Ninguém quer o futuro

Vivemos um presente esticado porque o amanhã nos apavora

No passado, havia um futuro. Cresci acreditando que o futuro seria um tempo melhor. Meus pais cresceram acreditando que no futuro haveria um mundo melhor. Minha filha começou a duvidar do futuro. Meus netos possivelmente temerão o futuro. Não é uma mudança pequena. Não consigo avaliar com precisão o quanto isso nos modifica, mas escuto e olho e percebo que nos transforma. E imagino que seja uma transformação profunda. Esta vida em que preferimos não ter nenhuma representação de futuro. Já que qualquer representação baseada na realidade prevê a possibilidade do nosso fim. Não mais um fim do indivíduo, com a morte que nos aguarda a todos, mas o fim da espécie.

Tento lembrar no que eu acreditava nestes dias em que São Paulo está em estado de alerta, descendo aos 12% de umidade relativa do ar, e as capas de jornais mostram a nuvem de chumbo da poluição sobre os prédios e casas onde tentamos viver nossas vidas. Acabei de acordar e espirro sem parar. Nós, que sofremos de rinite alérgica, padecemos mais nestes dias. E eu já tomo antibiótico por causa de uma doença respiratória causada pela combinação de secura e contaminação do ar. Você quer sabe como será o mundo logo ali? Olhe para São Paulo. O pôr-do-sol tem exibido uma beleza assustadora. Poderia ser usado num filme de fim de mundo.

O que acreditávamos no futuro do passado? Ou pelo menos o que parte da minha geração, nascida sob o signo da chegada do homem à Lua, talvez tenha sido a última a acreditar? Que a ciência cumpriria suas promessas e nos libertaria do jugo do trabalho alienante. Além de nos garantir vida longa, juventude e bem-estar. Que teríamos todas as benesses da tecnologia sem pagar nenhum tributo ao planeta por isso. Que, seja qual fosse a nossa ideologia, por diferentes caminhos chegaríamos a um mundo em que ninguém mais fosse explorado ou passasse fome. Ninguém duvidava também que estaríamos viajando no espaço e desbravando outros planetas.

É verdade que a ficção científica desenhava um mundo muito mais sombrio e parecido com este aonde realmente chegamos – ou ainda chegaremos. De Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) a Philip K. Dick (Andróides sonham com carneiros elétricos?, no qual se baseou o filme cult de Ridley Scott, Blade Runner), Ray Bradbury (Fahrenheit 451) e outros. Mas era ficção. E tínhamos tanta certeza nas possibilidades do futuro que poderíamos ler o livro e assistir ao filme sem acreditar na imagem no espelho. O futuro, afinal, nos pertencia. Bastava depor ditadores e combater as corporações.

O que sabemos hoje é o suficiente para mudar radicalmente nosso desejo: nós gostaríamos que o futuro nunca chegasse. Diante de nós, há dificuldades de sobrevivência não apenas como indivíduo ou povo de uma nação determinada, mas como espécie. Começando, como sempre, pelos mais pobres e os mais frágeis entre nós, na geopolítica mundial e na geopolítica dentro do nosso quintal. Diante de nós se desenha uma guerra por água, alimentos contaminados e o aquecimento global. Os ditadores continuam por aí e as corporações extrapolaram as dimensões que conseguimos abarcar.

A tecnologia nos permitiu comunicação instantânea e a internet mudou para sempre nosso jeito de nos relacionar com o espaço, com o tempo e com os outros. Mas esta tecnologia espetacular faz com que o conceito de horário de trabalho tenha se tornado obsoleto e os chefes e as tarefas nos alcancem por email, torpedo e outras ferramentas que nos submetem onde estivermos, estendendo a jornada para todas as horas e confundindo espaços e limites. Mesmo os consideráveis avanços da ciência em várias áreas nos provocam desconfiança. É difícil achar que a clonagem e os transgênicos sejam apenas uma ótima notícia. E, depois da grandiosa pisada de Neil Armstrong na Lua, só conseguimos despachar umas sondinhas espaciais um pouco mais longe. Ou seja: estamos presos no planeta que exploramos além da conta. E começamos a nos sentir claustrofóbicos nele.

Assim como nos sentimos claustrofóbicos dentro de nossa própria vida. Não é a toa que tanto se fala de felicidade hoje. Este discurso da felicidade soa como um discurso do desespero. É uma noção de felicidade desconectada do real e dos sentidos dados para a vida, uma felicidade por si mesma. Afinal, torna-se difícil viver quando a melhor ideia de futuro que conseguimos ter é a quitação da casa própria depois de centenas de prestações ou a compra de uma TV com tela plana ainda maior para a Copa do Mundo no Brasil ou um carro que pode andar no deserto do Atacama, mas que vai ficar parado no trânsito da cidade.

Nossa concepção de futuro se apequenou. Restringiu-se a materialidades logo ali. Ao reduzir nossos sonhos à compra de objetos de consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida. A rejeição do futuro nos ajuda a entender a mediocridade do nosso presente. E de nossas aspirações. Explica por que, ao perguntar a alguém qual é o seu desejo, esta pessoa possa responder que é um Ipad. E ninguém estranhe.

Não é curioso um monte de gente acreditar que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012 por causa da suposta profecia de um povo para o qual o fim do mundo chegou muito antes, pelas mãos dos espanhóis? Parece ser mais fácil gastar energia e teses com um fim de mundo mirabolante do que encarar que, sim, o nosso mundo pode acabar. Não por profecias, mas como consequência de nossas ações e de nossas escolhas. Não em 2012. Mas progressivamente, como já vem acontecendo.

Dá para entender por que o fim do mundo dos maias é mais palatável. Ele não depende de nós. Não precisamos nos responsabilizar por ele. Qualquer saída é mágica. Podemos continuar sendo os mesmos cretinos com relação ao meio ambiente e aos outros, porque o apocalipse cai do céu. Com a realidade do esgotamento do planeta é mais complicado. Ela exige de nós profundas mudanças de hábitos de consumo e de comportamento. Muito além de fazer uma reciclagem de lixo mais ou menos e achar que por isso estamos fazendo a nossa parte. Exige de nós um novo tipo de ser – humano – e de estar no mundo.

É verdade que o planeta está sofrendo. E uma variedade de espécies de flora e de fauna desaparece pela nossa sanha. Mas não é o planeta que vai acabar se continuarmos nesta toada. Somos nós. Tempos atrás, assisti ao documentário De volta a Bikini (National Geographic), do mergulhador Lawrence Wahba. O documentário conta o que aconteceu ao atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, no Oceano Pacífico, onde os Estados Unidos testaram armas nucleares nos anos 40 e 50. Numa exibição de seu poderio bélico, expulsaram a população e destruíram a natureza de uma forma atroz ao detonar duas bombas atômicas como as de Hiroshima e Nagasaki. Assim como a Bravo, a primeira bomba de Hidrogênio, o mais potente artefato lançado pelos EUA em sua história.

Passados 60 anos, o atol se recuperava, os peixes voltavam e a vida se refazia. Ao assistir ao documentário, me choquei menos com a capacidade de destruição humana, já que esta é bem conhecida. O que me chamou a atenção foi o fato de que a vida se impunha sem nós. É o que possivelmente aconteça com a Terra depois que nos matarmos. Sem nós ela se renovará e seguirá seu curso. A passagem humana será apenas um lapso de tempo – nossos milhares de anos um nada perto dos milhões em que os dinossauros dominaram o planeta como espécie. Uma história curta que ninguém vai contar.

Em uma palestra no ótimo Café Filosófico, programa da TV Cultura, a filósofa Viviane Mosé se arriscou a ser mal interpretada. Não lembro as palavras exatas, mas ela sugeria que há algo de bom no aquecimento global. Pela primeira vez algo nos une para além das convenções arbitrárias, das ideias de nação, de religião, de etnias, de ideologias e de crenças – para além de tudo o que nos divide e nos afasta. Ainda que os mais frágeis e os mais pobres sejam os primeiros a sofrer, estamos todos no mesmo planeta que se esgota pelas nossas ações. Desta vez, não vai dar para os mais ricos saírem voando numa nave espacial de luxo para um planeta novinho em folha. E, ainda que estejamos todos mortos, já que assistimos apenas ao início de um possível fim de mundo, é dos nossos descendentes que se trata. Por paradoxal que pareça, o aquecimento global nos permite olhar para o planeta e para nós como os astronautas em órbita: sem divisões.

É uma chance. Uma oportunidade de sermos melhores. Porque talvez só sendo melhores possamos voltar a ter um futuro onde ancorar. Um que valha a pena imaginar e que impulsione as ações do nosso presente. Para isso, é preciso abrir mão das várias formas de anestesia diante desta realidade. Inclusive abdicar da exigência de uma felicidade que não se conecta à vida, que só é possível alcançar por alguma droga – legal ou ilegal.

