A história de Lili Lohmann

Se alguém lhe disser que você é substituível, não acredite

Dias atrás, meu telefone na redação da ÉPOCA tocou quando eu arrumava minhas coisas para ir embora. Atendi um pouco impaciente. Do outro lado, uma voz de mulher com sotaque alemão. “Eliane, aqui é Lili Lohmann.” No mesmo instante, voz e nome resgataram-me para mim mesma. “Estou ligando para dizer que li teu último livro, O Olho da Rua, e adorei.” De novo, eu sabia quem era eu. Lili me contava o que importava na vida. E aquela noite que seria mais uma, numa rotina de repetições, povoou-se de significados. Lili me devolvia a grandeza.

Quando eu aprendi a ler, aos sete anos, senti que minha vida ganhava todas as possibilidades do mundo. Cheguei perto dessa sensação algumas vezes ao longo dos meus 43 anos, mas nunca como a dos primeiros livros. Desde então, eu, que era ao mesmo tempo uma criança que olhava muito e falava pouco, mas também uma criança que aprontava bastante, passei a atravessar meus dias trancada no quarto lendo um livro atrás do outro. Às vezes nem comia. Ou me sentava à mesa para o almoço imersa na última linha lida, temerosa de perdê-la numa colherada de feijão e, com ela, a chance de chegar à linha seguinte.

Lia até quatro, cinco livros por dia. Comecei pelos infantis e logo passei para os adultos. Aos dez anos, eu já tinha lido todos os livros de José de Alencar, não porque gostasse, mas porque não conseguia parar até chegar ao fim da coleção. E me atraía nele aquele erotismo velado, de loiras que amavam índios de pele cor de cuia, dândis que se perdiam pela marca de um pé minúsculo deixada na lama, moças virtuosas que viravam prostitutas. A partir daí, nada, nem mesmo minha iniciação sexual, foi vivida sem a ajuda inestimável dos livros. Era neles que eu buscava as respostas às tantas dúvidas que me assaltavam.

Então conheci Lili. Essa moça de origem alemã, ao mesmo tempo austera e enérgica, magra e sólida, com cabelos castanhos encaracolados e cortados curtos, cuidava da seção de livros da Livraria Cultural, a maior de Ijuí, minha cidade natal no Rio Grande do Sul. E Lili gostava de livros, entendia de livros. Meus pais, ambos descendentes de imigrantes italianos esfomeados e analfabetos, tinham um acordo com relação à sua prole: não poderia faltar comida nem educação. Passávamos às vezes anos sem ganhar uma roupa, até os oito anos eu ainda dormia num berço, com as pernas encolhidas, porque não havia dinheiro para comprar uma cama, mas a mesa era farta e os livros presentes.

Mas nem mesmo com esse firme propósito era possível para eles, professores eternamente mal pagos, como todos nesse país, dar conta da minha voracidade de leitora. Lili então, com o cuidado de não expressar nenhuma condescendência, me deixava ficar no canto da livraria lendo por horas livros que jamais compraria. Sentada no chão, num canto, com prateleiras e mais prateleiras à disposição, foi o mais perto que consegui chegar de uma ideia de paraíso.

Foi ali que aprendi a começar a ler pelo cheiro do papel. Meu primeiro ato era uma cafungada quase erótica naquelas folhas virgens, as quais eu seria a primeira a desbravar. Depois eu passava a mão na lombada, sentindo formato e textura, acariciava as páginas com reverência e delicadeza. Só então lia a primeira palavra, possuída por imensa felicidade. Até hoje repito esse ato nas livrarias, causando algum estranhamento nas pessoas próximas. Para mim, os livros sempre foram sagrados, mas apenas para que pudessem ser profanados.

Um dia Lili colocou uma escada à minha disposição, e então pude alcançar os livros mais altos. Nunca encontrei palavras para expressar o que essa escada representou. Com ela, eu podia alcançar a Lua. Eu era Neil Armstrong, mas não para fincar nenhuma bandeira, não era a posse que me interessava. Contentava-me em acariciar o chão lunar com a ponta dos dedos. A certa altura, nunca soube se porque alguém reclamou daquela criança metida por horas numa dobra das prateleiras sem nada comprar ou porque ela realmente acreditava no meu discernimento, Lili me promoveu. Fui incumbida da tarefa de ler os livros recém-lançados para dizer a ela se devia ou não encomendá-los. Ganhei então o privilégio de levá-los para casa. Aos nove anos, eu era uma profissional com imenso poder.

