Quem quer uma vida de “e se”?

A felicidade não é eterna, mas a desistência pode ser para sempre

Quase todos nós temos algo que gostaríamos de ter feito. E não fizemos. Um plano mirabolante que tinha tudo para dar certo, mas que nunca tentamos. Aquelas ideias que parecem ótimas na mesa de bar e, como os vampiros clássicos, escondem-se nos nossos porões na primeira luz do sol. Tenho amigos que querem ter um café, outros uma livraria, há os que querem ter uma livraria com café ou um café com livraria. Antes havia os que queriam ser repórteres da National Geographic, os que queriam filmar com Fellini e até os que queriam ter uma família de dez filhos. Conheço um monte de gente que desejava ter feito mais do que ousou fazer. Mas, em algum momento, deixou passar a chance de recosturar seus sonhos com o fio do possível. Preferiu se deixar convencer que ser adulto era assumir uma ideia de responsabilidade que excluía a possibilidade de se reinventar a qualquer momento. E isso é certo: pode não existir amor para sempre, nem vida para sempre, mas descobri que existe desistência para sempre.

Suzi e Marcelus são meus amigos de adolescência. E eles estão nessa história porque tiveram a ousadia de reinventar a vida. Não aos 20, mas aos 40. Eles rejeitaram aquilo que eu chamo de “vida de… e se?”. E se eu tivesse feito isso e não aquilo? E se eu tivesse tido coragem? E se eu tivesse me divertido? E se eu tivesse sido mais corajoso? E se eu tivesse amado mais? E se? E se? E se? Não há nada mais triste do que uma vida de “e se?”.

Suzi e Marcelus Vieira vivem em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul. Ijuí é uma cidade de uns 70 e poucos mil habitantes, coberta de uma poeira tão vermelha e persistente que gruda na alma da gente. Quem mora lá nunca terá a chance de pisar no mundo com um tênis branco. Mas quem quer um tênis branco? A cidade vai bem quando chove e faz sol na medida certa para o soja ser lucrativo. Ou seja, depende do imponderável e do Banco do Brasil. Apesar de ter deixado Ijuí há mais de 20 anos, volta e meia me pego no meio do trânsito de São Paulo pensando: “mas e como será que anda o soja nesse ano, hein?”

Comer bem, para a maioria dos ijuienses, é lotar o prato num dos muitos restaurantes a quilo. Ijuí se orgulha de ser a capital brasileira das etnias e isso significa que ela é povoada por descendentes de alemães, italianos, letos, austríacos, poloneses, russos e várias outras nacionalidades que não estou lembrando agora. Em comum, eles têm essa certeza de que nada pode ser melhor do que pagar nem mais nem menos, mas exatamente o que se come. Por isso, os quilos se tornaram um estrondoso sucesso por lá. Chefes de família que nunca admitiram comer fora de casa encontraram uma boa razão para experimentar a modernidade de comer em restaurante. E muitas mulheres só conheceram a delícia da vida social a partir do advento dos quilos. Há toda uma antropologia dos quilos que, infelizmente, a academia deixou passar.

Com isso, não estou criticando nem os quilos nem a comida de Ijuí. Longe disso. Foi lá, comendo a comida da minha mãe, que eu descobri que comer é uma fonte inesgotável de prazer. Apenas quero situar o contexto gastronômico onde Suzi e Marcelus começaram a salpicar os primeiros ingredientes de sua utopia.

Tirar férias, em Ijuí, é passar uma temporada numa das praias do Rio Grande do Sul. Eu sei que tem gente que não acredita que o Rio Grande do Sul tenha praias que não fiquem em Santa Catarina, mas eu garanto que tem. Os ijuienses preferem as mais movimentadas. E, de preferência, em apartamentos. Se quem mora em cidade grande busca sossego, quem mora em cidade pequena quer “ver gente”. Não é uma regra absoluta, mas quase. Para que tentar algum lugar novo se Tramandaí, Atlântida ou Capão da Canoa são garantia certa de diversão? E, ainda por cima, com um guarda-sol ao lado do outro?

De novo, não estou criticando as férias de ninguém. Longe disso. Apenas situando a cultura turística do lugar onde Suzie e Marcelus começaram a esboçar a nova receita de suas vidas.