Vale a pena analisar a literatura produzida nestes tempos sem futuro – ou melhor, com um futuro que ninguém quer. A literatura de qualidade, claro – e não as catastrofistas de ocasião. Talvez o exemplo mais interessante seja A Estrada (Alfaguara), do excelente Cormac McCarthy, levada aos cinemas por John Hillcoat e já em DVD. Nele, um pai e seu filho empreendem uma jornada num mundo pós-apocalíptico. É uma fábula sobre esse tenebroso futuro sobre o qual especulamos, mas é também uma narrativa sobre a única coisa que nos salva – o amor.

Quanto mais vivo e olho o mundo, aumenta em mim a convicção de que só o amor faz sentido e dá sentido. Não este amor umbigólatra por si mesmo. Ou no máximo pelos seus. Mas o amor que só se justifica no outro, que abarca a humanidade inteira. Enquanto tentarmos salvar “o nosso”, que é o de cada um, não temos a menor chance. Desta vez, os espertos de sempre não vão se safar. Ou pelo menos não por muito mais tempo que todos os outros.

Quando é a sobrevivência da espécie que está ameaçada, não há salvação individual. Ou nos tornamos melhores todos, nos reinventamos como homens e mulheres novos a partir das necessidades de um presente que está aí ou continuaremos assistindo ao nosso fim anunciado, aceitando as progressivas limitações que já contaminam nossa vida. Estes novos homens e mulheres precisam estar conscientes da precariedade da condição humana e de sua insignificância na história do planeta. É pelo reconhecimento da fragilidade que nos une que podemos nos tornar grandes de uma maneira inédita, uma que nos permita viver e deixar viver.

Há tantos clichês, alguns até bem bonitos, sobre viver o presente. Somos povoados por orientalismos neste sentido. Mas não é simbólico. Não desta vez. Tudo o que temos agora é esse presente esticado. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente. Mas a questão é exatamente estar presente – no presente.

E não anestesiados de várias maneiras, como tem acontecido. Não se trata do imperativo do gozo pelo gozo, do prazer instantâneo. Não é por acaso que às vezes saímos da mesa do bar onde bebemos e alguns de nós se drogam na companhia de estranhos próximos, mas que continuam estranhos apesar do riso, com a sensação de vazio, de que nada de importante aconteceu de fato. De que por maior que tenha sido a nossa euforia e a nossa performance, não estávamos ali. Ninguém estava.

Não é isso que é estar presente no presente. Viver no presente é ser capaz de criar sentido. Escutar o outro e a si mesmo. Se arriscar a ser transformado por esse contato. Só é possível estar no presente amarrando, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Só é possível mudar se arriscando a estar. No presente. Ainda que às vezes doa. Há um filme muito bonito sobre a coragem de abdicar de uma vida anestesiada e se arriscar a estar no presente. Pode ser encontrado em qualquer locadora. E fala dessa geração que começou a temer o futuro. Em português, se chama “Hora de voltar” (Garden State, de Zach Braff).

Temos alguma chance se passarmos a determinar nosso estar no mundo por uma atitude amorosa com as pessoas e com o planeta. Começando pelas pequenas ações de todo dia, da relação com o motorista de ônibus e com a moça da padaria ao que realmente precisamos comprar e consumir, já que qualquer objeto tem um custo em recursos naturais e vai demorar a se decompor. Nenhum de nossos atos é impune. E agora, mais do que nunca, não é mesmo. Pagaremos o preço ainda nesta vida.

É uma transformação profunda. E que dá trabalho. Mudar é dificílimo. Acho que a maioria das pessoas vai continuar consumindo e se anestesiando loucamente. Sem nem mesmo perceber que é estranho ter de comprar água não contaminada ou ter dor no peito depois de uma caminhada, como acontece agora em São Paulo. Não tenho muita esperança. Mas me agarro à pouca que tenho. A de que mais gente desperte e esteja presente no presente. Para, quem sabe, reconquistarmos um futuro que valha a pena imaginar.

(Publicado na Revista Época em 30/08/2010)

A vida se faz nas marcas

Vivemos por causa de nossas marcas – e não apesar delas

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.

Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.

É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.

Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.

Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.

Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.

É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.

É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.

Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.

Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.

Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.

Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.

Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.

Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.

Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

(Publicado na Revista Época em 09/08/2010)

Testamento vital

CFM prepara documento para garantir dignidade na morte

Nos dias 26 e 27 de agosto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realiza em São Paulo um evento que poderá ser um marco na humanização não só da saúde, mas da vida: médicos e juristas vão discutir a criação do testamento vital. Previsto em vários países do mundo, o documento expressa o desejo do paciente diante de uma doença sem possibilidade de cura. Enquanto está consciente, a pessoa determina, por escrito e com testemunhas, quais são os limites do seu tratamento. Tem, assim, a possibilidade de encerrar sua vida com autonomia, respeito e dignidade. Como um ser humano ativo. E não como um objeto passivo amarrado a tubos numa unidade de terapia intensiva – sozinho, sem voz e sem afeto.

Explico melhor dando meu próprio exemplo. Tenho um pacto com meu irmão do meio. Quem sobreviver terá a responsabilidade de garantir o cumprimento da vontade do outro no encerramento de sua vida. Para nós, é muito importante morrer com dignidade, porque entendemos que morrer é o último ato da vida. É, portanto, viver. E queremos viver até o fim com respeito e coerência, na integridade do que somos. Se for eu que tiver uma doença sem chances de cura, caberá ao meu irmão garantir que eu não sofra intervenções cirúrgicas ou invasivas. Em resumo: não quero ser submetida a exames nem procedimentos desnecessários. Aquilo que hoje é chamado de “tratamento desproporcional” ou “obstinação terapêutica”.

Da equipe de saúde, espero que cuide para que eu me mantenha consciente, não sinta dor física e tenha o maior conforto possível até que minha hora chegue – nem prolongada nem abreviada. Pretendo aproveitar o tempo que me resta para revisitar minhas lembranças, conversar com aqueles que amo, acertar o que tiver de acertar. Quero morrer de preferência na minha casa, perto das pessoas importantes. Se possível, contando histórias da minha vida. Se por algum motivo estiver inconsciente, que alguém conte histórias para mim, coloque as músicas que eu gosto, leia os trechos de meus livros preferidos, ria e chore lembrando da melhor vida que pude ter. Se tiver que ser num hospital, só aceito encerrar minha vida numa enfermaria de cuidados paliativos.

Esta é a minha vontade. E tenho convicção de que só eu posso decidir sobre como quero me despedir da vida no caso de uma doença sem cura. Apesar da clareza da minha decisão, mesmo que eu escreva um documento, assine, arrole testemunhas e registre em cartório, não há hoje nenhuma garantia de que eu seja respeitada no meu desejo de morrer com dignidade – coerente com o que é dignidade para mim.

Diferentemente de outros países, como Estados Unidos, Uruguai e várias nações europeias, no Brasil o testamento vital ainda não existe na legislação. Assim, caso eu hoje tenha uma doença que se revele incurável, corro o risco de morrer sozinha, amarrada aos tubos de uma UTI, naquilo que para mim é uma cena de filme de terror e contraria minhas crenças mais profundas. Basta que o médico decida que é dono da minha vida ou, pior, que sabe o que é melhor para mim. E, pronto, estou condenada à morte que nunca quis.

O respeito à dignidade da vida humana é a preocupação que motiva o Conselho Federal de Medicina a promover este debate e propor a criação do testamento vital. O documento poderá nos dar a garantia de sermos respeitados também no último ato de nossas vidas. O psiquiatra espanhol Diego Gracia, um dos maiores nomes da bioética mundial, está entre os conferencistas convidados a debater a questão em agosto.

Para nos ajudar a compreender a importância do debate que se inicia publicamente no Brasil, entrevistei para esta coluna o cardiologista José Eduardo de Siqueira, 68 anos, doutor em medicina, professor de clínica médica e bioética da Universidade Estadual de Londrina e membro da comissão de cuidados paliativos do Conselho Federal de Medicina. Eles nos fala sobre o que está em jogo na discussão do testamento vital. E também sobre a paisagem na qual este debate se desenrola.

É uma conversa sobre os limites e equívocos da medicina, a deficiência do currículo das faculdades e a premência de se formar um novo médico – um que trate não as doenças das pessoas, mas as pessoas com doenças. José Eduardo de Siqueira, um médico com larga formação humanista, nos mostra que o testamento vital não é apenas um documento, mas uma discussão profunda sobre o que é ser médico e o que é ser paciente, sobre a morte e, principalmente, sobre a vida.