Quando Lili anunciou que iria deixar a livraria, meu mundo ficou profundamente abalado. Talvez tenha sido minha primeira grande perda. Com ela, toda a magia, assim como os bons livros, partiu. As que a sucederam nunca perceberam a grandeza do seu trabalho, deixavam-se reduzir a funcionárias. Entre elas e os livros não havia intimidade, seria o mesmo se apertassem parafusos. Nunca soube as razões oficiais pelas quais a livraria mais importante da cidade foi se terminando. Mas, para mim, era a minha versão que fazia mais sentido. Primeiro a livraria perdeu Lili, depois a seção de livros, restando apenas a papelaria, e, por fim, morreu. Não havia como ser diferente. Livrarias sem alma podem até vender muito, mas jamais serão grandes. Não há vida sem o mistério da vida. Há apenas atos destituídos de gente.

Nosso tempo, me parece, sofre de dois males que se complementam. Pelo menos dois. Um deles é acreditar que as pessoas importantes são aquelas que batem recordes, ganham milhões ou aparecem na capa das revistas de celebridade com seus corpões. Fora desse hall da fama determinado por razões que servem aos poucos de sempre, a vida de todos os demais se torna pequena, insignificante. O outro mal é aquilo que está no discurso de gurus e da maioria dos chefes nas mais diversas áreas, que se resume por uma frase dita com ares de verdade absoluta: “Ninguém é insubstituível”.

Eu acredito na grandeza das vidas supostamente comuns. Interesso-me pelos acontecimentos que se repetem no cotidiano, observo mais os desacontecimentos. Sou fascinada pelo sentido que cada um cria para sua existência no mundo, pelas pequenas delicadezas que nos fazem acordar e levantar da cama a cada dia, apesar de todas as brutalidades. Acredito que nossa vida é uma busca pelo extraordinário que mora em nós. E que só o encontramos ao descobrir o extraordinário que mora no outro. É esse o exercício de resistência de cada homem, de cada mulher, diante do espelho do mundo, a cada manhã: não se deixar reduzir, um exercício que só pode ter êxito na generosidade ao olhar para o outro em busca de sua singularidade.

Então, quando ouço essa frase fatídica – “ninguém é insubstituível” – só sinto pena. Quanto medo tem aquele que a pronuncia. Como ele suspeita de sua insignificância. E como ele se deixou reduzir. A minha frase é outra: Ninguém é substituível. A singularidade do que sou, só eu sou. A singularidade do que é você, só você é. O que você não fizer, não será feito do jeito que só você pode fazer. Se você deixar de ser o melhor que pode ser, se desistir de dar o melhor que pode dar, é uma falta inscrita na história do mundo. E só há um jeito de alcançar a grandeza de cada um de nós, que é a descoberta da grandeza do outro.

É só o reconhecimento da singularidade de cada um que, paradoxalmente, pode nos levar à descoberta de que somos mais iguais do que diferentes. E ao acreditarmos que ninguém é substituível, torna-se impossível a discriminação por raça, religião ou ideologia. É o imenso valor da vida que alcançamos, da nossa e da dos outros. Então, quando alguém lhe disser que você é substituível, tenha compaixão. E não acredite. Nunca permita que reduzam o mistério que é a sua vida – e a do outro. Até mesmo do equivocado que proclama frases como essas.

Passei décadas sem Lili. Deixei Ijuí aos 17 anos, vivi em Porto Alegre até os 33, desde 2000 moro em São Paulo. Anos atrás, fui procurada pela editora do principal jornal de Ijuí, o Jornal da Manhã, para participar de uma série sobre ijuienses que haviam “vencido” fora da cidade. Minha tarefa era escrever um texto sobre essa aventura pessoal. Eu aceitei. Mas escrevi um texto em que dizia que mais difícil do que partir era permanecer na cidade. E contei a história de Lili e de como ela havia transformado a minha vida.

