição de mil exemplares, esgotado em menos de seis meses… Vendíamos de mão em mão, nos bares da cidade, e com o dinheiro arrecadado pagamos a gráfica e financiamos outros livros da mesma natureza.

Curioso, porque tanto o meu ‘primeiro romance’ quanto o ‘primeiro livro de poemas’ tratam de temas que seriam retomados, décadas mais tarde, no projeto que estou desenvolvendo agora, o Inferno provisório... Depois disso, ainda publiquei outro livro de poemas, Cotidiano do medo, já quando morava em Alfenas, sul de Minas… Esta seria a minha infância literária.”

Rodoviária do Tietê: a primeira casa em São Paulo

“Eu cheguei em São Paulo e, não querendo amolar algumas (poucas) pessoas que conhecia, e não tendo dinheiro para ir para um hotel ou pensão, dormia nos bancos da Rodoviária do Tietê. Isso durou um mês – dormia lá nas noites de segunda a quinta-feira, já que na sexta-feira eu dormia na poltrona de um ônibus em direção a Minas Gerais, onde passava o fim de semana (para renovar as roupas…), e a noite de domingo eu passava dormindo na poltrona de um ônibus, voltando para São Paulo…

Fiz algumas amizades por lá, inclusive com um policial, que, na primeira noite, não queria me deixar dormir dentro do prédio… Eu então expliquei para ele a minha situação e ele, condoído, tomava conta de mim… Eu chegava na rodoviária depois do trabalho, tomava um banho, comia qualquer coisa, e dormia sentado (os bancos da rodoviária, estranhamente, são feitos para provocar desconforto nos passageiros)…”

Em busca de voz própria

“Me calei, não escrevendo uma linha sequer, durante toda a ‘década perdida’ brasileira – que compreende mais de 10 anos, pois vai dos inícios da década de 1980 até meados da década de 1990. Este período foi um momento de maturação. Eu sabia que iria retomar a escritura, mas não me sentia pronto ainda. E assim, sem angústia ou ansiedade, fui tentando compreender por que deveria escrever, sobre o que, e, principalmente, como…

Até que em 1998 lancei Histórias de remorsos e rancores, seguido dois anos depois de (os sobreviventes), ambos coletâneas de contos, que, já ressoando minha voz literária, ainda não me satisfaziam do ponto de visto formal… Estes livros, embora tenham vendido bem, e o segundo tenha até mesmo recebido uma menção especial no Prêmio Casa de las Américas, não serão mais reeditados. Na verdade, foram incorporados, reescritos, ao projeto Inferno Provisório. A minha estréia, propriamente dita, considero Eles eram muitos cavalos, um exercício literário que me fez compreender sobre o que e principalmente como escrever…

Escrever, como ler, tem que ter, para mim, um componente de prazer estético, tem que ser um desafio intelectual. Porque, antes de tudo, escrevo para mim, escrevo histórias que gostaria de ler. Penso que uma história, para convencer o leitor, tem antes, necessariamente, que convencer o autor. Se me convenço de sua necessidade, se o que tento passar me comove esteticamente, talvez eu possa então comover o leitor, porque pode ser que haja ali uma verdade.”

O mundo da classe média baixa

“Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever, como escrever?

Aliás, eu tinha sim uma idéia de sobre o que escrever. Me parecia lógico que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos e toda a sua tragédia.

No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos autores brasileiros haviam se debruçado sobre esse universo, talvez porque o trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou o bandido – personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.

Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem ‘trabalhador urbano’ (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo ex-operário.”

Qual é a forma que dá conta deste mundo?

“Se eu sabia que queria retratar esse universo em meus livros, faltava responder à questão seguinte: como escrever sobre esse tema?

O romance tradicional nasce no Século XVIII como instrumento de descrição da realidade do ponto de vista da burguesia. Ou seja, o romance ideologicamente serve a uma visão de mundo específica. Então, qual seria a forma adequada de representar o ponto de vista da classe média baixa ou do trabalhador urbano?

Eu tentei então me filiar a uma família literária que surge paralelamente ao aparecimento do romance tradicional, que poderíamos chamar de anti-romance, que espasmodicamente construiu uma tradição: Sterne, Xavier de Maistre, Richardson, Dujardin, Machado de Assis, Joyce, Proust, Breton, Faulkner, Robbe-Grillet, Calvino, Pérec… E poderíamos incluir ainda nessa tradição, que chamaríamos de ‘literatura experimental’, contistas como Tchekov, Pirandello, Katherine Mansfield, e poetas como Mallarmé e os vanguardistas do começo do século XX.

Então, em 2001, lancei Eles eram muitos cavalos, nascido da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Publicado, me encontrei num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o ‘agora’, mas talvez necessitasse compreender antes ‘como chegamos onde estamos’.

Comecei a elaborar o Inferno Provisório, uma ‘saga’ projetada para cinco volumes, dos quais quatro já publicados, que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo. Ou seja, pulamos da roça para a periferia decadente urbana sem escalas…

Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. É o entrecruzamento das experiências ‘de fora’ e ‘de dentro’ dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário, etc) na subjetividade dos personagens. Enfim, refletir sobre a interpenetração da Historia com as histórias.

Só que não compreendo uma discussão sobre essa cisão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos do gênero romance. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema, etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade…

Cada volume do Inferno Provisório é composto de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, já que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras.”

Por que escrevo?

“Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever?

Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar.

Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.

Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias.

Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie.

A Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.”

Sem a literatura, só teria restado o destino

“Em algum momento percebi, sem o saber, que meu destino já estava mais ou menos traçado. Meus pais, muito pobres, migraram para Cataguases em busca de uma vida melhor não para eles, mas para os filhos. Minha mãe é filha de imigrantes italianos que foram parar numa colônia no interior de Minas Gerais, na região de Rodeiro, e meu pai, filho de imigrantes portugueses – órfão de pai e de mãe aos dois anos, foi criado por uma família italiana de uma colônia na região de Dona Eusébia.

Eles chegaram sozinhos a Cataguases, sem nada. Mas a cidade, por ser um polo industrial consolidado desde os começos do Século XX, oferecia oportunidades de trabalho e possuía uma razoável infraestrutura educacional para, principalmente, a formação de mão de obra para o parque têxtil. E foi nisso que meus pais apostaram. Logo, minha mãe sustentava a casa com suas lavagens de roupa, enquanto meu pai, de saúde precária, não conseguindo emprego estável nas fábricas, passou a vendedor de pipocas.

O sonho de meus pais, portanto, era que nos formássemos, nos tornando empregados da indústria, ganhando um salário, constituindo família, comprando casa própria e bons eletrodomésticos. Meu irmão se formou no Senai e aos 26 anos era mestre-geral numa das tecelagens da cidade – mas uma morte estúpida encerrou sua carreira quando ela mal começava… Minha irmã, que foi tecelã durante algum tempo, largou a fábrica para se casar – uma atitude muito comum entre as meninas à época – e mais tarde tornou-se funcionária pública municipal, como merendeira escolar. E eu, embora tenha me formado também no Senai, acabei contrariando todo mundo, saindo de Cataguases e me jogando no mundo…

Provavelmente, ou melhor, certamente meu destino, se tivesse permanecido lá, seria hoje estar aposentado como operário especializado, com família, filhos, casa própria e bons eletrodomésticos…”

Primeira leitora: a mãe analfabeta

“A minha relação com Cataguases é estranha. Lá eu nasci e vivi até meus 16 anos. Depois disso, voltei apenas como visitante esporádico. Quando meus pais eram vivos, gostava de me entocar na casa deles, num bairro operário da periferia da cidade, e passava as horas conversando com minha mãe, uma mulher de uma visão de mundo inacreditavelmente complexa, compreensiva e reflexiva. Infelizmente, ela morreu em 2001, pouco depois do lançamento de Eles eram muitos cavalos, livro que, de certa forma, projetou meu nome.