ÉPOCA – Vivemos um momento histórico onde a prática médica é determinada por um aparato altamente tecnológico, os médicos são especializados em pedaços cada vez menores do corpo e a prática corriqueira é estender a vida o máximo possível, com todo o tipo de tratamento, ainda que seja invasivo e doloroso para o paciente e mesmo que ele esteja além da possibilidade de cura. Por que, justamente neste momento, o Conselho Federal de Medicina decide propor um documento que coloca limites no tratamento e que respeita a autonomia e o desejo do paciente?

José Eduardo de Siqueira – Tudo o que você falou sobre o exercício da medicina hoje é verdadeiro. Estamos vivendo um momento em que há um fascínio pela tecnologia. Este fascínio levou a uma situação de medicalizar a vida e medicalizar a morte. A tecnologia chegou a tal ponto que podemos dizer que o indivíduo que está na unidade de terapia intensiva (UTI) de um hospital de ponta, se os médicos quiserem, pode ter sua vida prolongada por muito tempo. Até a primeira metade do século XX o domínio que tínhamos sobre a morte era muito pequeno. A partir dos anos 60, a tecnologia passou a se desenvolver muito. E nós perdemos a noção. Não só os médicos, mas a sociedade toda perdeu a noção da finitude da vida. Há um texto muito bonito no qual Rubem Alves (psicanalista e escritor) diz que antes nós sabíamos ouvir a voz da morte. E, portanto, éramos sábios na arte de viver. Agora que nosso poder cresceu de uma maneira enorme com a tecnologia nós imaginamos que estamos imunes ao toque da morte. E perdemos a possibilidade de aprender com ela. Isso é muito verdadeiro. Há um livro chamado “A arte perdida de curar”, do Bernard Lown, que talvez seja o maior cardiologista do século XX. Ele diz que nós estamos, nas escolas de medicina, formando “gerentes de biotecnologias complexas”. Veja que coisa forte isso. Profissionais que perderam a noção do que é a arte da medicina. Bernard Lown diz textualmente: “A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do ato de morrer”. A preocupação que nos move agora é a seguinte: é preciso ter bom senso. E é complicado este debate porque, se você olhar a grade dos cursos de medicina, vai constatar que estamos formando pessoas especializadas em doenças: sabem tratar doenças de pessoas, mas não sabem tratar pessoas.

ÉPOCA – Me parece que a maioria dos médicos hoje só vê corpos ou, pior, pedaços de corpos…

Siqueira – Exatamente. É uma visão biologicista. Perdemos a noção do ser humano completo. Aí você coloca o doente na UTI, oculta tudo dele. Existe uma coisa que se chama “conspiração do silêncio”. Fica o médico conversando com os familiares. E o paciente sozinho na UTI. A morte hoje é realmente uma coisa fria, sofrida e que não corresponde à dignidade humana. Nossa preocupação neste momento é resgatar a nossa dignidade. E isso de alguma maneira é uma mudança de paradigma. Porque o paradigma imperante é o da tecnociência. E a tecnociência não só por parte dos médicos, mas da população de um modo geral. Eu estou cansado de testemunhar isso no meu consultório. Depois de uma longa entrevista com o paciente, eu não peço exames ou peço poucos exames. Aí o paciente diz: “Mas, doutor, você não vai pedir um ecocardiograma?”. Ou seja. O fascínio pela tecnologia é muito grande. E está disseminada entre a população, também, a ideia de que se você está colocando o doente numa UTI e fazendo tudo até o último suspiro, você está fazendo um benefício. E, na realidade, você está fazendo um malefício. Está realmente tratando aquele ser como objeto – e não como sujeito.

“Precisamos admitir que estamos equivocados e
que temos usado a tecnologia de forma insensata.”

ÉPOCA – De que incômodo surge esta necessidade de discutir um documento que possa dar mais dignidade à morte? Para você, por exemplo, de que incômodo surge a sua necessidade de colaborar para este debate?

Siqueira – Eu comecei a dar aulas nos anos 70. E eu tive esta trajetória fortemente cartesiana. A minha experiência docente nasce nos anos 70 já herdeira das primeiras unidades de terapia intensiva. A visão que nós tínhamos era a de olhar o monitor. Não víamos a cara do doente. Olhávamos a sonda urinária para ver quanto tinha de xixi, olhávamos as variáveis bioquímicas. Com o tempo a coisa se transformou em algo macabro. Se você entrar hoje em qualquer unidade de terapia intensiva desse país, vai ver que um grande percentual dos leitos está ocupado com doentes que não têm possibilidade de cura. É dramático, porque você vê o indivíduo numa decadência progressiva e tudo o que você faz por ele é simplesmente intervir com tecnologia. E o médico sabe que não tem condições de mudar aquilo. Os cuidados paliativos vieram para demonstrar que não, que podemos fazer muita coisa por este paciente. Mas podemos fazer numa unidade de cuidados paliativos, onde ele é respeitado naquilo que é. Nossa preocupação, se eu tiver de resumir numa palavra, é, em primeiro lugar, admitir que estamos equivocados. Que o uso da tecnologia está sendo feito de maneira inadequada, insensata. Segundo, que nós temos de dar o protagonismo de nossas ações ao nosso paciente. Terceiro, que temos de ter respeito pelo ser humano. Em quarto, eu acho que privar o ser humano deste momento decisivo da vida dele é uma coisa cruel. Porque neste momento a pessoa tem muita coisa para contar, para perdoar, para acertar. Há um texto do (Rabindranath) Tagore, um poeta indiano, lindíssimo. Ele diz que morrer pertence à vida, assim como nascer. Para andar você tem de dar um passo. Levanta o pé e o abaixa até o chão. A vida é um movimento. Nascer e morrer. E nós, médicos, temos cortado esse movimento de maneira abrupta, inadequada e desumana, privando as pessoas de viver isso. E o que damos em troca? Damos em troca simplesmente uma coisa que é esta obstinação pelas variáveis biológicas.

ÉPOCA – O que é uma morte digna?

Siqueira – A Elisabeth Kübler-Ross (psiquiatra suíço-americana que se tornou uma referência na abordagem da morte na segunda metade do século XX) fala disso. Morrer com dignidade é morrer com os meus valores, cercado das pessoas que eu amo. Na unidade de terapia intensiva você morre absolutamente anônimo, morre sozinho. Eu cansei de entrar numa UTI e um doente me agarrar a mão e não largar. Aí eu chego perto dele. Ele diz: “Por favor, fica para conversar comigo alguma coisa”. Chegamos a um ponto que percebemos que estamos fazendo a coisa errada. Não estamos tratando o indivíduo como ele deve ser tratado. Como diz a Elisabeth, eu quero morrer com os meus valores, com a minha dignidade, cercada pelos que eu amo. Tem um livro que é muito interessante, escrito por duas enfermeiras americanas que fazem cuidados paliativos em atendimento domiciliar nos Estados Unidos. Em português, o título é “Gestos finais”. Em inglês, é “Final Gifts”, ou seja, “Presentes finais”. Elas contam casos onde fica muito clara a incrível capacidade deste momento, de perdoar, acolher, rever a vida. E as pessoas estão sendo privadas disso.

ÉPOCA – Sendo roubadas do último ato de suas vidas. Porque é um roubo, não?

Siqueira – É um sequestro e muito cruel. Vou contar um caso que eu vivi. Tive um doente que tinha uma traqueostomia e não conseguia falar. Todo dia que eu ia à UTI, eu dava uma tabuinha para ele escrever. E um dia ele escreveu: “Doutor, vamos parar com isso? E vamos fazer o meu descanso?”. É isso. Agora, a maioria dos doentes não tem a possibilidade de ter com quem conversar. Sobretudo os da UTI. Primeiro, o médico não tem formação. A educação dele é para curar. Durante todo o curso ele imagina que isso é possível. E isso só é possível eventualmente. Nós curamos, mas há um aforismo antigo que diz assim: “O dever do médico é curar às vezes, aliviar e confortar sempre”. E nós estamos fazendo só a primeira parte. Ensinamos os meninos a fazer o diagnóstico. E imaginamos que ensinando esta tecnologia de ponta estamos fazendo grande coisa. E não estamos fazendo grande coisa. Por outro lado, há trabalhos que demonstram claramente a pobreza da grade curricular do curso de medicina, no que se refere a conversar sobre a morte: não a biológica, mas a de um ser humano. Há, portanto, muito que fazer para mudar essa situação.

ÉPOCA – Me chama a atenção quando você fala em “nós”. A “nossa preocupação”. Mas quem são este “nós”, já que não me parece que essa seja uma preocupação central para a maioria dos médicos?