O texto publicado alcançou Lili, numa cidade próxima e ainda menor, algum tempo depois. Ela vivia tempos duros, estava triste, solitária. Desconectada de sua grandeza. Até então, não tinha ideia de que havia sido tão decisiva na vida de uma outra pessoa. Nos reencontramos nesse reconhecimento. E eu pude contar a Lili o que ela também fez de mim. Era eu que agora escrevia livros. Ela poderia me ler porque um dia permitiu que eu lesse numa esquina das prateleiras de uma livraria de cidade pequena, onde ela vivia cada dia consciente da grandeza de seu trabalho.

Contei essa história aqui por várias razões. E por profundo sentimento. Mas também para propor a você, que me lê, o exercício de identificar no tempo as pessoas que, com seus pequenos grandes gestos, deram sentido à sua vida. Fizeram diferença, fizeram de você mais você. E depois de redescobri-las em lembranças há muito esquecidas, contar a elas que foram/que são insubstituíveis. E então aprender para sempre que são essas as pessoas importantes, mesmo que não sejam elas a ilustrar a capa das revistas de celebridades.

Dias atrás, quando Lili Lohmann me ligou numa noite em que eu também me iludia que eram horas iguais a todas as outras, ela me disse uma frase que até agora me faz dançar: “Quando eu leio o que você escreve é como se eu ganhasse um presente”. Lili, você é um presente para sempre presente em tudo o que sou.

(Publicado na Revista Época em 25/05/2009)

Fragilidade

Por que tememos tanto o que nos torna humanos?

“Há algo perdido na vida de cada um”, diz o artista inglês Mark Leckey. “As pessoas tentam preencher essas lacunas com imagens.” Ele fala de seu filme, Parade (2003), que será exibido na sexta-feira, 15/5, na mostra do Museu Sammlung Goetz, de Munique, promovida pelo Itaú Cultural, em São Paulo. Nos 31min30s do filme, me senti incomodada pelo brilho ofuscante da imagem de seres humanos que em nada lembravam humanos. Seres inanimados de uma vida glamourosa sem vida, vestidos de grifes, com sorrisos que não riem. De repente, esses modelos ofuscantemente belos desaparecem e o vazio toma conta da tela, agora que as imagens já não estão mais ali para nos cegar. Mark Leckey fez um filme “sobre se sentir perdido no começo do século XXI”, um filme sobre o vazio. “Estou doente de imagens”, ele diz.

Eu também. Há muitos caminhos para pensar sobre o filme de Leckey. Eu gosto de pensar sobre a fragilidade que mora em nós e que tanto nos assusta. A certeza, ainda que inconsciente, que dentro de nós há uma fratura. Essa dor à espreita que faz com que nos disfarcemos de tantas formas – e que nos torna vítimas tão dóceis, contentes até, de todas as armadilhas de consumo que preenchem nosso cotidiano.

Algo precisa ser feito quando o vazio nos ronda com sua lucidez implacável. Nem que seja, para uma mulher, comprar um sapato novo que dirá aos outros que nada falta exceto talvez uma bolsa para combinar com ele. E nesse ato não importa se compramos na grife que criou o modelo, na loja de departamentos que o copiou com material de menor qualidade ou no camelô do centro que pirateou o produto. A categoria sócio-econômica não altera nosso medo do abismo. Nesse ato, estamos todos nus.

Você já experimentou permanecer num shopping quando as lojas se fecham e não há mais iluminação sobre os produtos, nem gente colorida andando de um lado para outro sem ir realmente a lugar algum? Vale a pena se arriscar a essa experiência tão urbana. Os seguranças continuam ali, mas não estamos mais seguros.