Não tive, portanto, a felicidade de demonstrar que todo o sacrifício que ela fez pelos filhos, e por mim, especificamente, tinha redundado em alguma coisa… Eu me lembro que quando escrevi aquele que considero meu primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores, eu o li inteiro para ela, ainda antes da edição, para ver se ela o aprovava… E sua reação foi fantástica: ela se emocionou com as histórias, reconheceu o que havia ali de fabulação biográfica e me disse: Tenho um grande orgulho de você, meu filho. Aquilo serviu para que eu tomasse pé e acreditasse que estava no bom caminho…

Depois, li também os originais do meu segundo livro, (os sobreviventes), e de novo ela se emocionou profundamente. O Eles eram muitos cavalos, embora tenha sido iniciado (digamos assim, ‘mentalmente construído’) durante as férias de 2000 na casa dos meus pais, eu não o pude ler para ela. No carnaval de 2001 descobrimos que ela estava com um câncer fulminante – daquele mês até novembro, quando ela morreu, eu fui a Cataguases todos os fins de semana que não trabalhava no jornal, viajava 1,2 mil quilômetros, ida e volta. Saía de São Paulo na sexta-feira à noite e chegava de volta na segunda-feira pela manhã. Acompanhei de perto seus últimos meses…

Meu pai morreu pouco depois, em 2003. Restou em Cataguases apenas a família da minha irmã.”

Voltar é possível? A terra depois da partida

“A minha solidão, nesse sentido, existe desde sempre. Em Cataguases éramos estrangeiros – inclusive porque lá nunca houve uma colônia de italianos, como em outros lugares da região. Não pertencíamos à cidade e as minhas férias, por exemplo, as grandes (de dezembro a fevereiro) e as pequenas (de julho), eu passava na roça, na fazendola do meu avô, em Rodeiro, à época já dividida entre vários irmãos. Depois, fui para Juiz de Fora, Alfenas e, finalmente, São Paulo (passando, rapidamente, por Vitória e Rio de Janeiro).

Eu brinco que sou o exemplo típico daquele ditado: não tem onde cair morto… Porque não pertenço a lugar algum. Não sou de São Paulo (onde sempre serei considerado alguém ‘de fora’), não sou de Alfenas, nem de Juiz de Fora, nem de Cataguases, mas também não sou de Rodeiro nem de Ubá… Quando morrer, não sei onde serei enterrado… Talvez venha daí a temática mais presente em minha literatura: o desenraizamento, o despertencimento, a solidão e a perplexidade de não ter um lugar…

Sem bloqueio artístico

“Eu encaro o fato de ser escritor como uma profissão. Então, todos os dias, acordo às seis da manhã, tomo café, leio o jornal, e mais ou menos às sete, sete e meia, sento-me ao computador e começo a trabalhar. Vou nessa toada até meio-dia, mais ou menos. Quando estou em viagem, geralmente por conta de palestras, participação em feiras e festivais literários, não escrevo. A essa rotina me dedico apenas quando estou em São Paulo. Porque, para mim, são dois momentos diferentes, embora complementares, da minha atividade literária. Essa, a da solidão da escrita; e aquela, da divulgação dos meus livros.

Havia, e ainda há, certa prevenção das pessoas contra o fato de eu assumir que trabalho com rotinas, metas e prazos, porque, afinal, argumentam, não se trata de um trabalho mecânico, e sim artístico… Ora, acredito que essa visão seja equivocada, porque não há contradição entre disciplina e arte. Grandes artistas plásticos (Da Vinci, por exemplo) e compositores eruditos (Bach, por exemplo) trabalhavam sob encomenda, com prazos pré-fixados e salários no fim do mês… E nem por isso podemos acusá-los de serem menos importantes…

Portanto, nunca tive problemas como ‘falta de inspiração’ ou ‘bloqueio artístico’, porque planejo com bastante antecedência o meu trabalho. Quanto a aproveitar ou não tudo que escrevo… Sentar todos os dias, rotineiramente, para escrever não significa chegar ao fim de quatro, cinco horas de trabalho com algo que preste. Significa apenas isso: sentar quatro, cinco horas em frente ao computador e trabalhar, trabalhar e trabalhar… O resultado muitas vezes é nada… Talvez seja apenas isso que diferencie o trabalho intelectual: ele não pode ser mensurado pragmaticamente, tantas horas trabalhadas, tantas páginas produzidas… A aferição de competência se dá em um outro paradigma.”

O bafo constante da morte

“É estranho, porque, embora tenha consciência de que o homem constrói sua vida sabendo que tem um prazo de validade, penso que, ao mesmo tempo, e talvez exatamente por isso, a existência só faz sentido se for uma busca pela felicidade – não hedonista, mas ética. Gosto de pensar que, ao fim e ao cabo, poderei olhar para trás e me orgulhar do que fiz por mim, pela minha família, pelos meus filhos, pelos meus amigos e até mesmo pelas pessoas desconhecidas.

Essa perspectiva talvez relativize um pouco a dor da perda. Mas essa questão para mim surge sempre de uma forma muito dúbia, porque também percebo claramente que existe uma espécie de visão trágica permeando minha formação. Venho de uma comunidade italiana que, embora professasse (professe) um catolicismo militante, quase carola, sempre estranhamente vivenciou a morte não como uma passagem para a vida eterna, mas como um rompimento injusto com a vida…

E não porque percebesse a vida como um reduto de alegrias – porque na verdade a entende mais como um fardo ao qual nos resignamos. Esse paradoxo teológico-filosófico irresolvível está presente na minha vida, nas minhas histórias.”

A Igreja do Livro Transformador

“A literatura me arrancou da alienação, da ignorância, da falta de perspectivas. Me mostrou que somos seres para a morte e que nós temos que buscar, neste curto intervalo que é a vida, a felicidade. E para isso temos que nos projetar no mundo, nos lançar, nos afastarmos da poltrona do comodismo, da conformidade, para nos proporcionar um sentido.

Esta é a proposta da Igreja do Livro Transformador, que tem como mentores eu e o Rogério Pereira, editor do Rascunho, que experimentou mais ou menos a mesma história de salvação pela literatura. Se depender de mim, a Igreja já será uma realidade ainda este ano… (risos)”

P.S. – Se você quiser, conte aqui a sua história de transformação pela literatura, seja ela um tsunami de alma ou uma ferroada de mosquito. Uma pequena descoberta, uma sensação nova ao ler um determinado livro ou mesmo um sonho.

(Publicado na Revista Época em 31/01/2011)

Na pele do outro

Como compreender o mal numa cena de shopping

O cotidiano parece se repetir conforme o previsto até que você é empalado por uma cena. Eu saía da loja de um shopping de São Paulo, na tarde de sábado, quando ele passou por mim. Não sei se era a forma como o ar se deslocava de outro jeito ao redor dele, mas eu ainda não o tinha visto e minhas mãos já se estendiam no ar para ampará-lo. Ou talvez fosse só impressão minha, uma vontade estancada antes do movimento. Era um homem velho. Mas mais do que velho, era um homem doente. Cada um dos seus passos se dava por uma coragem tão grande, porque até o pé aterrissar no chão me parecia que ele podia retroceder ou cair. Mas ele avançava. E porque ele avançava na minha frente eu pude ver aquilo que outras partes de mim já haviam percebido antes. Sobre a sua cabeça havia uma peruca tão falsa que servia apenas para revelar aquilo que ele pretendia esconder. E de uma cor tão diferente do seu cabelo branco que parecia descuido de quem o amava ou não amava. Aquilo doía porque havia uma vaidade nele, a preocupação de ocultar a nudez da cabeça. E a peruca mal feita a expunha como um fracasso. A cada um de seus passos de epopeia sua camisa subia revelando um largo pedaço da fralda geriátrica. E assim ele avançava como uma denúncia claudicante da fragilidade de todos nós. Atravessando o corredor do shopping, lugar onde fingimos poder comprar tudo o que nos falta, consumidos pelo medo dessa vida que já começa nos garantindo apenas o fim.

Eu o seguia nesse balé sem coreografia quando ouvi os risinhos. Olhei ao redor e vi as pessoas se cutucando. Olha lá. Olha lá que engraçado. Ele tinha virado piada. Aquele homem desconhecido deixara a sua casa e atravessava o shopping. Para isso empreendera seus melhores esforços. Tinha vestido a peruca para que não percebessem sua calvície. Tinha colocado a fralda para não se urinar no meio do corredor. E caminhava podendo cair a cada passo. E as pessoas ao seu redor riam. E por um momento temi uma cena de filme, quando de repente todos começam a gargalhar e há apenas o homem em silêncio. O homem que não compreende. Até enxergar seu reflexo no olhar que o outro lhe devolve e ser aniquilado porque tudo o que veem nele não é um homem tentando viver, mas uma chance de garantir sua superioridade e sua diferença.