Siqueira – Você tem razão. O “nós” ao qual me refiro é uma geração como a minha, que viu essa coisa avançar, que viu o nascimento das primeiras unidades coronárias. E a gente lutava… Você percebe como a palavra “luta” é uma coisa curiosa nesse contexto? Porque o médico, quando perde um doente, acha que perdeu uma batalha. Aliás, há outras palavras curiosas referentes a isso. Eu tenho um “arsenal” na UTI… Arsenal é aquela coisa tremenda, de guerra…

ÉPOCA – É verdade. E o elogio que dão ao paciente é de que é um lutador. Fulano lutou até o fim, foi um guerreiro… Mas, às vezes, é mais sábio aceitar os limites, parar de “lutar” e viver o melhor possível o tempo que ainda tem.

Siqueira – Minha geração viu o nascimento e o apogeu da utilização inadequada da tecnologia e teve a possibilidade de fazer um exercício crítico. Sobretudo porque nós formamos os atuais médicos que estão na unidade de terapia intensiva. Nós somos culpados pelo que está aí. O aparelho formador, às vezes, é deformador. Há vários estudos mostrando que, quando o indivíduo entra no curso de medicina, ele entra imbuído de um altruísmo, da ideia de ajudar o próximo. E na medida em que o curso vai passando, nós vamos colocando cada vez mais informações técnicas dentro dele. E, no final, aquele indivíduo que entrou altruísta sai um técnico frio, que só sabe olhar como um gerente de tecnologias complexas. Depois da nossa, há uma geração primorosa, na faixa dos 50 anos, de paliativistas como Maria Goretti Maciel e Cláudia Burlá, que tiveram a possibilidade de conhecer essa realidade fora do país. A Cicely Saunders (enfermeira inglesa) começou o movimento de cuidados paliativos nos anos 60. A Elizabeth Kübler-Ross publicou seu primeiro livro em 1969. Eu acho que esta geração que eu citei começou a tomar conhecimento de que existe uma outra medicina, uma outra maneira de abordagem, que existe a possibilidade de tratar o indivíduo com dignidade, respeitando o momento da morte. E isso não tem nada a ver com aquela história com que alguns fazem confusão, de que se não há nada para fazer vamos entregar ao paliativista. Não, os cuidados paliativos são uma prática ativa. Os paliativistas dão qualidade de vida aos pacientes.

“O testamento vital é um documento que expressa a vontade da pessoa no momento
em que ela está lúcida. Não pode ser descumprido nem pelo médico nem pela família.”

ÉPOCA – Como você definiria o testamento vital?

Siqueira – Testamento vital é o nome mais popularizado. Surgiu na Califórnia, nos Estados Unidos, em 1976: “living will”. Estamos pensando em chamar de “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”, mas ainda estamos discutindo. Terminal é um termo, por exemplo, que não me agrada muito. É uma herança do raciocínio cartesiano de que é o fim. Sim, é o fim, mas é um fim que pode durar meses, anos. E há muito o que fazer com esse paciente, que merece todo o nosso cuidado.

ÉPOCA – Mas como é, na prática, o testamento vital ou a “Declaração Prévia de Vontade do Paciente Terminal”?

Siqueira – É um documento escrito, tem de ser obrigatoriamente escrito, por um paciente maior de idade e capaz. E com testemunhas. Esse documento deve conter orientações a respeito dos cuidados médicos em situação de terminalidade da vida. Especificando, também, se no caso de tornar-se incapaz de expressar esta vontade, o doente terá um procurador. É um documento para especificar que aquele paciente está descartando o tratamento desproporcional.

ÉPOCA – E como determinar o que é “tratamento desproporcional”?

Siqueira – Tratamento desproporcional é a intervenção médica efetuada em pacientes terminais, que consiste na utilização de métodos diagnósticos ou terapêuticos cujos resultados não trazem benefício ao paciente. Ao contrário, podem trazer mais sofrimento. São inúteis, pois não promovem alívio e conforto nem modificam o prognóstico da doença. Ou seja, o benefício almejado é muito menor que os inconvenientes provocados. Os profissionais de fala hispânica a denominam de “encarniçamento terapêutico”. E os anglo-saxões, mais comedidos, de “futilidade terapêutica”.

ÉPOCA – Vocês pretendem especificar o que são tratamentos desproporcionais no testamento vital?

Siqueira – Alguns juristas acham que deveríamos especificar o que é desproporcional, mas é complicado. O que é desproporcional para um paciente, pode não ser para outro. Depende do caso. Acredito que vamos fazer um texto mais genérico. E a definição será feita com o paciente, com os profissionais que fazem cuidados paliativos ou com o médico do paciente, e com a família. Deverá ser uma decisão deste núcleo. Outra questão, a do prazo. Os americanos, por exemplo, determinam que o documento seja válido por cinco anos e então precisa ser refeito. Nós achamos que não é necessário ter um prazo de validade. No texto podemos deixar claro que ele pode ser revogável a qualquer momento, caso o paciente mude de ideia.

ÉPOCA – O testamento vital é mais importante para os casos em que a pessoa perde a consciência?

Siqueira – Não só. De um modo geral os pacientes passam por um longo período em que estão conscientes. É neste momento que o testamento vital dever ser feito. Ele deve ser uma expressão da vontade da pessoa, feita no momento em que ela está lúcida, especificando o que ela quer. No documento dos americanos está dito, inclusive, que ninguém pode tomar decisão contrária: nem o médico, nem a família. Eu insisto que é importante especificar que nem o médico pode decidir o contrário porque não há uma visão homogênea. Existem médicos – e acho que é o caso da maioria – que consideram a ortotanásia adequada. Mas existem médicos que consideram a ortotanásia um tipo de eutanásia. Acho importante determinar no testamento vital que ninguém poderá botar uma cláusula diversa daquela que o indivíduo estabeleceu no momento da declaração.

ÉPOCA – Acho que seria importante definir aqui o que é ortotanásia, para nenhum leitor ficar com dúvidas…

Siqueira – Ortotanásia refere-se aos cuidados ativos aos pacientes portadores de enfermidades que não respondem a qualquer tratamento curativo.Tem como objetivo controlar a dor e outros sintomas,assim como oferecer atenção médica ao ser humano enfermo e sua família,expressando-se por cuidados de ordem física,psicológica,social e espiritual.Consiste em um sistema de apoio prestado por equipe multidisciplinar de saúde empenhada em ajudar o paciente a viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte,prestando adicionalmente apoio à família do paciente na elaboração do luto. A ortotanásia se contrapõe ao que a gente chama de distanásia (o prolongamento da vida do paciente sem chances de cura por meios artificiais).

“Estamos diante de uma faculdade de medicina paquidérmica, imobilizada.”

ÉPOCA – Imagino que a resistência, entre os médicos e também fora, é muito grande. E será grande nesse debate sobre o testamento vital. Qual é a sua avaliação?

Siqueira – Há muita resistência, com certeza. A estrutura curricular no curso de medicina é extremamente rígida. Aqui em Londrina conseguimos implantar, desde 1998, um ensino baseado em problemas. Nesta metodologia, o aluno passa a ser o protagonista, e o professor o auxilia a buscar o conhecimento. Mas a maioria das escolas ainda segue aquele modelo tradicional de que vai um professor lá e fala “a verdade”. Ainda estamos diante de uma universidade que é paquidérmica, imobilizada. Para você introduzir alguma coisa nova, demanda tempo. Cuidados paliativos, por exemplo, ainda não tem espaço na grade curricular. Nós conseguimos um espaço para bioética. Mas ainda insatisfatório.

ÉPOCA – E a resistência, no geral? Imagino que, mesmo dentro do Conselho Federal de Medicina, não deve ter sido uma discussão fácil, até chegar a um evento sobre testamento vital. E, é claro, sempre aparecem aqueles que usam de má fé e tentam distorcer dizendo que, no fundo, o que vocês propõem é uma autorização para eutanásia. O que você diria a quem tentar relacionar o debate com eutanásia?

Siqueira – Eutanásia ativa é pegar e injetar cloreto de potássio ou outra coisa no paciente. Eutanásia passiva é você deixar de tratar a pessoa. Ora, nos cuidados paliativos você trata a pessoa, é ativo. A ortotanásia não está nem na categoria da eutanásia ativa nem da passiva. Simplesmente não é eutanásia.

ÉPOCA – De onde você espera maior resistência, dos médicos ou da sociedade, em geral?

Siqueira – Talvez tenhamos de enfrentar uma resistência generalizada, a começar pelo poder judiciário. Explico. O que está acontecendo hoje é uma coisa dramática. Se nós medicalizamos a vida, também estamos jurisdicionalizando a morte. Não todos os operadores de direito, claro, mas parte deles. O que eu quero dizer com isso é o seguinte. A gente teme que os operadores de direito comecem a colocar tantas regras que vai ficar impossível fazer um testamento vital. Vou te dar um exemplo: no sistema brasileiro, teria de ser feito com um cartório, um notário. Isso obrigaria o indivíduo a ir a um cartório, com duas testemunhas. Temo que, se burocratizar o testamento vital, ele vai se tornar um documento complicado. Espero estar equivocado. No conselho estamos cercados de juristas extraordinários, que dizem que operadores de direito vão compreender, mas não sei.