Em seu livro Fragilidade (Objetiva), o roteirista francês Jean-Claude Carrière reflete sobre a imagem dos corpos brilhantes, malhados nas academias. Com a justificativa da saúde e da beleza – hoje dois conceitos quase inseparáveis –, passamos horas de cada um de nossos dias carregando peso para que nossos corpos ganhem músculos, transformem-se progressivamente em armaduras para que possam ser exibidos em todas as vitrines. Mas por que precisamos de corpos tão fortes, tão impenetráveis? Por que precisamos mostrar força física para sermos atraentes? Por que tantos de nós passam outras horas deleitando-se no espelho com seus bíceps, tríceps e quadríceps? E por que este é o padrão de beleza dessa época?

A hipótese de Carrière é que esse corpo modelado em aparelhos para se tornar ele mesmo uma armadura, uma muralha ou uma fortificação serve para esconder uma intimidade quebradiça, a matéria frágil de que somos feitos. É uma ideia interessante. Levamos uma imagem de saúde e força física a um mundo de imagens, esperando que ninguém adivinhe nosso medo de sermos descobertos, ou suspeite que nossos músculos – como tudo em nós – são mais vulneráveis do que parecem. Desfilamos sob muitas luzes, nunca tantas como hoje, na esperança de que possamos cegar os outros tanto quando essa overdose de flashes nos ofusca a cada dia. O que aconteceria se deixássemos toda a maquiagem de lado, e também a de nossos músculos hipertrofiados? O que aconteceria se as luzes se apagassem de repente? Não é curiosa uma época em que para enxergar é preciso ficar no escuro?

Vivemos num tempo em que as mulheres, em sua magreza, têm de ser retas e rijas como um homem e pendurar enormes peitos artificiais, uma imagem que no passado pertencia apenas aos transsexuais. Por que de repente os seios de carne ficaram aquém do feminino e se tornou necessário fabricar outro à custa de intervenção cirúrgica? Que ideal de corpo feminino é esse que criamos? Duro, definido e sem gordura, nele o único lugar em que só a maciez era possível foi substituído por silicone. Quando foi que nossos corpos se tornaram insuficientes e a saída foi torná-los menos nossos? O que estamos dizendo ao desfilar essa imagem pelas ruas do mundo?

Somos hoje tão duros, tão definidos, talvez porque nunca antes fomos tão vulneráveis, tão indefinidos. Nós, que estamos nesse mundo como indivíduos, sem o amparo da tradição, quase sem utopias. Há algo para sempre fora do alcance dos aparelhos e dos bisturis. Acredito que é o melhor de nós. O que nossos corpos construídos como cidadelas – exilados de nós, feitos para serem impenetráveis até para nós – tentam esconder é o que deveríamos mostrar. É a “essência de vidro” de que falava Shakespeare.

É nossa fragilidade – e não a nossa força – que nos faz humanos. Só chegamos mais perto do que somos ao reconhecermos a fragilidade que nos habita. Só alcançamos o outro pelas fendas entre nós, só podemos amar um outro porque há um rasgo em nós. Não há ponto de contato entre corpos inexpugnáveis. Só criamos pelo que de frágil nos habita, só evoluímos tanto como espécie pelo que há de vulnerável em nossos corpos. E só destruímos o planeta que nos serve de casa e outros de nossa espécie pela recusa à fragilidade que nos constitui – e pela ilusão de uma força que não vem dela.

Não há nada menos interessante – e mais falso – do que um homem ou uma mulher que só exiba força. Não há nada menos sedutor do que gente que não tira máscaras. Assim como poucas coisas são mais embrutecedoras que esse mundo de imagens, em que nós mesmos somos apenas atores coadjuvantes que não sabem como viver quando as luzes se apagam.

Nossa fragilidade é a nossa força. E será melhor viver nesse mundo quando soubermos disso.

(Publicado na Revista Época em 11/05/2009)

Sobreviventes

O que nos faz continuar vivendo depois de um grande trauma? Gente que beijou o limo do fundo do poço e voltou para contar sua história

Acabo de assistir ao documentário “Sobreviventes”, de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Pela segunda vez. Explico. Na primeira vez, na última quinta-feira, quando passou na TV Cultura, ele mexeu tanto com o que há de mais enterrado em mim que apaguei, sentada, diante da televisão. Apaguei no depoimento da diretora de teatro Tiche Vianna, que um dia saiu para dar uma aula, grávida de oito meses, e foi interceptada por um caminhão. Ficou em coma. Teve três paradas cardiorrespiratórias e perdeu um pulmão. Seu bebê foi arrancado de dentro dela. Quando despertou, semanas depois, ainda sem conhecer o filho, ela disse: “Tragam o Miguel”. Colocou-o contra o rosto, sentiu a sua pele macia, aquela “vida muito nova”, e descobriu não apenas que podia, mas que desejava viver.