Quem nasce numa cidade do interior, um dia quer sair. Ou finge que quer. Quem pode usa o pretexto de fazer universidade para se transferir para Porto Alegre ou outra cidade um pouco maior. Mas tive amigos mais radicais, que sem arranjar desculpa melhor, foram tentar achar ouro em Serra Pelada. Deixar a cidade pequena em algum momento é uma espécie de jornada do herói. Não sei qual é a estatística, mas a maioria acaba voltando.

Suzi e Marcelus apaixonaram-se ainda na adolescência. Ensaiaram faculdade em Porto Alegre quando chegou a hora, depois separaram-se por uns tempos. Marcelus se aventurou em Londres, Suzi quase casou com outro. Um dia fiquei sabendo que os dois tinham se casado e moravam em Ijuí. Compraram um apartamento, decidiram não ter filhos e cuidavam juntos da loja de moda jovem mais bacana da cidade.

Encontrava-os quando ia à Ijuí visitar meus pais e me parecia que viviam bem. Nesse período, eu tinha muitos amigos olhando desconsolados para as ruínas de seus sonhos de juventude. Mas Suzi e Marcelus não estavam entre eles. O deles parecia ser um destino resolvido.

Dois anos atrás eles me ligaram. Excitadíssimos. Tinham alugado uma casa de campo na Toscana, daquelas de cinema, e estavam levando para lá um grupo de 10 pessoas. Marcelus conciliara a administração da loja com cursos de culinária, nos anos anteriores, e tinha virado um chef. Suzi dedicara-se a estudar o mercado do luxo com o mesmo talento comercial que ela sempre tivera para vender roupas de grife numa cidade que nem sempre tem dinheiro. Os dois se associaram a Adriana e Celso Vedolin, ele radiologista, ela dentista, que também acharam que estava na hora de redescobrir a vida lá fora. E em vez de ficar só sonhando, como a maioria de nós, fizeram.

O projeto deles era alugar uma casa maravilhosa em algum lugar interessante do mundo e levar para lá um grupo de pessoas para comer e beber por uma semana. Ao longo do dia, quem quisesse poderia ir às feiras e vinícolas escolher verduras, legumes, temperos, trufas, pães, queijos, cogumelos porccini, presuntos e vinhos com Marcelus. Mas o único compromisso do grupo seria se reunir na cozinha no final do dia para aprender com ele a fazer um prato da gastronomia local. E depois degustá-lo com o melhor vinho. Simples assim.

E tão sofisticado. Partiram, num dia de setembro de 2007, para uma vila em Peccioli, cidadezinha entre Florença e Pisa, para fazer uma bella vita misturando os ingredientes mais frescos da sua feira pessoal de desejos: viajar, comer e beber. E, contra todas as probabilidades, deu tudo certo. Os hóspedes também se sentiram como se estivessem num filme que podia se chamar Sob o sol da Toscana. Seus anfitriões desdobravam-se no café da manhã, servido a qualquer hora, para que cada um se sentisse realmente em casa, e nas pequenas delicadezas. Como as flores que Suzi colhia a cada manhã para aninhar sobre a cama de cada um, e o pão que desembarcava quente e crocante da padaria de um vilarejo que poderia ser o Cinema Paradiso. E, à noite, na cozinha, Marcelus fazia arte. Como o linguini com trufas brancas que era servido com um Chianti ou um Tignanello, seguido por um Tiramisu.

Suzi e Marcelus tinham acabado de inventar um filme para botar dentro da sua vida. Não ficaram só falando ou lamentando uma existência que se estreitava. Alargaram seu mundo com as mãos e a força de um desejo que não deixaram morrer. Sempre fico imaginando como deve ter sido cada noite em Ijuí, quando tudo ainda podia dar errado. O que ia pela cabeça enquanto vendiam calças, camisas, casacos, vestidos. Quando faziam contas. Quanto medo eles não tiveram. Nem mesmo a casa eles tinham visto de perto, já que não havia dinheiro para esse investimento. Iam selecionando as opções pela internet e um amigo que morava na Itália viajava até lá para conferir. E se não entendessem o italiano? E se as pessoas não gostassem da comida? E se tivesse um chato que azedasse um grupo tão pequeno? Tudo podia acontecer. Até mesmo dar certo.