ÉPOCA – Como você imagina que deva ser colocado em prática?

Siqueira – Acredito que a forma como eu vejo não vai vingar. Mas, para mim, o ideal seria que no prontuário do doente no hospital tivesse um documento chamado testamento vital ou outro termo que vamos definir. Faria parte do prontuário, em casos de doenças que ameaçam a vida. E teria de ser apresentado ao paciente. Isso envolveria um avanço cultural muito grande, porque é o médico, e não o assistente social, que vai ter de fazer. O médico conversando com o doente. Ele se sentaria com o doente e, com todo o tempo necessário, explicaria aquele documento. E o doente o preencheria, com duas testemunhas, como parte do prontuário.

ÉPOCA – Isso seria uma mudança de paradigma muito grande, já que, para fazer isso, o médico teria de realmente olhar para o paciente e escutá-lo.

Siqueira – É um salto muito grande. O médico teria de sentar com ele, conversar o tempo que for necessário, segundo o ritmo do doente e não o do médico. Não é: “Vamos preencher agora, eu tenho dez minutos”. Não. O médico vai ao paciente para conversar não uma, mas muitas vezes, sem o papel na mão. No momento em que perceber que o indivíduo está em condições de mexer com esta questão, então preenche. Se isso se passar no consultório do médico do paciente, estaria lá, no prontuário dele. Ficaria uma cópia com o médico, outra com o paciente. Depois precisa reunir a família e dizer: “Olha, isto aqui é a vontade dele, vocês podem conversar, mas é a vontade dele”. Porque esta coisa de deixar a família resolver é, no meu ponto de vista, muito complicado. Nós vivemos situações em que os filhos de pessoas idosas querem mandar na decisão, decidir pelo paciente.

ÉPOCA – E como evitar a burocratização, especialmente com os pacientes do SUS? Ou seja, o médico passa correndo pelo leito do paciente, usa uma linguagem técnica e diz que precisa preencher em cinco minutos e assinar para que ele possa permanecer no hospital e seguir sendo tratado… Mais difícil ainda quando sabemos que muitos brasileiros têm dificuldade de ler e escrever e alguns documentos médicos são indecifráveis até para quem tem pós-doutorado…

Siqueira – É uma preocupação absolutamente pertinente. Por outro lado, temo burocratizar demais a realização do testamento vital, se formos pelo caminho cartorial. Temos de encontrar um meio termo. Por isso este evento em agosto, onde discutiremos com excelentes juristas. Espero que encontremos um meio termo que garanta um documento que revele a verdade, que proteja a autonomia daquele ser humano, mas sem burocratização demasiada, para não se tornar inviável. Sabemos que, no Brasil, ainda estamos no Casa Grande e Senzala. O Brasil tem ilhas em que o ser humano é respeitado na sua autonomia e dignidade, mas muito mais gente não tem a possibilidade de exercer sua cidadania. É difícil. Mas acho que temos de fazer isso. Colocar essa questão na pauta.

“Um estudo mostrou que 33% dos pacientes do SUS não são
chamados pelo nome e 30% nem sequer são examinados”

ÉPOCA – Como fazer a discussão do direito de ter uma morte digna numa sociedade que não consegue falar sobre a morte, que acredita que deve ser jovem para sempre e não morrer nunca? Esta é uma barreira difícil de transpor, não?

Siqueira A sociedade capitalista induziu as pessoas a pensar na juventude eterna. A morte é um tabu e ninguém quer pensar nela. A sociedade de mercado incluiu dentro dos valores esta coisa de que “consigo adiar minha morte” ou “eu não quero discutira a morte, eu quero discutir a vida”. Porque permanece este hedonismo, esta coisa de “não vou envelhecer porque velho é feio”. Ou seja. Nós temos várias barreiras, culturais, de formação profissional etc. Vivemos numa sociedade absolutamente individualista, na qual não existe ouvir o outro, a alteridade, aquilo que diz (Emmanuel) Lévinas (filósofo francês): “Quero olhar o rosto do outro e me curvar diante dele”. Isso não existe. E me deixa muito triste. Fizemos um estudo em Londrina com 324 pacientes, comparando o atendimento de um convênio e do SUS. Foi apresentado no VI Congresso Mundial de Bioética, em Brasília, no ano de 2002. Mostramos que, no SUS, a pessoa fica esperando um absurdo de tempo por uma guia. Em algumas especialidades, seis meses. Então recebe um papel e vai a uma sala onde há um banco de cimento, com um monte de gente. Descobrimos que 53% esperam lá por mais de uma hora. E constatamos que 33% dos pacientes não são chamados pelo nome. Não são chamados pelo nome! Cerca de 70% deles permanecem dentro do consultório menos de 10 minutos e 30% nem sequer são examinados.

ÉPOCA – O que você está dizendo – e que pode ser paradoxal para alguns profissionais – é que cuidar é respeitar o desejo do paciente e que ajudar a morrer também é um ato médico. É isso?

Siqueira – Sem dúvida. Cuidar é ter a percepção do ser bio-psíquico-social-espiritual. Ter na sua frente todas estas dimensões. O problema é que hoje prevalece a fatia biológica. Eu aprendo a tratar um fígado doente, um coração doente, mas não aprendo a tratar o ser humano em toda a sua dimensão. E um ser humano é essa realidade complexa. Cuidar significa atender esta pessoa com os valores dela, com a história, a biografia, as crenças dela. Cuidar é isso. É dizer: “Você é o protagonista e eu vou te auxiliar neste momento difícil da tua vida. Mas é você quem vai determinar quais são os passos que vamos dar. E não eu”. O médico paternalista hipocrático já era. Precisamos formar um médico habilitado para ver essas dimensões todas. E não simplesmente a dimensão biológica.

ÉPOCA – Como você explicaria para um estudante de medicina que ajudar a morrer também é um ato médico?

Siqueira – Hoje, com a formação que nós temos, é muito difícil. Você não vai encontrar um médico capaz de acolher esta argumentação porque ele acha que esta não é a missão dele. A missão dele é salvar. O que temos de fazer? Temos de criar condições para que este indivíduo tenha educação continuada e tenha possibilidade de refletir sobre outros valores. Na situação atual, talvez o conselho tenha de fazer isso. Tenha de se desdobrar para ir a todos os lugares do Brasil para conversar sobre o que queremos fazer, para conversar com os médicos. Porque a realidade do Brasil é muito diferente da que está na nossa cabeça. É um trabalho muito grande, mas é um trabalho que vai significar algo importante na medicina. A medicina precisa aprender a tratar o ser humano como ele é, no seu sofrimento, no que Cicely Saunders chamava de “dor total”. Os médicos precisam ser preparados para a iminência da morte. Se você conversar com a (Maria) Goretti (Maciel) sobre os que fazem estágio na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Estadual, em São Paulo, ela vai te contar que eles não sabem o que fazer, porque não tiveram no curso ninguém que conversasse com eles sobre isso. Com frequência entram em parafuso porque percebem que não estão preparados e não conseguem fazer aquilo. Temos esperança de que, com o tempo, os paliativistas consigam fazer com que essas pessoas se motivem. Porque é muito gratificante. Quando você visita uma unidade de cuidados paliativos como esta, você sai de lá com a certeza de que a medicina é o que eles fazem lá – e não lidar com aparelhos. Ali está o exercício mais digno da medicina. Isso implica ter a consciência de que tratar de um ser humano é também reconhecer que o que você pode fazer é limitado. Nesta limitação você vai acolher, olhar e cuidar. Mudar esta mentalidade para que os médicos possam entender isso demanda tempo, é um horizonte para nós. Ao longo dos anos é enfiado goela abaixo do médico uma coisa de formação técnica. Mas dentro dele ainda vive o menino altruísta que entrou no curso porque queria ajudar o ser humano. Sócrates (filósofo grego) dizia algo mais ou menos assim: “Eu não ensino nada a eles, o que eu faço é simplesmente provocar, para que tirem de dentro deles a coisa mais bonita, o parto das almas”. Acho que a gente vai conseguir. Tenho convicção de que é um caminho longo, mas vamos conseguir.

ÉPOCA – Vou dar um exemplo pessoal. Eu e meu irmão temos um pacto para cuidar um do outro quando chegar a nossa hora de morrer. Nosso compromisso mútuo é garantir que a vontade do outro seja cumprida, no sentido de que não queremos estar numa UTI nem amarrado a aparelhos nem ter nossa vida prolongada artificialmente. Estamos preparando este documento e vamos registrá-lo, com testemunhas. Hoje, este documento seria aceito? Ou, perguntando de outra maneira, conseguiríamos que nosso desejo de uma morte digna, a partir do que é digno para nós, fosse respeitado?