Não foi nessa parte que eu apaguei. Foi quando ela disse a seguinte frase: “O espectador não é um contemplador. Minha função é tirar o espectador do conforto, do resolvido, e colocá-lo diante do desafio da escolha. A vida para mim é uma coisa muito palpável, porque a morte saiu do universo da abstração”. Tiche falava sobre a mudança de sua relação com o teatro depois de ter morrido e renascido no instante em que seu filho nasceu.

Eu apaguei num sono de fuga. Despertei no meio da madrugada, sentada no sofá da sala, remexida por dentro, esfarrapada. Voltei a dormir, dessa vez na cama, depois de alguma insônia e de muitos conflitos. Acordei feliz. Descobri que há muito tempo eu venho fazendo a minha escolha, que é reeditada diariamente, que se reinventa a cada amanhecer, que volta atrás em pequenas covardias, que se perde seguidamente para ser encontrada mais adiante. Às vezes me confundo e esqueço que fiz uma escolha, aí preciso que alguém me lembre. Minha escolha depois de uma vida de muitos pequenos traumas, alguns grandes, é viver para além da zona de conforto, na busca radical por chegar mais perto de mim mesma, seja lá o que isso signifique.

Minha escolha foi feita 27 anos atrás, quando minha filha nasceu. Eu estava estilhaçada por dentro, tinha 15 anos e me sentia literalmente em cacos, uma pessoa feita de estilhaços, por uma série de vivências que pertencem apenas a mim. Como um vaso quebrado em pedaços muito pequenos, eu sabia que me colar era impossível. Isso eu sabia. O que eu não sabia era como ser mãe. Maíra, porém, sabia que eu era sua mãe.

Desde sempre ela me reconheceu. Naquele olhar de bebê recém-emerso dos meus confins, ela me dizia que eu era sua mãe. E então, lentamente, com dificuldade, eu me tornei mãe da Maíra. E mais lentamente ainda eu descobri que sobreviver não é colar os pedaços. Não há como colar. O que a gente pode fazer é pegar aqueles pedaços todos e se reinventar. Com todas as nossas fissuras, com todas as nossas marcas, com toda a nossa história inscrita nesse corpo ao mesmo tempo íntegro e costurado pela trama raramente regular da vida.

Hoje Maíra cria um sentido para sua vida, com dificuldade, com fúria, com paixão e com uma generosidade que é só dela. E sou eu que a olho com um amor tão grande que parece às vezes não caber dentro de mim. Mas sigo me buscando, para além dela e para dentro de mim. Por isso dormi naquele ponto do filme, depois um ano de perdas as mais variadas, de um profundo confronto com a finitude da vida e das histórias de amor interrompidas antes do final. E acordei para viver.

Consegui então assistir ao “Sobreviventes” até o fim. Assistir, não. Fui tirada do “conforto, do resolvido”. Há muito tempo algo não me impactava tanto. Da primeira à última frase cinematográfica. Não sou capaz de teorizar sobre o que é arte, mas sei que entrei em contato com ela quando algo me transforma, como nesse documentário. Dos depoimentos ao mesmo tempo terríveis e belos à estética do filme, entre os limites das paredes de tijolos e a passagem do trem, ele não tem sobras. É todo contido para que nós, os espectadores, possamos transbordar. As pessoas dão seus depoimentos sentadas numa poltrona, mas nós somos arrancados da nossa. É uma pena que exista tão pouco espaço para os documentários nacionais. “Sobreviventes” deveria estar nos melhores cinemas – e passando de graça nas lajes do Brasil.