Quando entrevisto algum escritor costumo perguntar: por que você escreve? Alguns me respondem que escrevem para não matar. Eu também escrevo para não matar. Acho que na maior parte das vezes a gente escreve, pinta, cozinha, compõe, costura, cria, enfim, porque não sabe o que fazer com as pessoas que riem enquanto alguém tenta atravessar o corredor do shopping sem ter forças para atravessar o corredor do shopping.

O que me horroriza, mais do que os grandes massacres estampados no noticiário, são essas pequenas maldades do cotidiano. E só consigo compreender os grandes massacres a partir dos pequenos massacres de todo dia. Os risinhos e dedos que apontam, os cotovelos que se cutucam.

Quem pratica os massacres miúdos do dia a dia é gente que se acha do bem, que não cometeu nenhum delito, que vai trabalhar de manhã e dá presente de Natal. Gente com quem você pode conversar sobre o tempo enquanto espera o ônibus, que trabalha ao seu lado ou bem perto de você, e às vezes até lhe empresta o creme dental no banheiro. É destes que eu tenho mais medo, é com estes que eu não sei lidar.

Entrevistei muitos assassinos sem sobressalto, porque estava tudo ali, explícito. Era uma quebra. O que me parece mais difícil é lidar com o mal rotineiro e persistente, difícil de combater porque camuflado. O mal praticado com afinco pelos pequenos assassinos do cotidiano que nenhuma lei enquadra. E quando você os confronta, esboçam uma cara de espanto.

O pequeno mal está por toda parte. Possivelmente sempre esteve. Apenas que cada época tem suas peculiaridades. E na nossa somos cegados o tempo inteiro por imagens que nos chegam por telas de todos os tamanhos. E cada vez mais escolhemos as cenas que veremos, com quais nosso cérebro decidirá se comover. E as dividimos com os amigos no twitter, enviamos por email e parece até que há uma competição sobre quem consegue enviar mais rápido as imagens mais impactantes. Mas não sei se isso é ver. Não sei se isso nos coloca em contato de verdade.

Penso nisso porque acho que o mundo seria melhor – e a vida doeria um pouco menos – se cada um se esforçasse para vestir a pele do outro antes de rir, apontar e cutucar o colega para que não perca a chance de desprezar um outro, em geral mais vulnerável. Antes de julgar e de condenar. Antes de se achar melhor, mais esperto e mais inteligente. Vestir a pele do outro no minuto anterior ao salto na jugular.

Para mim é imediato me colocar na pele do homem que atravessa o corredor sem saber se vai chegar até o fim sem tombar. Mas é mais difícil me enfiar na pele das pessoas que riem, porque sinto raiva. E tenho a pretensão de não ter nada a ver com gente assim. Incorro então no mesmo erro, ao me pretender tão diferente daquele que me horroriza. É certo então que também eu cometi e cometo meus pecados de soberba. Por coerência – e eu valorizo a coerência – preciso me forçar. E eu me forço porque acredito nesse ato.

Quais são as razões delas, então? Por que ao testemunhar o homem que atravessa o shopping em passos trôpegos elas riem, se cutucam e apontam? Fiquei pensando se estas pessoas estão tão cegas pela avalanche de cenas em tempo real que para elas é apenas uma imagem da qual podem se descolar. É só mais uma cena que, como tantas a que assistimos todos os dias, não sabemos mais se é realidade ou ficção. Não é que não sabemos, apenas que parece que não importa, agora que os limites estão distendidos. Por que apenas assistimos às cenas – não as vemos nem entramos em contato.

E é esta a grande diferença num mundo de tanta visibilidade e tão pouco contato real. E o real aqui não é uma oposição entre o real e o virtual, mas o real real. Eu vejo você, eu toco em você, eu sinto a sua dor e me sujo com o seu sangue, ainda que seja pelo computador. É um jeito de estar no mundo e se relacionar com o outro disposto a se deixar tocar e a assumir os riscos de se deixar tocar. Me parece que estamos cada vez menos dispostos a isso – apesar de termos uma possibilidade grandiosa de acesso ao outro por conta da internet. Será que é isso? Dezenas de amigos no facebook e nenhum contato real, no sentido de se deixar transtornar e transformar pelo outro, para além das amenidades e da persistente troca de informações?

Será que era por isso que podiam rir? Por que não tinham nenhuma conexão com aquele outro ser humano? É curioso que agora o verbo conectar é mais usado para nos ligarmos a uma máquina que nos leva instantaneamente para a vida dos outros. Pela primeira vez somos capazes de nos conectar ao mundo inteiro. O que é mais fácil do que se conectar a uma só pessoa – ao homem doente que atravessa o corredor do shopping diante de nós. É curioso como agora podemos nos conectar – para nos desconectarmos.

E se, ao contrário, riam porque se sentiam tão conectadas a ele que precisavam rir para suportar? Pensei então que talvez pudesse ser esta a razão. Aquelas pessoas realmente enxergavam aquele homem – e por enxergar é que precisavam rir, se cutucar e apontar. Porque a fragilidade dele também é a delas, a de cada um de nós.

Nada nos garante que em algum momento da vida não estaremos nós também tentando atravessar o corredor do shopping por onde hoje caminhamos sem sentir. Nada nos assegura de que um dia não seremos nós a quase cair a cada passo. Se tivermos sorte e não morrermos de bala perdida ou de chuva, como afirmar que não usaremos fralda geriátrica ou tentaremos cobrir nossa calvície ou as marcas de uma quimioterapia com uma peruca que apenas denuncia aquilo que queríamos esconder?

Talvez seja esta a razão, pensei. Essas pessoas precisaram rir, cutucar e apontar para ter a certeza – momentânea e ilusória – de que ele não era elas. Não seria nunca. Só apontamos para o outro, para o diferente, para aquele que não somos nós. E quando apontamos para alguém é justamente para denunciar que ela não é como nós.

Neste caso, teria sido para se certificar. Elas diziam: Olha que peruca ridícula. Ou: Você viu que ele está de fralda? Mas na verdade estavam dizendo: O que acontece com ele nunca acontecerá comigo. Ou: Ele não tem nada a ver comigo. Por que deixam gente assim entrar num shopping?

Riam, cutucavam e apontavam por medo do que viam nele – de si mesmas.

São hipóteses, apenas. Uma tentativa de entender – de pensar e escrever em vez de responder com violência à violência que presenciei. E que me aniquila tanto quanto um massacre reconhecido no noticiário como massacre.

Talvez não seja nada disso. No Natal minha filha me deu de presente uma camiseta em que a Mafalda, a personagem do cartunista argentino Quino, dizia: “E não é que neste mundo tem cada vez mais gente e cada vez menos pessoas?”. Talvez ali, no corredor do shopping, não fossem pessoas – só gente. Porque nascemos gente – mas só nos tornamos pessoas se fizermos o movimento.

(Publicado na Revista Época em 17/01/2011)

Uma família no governo Lula

Durante nove anos, a família Costa Pereira, da periferia de São Paulo, deixou a pobreza para ingressar na “nova classe média”. Sua trajetória nos ajuda a compreender os avanços e as contradições do Brasil durante o período

NA SALA COM A CLASSE C No governo Lula, a família Costa Pereira descobriu como é bom consumir. A TV de tela plana é a estrela da casa, seguida de perto pelo computador e pelo PlayStation 3. No centro, Estela e Hustene, de camisa do Corinthians; Rodrigo, em pé, com a filha Gabriely; Diego e Jade agachados, na frente; Amanda com a filha Rafaela no colo (FOTOS:  Lilo Clareto)

NA SALA COM A CLASSE C
No governo Lula, a família Costa Pereira descobriu como é bom consumir. A TV de tela plana é a estrela da casa, seguida de perto pelo computador e pelo PlayStation 3. No centro, Estela e Hustene, de camisa do Corinthians; Rodrigo, em pé, com a filha Gabriely; Diego e Jade agachados, na frente; Amanda com a filha Rafaela no colo (FOTOS: Lilo Clareto)

Os pilares da sua vida cabiam em três quadros na parede da sala. Corinthians, Nossa Senhora de Fátima e Che Guevara. Futebol, religião e ideologia. Era essa a trindade que sustentava Hustene Pereira no início do ano de 2002. No começo de 2011, a conformação é outra. Che Guevara foi banido da sala. Sua cara barbuda foi trocada por uma paisagem. Nossa Senhora de Fátima mora agora numa parede lateral. Não porque a religião tenha perdido importância, mas por uma decisão estética da família. Em seu lugar, há um anjo comprado como lembrança de viagem pelo filho caçula. Ao longo do governo Lula, a parede principal foi sendo tomada por símbolos ligados à classe média. Apenas o Corinthians permanece – irredutível.