Siqueira – Hoje, seu irmão teria de ter um poder de persuasão muito grande para que os médicos aceitem isso. Não há nenhuma garantia porque não está expresso em lei. Não existe ainda este documento no Brasil, esta figura do testamento vital. Eu mesmo tenho um trato com um amigo meu, médico também, neste sentido. Mas não existe nada que hoje nos garanta que nosso desejo será respeitado. Se você e o seu irmão registrarem em cartório e um dos dois levar esse documento ao médico, tenho a impressão de que o médico vai ter sensibilidade para acolher. Mas ele não é obrigado a isso. Ele pode dizer: “Você vai me desculpar, mas isso não está previsto, e eu não posso ser acusado de omissão de socorro. Eu acho que seu irmão precisa de uma intervenção assim e assado, e vou fazer o que eu acho. Se você quiser entrar na justiça, entre”.

ÉPOCA – Mas, se eu tenho o direito constitucional de viver com dignidade, eu também tenho o direito de morrer com dignidade, na medida em que o morrer faz parte da totalidade da vida, é o ato final da vida, está abarcado dentro da vida. E só eu posso dizer o que é dignidade para mim. Não seria inconstitucional me privar disso?

Siqueira – Enquanto nós não tivermos um reconhecimento através de legislação de que o indivíduo tem efetivamente este direito, que está prevista a figura do testamento vital, o médico pode dizer não ao seu desejo. Não digo que vá dizer não, mas digo que pode dizer não. Este é o objetivo do debate que estamos iniciando. Precisamos de um documento que ampare a autonomia do paciente também nesse momento final.

ÉPOCA – Em que países existe o testamento vital e como funciona?

Siqueira – Na Califórnia, o “living will” existe desde 1976. Em 1991, foi estendido a todos os estados americanos e chamado de “Patient Self Determination Act” – ou, traduzindo, “Ato de Autodeterminação do Paciente”. Vários países da Europa possuem algo semelhante. Aqui na América do Sul, o Uruguai é um dos poucos países que tem a figura do testamento vital.

“Quando chegar a minha hora, eu não quero um técnico
dizendo que vai prolongar minha vida com aparelhos.”

ÉPOCA – Como é o testamento vital acertado com seu colega?

Siqueira – Este colega é cardiologista também. E conversamos muito. Estamos vivendo isso há muito tempo e testemunhamos as barbaridades que são feitas com doentes terminais. Nós combinamos que, na situação em que um de nós tenha uma doença que ameace a vida, o outro vai procurá-lo e vamos fazer o documento naquele momento. Eu não quero ser internado numa UTI, a não ser que tiver uma doença aguda. Mas, se eu tiver uma doença que vai acabar com a minha vida, eu não quero ser internado numa unidade de terapia intensiva. Eu não quero receber suporte com aparelhos, eu não quero receber nada além do cuidado de tirar a dor, de aliviar a minha respiração, algo que me ajude a ter consciência, lucidez, pra fazer o que tenho de fazer. E que isso seja feito no ambiente que eu escolher. Ou numa unidade de cuidados paliativos ou na minha casa, com cuidado ambulatorial. Vou querer receber cuidados paliativos. E não quero um técnico me dizendo que vai fazer isso ou aquilo, que pode prolongar minha vida com aparelhos.

ÉPOCA – Este é o mesmo testamento do seu amigo?

Siqueira – É a mesma visão do meu amigo. Na realidade, ele é um hemodinamicista. Lida com situações agudas de infarto do miocárdio. Tem essa mesma percepção: vamos nos livrar desta coisa que estamos vendo e que está sendo cruel, de desrespeito grave à dignidade, à vontade, à personalidade daquela pessoa.

ÉPOCA – Você já viveu isso com algum paciente?

Siqueira – Eu tive um doente que tinha uma coronariopatia muito grave. Isso aconteceu uns oito anos atrás. A possibilidade cirúrgica dele era pequena. Este paciente era um dentista, um professor, muito meu amigo. Estava separado da mulher, com uma parte da família em Londrina, outra em Brasília. Veio conversar comigo, queria saber de sua doença. Eu falei: “Acho que, do ponto de vista cirúrgico, as chances são pequenas”. Ele perguntou sobre os números. Eu disse: “Olha, não tem números, só posso dizer que é uma chance pequena”. Ele perguntou: “Quanto tempo de vida eu tenho?”. Eu disse: “Não sei, não sou Deus. Mas posso te dizer, pela literatura médica, que a gente consegue que você tenha pelo menos seis meses de vida”. Ele decidiu não fazer nenhuma intervenção cirúrgica. Queria resolver seus problemas existenciais, com a família que teve, com a família que tinha. Um de seus filhos, dentista também, soube que nós tínhamos conversado. Ligou para mim: “Você está louco? Meu pai tem de ser operado, ele tem chance”. Tentei explicar para ele, mas ele ficou muito bravo. Achava que não podia ser decisão só do paciente. Filhos e netos começaram a pressionar meu amigo para que se submetesse à cirurgia, mas ele se manteve firme na sua decisão. Acabou morrendo em Brasília, numa morte súbita na casa de uma filha, nessa peregrinação de acertar suas coisas. Hoje, passados oito anos, seu filho, aquele que havia ficado muito bravo, me agradece. Ele disse: “Olha, naquela época eu tinha uma visão muito equivocada. Eu tinha uma visão egoísta. Eu queria que o meu pai estivesse vivo de qualquer jeito porque eu não concebia a morte dele. Eu não conseguia imaginar a morte dele. Agora que passou esse tempo todo acho que tudo aconteceu da melhor maneira. Se ele tivesse passado por uma intervenção cirúrgica teria sofrido muito mais”.

ÉPOCA – Sempre achei que deixar algo por escrito ajudaria minha família a ter tranquilidade no momento tão difícil da minha morte, porque teria a serenidade proporcionada pela certeza de estar cumprindo a minha vontade. Mas a família pode ser um grande problema, não é?

Siqueira – Pode ser muito complicado, porque entramos num universo meio freudiano. O ser humano também não é uma ilha, tem estes vínculos todos. Minha experiência é a seguinte: o problema mais difícil é abordar isso com a família. Vivemos essa cultura de que as pessoas acham que podem determinar o que o outro tem de fazer. E, às vezes, o que parece ser um benefício é, na verdade, um malefício. Testemunhei um caso na UTI de um rapaz de 28 anos de idade, que tinha o vírus HIV. Ele já tinha tido todas as evoluções possíveis e estava com uma broncopneumonia. Chamou a médica que o atendia e disse: “É o seguinte, doutora, eu sei que meu negócio é grave. Eu quero deixar claro: eu não quero ser entubado e eu não quero traqueostomia. Se eu começar uma crise quero que a senhora apenas me alivie, tire a dor, use máscara de oxigênio se for o caso”. A médica disse que sim. Aí chegou a hora da visita da família e ela disse: “Olha, eu preciso conversar com vocês. Ele está em tal situação e acabou de me dizer que não quer isso e aquilo”. Os pais disseram: “Negativo, doutora, a senhora vai fazer. Se tiver que entubar, vai entubar. E se não fizer, vamos dizer que a senhora omitiu socorro”. Esta médica me procurou para perguntar o que ela deveria fazer. Eu disse: “Acho que você tem de se curvar diante da vontade do paciente. Se você entubar, depois vai ter de fazer traqueostomia e este cara vai sofrer”. Ela me disse: “Muito bem, mas você vai lá tomar essa decisão, porque eu não vou tomar”. Lamentavelmente esse rapaz foi entubado, traqueostomizado e ficou mais ou menos uns 20 dias assim até morrer. Teve a morte que ele não queria, a morte que, quando lúcido, disse claramente que não queria ter.

ÉPOCA – O testamento vital o salvaria desta morte?

Siqueira – Exatamente. Se tivesse o documento a médica poderia dizer: “Vocês vão me desculpar, mas está escrito aqui e eu vou cumprir a vontade do paciente”. No texto da Califórnia está dito que esta instrução não será desobedecida nem pelo médico nem pela família. Será respeitada por ser expressão da vontade do paciente. Nós podemos incluir um item como este, que tem de ser cumprido. Acho que temos de fazer isso porque, em um número muito grande de casos, a família poderá intervir no sentido de que não seja cumprida a vontade do paciente. Por dificuldades emocionais do tipo: “Puxa, nós não fizemos tudo”. Por isso essa discussão é tão importante, para que todos possam começar a compreender a importância da dignidade na morte. Para que essas famílias possam entender o que é uma morte digna, que aquilo que parece um benefício pode não ser e que o paciente tem de ser respeitado no seu desejo.

O maior problema das UTIs hoje é que uma parte significativa de
seus leitos está ocupada por pacientes que não deveriam estar lá.”