E deu. Quem comprou a ideia também queria essa semana de filme. Um grupo de amigos numa cozinha de vários séculos, tão cheia de aromas quanto de histórias. As conversas entre cachos de uva, tomates espoucantes, ramos de alecrim e garrafas de vinho. E a luz dourada do fim do dia atravessando o vidro da janela para pousar sem pressa na tampa das panelas. Cada hóspede se tornou melhor nessa semana em que a vida finalmente cumpria a si mesma.

No ano passado eles acolheram seus hóspedes em uma mansão de pedra do século XVII no vilarejo de Cabrières d’Avignon, a 33 quilômetros da cidade de Avignon, na Provence. Nenhum dos dois fala francês. Mas estavam inebriados por filmes como A Glória de Meu Pai e O Castelo de Minha Mãe. Estudaram a culinária local, pesquisaram os ingredientes da estação, experimentaram o perfume de cada vinho. E de novo inventaram sua nouvelle vie. Nesse ano, alugaram uma casa na Itália e outra na França. Levarão um grupo para a Toscana e outro para a Provence. No ano que vem querem instalar-se em alguma cozinha cheirosa de uma ilha grega. Al Mondo  é o nome do melhor de todos os seus sonhos, porque é um sonho que deixou de ser. Não por desistência, a causa mortis mais frequente dos sonhos, mas por coragem.

Depois que tudo dá certo, parece fácil. Mas a vida de cada um de nós se decide é muitos meses e até anos antes, quando a gente não sabe se vai dar certo. E mesmo assim percebe que a coisa mais inteligente a fazer é tirar a cabeça do lugar antes que seja tarde. Eu mesma me arrependo de várias coisas, mas nunca de ter tirado a cabeça do lugar. Toda vez que o senso comum achou que eu estava destrambelhando fui parar num ponto interessante da vida.

Suzi e Marcelus não sabiam se daria certo, mas tinham certeza que fizeram tudo para que desse certo. Marcelus sempre foi um pouco como o ratinho do Ratatouille, sentindo aromas pelas cozinhas. Quando se aventurou em Londres, trabalhou nas cozinhas de pubs e restaurantes, como tantos imigrantes. Mas, diferente da maioria, aproveitou para observar e aprender. Em Porto Alegre, passou anos fazendo as compras de uma cooperativa ecológica, saía com a caminhonete por estradinhas de terra pelo interior do Rio Grande trocando ideias junto ao fogão a lenha dos produtores. Quando se estabeleceu na loja, começou a viajar para fazer cursos de culinária.

Suzi e sua irmã, Sandra, são as melhores vendedoras que eu conheço. Já andei muito por aí, mas nunca vi nada igual. Filhas de alfaiate, elas conhecem os tecidos, os cortes, as texturas. São talentosas no gosto, sabem comprar as peças certas e, principalmente, sabem vender. São boas de conta, não lembro de tê-las visto perdendo dinheiro. Suzi é uma mulher que sonha com os dois pés metidos em sapatos interessantes, mas com os saltos bem fincados no chão.

Foi com tudo o que são que Suzi e Marcelus mudaram o cardápio de sua vida. Eles seguem morando em Ijuí, a loja acaba de se mudar para uma casa grande, com uma cozinha profissional no piso superior, onde Marcelus dá cursos à noite e prepara jantares por encomenda. Suzi e Marcelus têm família e amigos na cidade, acham que Ijuí garante uma qualidade de vida que não teriam em outro lugar. Passam o ano dando duro na loja, experimentando receitas, degustando vinhos, assistindo filmes, estudando livros, selecionando músicas. Quando chega a primavera, fazem as malas e acordam numa casa com vista para o mundo.

Na despedida do último hóspede, antes de voltar para Ijuí, eles viajam uma derradeira vez. Vão em busca do pedaço do planeta onde acordarão na primavera seguinte.