A mudança dos símbolos na parede conta a trajetória da família Costa Pereira no governo Lula. E a família Costa Pereira nos ajuda a compreender a complexidade do Brasil nesse período. Na companhia de cerca de 30 milhões de brasileiros, ela deixou a pobreza e ingressou na grande novidade socioeconômica da história recente do país, objeto de estudo de sociólogos e economistas e também de publicitários e marqueteiros: a classe C. “Agora nós somos da nova classe média!”, diz Hustene. Surpreso, mas também orgulhoso. Segundo a Fundação Getulio Vargas, há hoje 95 milhões de brasileiros com renda familiar entre R$ 1.126 e R$ 4.854 por mês. Pela primeira vez, a classe C é maioria no país. Sozinha, pode eleger um presidente.

No geral, a família Costa Pereira representa essa fatia da população que mudou de classe nos últimos anos. No particular, só representa a si mesma. Em sua casa na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, Che Guevara foi perdendo espaço na medida em que a família ampliou seu acesso aos bens de consumo. Hoje, a classe C lidera os gastos com eletrodomésticos e eletrônicos no país. A família Costa Pereira faz sua parte: desembolsa R$ 653 por mês no pagamento de prestações. Hustene bem que resistiu ao desterro de Che, mas a mulher, Estela Costa, e os filhos não queriam mais saber de um “guerrilheiro” na parede da sala. “A gente queria algo mais relaxante”, diz Estela. Como os milhões de brasileiros que fizeram a mesma transição nos últimos anos, os integrantes da família Costa Pereira descobriram com um presidente operário que o capitalismo pode ser bom.

No início de 2002, Hustene foi o personagem central de uma reportagem cujo título era “O Homem-Estatística”. Desde então, tenho acompanhado a trajetória de sua família ao longo dos últimos nove anos. Quando o conheci, ele encarnava os números de um momento difícil para o Brasil. Apesar do controle da inflação, o desemprego tinha grande impacto entre os brasileiros urbanos da periferia das grandes cidades. Filas de centenas de pessoas se formavam para uma vaga em geral abaixo de suas qualificações. O tempo de procura por trabalho aumentara, assim como a informalidade. A renda e os benefícios de quem tinha um emprego encolheram.

Hustene era um dos brasileiros que sentiam o chão tremer debaixo do único par de sapatos, sem encontrar sentido nas explicações dos economistas. Em 2002, descobriu que era um dos “excluídos” – termo repetido à exaustão nos discursos, na imprensa e nas ruas na virada do milênio. Vale a pena lembrar a evolução da terminologia na história recente do país. Houve os “descamisados” de Fernando Collor de Mello, no início dos 90. Depois os “excluídos”, com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. E hoje, ainda que continuemos a falar nos mais pobres, o termo que se popularizou no período de Luiz Inácio Lula da Silva é a classe C ou “nova classe média”.

Em fevereiro de 2002, Hustene completara quatro meses de desemprego. Desde que havia começado a trabalhar, aos 14 anos, pela primeira vez percebia que não conseguiria um novo posto tão cedo. Qual era sua história até aquele momento? Nos anos 60, migrara com o pai e o avô do Rio Grande do Norte para São Paulo, numa trajetória semelhante à de Lula em muitos aspectos. O pai tinha sido metalúrgico no ABC paulista, com Lula na liderança do sindicato. Hustene havia estudado até a 7a série, mais do que o pai. Deixara o chão de fábrica para trabalhar no escritório da indústria. Até perder o emprego, era o Pereira com menos calos nas mãos.

Encontrei Hustene no momento da queda. Aquele instante em que um homem sente as unhas escorregando da borda do abismo. Percebe que não vai conseguir trabalho tão cedo, as contas se acumulam, o essencial é cortado. O projeto familiar começou a ruir quando os filhos mais velhos transferiram a escola para o período noturno para pegar bicos durante o dia. Hustene, nas palavras dele, se sentia “traí¬do” pelo país. Ao mesmo tempo, sentia que traía os filhos ao se tornar incapaz de cumprir sua parte no pacto familiar.

A família de Hustene sentia falta não do feijão – mas do “danoninho, das bolachas recheadas, das fraldas descartáveis”. Das pequenas conquistas de consumo a que tiveram acesso quando Hustene estava empregado. Eles não encarnavam as páginas de Graciliano Ramos, como seus antepassados que fugiram da seca, mas uma literatura que ainda estava por ser escrita, a dos filhos do desemprego urbano e industrial. Hustene, que até então se orgulhara de sua datilografia e escrituração fiscal, deparava com a exigência de informática. Nem ele nem os filhos conheciam computador. Hustene assim expressava seu sentimento de exclusão: “Quero que um disco voador venha me tirar daqui”.

A TROCA DOS SÍMBOLOS Em 2003, na foto da esquerda, Hustene Pereira era sustentado por uma trindade: Corinthians, Che Guevara e Nossa Senhora de Fátima. Futebol, ideologia e religião. Com a mudança de classe, Che foi trocado por uma paisagem e Nossa Senhora de Fátima por um anjo. Apenas o Corinthians resiste

A TROCA DOS SÍMBOLOS
Em 2003, na foto da esquerda, Hustene Pereira era sustentado por uma trindade: Corinthians, Che Guevara e Nossa Senhora de Fátima. Futebol, ideologia e religião. Com a mudança de classe, Che foi trocado por uma paisagem e Nossa Senhora de Fátima por um anjo. Apenas o Corinthians resiste

Naquele período, Hustene perdeu 30 dos 32 dentes da boca. Um após o outro. “Olha, Estela, caiu mais um”, dizia para a mulher ao acordar pela manhã e descobrir-se num pesadelo recorrente. Logo cedo, enfiava sua melhor camisa, seu sapato “social” e partia em busca de uma vaga – a pé, porque não tinha dinheiro para o ônibus. Voltava de cabeça baixa, ombros caídos. Em casa, se escondia. Tinha vergonha de que os vizinhos o vissem durante o dia. “Vão pensar que sou vagabundo.” À noite, debruçava-se sobre o terraço inconcluso, até o primeiro trabalhador passar a caminho do ponto de ônibus. Então, voltava a se esconder, vítima de um tipo novo de maldição.

Na campanha presidencial de 2002, Hustene raspou o fundo da alma e tirou de lá um resto de esperança. Gravou as promessas de Lula em velhas fitas VHS. Mas o primeiro ano de governo foi para ele uma decepção. Sobrevivia apenas com bicos. Diego, o filho mais novo, ajudava no sustento descarregando galões de água por R$ 15 por semana. Rodrigo, o mais velho, trabalhava como mecânico sem registro. Amanda terminava o ensino médio e procurava o primeiro emprego. Mas a exigência de experiência em todas as portas nas quais batia a lançava num limbo. Jade, a caçula, ainda era criança.Viviam em seis numa casa inacabada de sala, cozinha, quarto e banheiro, erguida num terreno deixado pelo pai de Hustene ao morrer.

Hustene identificava-se com Lula. O presidente tinha sido metalúrgico como seu pai. Era corintiano como ele. Nordestino e migrante como ambos. Por coincidência, Lula e Hustene padeceram no início do governo com uma bursite no ombro direito. Com uma diferença: a de Lula foi tratada por bons médicos – e Hustene não conseguia tratamento para a sua. O trabalho braçal só piorava a inflamação. Até hoje Hustene passa noites sem dormir por causa das dores provocadas pela bursite, mas já desistiu de encontrar alívio.