ÉPOCA – Falando em família, seu filho é um intensivista, trabalha na unidade de terapia intensiva de um grande hospital. Como é a sua relação com ele?

Siqueira – Este filho está em São Paulo, é um intensivista muito bom. Quando comecei a fazer bioética encontrava com ele, e ele falava assim: “Pai, você largou de ser médico, não gosta mais da medicina?”. Naquela época, ele achava que esta era uma reflexão de abstração, que não tinha nada a ver com a realidade, que realidade é a doença que tem de tratar. Agora, ele me diz o seguinte: “Olha, pai, acho que estamos fazendo muita coisa equivocada na UTI”. E ele tenta conversar com os colegas. Mas o ambiente de UTI ainda é de muita tecnologia. Se chegar a um hospital acadêmico e começar a argumentar, chamam um psiquiatra. Neste ano meu filho está se formando também em direito e o tema da monografia dele é: “Os direitos dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva”. Mas ainda é difícil para a maioria dos intensivistas. Eles estão vivendo uma coisa dramática. Tem médico que cuida do doente e, quando começa a complicar, manda para a UTI. Aí alguém liga do pronto-socorro dizendo: “Olha, chegou aqui um cara com infarto do miocárdio, que está com pressão 3 por zero, e eu preciso que você me arrume um leito com monitor, com tudo”. E o intensivista tem de dizer: “Isso eu não tenho”. Dizer isso dói, mas dói muito, porque o cara sabe que ele poderia ter aquele leito e não tem. Ou seja. Os leitos de UTI estão sendo usados de maneira inadequada.

ÉPOCA – Há estudos mostrando que um percentual significativo dos leitos das UTIs está ocupado com pessoas sem possibilidade de cura, que deveriam estar em unidades de cuidados paliativos. Como é isso?

Siqueira – Este é um problema muito sério hoje. Pacientes que sofreram um acidente vascular hemorrágico, por exemplo. Vão entrar num estado vegetativo e vão viver muito. Estão na UTI, mas a UTI não é o lugar deles. O neurologista, claro, quer que ele fique lá, porque é muito mais confortável para ele. E a família também quer, porque a UTI, de alguma maneira, dá uma segurança equivocada de que o doente está sendo cuidado. E não está. É duro isso. A rigor existe um número muito expressivo de leitos ocupados indevidamente. Este talvez seja o maior problema das UTIs hoje, o número de doentes que não deveria estar lá. Por prolongamento da vida a qualquer preço e por uso indevido da tecnologia.

ÉPOCA – Nesta visão que vocês estão propondo, com o testamento vital, os médicos perdem o poder de decidir sobre a vida e a morte do paciente, o que é, desde sempre, uma ilusão, mas muito difundida na categoria. Como é esta relação horizontal que você defende?

Siqueira – É difícil para os médicos, mas acho que toda decisão deve ser dialogada com o paciente. Não só perto da morte, mas toda. E se o paciente entender que deve ser feita uma coisa que não é a decisão que eu, como médico, tomaria, eu tenho de me curvar diante disso. Claro que para o médico isso é difícil. Porque o médico tem a arrogância do saber: “Eu sei que o melhor para você é isso”. Ele não sabe nada, quem sabe é aquela pessoa.

ÉPOCA – Proporcionar dignidade na morte é uma espécie de causa da sua vida?

Siqueira – Olha, a bioética mudou minha vida. Eu comecei a trabalhar com ela em 1996. Estou com 68 anos. Tive um momento da minha vida muito cartesiano, muito arrogante, achava que sabia e resolvia tudo. Na medida em que o tempo vai passando, o cabelo vai ficando branco, começamos a ter a percepção de que o que Sócrates falava é de uma solidez tremenda: “Só sei que nada sei”. E aí o que eu fiz foi começar a estudar filosofia, essa coisa toda. Entrei num mundo muito curioso, porque comecei a observar que os textos dos grandes pensadores me falavam muito mais como médico do que os textos médicos, propriamente ditos. Eu preferia ler Foucault, ler Heidegger, ler Habermas do que ficar lendo textos que, meu deus do céu, só falavam de coisas técnicas. E acho que agora é isso mesmo que vou fazer. Eu não acredito nessa coisa de missão na vida, acredito que a gente tem tarefas. Acho que posso colaborar no sentido de fazer com que exista uma reflexão sobre as coisas erradas que vi na medicina. Posso colaborar para que possamos fazer uma medicina que respeite o ser humano, que tenha como núcleo central olhar aquela pessoa na totalidade do sofrimento dela, com um médico que saiba que ela é vulnerável e que proponha um relacionamento o mais horizontal possível. Embora tenha crescido muito o fascínio pela tecnologia, cresceu também a percepção de que o médico precisa ler filosofia, ler outras coisas, precisa ter sensibilidade e não simplesmente achar que tratar uma pessoa é tratar uma doença. Eu acho que esta é a nossa tarefa e acho que estamos conseguindo. Eu sou otimista.

(Publicado na Revista Época em 12/07/2010)

Dois andares abaixo do meu

Ela vivia lá e eu desconhecia, ela morria lá e eu não sabia

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.

Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.

Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.

Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava, assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas, em abissal solidão.

Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.

Não consegui dormir por algumas noites porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando imaginar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69 apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.

Numa fissura do tempo algo que não pode mais ser oculto se revela – revelando também o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a dela.

Depois precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.

Acredito que todos no prédio ficaram chocados, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela tentávamos viver. Mas também – e talvez principalmente por isso – porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.

O apartamento dela é igual ao nosso. Esta semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderia ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso horror se fosse um assassino, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um psicopata. Isto está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali por solidão. E isto está bem perto.

Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.

Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.

(Publicado na Revista Época em 21/06/2010)

Ana Hickmann e a humanidade sitiada

Quando tudo o que é humano vira tumor

Duas reportagens publicadas na Folha de S. Paulo na semana passada são chocantes pelo que revelam – e pelo despudor com que revelam. A primeira saiu na coluna de Mônica Bergamo. E conta sobre o “produto” Ana Hickmann. A outra é uma matéria sobre uma reunião do Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília, em São Paulo, assinada por Afonso Benites. Nela, moradores e comerciantes anunciaram uma campanha oposta àquela com que Betinho uniu o país nos anos 90: a deles é para pressionar ONGs e restaurantes a parar de dar comida aos sem-teto que vivem nas calçadas. Nesta, que pode ser chamada de “campanha pela fome”, ou os mendigos morrem de inanição ou vão assombrar ruas fora das fronteiras do bairro.

Pelas reportagens, descobrimos que Ana Hickmann, a modelo e apresentadora da Record, é uma coisa, decidiu ser uma coisa. E que os bons cidadãos de Santa Cecília consideram os mendigos não uma coisa, mas gente. É por ser gente – e não coisas – que devem ser expulsos. Ou desinfetados, como anunciou uma comerciante. Com o despudor de quem tem a certeza de que está do lado certo da força, ela contou que lança desinfetante nos que vivem em frente à sua loja.

Olhamos para Ana Hickmann, fisicamente tão bela, tão perfeita, com pernas de 94 centímetros. “Uma elfa”, como diz um amigo meu que um dia a encontrou nos corredores da Record. E aí ouvimos Ana Hickmann falar sobre como vê a si mesma. Ela diz: “Sempre me considerei um produto. Parece cruel, mas é verdade”. Diz mais: “O Alê (marido e sócio) me chama de general. Fala que sou truculenta pra caramba. E sou mesmo. Exigente, como sempre foram comigo. Nunca me deram a chance de errar”. Alexandre Corrêa, o Alê, dispara uma sequência de frases antológicas sobre a mulher e sócia: “A gente vai entregar para o mercado uma Ana Hickmann diferente, sem esses problemas (referindo-se a dificuldades de dicção, que estão sendo corrigidos por uma fonoaudióloga)”; “A palavra ‘perder’ não está no nosso dicionário”; “A Ana Hickmann tem que ir para o domingo para matar ou morrer. Tem que acordar todos os dias com sangue nos olhos. Se não odiar o concorrente, você é um frouxo. Com mão mole, não machuca ninguém. Fere, mas não tira a pessoa de combate”. O romantismo foi deixado de lado, ele explica: “por um tempo pra gente investir e enxergar nosso crescimento sem deslumbramento. Porque com romantismo vêm férias em Paris, esquiar em Aspen, fazer compras em Nova York. E o trabalho e as obrigações ficam para trás. Se ficar com ‘mela mela’, todo problema profissional vira sentimental. O circo pegando fogo e você ‘amorzinho’, abraçando o outro para se lamentar? Ah, por favor!”