(Publicado na Revista Época em 13/07/2009)

Sou uma mulher sortuda

Conheci não um, mas três homens incríveis nos últimos dias

“Mal chegou, o primeiro me perguntou. “Você é cristã?”. Vestia um turbante e uma túnica branca. “Não”, eu respondi. “Qual é a sua religião?”, ele continuou. “Eu não tenho fé”, disse eu. “Mas você não acredita em Deus?”, o homem insistiu. “Vivo com o mistério”. Achei que a sinceridade acabara de me custar a entrevista. Esperei que ele se levantasse e virasse as costas. O homem diante de mim era um imã, líder espiritual muçulmano. Seu nome é Muhammad Ashafa e ele é protagonista de uma das histórias mais extraordinárias que eu jamais ouvira. Ao lado dele, estava o outro personagem dessa história, o pastor cristão James Wuye. Ambos são líderes religiosos da Nigéria e o esperado era que estivessem naquele momento esfaqueando um ao outro com adagas afiadas. Mas, em vez disso, eles trocavam sorrisos cúmplices, só permitidos a velhos companheiros.

Cada um deles teve o leite materno adoçado com o ódio ao outro. A Nigéria, um país criado em gabinete pelos colonizadores, é ocupada ao sul por maioria cristã, ao norte por maioria muçulmana. Milhares vêm morrendo pelas mãos de um e de outro nas últimas décadas. Quando estendo a mão para cumprimentar o pastor James Wuye, ele se adianta e intercepta minha mão com a sua esquerda. Metade de seu braço direito foi decepado por um muçulmano, e ele prefere que eu não toque a dureza da prótese. Mesmo assim, esses dois homens têm andado pelo mundo defendendo que a ONU crie um “Dia do Perdão”. Caminham lado a lado, carregando suas mutilações, as visíveis e as invisíveis, encarnando a possibilidade do impossível.

Conto a extraordinária história desses dois homens na atual edição de Época, com o título de Amando o inimigo. Aqui, quero falar de apenas um deles. Do imã Muhammad Ashafa. Não sou nem religiosa, nem mística. Sou curiosa. E, como tal, perambulo por aí aberta para o espanto. E fico toda feliz quando sou pega de surpresa, porque posso, então, aprender algo novo. Há algo diferente em Mister Ashafa. Percebi no momento em que ele juntou as mãos, como uma prece, para me cumprimentar. A muçulmanos não é permitido tocar mulheres que não as suas. Ainda em silêncio, sua presença é poderosa, intensa. Pensei: ainda bem que esse homem escolheu a paz. Porque alguém com esse carisma poderia ter uma enorme capacidade de destruição.

Ao falar, Mister Ashafa transforma imagens em palavras. Traz no ritmo de sua narrativa uma vida lendo e ouvindo os versos do Alcorão. Sua voz é profunda, cheia. A musicalidade de suas palavras ressoa dentro de seus interlocutores. Mas, em vez de pregar o sectarismo religioso, como tantos líderes messiânicos, ele defende não apenas a tolerância, mas algo um pouco maior. “Não devemos apenas tolerar aqueles que são diferentes de nós, mas aceitá-los. Aceitar é um pouco mais”.

Mister Ashafa não teme o diferente. Ele acredita que a diversidade não é uma ameaça, mas nossa força. Aprendeu com seu mentor, um velho sábio sufi, que é preciso nos colocar no lugar de todos os seres. “Era isso que meu mestre ensinava, que a gente nunca deixasse de se enxergar em todos os outros seres, de sentir empatia por todos os outros seres. Devemos nos colocar no lugar das outras pessoas antes de julgá-las, condená-las ou castigá-las. Não podemos demonizar o outro, porque essa demonização só serve para arrancar do outro a sua humanidade. Deixamos de ver o outro como alguém que tem questões muito parecidas com as nossas. Então, podemos matá-lo. Quando um muçulmano mata, ele não é mais muçulmano. Quando um cristão mata, ele não é mais cristão. O centro de qualquer religião é a compaixão. E este tem de ser o novo espírito do Islã. Se ver espelhado.” O imã conclui, com seus negros olhos febris: “Hoje eu não tenho inimigos, mas um amigo que ainda me falta conhecer”.