Ao final do primeiro ano de governo, em 2003, Hustene trancou-se no quarto por seis horas. Estava revisando as promessas de Lula. Escreveu uma carta de quatro páginas endereçada ao presidente. Nela, reclamou do desemprego que jogava gente como ele na margem, acusou o Fome Zero de ter atolado no marketing e sugeriu a Lula que viajasse menos para o exterior, porque os problemas do país estavam bem aqui. “Essa conversa de que pegou o país endividado, precisa de mais quatro, oito anos, eu ouvi dos outros. Dele, não posso ouvir”, disse. Assim mesmo, despediu-se com “um forte abraço ao amigo Lula”.
Para avaliar o primeiro ano de governo, Hustene usou aquela que se tornaria a marca de Lula ao falar com o povo: uma metáfora de futebol.“Lula e o Corinthians empataram em 2003. Jogaram para não cair.” Perdoou a ambos. Perder a esperança tanto num como noutro lhe custaria mais do que poderia pagar naquele momento. Só esperava que, ao final do governo, não lhe dessem para a vida a solução que o médico do SUS deu para a bursite: “Não tem cura. Só nascendo de novo”.

Hustene só voltou a conseguir emprego em maio de 2005, no terceiro ano do governo Lula. Enquanto esteve desempregado, fez supletivo e terminou o ensino fundamental. Faltou apenas uma última prova para se formar no ensino médio. Nos três anos e sete meses de desemprego, só não perdeu a lucidez porque tinha em Estela um amor de delicadezas que sobrevivia não só à perda dos dentes, mas à de um mundo inteiro. E tinha o Corinthians. Desde 1974, Hustene monta álbuns dos vários campeonatos de que o clube participa. Toda a vida do Timão está lá, contada em recortes de jornais, frases criativas e layout próprio. Um testemunho que talvez um dia seja exibido no Museu do Corinthians, uma paixão que a vizinhança admira e acompanha. Quando Hustene foi engolido pelo desemprego, o jornaleiro não titubeou: vendeu fiado.

Naquela época, Hustene escrevia e desenhava furiosamente. Ele é um homem que se conta – e esta narrativa é parte do que s torna a história da família tão rica. Desde que fez uma promessa para salvar Diego, desenganado pelos médicos ao nascer, Hustene escreve um diário a Nossa Senhora de Fátima. Nas páginas, sua história se confunde com a do país: “As coisas estão tão difíceis (no Brasil) que não sabemos mais o que fazer. Estou ainda desempregado. Esta palavra causa medo, vergonha e incrimina qualquer pessoa do bem”.

Nos anos em que a miséria entrava pelas frestas da porta como água de enchente, aprendi com Hustene como a honestidade é dura para os mais pobres. Algumas vezes, a família ficou sem água e sem luz por falta de pagamento. Nunca fez um “gato”. Numa ocasião, Estela atravessou São Paulo até a sede do Serviço de Proteção ao Crédito apenas para corrigir seu nome. Tinha recebido uma carta na qual constava “Estelita”. Esclareceu no balcão que quem devia era ela, Estela. Quando o desespero lhe comia por dentro, Hustene levantava o queixo: “Estou desempregado, mas não fico bebendo no boteco. Não bato na mulher e nos filhos. Minha família só tem feijão para comer, mas nunca precisei visitar um filho na prisão nem vi um filho drogado”. Essas palavras o mantinham em pé. Constituíam um princípio. E faziam sentido quando todo o resto virava fumaça. Faziam sentido, mesmo quando no Natal não tiveram feijão – apenas farinha com cebola.
A forma como Hustene decodifica o Brasil é muito particular. Ele não tolera os programas sociais que dão aos mais pobres cesta básica, gás ou leite. Para ele é “esmola do governo”. Nunca cogitou se inscrever no Bolsa Família. “Um homem quer levantar de manhã, pegar um ônibus para o trabalho e pagar as suas contas. Isso é dignidade”, afirma. Os filhos seguem a mesma cartilha. Dão apoio quase incondicional a Lula, mas consideram o Bolsa Família uma “humilhação”.

Por tudo o que é, Hustene só voltou a sentir-se inteiro ao conseguir emprego. Em maio de 2005, tornou-se funcionário de uma empresa de segurança. Ocupava seu posto na recepção de uma indústria farmacêutica. Um dia chamou a atenção da direção ao atender o telefonema de um cliente americano e improvisar uma língua em que os dois se entenderam. Ganhou uma identidade: “Porteiro Pereira”. Partia às 4 horas de casa e voltava para dormir. Ganhava salário mínimo e nenhum benefício. Mas tinha algo que para ele e para os brasileiros pobres sempre foi essencial: registro na carteira de trabalho. O “Porteiro Pereira” era um homem feliz.

A VIDA COMO ELA FINALMENTE É A família mede a ascensão social pela comida. No passado, sobreviveu com refeições de arroz com limão. Hoje come carne todos os dias. Na foto maior, o almoço de domingo. Na menor, Jade estuda para o vestibular com a ajuda do computador, sob o olhar severo de Che Guevara – “um bicho feio demais”

A VIDA COMO ELA FINALMENTE É
A família mede a ascensão social pela comida. No passado, sobreviveu com refeições de arroz com limão. Hoje come carne todos os dias. Na foto maior, o almoço de domingo. Na menor, Jade estuda para o vestibular com a ajuda do computador, sob o olhar severo de Che Guevara – “um bicho feio demais”

Em 2006, último ano do primeiro mandato de Lula, Hustene continuava decepcionado com o governo. Naquele momento, revoltava-se com as denúncias de corrupção. Quando o Corinthians jogava mal, Hustene sofria, mas mantinha seu amor pelo time intacto. Na mesma lógica, conseguia perdoar um governo Lula aquém de seus sonhos, mas o “mensalão” travava em sua garganta. Pensou em anular o voto no primeiro turno. Acabou decidindo dar mais uma chance a Lula. Naquela época como hoje, Hustene atribui as falhas do governo aos assessores – nunca ao presidente. Até o final do segundo mandato, ele só não conseguiu encontrar justificativas para os abraços de Lula em José Sarney e Fernando Collor.

Hustene votou em Lula no primeiro turno. E teria ajudado a reelegê-lo, não fosse ter sofrido um derrame por falta de assistência médica. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2006, Hustene sentiu-se mal, sua pressão arterial subiu. Estava exaurido por uma jornada diária de 12 horas, sem folgas, nos 70 dias anteriores. No posto de saúde, o médico garantiu que era “só” uma crise de diabetes. Despachou-o para casa. Ao chegar, Hustene sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Perdeu os movimentos do lado esquerdo do corpo. Só voltaria a andar em 2008.

Nunca mais pôde trabalhar. Seu quadro se agravou pela deficiência da rede pública de saúde. Em 2009, Hustene teve um segundo derrame. Neste, apagou-se nele o dom do desenho. Desde então, cada incursão ao médico é uma experiência de degradação. Hustene espera em média seis meses por uma consulta. Quando chega sua vez, é atendido em minutos. O médico pede que faça exames. Ele leva mais seis meses para conseguir realizá-los, fechando o ciclo de um ano. Quando tem nova consulta, outros seis meses depois, os exames estão defasados, e o ciclo recomeça. Enquanto isso, recebe o auxílio-doença e vai tomando os remédios de sempre.

Nas últimas eleições, Estela conseguiu medicamentos em falta na rede pública graças a um candidato que fez do comitê uma farmácia para eleitores desesperados. Perguntei se votariam naquele deputado nas eleições. Estela respondeu: “Claro que não!”. Hustene passou dias pesquisando na internet para escolher seus candidatos. Votou pelo projeto. Os escolhidos pertenciam a quatro partidos diferentes.
Em 2009, Hustene descobriu que tinha uma doença grave e degenerativa nos olhos. Precisava fazer exames para avaliar a progressão e definir o tratamento. Ao comparecer à consulta, a médica estava de férias e não havia substituto. Quando finalmente foi atendido, um mês mais tarde, ela disse que estava curado. Ele não se sente curado – e a doença não é do tipo que se cura sozinha. Não sabe o que fazer, então reza. Espera o ano começar para tentar uma nova avaliação.