Um dos depoimentos é do cineasta Jean-Claude Bernardet, soropositivo. É arrasador. Ele leva todos nós, que sabemos que vamos morrer, mas não sabemos quando, a uma reflexão profunda: “Minha vida se transforma depois da meningite. A partir desse momento eu era sujeito a uma morte a curto prazo. Eu estava já com a morte inscrita. Só que, para mim, ela foi uma libertação. Uma libertação bastante grande e bastante produtiva. Foi uma época de muita produção de filmes, roteiros. Usei isso para me projetar para frente, para me abrir…” Ele continua: “Com o coquetel, minha carga viral baixou, eu tinha uma nova chance. Mas minha cabeça tinha se organizado no sentido de uma vida ativa, às vezes de provocação, de não aceitar o que me desagradava e de morte breve. Depois de todos os esforços que eu fiz, agora tinha de reorganizar minha cabeça em função de uma morte de prazo indefinido. E isso foi o mais difícil. A partir desse momento, pouco a pouco, a minha vida se tornou menos interessante”.

Há mais. Cada testemunho nos carrega para uma inquietação além. Tião Nicomedes, que se tornou morador de rua depois de uma queda num acidente de trabalho, abandonado pela família, pelos amigos e pela mulher com quem estava de casamento marcado, sem nenhum olhar onde se reconhecer, perguntava à enfermeira no hospital: “Eu estou morto?”. Bell Marcondes, na luta contra a dependência da cocaína, conta: “A cocaína atenuava a dor de viver. É um esforço que eu gasto, diariamente, pra não usar, ele rouba toda minha energia. Porque depois que tirou a droga, voltou para aquela moça que não tem habilidade para viver”. Dermi Azevedo, torturado pela ditadura junto com a mulher e o filho de um ano e meio, afirma: “O torturador retira a vida das pessoas, a vida interior. A gente deixa de ser sujeito, se despersonaliza, desaparece como pessoa. Eu não tenho rancor, eu tenho memória”. Risonete Fernandes, internada várias vezes em hospitais psiquiátricos e tratada com eletrochoque, diz: “Fui quase apagada diversas vezes. Mas a vida ainda está dentro de mim”. E Luiz Alberto Mendes, ex-presidiário, assassino, escritor, nos provoca: “Dizem que o poder corrompe, mas a falta de poder corrompe muito mais. Sem ter poder sobre você mesmo, você se deteriora, perde a vontade de viver. E tudo o que eu tenho é vontade de viver. Sabe o que é, meu, desde que nasci eu nunca coube dentro da minha vida”.

Os diretores Miriam Chnaiderman, que além de documentarista é psicanalista, e Reinaldo Pinheiro, tiveram o reconhecimento da confiança de seus entrevistados. Os depoimentos contêm uma entrega contundente. Miriam e Reinaldo não arrancam nada de ninguém, apenas escutam. A câmera foca a boca, por onde a voz se liberta em forma de discurso. Os pés que batem, nervosos, no chão. As mãos que se crispam, as unhas que carregam fragmentos do mundo. E as marcas. Elas causaram meu primeiro arrebatamento ao ver o filme. Todas as marcas são apreendidas pela câmera, devassadas por uma luz terna. Pela primeira vez, não vi as rugas, as olheiras, as cicatrizes como algo feio, sinal da degeneração do corpo, da proximidade da morte.

Achei todos tão belos não apesar das marcas, mas por causa delas. O filme me levou a apreender, não racionalmente, como sempre fiz, mas pela vivência das cenas, as marcas como inscrição da vida. E ao me olhar no espelho, depois, reconheci também as minhas como história. Tenho minha vida contada em meu corpo. Nós todos temos. Pode haver testemunho mais eloquente que esse?

Por que sobrevivemos à grande queda ou às sequências de pequenos, mas dolorosos tombos? Porque não sobrevivemos. Percebo que não há como sobreviver, só o que podemos fazer é viver. Reinventar a vida incluindo nela o sangue, o barro e o limo do fundo do poço. Criar um sentido para o que aparentemente não tem nenhum. Não existem sobreviventes. O que existe são viventes.

(Publicado na Revista Época em 27/04/2009)

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