Não são palavras fáceis. Para pronunciar cada uma delas, Mister Ashafa teve de viver uma transcendência que quase lhe revira as entranhas pelo avesso. O mestre sufi a que ele se refere foi jogado num poço pela milícia comandada pelo pastor James. Em seguida, coberto de pedras. Seu discípulo só encontrou o corpo três dias depois. Mister Ashafa compreendeu então que só havia um modo de o mestre continuar vivo. Era preciso fazer com que suas palavras vivessem. Elas vivem nele desde então.

Mister Ashafa tem uma resposta para o nosso medo. Ele diz: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Achei curioso que um líder muçulmano de um país africano devastado por conflitos étnicos, econômicos e religiosos pudesse dizer algo tão perto da nossa realidade. Parecia que ele vivia logo aqui, em meio a casas gradeadas como prisões. Quando a escola pública perdeu qualidade, a classe média tratou não de brigar pela recuperação da educação, mas deu um jeito de botar seus filhos nos colégios privados. Quando aumentaram as filas do sistema público de saúde, tratamos de fazer crescer e multiplicar os planos privados de saúde. Quando os ônibus do sistema público de transporte transformaram-se numa máquina de esmagar pessoas, tratamos de aumentar o número de carros e as vagas na garagem. Quando as ruas ficaram perigosas, instalamos grades, alarmes, aumentamos a altura dos muros e o número de cães e de seguranças.

Como isso poderia resultar em algo que não fosse violência? E por que temos a ousadia de acreditar que não temos nenhuma responsabilidade pelo nosso medo que não para de crescer? O que mais falta fazer para se proteger de gente igual a nós, mas que não tem nem escola, nem saúde, nem casa, nem sistema de esgoto? Talvez olhar para ver. Não como um demônio pronto a nos fazer mal, mas para alguém que também tem medo. E pouco mais além disso.

Há sempre algo que cada um de nós pode fazer, a partir daquilo que já fazemos. Há sempre algo que podemos mudar nos pequenos vícios cotidianos. Há sempre uma janela que podemos abrir em vez de se render ao hábito de fechar. É um risco, sempre é. Mas todos sabemos que não há vida sem risco. No caso de Ashafa, o que ele fez foi dar um passo para dentro do território inimigo. Achou que estava indo espionar, armazenar informações para o próximo ataque. Mas descobriu que o pastor James Wuye tinha tanto em comum com ele, apesar das tantas e necessárias diferenças, que já não pôde matá-lo.
………………………………………………

Logo ao chegar, o segundo homem poderia ter me perguntado: “Você é atéia?” Dias depois de conversar com Mister Ashafa, tive a chance de ouvir Richard Dawkins, um britânico nascido no Quênia. Ele é o ateu mais famoso do mundo. Entre outros livros polêmicos, o biólogo escreveu Deus, um delírio (Companhia das Letras, 2007). Escutar Mister Dawkins é também uma experiência de transcendência, mas por outro caminho. Acompanhar a evolução de seu raciocínio límpido, elegante, é uma vivência da beleza. Tenho esse êxtase quando ouço alguém genuinamente brilhante, de o quanto a mente humana pode criar beleza pela harmonia de formas do próprio pensamento. Dawkins é assim, um poema científico.

O que ele tem a ver com Mister Ashafa? Ou melhor, o que ele está fazendo nesse texto? A certa altura de sua fala, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Mister Dawkins falou algo sobre o imenso valor da vida. Se, na sua concepção, não há deuses, nenhum deles, muito menos uma vida depois da morte ou um corpo para reencarnar, o que faz desta vida algo que vale a pena? Nesta hora, lembrei de Mister Ashafa, que faz de sua inscrição no mundo um libelo pela vida. Não a dos muçulmanos, mas todas as vidas, na beleza infinita de sua diversidade.

É de diversidade que Mister Dawkins fala, ao evocar Charles Darwin. E é pelo acaso que ele nos mostra nossa imensa sorte de estar aqui. Sempre fico aterrorizada pensando que se minha mãe não tivesse decidido casar com o meu pai quando ele nem mesmo sabia disso, se três irmãos não tivessem nascido antes, se tantos milhões de acasos não acontecessem, de forma a não alterar um único milésimo de segundo, se aquele exato espermatozóide não tivesse fecundado o óvulo, eu não estaria aqui. Mas se você pensar que não é apenas esse momento determinado da soma de todos os acasos que resultou na combinação genética única que nos constitui, mas precisou de todos esses milhões de ocorrências comezinhas também para que nossos avós se conhecessem e gerassem um pai e uma mãe como os nossos, e assim também com nossos bisavós, tataravôs, até chegar a um ancestral em cuja forma não mais nos reconhecemos.