Hustene já perdeu muito – e não alcança como viverá sem seus olhos. Como poderá inventar uma vida sem ver os lances do Corinthians, contar suas pequenas aventuras no diário a Nossa Senhora ou apenas olhar dentro dos olhos de Estela e ter certeza de que existe. Um dia me perguntou como poderia fazer para aprender braile. Há anos Hustene vem pagando a deficiência do SUS com nacos do seu corpo. Tem 51 anos.

Para Hustene, a saúde pública era ruim antes. E atravessou o governo Lula ruim. Mesmo assim, Hustene, Estela e os quatro filhos votaram na candidata de Lula. Eles não conheciam Dilma Rousseff e não simpatizaram com o que viram dela nos debates e na propaganda eleitoral. Acreditavam que, por ter sido guerrilheira na ditadura, ela poderia ter problemas para representar o Brasil no exterior. Perguntei a Hustene por que, então, votaram em Dilma. Ele respondeu: “Porque Lula indicou”.

Era claramente um voto pragmático. Votaram em Dilma por concluir que sua vida no governo Lula melhorou. E queriam que continuasse melhorando. Têm números para justificar seu voto. Fazem contas. E as contas da família Costa Pereira são simples: em janeiro de 2003, depois de dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a renda familiar girava em torno de R$ 700 por mês, em geral menos, às vezes mais; em janeiro de 2011, depois de oito anos do governo Lula, a renda familiar será de quase R$ 4 mil, mais alta que na época da eleição. Em dezembro, um dos filhos foi promovido, e o outro conseguiu um emprego melhor.

Estela, que nos tempos da pobreza às vezes só botava na mesa arroz com limão, explica o que significa o aumento de renda: “Para nós, que somos pobres, o importante é comer bem. E, pela primeira vez, a gente come bem”. Pode parecer pouco para quem nunca passou fome. Mas é enorme para quem já passou. No final de cada mês, Estela peregrina pelos supermercados da região em busca das melhores promoções. Nunca compra tudo de que precisa num só. Compra vários tipos de carne, o suficiente para encher o congelador da nova geladeira dúplex. Estela não tem dinheiro para picanha ou filé, mas sua família agora come carne todo dia. Em setembro de 2010, ela encontrou uma promoção de camarão e serviu um almoço de domingo especial. Como nunca havia preparado camarão, descobriu que o quilo encolhia depois de tirar a casca só na hora de preparar o prato. Encontrar um camarão no arroz virou uma gincana. Mas a família Costa Pereira comeu camarão naquele domingo.

NOVOS ENREDOS Entre as mudanças, a família fala da possibilidade de sonhar depois de uma vida limitada à sobrevivência. Na foto maior, Estela e Gabriely no supermercado; acima, Diego no horário de almoço do trabalho no condomínio de Alphaville; à esquerda, Amanda na universidade privada onde termina o curso de enfermagem

NOVOS ENREDOS
Entre as mudanças, a família fala da possibilidade de sonhar depois de uma vida limitada à sobrevivência. Na foto maior, Estela e Gabriely no supermercado; acima, Diego no horário de almoço do trabalho no condomínio de Alphaville; à esquerda, Amanda na universidade privada onde termina o curso de enfermagem

Acima da Bíblia e de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, os armários da cozinha estão lotados de produtos industrializados. Enquanto os mais ricos buscam artigos naturais e orgânicos e defendem o consumo consciente, preocupados com as taxas de colesterol e com o meio ambiente, famílias como a de Hustene e Estela pela primeira vez têm acesso amplo às prateleiras. E o que querem é consumir o máximo possível. Não porque não se preocupem com o meio ambiente, mas porque só agora podem consumir. Quando Hustene aponta as melhorias de seu bairro na periferia, ele diz: “Veja como melhorou! Agora temos banco e supermercado.

A estrela da casa é uma TV de tela plana de 42 polegadas. Desde sempre, o lazer da família esteve ligado à televisão. Mas agora chega por meio de um aparelho novo, grande e moderno. E não mais pelos canais da TV aberta. A maior parte da programação é buscada nos canais pagos da TV por assinatura. Há ainda um equipamento de DVD e um videogame de última geração. Nessa nova configuração, Estela e os filhos consideraram Che Guevara “um bicho feio demais para ficar na sala”. Hustene resistiu, mas era um exército de um homem só. Che foi substituído por uma paisagem comprada especificamente para a decoração. Outro personagem simbólico entrou na vida da família. “Eu não gostava deste tal de Noel porque nunca ganhei presente”, diz Hustene. Este foi o terceiro Natal consecutivo com pinheirinho na sala.
O velho Che só deixou o exílio em dezembro. Teve uma ajuda providencial do jogo do bicho. Hustene aposta toda semana na águia e, só neste ano, ganhou mais de R$ 5 mil. O dinheiro foi aplicado na reforma da casa, que agora é chamada de “Complexo do Pankinha” – o apelido de Hustene. “Dinheiro que não é abençoado tem de gastar logo porque voa da mão”, diz Estela. Uma das reformas transformou o corredor onde Estela antes lavava roupa à mão num pequeno escritório – agora que ela tem máquina de lavar roupa. No final de 2010, o escritório ganhou mesa e prateleiras feitas sob medida. Hustene pediu para botar o quadro do Che na parede. “Como você deixou, mãe?”, perguntaram os filhos. “Negociei com seu pai. Em troca, ele vai me dar uma moldura nova para o quadro de fotos.”

Hustene deu um novo lugar a Che Guevara: passado, não mais presente. Che está junto aos livros e álbuns, virou história. “Hoje minha ideologia é a família”, diz. Antes, ele costumava escrever ao revolucionário sobre os acontecimentos no Brasil. Che era seu interlocutor político, assim como Nossa Senhora de Fátima era a ouvinte do cotidiano. Hustene parou de escrever a ele em agosto de 2004. Retornou em 3 de outubro de 2010, logo após o primeiro turno das eleições. Seria interessante saber o que Che pensaria da última carta de Hustene se estivesse vivo: “No primeiro governo tive decepções. Veio o segundo mandato e as coisas melhoraram para a nossa classe. Melhor ainda, camarada, subimos de classe. O poder aquisitivo melhorou, passamos a consumir mais. Hoje tenho filha na faculdade, adquiri computador, TV 42 LG, geladeira dúplex, é mole? E até Play 3”.

O escritório é a conquista mais significativa da família, para além das necessidades básicas e do consumo de eletrodomésticos e eletrônicos. Hustene chorou quando ficou pronto. É lá que está o computador conectado 24 horas à internet. Estela busca receitas de cozinha, Hustene procura o noticiário, Jade estuda para o vestibular, todos usam e-mails. Até a neta Gabriely, de 10 anos, participa de redes sociais. É também lá que está o aparelho de som no qual Hustene ouve sua nova coleção de CDs de Chico Buarque. Lá estão também escritores como Dan Brown e best-sellers como A cabana e O vendedor de sonhos. Antes, todos ficavam na cozinha com Estela. Agora se dividem pela sala, pelo escritório e pelo terraço concluído. É nesse amplo terraço, pavimentado com lajotas nas cores do Corinthians, que Hustene faz questão de aparecer.

O aumento da renda da família no governo Lula foi determinado pelo crescimento do salário mínimo e pela mudança na qualidade do emprego – de bicos no mercado informal ao registro na carteira. Diego e Rodrigo já não dependem do SUS. Têm plano privado de saúde como benefício das empresas onde trabalham. Diego, de 23 anos, acaba de ser promovido a chefe de estoque de uma multinacional. Trancou duas vezes a faculdade – a primeira, por falta de dinheiro para pagar a mensalidade; a segunda, por causa do horário do trabalho. Em 2011, a empresa vai pagar curso de inglês aos sábados para que ele possa fazer um estágio nos Estados Unidos. Sempre que sobra algum dinheiro, Diego investe em literatura. Quando o conheci, era um menino de olhos tristes que descarregava caminhões para ajudar a família e sonhava em ser arqueólogo. Diego ainda sonha.