Ana Hickmann e seu sócio-marido falam sobre “o produto Ana Hickmann” sem nenhum pudor. Se dizem o que dizem para um jornal de âmbito nacional, é porque acreditam que estão dizendo aquilo que é certo dizer. Mais do que certo – já que o certo ou errado não parece ser lá uma questão muito relevante nesse contexto: dizem aquilo que é valorizado no discurso contemporâneo. Algo que deveria, no seu modo de ver o mundo, despertar admiração no público. Afinal, eles são “produtos” de um mundo em que tudo pode – e deve – ser coisificado para ser consumido. E tudo o que tem valor só tem valor porque é mercadoria.

Ao contrário de como Ana Hickmann vê a si mesma, os moradores e comerciantes de Santa Cecília não veem os mendigos como “coisas”. Se fossem coisas, teriam valor, nem que fosse o valor de vendê-las para a reciclagem. Como são gente, a solução é suspender sua comida. Sim, porque gente come. Ao decidirem interromper o acesso à alimentação, eles acreditam que encontraram a solução para seus problemas. E seus problemas resumem-se a gente que não serve para nada. Nem para virar coisa.

Se alguém contraria esse discurso, em ambos os casos, pode ser acusado de hipócrita. Ou ingênuo. Porque, afinal, é assim que o mundo funciona. Ou você produz, ainda que como mercadoria com alto valor agregado, como é o caso de Ana Hickmann, ou você deve ser eliminados dos olhos e do mundo de quem produz – com desinfetante ou por inanição. Em ambos os casos, o que é humano atrapalha. Tem de ser eliminado da vida do produto Ana Hickmann, tem de ser eliminado das calçadas dos moradores e comerciantes de Santa Cecília.

Na vida do produto Ana Hickmann, são os sentimentos que têm de ser eliminados – os ligados à gente frouxa, pelo menos, que atrapalham o sucesso, já que ódio, ambição, “sangue nos olhos” são valorizados. Devem ser eliminados o romantismo, o erro, a condição falível do humano, o que seu sócio-marido tão bem define como “mela mela”. Na vida cotidiana dos moradores de Santa Cecília, o que tem de ser eliminado é gente que não produz, que não toma banho, que não se veste bem, que faz sujeira, que às vezes é mal-educada, xinga e briga. Gente que pede coisas e não tem dinheiro para pagar pelas coisas.

Ninguém gosta de ver pessoas morando na rua diante de sua casa ou pedindo comida na sua porta. Sempre imaginei que fosse porque o sofrimento do outro, a indignidade desta condição, nos afeta. Ainda que não gostemos também porque algumas dessas pessoas façam sujeira na rua e não se espera que alguém aprecie sujeira diante da sua casa ou da sua loja, o que espanta é achar que não temos nada a ver com isso. Não se trata aqui de achar que todo morador de rua é bonzinho ou de que todo sentimento humano é agradável. Trata-se sim de pensar sobre o que faz com que se acredite que ambos devam ser exterminados – da vida cotidiana do bairro, da vida de cada um.

O que espanta é acreditar que pessoas e sentimentos são sujeira, lixo orgânico, lixo não reciclável – e, portanto, sem valor. O que espanta é que Ana Hickmann se anuncie como produto e isso seja confundido com sucesso. Que pessoas vivam sem condições mínimas e um grupo de pessoas acredite que o que pode fazer de melhor é lhes tirar a comida. Ou que se sinta tão impotente a ponto de acreditar que a fome pode ser a solução. Espanta também que na reunião estivessem presentes representantes de várias instâncias do poder público: polícia, subprefeitura da Sé e guarda civil. E também do hospital Santa Casa. E que nenhuma voz tenha se manifestado contra a proposta.

Descobrir que pessoas como Ana Hickmann se veem como coisas nos dá pistas para compreender o modo como os moradores e comerciantes de Santa Cecília veem os mendigos. É como coisa que Ana Hickmann vai para a TV entreter millhões todo domingo. Ela, que ganha R$ 300 mil por mês de salário, fora todos os produtos que derivam do produto maior, é um exemplo de sucesso, de self-made woman. Ou self-made thing. Se tudo der certo e nenhum sentimento humano indesejável atrapalhar a trajetória do produto, como diz seu sócio-marido, um dia ela será “a Oprah Winfrey do Brasil, loira e de olhos azuis, num país de gente parda”.

Tudo isso é revelado, Ana Hickmann diz que é um produto, os comerciantes de Santa Cecília anunciam que vão deixar os moradores de rua sem comida. Tudo isso é estampado no jornal e, fora uma ou outra repercussão, passa, vira a página. Se passa, sem grandes alardes ou questionamentos, o que isso diz sobre nós? Nós também perdemos o pudor? Por que isso não nos espanta? Significa que é assim que olhamos para o outro e para nós mesmos? Ou achamos que podemos nos safar sem nos posicionarmos diante do mundo? Que isso não nos diz respeito?

Se alguém acredita que essa forma de ver o mundo, a si mesmo e ao outro, com a qual compactuamos em geral por omissão, não afeta sua vida, cada minuto da sua vida, desde que acorda e vai para o trabalho até a hora de ir dormir, está bem iludido. Ou de onde viria toda essa dor de existir, que transformou a depressão numa epidemia mundial? Em algum lugar desse corpo materializado em coisa, reduzido à mercadoria, há um resquício de humanidade. E é essa ínfima porção latejante, encarnada, mas desligada de toda carne que não seja a própria, que dói.

Concordar com Ana Hickmann e com os cidadãos de Santa Cecília é acreditar que nossa humanidade é um tumor que deve ser extirpado de nosso corpo coisificado. Uma sujeira que, como os mendigos, deve ser eliminada por fome e esterilizada com desinfetante. De fome, acho que muitos de nós estão se matando mesmo. Não a fome que vem da falta de comida, mas a que vem da falta de espírito, de transcendência, de sonho, de projeto coletivo, de potência transformadora, de tudo que não é estranho ao humano – só às coisas. Mas a esterilização ou anestesia por medicamentos, esta parece que não está adiantando muito.

A Ana Hickmann e ao seu sócio-marido, desejo que um dia tenham tempo para o que não é da ordem das coisas, mas do humano. Para o romantismo, o sentimento sem serventia ou controle, o vacilo. Que quando o que há de humano em Ana Hickmann errar, a agenda lhe permita se encostar ao ombro do marido e fazer o que chamam de “mela mela”. Aos bons cidadãos de Santa Cecília, peço emprestada a fala de um homem sábio que conheci. Ele se chama Muhammad Ashafa e é um líder muçulmano da Nigéria. Uniu-se a um líder cristão num país onde adeptos das duas religiões costumam se matar entre si. Juntos, estes homens que no passado quase mataram um ao outro têm defendido pelo mundo um “dia do perdão”. Contei sua história nesta coluna há quase um ano.

Deixo sua mensagem como sugestão de pauta para a próxima reunião do Conselho de Segurança de Santa Cecília, quando pensarem numa alternativa para o seu vizinho da rua que não seja lhes tirar o acesso à comida, uma que inclua ver moradores de rua como gente não descartável, mais parecida com eles mesmos do que gostariam: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Um tempo atrás, eu levava minha filha para o aeroporto numa das muitas manhãs cinzentas de São Paulo. Estava frio e garoava. Nós íamos caladas no banco de trás do táxi. De repente, o carro foi obrigado a parar por causa do trânsito. Testemunhamos então uma cena que guardei para a minha vida como um diamante da memória, daqueles que não podem ser comprados ou vendidos. Debaixo da marquise de uma loja, meio encoberto por papelões, um morador de rua erguia um bebê para cima com tanta alegria e tanto amor no olhar que o tempo parecia ter parado com o trânsito. Era um homem mais velho ou parecia mais velho pela brutalidade das ruas. Mas ele estava alheio ao mundo ao seu redor, à sua situação de rua, ao frio e à garoa, a tudo o que aconteceria depois. Seus olhos, seu rosto inteiro, brilhavam a ponto de chamar a atenção de quem passava. Seus olhos brilhavam de alegria pela criança que tinha nas mãos. Naquele momento, ele era um homem sem idade, sem classe social, sem classificação. Naquele momento, ele era só um homem diante do milagre da vida.

O trânsito avançou, o carro seguiu. E a cena ficou encarnada em mim. Desde aquele dia, meses atrás, eu queria contar essa história aqui, mas não encontrava jeito. Lembrei dela agora, diante de tanta gente bruta, com acesso à casa, à educação e a tudo o que o dinheiro pode comprar, mas que perdeu o acesso a si mesma. Nos cantos de mundo, nos cantos da rua, nos cantos de cada um de nós a humanidade resiste. Resiste onde menos se espera, resiste mesmo contra a nossa vontade. Resiste até mesmo quando supostamente atrapalha nossa produção, nossa performance ou nossa “coisicidade”.

(Publicado na Revista Época em 07/06/2010)

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