Rodrigo, de 28 anos, conseguiu em dezembro um posto de mecânico numa grande concessionária de automóveis. É a primeira vez que trabalha numa empresa com benefícios. Jade, de 18, deixou o emprego de balconista numa loja para estudar para o vestibular de fisioterapia. Hustene e Estela concluíram que valia mais a pena para ela se concentrar nos estudos neste momento – um luxo impensável até bem poucos anos atrás. “Hoje”, diz Jade, “eu tenho até tênis Nike.” Gabriely, filha de Rodrigo com uma ex-namorada, é criada pela família. Nas proximidades do Natal, pedia à avó que comprasse uma caixa de bombons para o “amigo de chocolate” na escola pública onde estuda. Nenhum drama. Havia dinheiro para os bombons.

Em 2011, Amanda se tornará a primeira Costa Pereira da história, pela linhagem da mãe e pela do pai, a se formar na universidade. Aos 26 anos, tem sua própria família e renda. Ela apenas estuda. É seu marido quem paga curso superior para ambos com o salário de dois trabalhos. A filha Rafaela, de 5 anos, também estuda em escola particular. O marido de Amanda quer se formar para fazer concurso público. Ela será enfermeira. A nova família tem plano de saúde privado, um carro e uma moto e acaba de pegar as chaves do apartamento próprio. “Antes eu não tinha planos nem sonhos. Queria simplesmente ter um emprego e ajudar em casa”, diz Amanda. “Hoje tenho os melhores sonhos para minha família, como dar uma boa educação para a minha filha.”
Com exceção de Rodrigo, que parou de estudar no ensino fundamental, todos os filhos superaram Hustene em anos de estudo. Ele segue, porém, como referência da família. Apesar de ter ficado menos tempo na escola, recebeu um ensino de mais qualidade. É ele quem escreve melhor. Ao fiscalizar as tarefas escolares da neta, fica triste com a baixa qualidade do ensino público. Sofre também ao pensar que nenhum dos filhos chegará às melhores universidades de São Paulo. “Elas são para quem estudou em colégio particular, para os mais ricos”, diz. Mesmo assim, quando Hustene conta que Amanda está na universidade – e ele não perde nenhuma oportunidade de tocar no assunto na vizinhança –, fica parecido com um chéster de tanto estufar o peito. Adora pronunciar a mesma frase: “Minha filha está na universidade”. Gosta de tudo, até do som das palavras.

A família não identifica a melhoria das condições de vida com o governo Fernando Henrique Cardoso. Mesmo que a estabilidade econômica tenha sido concretizada nos dois mandatos de FHC, assim como as bases para o que veio depois, toda a transformação é atribuída a Lula. Nos dois mandatos de FHC a situação era difícil, no primeiro mandato de Lula também, no segundo a vida mudou para melhor. Mais, inclusive, do que pensaram que poderia mudar. Hustene não perdoa uma coisa em particular: no governo de FHC se afirmava que “o Brasil quebraria se tivesse um aumento de salário mínimo”. A família Costa Pereira gosta de olhar as fotos no painel da sala em que todos estão bem magrinhos. “Olha nós no governo FHC.” Hoje, engordaram. “Até a Pantera”, dizem. A cadelinha vira-lata come ração e bife.

Quando assistia ao noticiário em que Lula aparecia no exterior, com outros chefes de Estado, com reis e rainhas, Hustene chorava diante da TV. Perguntei a ele por que, se todos os presidentes anteriores também foram recebidos nas cortes. Com olhos de garoa, Hustene Pereira afirmou: “Mas não era eu. Agora, sou eu que estou lá”. Mesmo que em Dilma Rousseff ele “confie desconfiando”, Hustene acredita que, de alguma forma, ainda estará lá.

(Publicado na Revista Época em 03/01/2011)

 

A história dentro da história

Eliane Brum conta como acompanhou a família Costa Pereira ao longo de todo o governo Lula

Quando propus a ÉPOCA contar a trajetória da família Costa Pereira, do final do governo Fernando Henrique Cardoso ao final do governo Lula, algumas pessoas da redação ficaram intrigadas com este testemunho de nove anos. Apresentei duas vezes, oralmente, a história desta família no exterior, em eventos sobre o Brasil em Ferrara (Itália) e em Madri (Espanha), e a curiosidade se repetiu. Jornalistas estrangeiros me perguntavam se eu continuaria acompanhando os Costas Pereiras no governo de Dilma Rousseff. Sim, claro que sim, eu respondia. Mas não exatamente pelas razões que eles supunham. Penso que preciso explicar como esta reportagem aconteceu – a história dentro da história.
Na virada de 2001 para 2002, eu fui incumbida de encontrar um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro. Eu buscava um homem no instante da queda para contar um momento histórico específico do Brasil.

Tentei vários caminhos, como as listas dos cadastros de benefícios da prefeitura e do Estado de São Paulo. Consumi alguns dias perambulando pelas periferias sem encontrar o que procurava. Desempregados e pobres havia muitos. Mas eu buscava um momento muito específico, entre o final do seguro-desemprego e o início da percepção de que o controle da vida escapava pelo vão dos dedos. E buscava um homem capaz de dimensionar sua perda. Depois de alguns dias atravessando a Grande São Paulo de várias maneiras, num carro sem ar-condicionado e no auge do verão paulistano, o motorista perguntou: “Afinal, o que exatamente você procura?”. Eu esmiucei em detalhes. “Ah!”, disse ele. “Você procura o meu vizinho!”

E ele tinha toda razão. Como em geral têm os bons motoristas de imprensa – hoje infelizmente quase extintos, com a terceirização do serviço. No momento em que fui apresentada a Hustene Alves Pereira, no Jardim Veloso, na periferia de Osasco, eu soube de imediato que era ele. Seus olhos queimavam no quarto mês de desemprego. Ele era um homem vivo – com medo de ser esmagado pelo Brasil e pelo discurso da exclusão.
Nos reconhecemos ali. Tenho convicção de que toda reportagem é um encontro entre personagem e jornalista. Só acontece quando este encontro é de verdade. Para isso, é preciso existir um movimento de entrega de ambas as partes: eu me abro para ouvir a sua história sem preconceitos e você se abre para contá-la com tudo o que ela é, o feio e o bonito. Com Hustene e sua família foi assim.

Passamos dias juntos, Hustene e eu, vencendo quilômetros em busca de emprego, a pé porque ele não tinha dinheiro para o ônibus. Nestas longas caminhadas Hustene me contava da angústia do seu presente, dos sonhos de seu passado e do futuro que não mais enxergava. Testemunhei do meu canto a delicadeza com que sua mulher, Estela Costa, tecia com o que lhe restava de linha não só tapetes para vender, mas uma rede para que sua família não se afogasse. Seus quatro filhos, alguns com mais intimidade do que outros, me falavam de seus anseios. E às vezes eu apenas ficava ali, observando sem nada dizer.
Repartiam comigo também o seu feijão com arroz. Algumas pessoas, ao saber que eu comia em sua mesa, ficavam indignadas porque o que eles tinham já era tão escasso. Este é um tipo de conclusão de quem pouco entende de gente e pouco pisou em favelas e periferias. Nada seria mais ofensivo para Hustene e Estela do que minha recusa em compartilhar o que tinham – mesmo que fosse quase nada. E eu nem cogitei tal desfeita.

A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. É neste momento que começa o capítulo mais surpreendente da história dentro da história.

Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.

Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou narrando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Ele, por sua vez, passou a acompanhar a minha vida de repórter. Assim que a situação financeira melhorou um pouco, em meados da primeira década deste século XXI, Hustene assinou a ÉPOCA para poder ler e recortar minhas reportagens. Meus livros também estão na prateleira do seu novo escritório, figuras humildes entre vistosos best-sellers.

Seguidamente sou mencionada em seus diários – ele não esquece jamais nem o dia do jornalista nem o dia do escritor. E há uma foto minha perto de Nossa Senhora de Fátima para me proteger do risco de algumas reportagens. Especialmente se viajo a trabalho de avião, uma criatura alada da qual Hustene tem pavor. Cada vez que descobre que vou embarcar em algum, ele reza.

Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.

Hustene e sua família seguiram fazendo a narrativa da sua vida. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por email. Hustene escreve muito – e escreve com verdade. Sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de emails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua existência tantas vezes por um fio escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim concede o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura. Sou o olhar externo – de dentro.

Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora. Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.

O que eu mais gosto na vida é escutar, ler e escrever. Acompanhei a história da família Costa Pereira sem nenhum propósito de publicá-la. Mas sempre guardei tudo o que Hustene me enviou por escrito por aquele amor que a gente tem pelo testemunho histórico. E, no meu caso, porque tenho especial apreço pela grandeza das vidas supostamente – e só supostamente – comuns. Fiz apenas mais uma pequena reportagem sobre a interpretação de Hustene do primeiro ano do governo Lula, já que ele gravara todas as promessas de campanha e escrevera uma carta “ao amigo presidente”, e contei seu sofrimento em minha coluna no site da revista quando os peritos do INSS fizeram greve e ele ficou sem benefício, como milhares de brasileiros.

Só em 2010 percebi que tinha algo precioso e inédito nas mãos: a trajetória de uma família no governo Lula, a ascensão da pobreza à “nova classe média” contada pelo particular, um retrato íntimo e privado dos personagens mais importantes deste momento histórico. Pedi então licença para contar sua história e fiz várias entrevistas com todos os membros da família. Posso afirmar que só compreendi grande parte do significado, das nuances e das contradições do governo Lula quando pude enxergá-lo pelos olhos da família Costa Pereira. Espero que tenha conseguido transmitir este olhar aos leitores na reportagem publicada nesta primeira edição de 2011, logo após a posse de Dilma Rousseff – e da despedida (oficial) de Lula.

Como foi possível testemunhar a história da família Costa Pereira nos últimos nove anos? Porque Hustene Alves Pereira é um personagem que escolheu seu autor. E, para minha sorte, este autor sou eu.

(Publicado na Revista Época em 29/12/2010)

Espelho, espelho não meu

Nas viagens, a paisagem que mais nos espanta é a nossa

Descobri que viajar é trocar de espelho. Em casa, o espelho que nos reflete não mostra nossa mudança. Como todos os objetos da nossa rotina, como nossa rotina mesmo, o espelho da casa é um espelho domesticado. Sabemos o que vamos enxergar. Às vezes até achamos que controlamos este espelho como dominamos as mesas e as cadeiras, a posição do sofá, o canal do controle remoto, o dia de lavar os lençóis da cama. Mesmo quando notamos um quilo a mais ou um par de olhos mais fundos, aquele espelho é nosso e por ser nosso nos ameaça menos. Damos uma passadinha diante dele, às vezes involuntária, e ele nos conforta ao garantir que, sim, estamos lá. Sou eu que olho para mim. E aquela superfície lisa me garante que existo.

Quando deixamos nosso mundo e partimos em direção a outros destinos, a primeira paisagem que nos espanta é nossa própria geografia. Ao bater a porta de casa em direção ao novo, a primeira imagem familiar que abandonamos é a de nós mesmos. Nos deslocamos primeiro em nós. E o primeiro estrangeiro que nos espanta é o que nos encara do espelho da estação rodoviária ou do aeroporto, do banheiro do posto de gasolina. Quem é esta pessoa que me olha? Com frequência, somos tentados a fazer a pergunta da poeta Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Toda viagem contém nossa esperança de sermos mais livres, mais felizes, mais aventureiros, mais relaxados, melhores. Em geral, deixamos um cotidiano que nos confina a uma vida que para muitos é menor e mais apertada do que nos sonhos. Ao botar o pé na estrada, temos a expectativa de embarcar numa outra forma de ser e de viver, em um outro eu que nos parece mais verdadeiro que aquele que acorda todo dia de manhã para seguir um roteiro previsível. Como se longe de casa tivéssemos uma espécie de autorização para finalmente sermos um tal de eu mesmo.

Então, a primeira surpresa. Aquele rosto que nos estranha no espelho do caminho é nosso. Nos perturba mais porque sabemos que é nosso, ainda que diferente pelo ângulo, pelo tamanho e pela luz desconhecidas do objeto que nos reflete com outras verdades. E já ali, neste primeiro confronto, vemos algo que não sabíamos sobre nossa face, algo que o espelho domesticado não havia nos mostrado. Começamos a compreender ali o pior e o melhor das viagens: o risco. Talvez o que as pessoas que detestam sair de casa ou alterar a rotina mais temam é justamente o que podem ver de si mesmas num espelho que não é o seu.

É só ao sair que descobrimos que não podemos sair. Podemos embarcar apenas em nosso próprio corpo. Às vezes aquelas malas todas, aqueles tantos sapatos e roupas, são apenas uma tentativa inconsciente e desesperada de evitar a descoberta de que somos nossa própria bagagem e viajamos apenas com tudo o que somos. Nem mais nem menos, nosso excesso de peso é nossa nudez. É preciso abrir a porta da rua para compreender que ela só abre para dentro e só leva para dentro.

É o que diz o poema de Fernando Pessoa, estampado no último andar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (…) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Viajar é uma escolha profunda, que não depende da distância nem do destino. Nela, estamos sempre sozinhos, ainda que no meio de hordas de turistas. As paisagens externas iluminam nossa paisagem interior, para o bem e para o mal. Não visitamos Roma, Nova York ou Paris, as pirâmides do Egito, o deserto do Saara, as savanas africanas, o Rio de Janeiro, a Amazônia ou o outro lado da rua. O que fazemos é revisitar a nós mesmos no contato com diferentes culturas e percepções de mundo. A mudança de paisagem ilumina os cantos escuros dos precipícios e as profundezas dos lagos que nos habitam. Sempre esperamos que exista em nós um belvedere, é esta a nossa expectativa ao viajar. E nem sempre é um belvedere o que encontramos. Por isso toda viagem é subjetiva e, possivelmente, quando detestamos um lugar ou um povo é porque não gostamos do que vimos em nós.

Sempre que viajo cruzo com pessoas, cada vez mais pessoas, que se interessam apenas pelo que podem comprar nas lojas de cada destino. Que em geral são sempre as mesmas em toda parte. Transformam a experiência de viajar numa experiência de consumo. O planeta passa a ser um grande shopping com diferentes arquiteturas. E lá gastam tudo o que podem para manter a ilusão de que viajam em perfeita segurança porque este mundo – o do consumo – conhecem bem. Acreditam secretamente que assim não se arriscam. O que não sabem, mas em algum momento vão acabar descobrindo diante do espelho do banheiro, é que a única viagem impossível é a fuga de si mesmo.

Existem ainda os que fotografam ou filmam tudo, o tempo todo, na tentativa de controlar sua imagem no espelho. Veem o mundo protegidos pela lente da câmera. Não experimentam, não se expõem, não vivenciam – apenas registram. Não o registro da vida vivida, mas o registro de que estiveram lá sem estar. Viajam para colecionar imagens, não para viver experiências e serem transformados por elas. Para estes, a imagem vale mais que a vida, quase a substitui. A vida é risco – a fotografia pode ser manipulada e melhorada com photoshop. Vão descobrir onde estiveram ao se assistirem sorridentes em diferentes cenários onde posaram como personagens de si mesmos.

Assim como há aqueles que esperam que uma viagem vá mudar radicalmente o curso de sua existência. É possível que mude. Mas talvez não do jeito que esperam se o que esperam é se transformar num outro.

Toda viagem é sem volta e leva sempre ao mesmo lugar: a nós mesmos. Ao final de cada uma, o melhor que podemos esperar é termos nos tornado mais o que somos. Ter alcançado porções mais longínquas de nossa própria geografia, mesmo que esta seja uma floresta densa e sombria. Ter sido ampliado pela experiência de se arriscar a olhar para dentro, escalando nossas próprias montanhas, mais altas que o Everest, e atravessando nossos rios internos a nado, ainda que eles estejam infestados de piranhas e jacarés famintos.

Na paisagem interna de todos nós há partes selvagens que nos provocam medo. Há monumentos dos que vieram antes que podem nos pesar ou atrapalhar, ainda que nos deslumbrem com sua grandeza. Há ruínas que lamentamos, há abismos que nos parecem intransponíveis e há também largas porções de sol e de praias de águas transparentes se procurarmos com afinco. Somos variados como o mundo que nos encanta e assusta ao mesmo tempo. Só precisamos olhar com coragem para o espelho que nos reflete e descobrir aonde ele vai nos levar. Não há setas indicando o caminho. Como dizem aqueles que moram na beira das estradas com precisão mal compreendida, aos viajantes que perguntam por direção: siga em frente, toda vida.

(Publicado na Revista Época em 25/10/2010)

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