Um único acaso diverso nesses zilhões de pequenos acontecimentos e seria um outro – e não nós – que estaria aqui nesse exato momento, lendo esse texto. Um cigarro ou um café que nosso pai ou mãe resolvesse tomar antes de transar, um zíper do vestido que emperrasse ou não emperrasse, um acesso de tosse e – zum – já não seríamos nós. Não é assustador? Mas somos nós que estamos aqui, contra todas as probabilidades. Então, como não fazer desta vida algo que vale a pena? E como não olhar para a vida do outro com a dimensão dessa grandeza?
……………………………………………..

O terceiro homem da minha vida nesses últimos dias nada me perguntaria. Eu já sabia seu nome, António Lobo Antunes. Português, é considerado por alguns críticos o maior escritor lusitano depois de Eça de Queirós. Com ele, tive uma experiência amorosa. Não o escutei impávida, toda atenta e cerebral. Fui relaxando, deslizando na cadeira, toda entregue a uma voz que me trazia o que para mim é uma combinação irresistível, a da sabedoria com simplicidade. Eu não era mais uma pessoa, era um ouvido. Meus braços escutavam, a gola da minha camisa branca escutava, todas as minhas sardas escutavam, até minhas mechas loiras escutavam. Tive uma epifania. Saí da tenda da Flip em estado de felicidade absoluta.

Deixo para vocês uma imagem composta por Lobo Antunes, que tem tudo a ver com esse texto: “Não existe profundidade, apenas uma sequência infinita de superfícies”.

(Publicado na Revista Época em 06/07/2009)

Olhos de insulfilm

Olhar para ver é um ato de resistência diante da banalização da vida

Aprendi, no exercício do jornalismo, que olhar para ver é um ato de resistência cotidiana. O mais fácil, sempre, é não ver. Ou enxergar apenas aquilo que nos dão para ver, como se essa fosse toda a verdade. Existe aquilo que não vemos, mas gostaríamos de ter visto. E existe aquilo que não vemos porque escolhemos não ver. Como quando fechamos o vidro do carro para impedir o contato com as pessoas que nos pedem alguma coisa do lado de fora. E colocamos insulfilm nos vidros, quanto mais escuro melhor, para que nem mesmo elas possam nos ver. É mais fácil quando aqueles que querem entrar não enxergam nosso rosto assustado, culpado ou com raiva. Nosso desamparo diante da dor do outro é oculto por camadas de insulfilm. E um pouco mais: a película que permite a nossa cegueira impede os que pertencem ao lado de fora de ver que não estamos vendo.

Nos iludimos que estamos protegidos, mas a escolha de não ver – assim como a de não ser visto – vai nos brutalizando. E logo nem precisamos mais da película sintética na janela. Porque um insulfilm orgânico já cobre nossos olhos, faz parte de nós. Não ligamos mais. Os que querem entrar já não importam, porque nos iludimos que são tão diferentes de nós, que temos a sorte de estar dentro, que não faz mais diferença.

Todos os genocídios da história foram cometidos por poucos, mas só puderam ser consumados porque muitos fingiram não ver. E fingiram com tanta ênfase que acabaram por acreditar que não viam. Às vezes, contra todos os meus esforços, acontece comigo. Sucumbo à banalidade, me distraio e permito que o insulfilm me cubra os olhos. Iludo-me que estou vendo, mas não estou.

Na semana passada, duas pessoas de mundos diferentes – mas só aparentemente – me trouxeram histórias que me despertaram. Fiquei com uma dor constante na boca do estômago, um incômodo que não me deixa, desde então. Ver não é fácil. Não entramos em contato com a verdade – a nossa e a do outro – impunemente.

A primeira história veio de longe. Nada mais distante dos nossos olhos do que a África, todas elas. Às vezes temos notícia do mundo de lá por que Angelina Jolie andou pelos campos de refugiados de Darfur ou a copa das confederações, vencida no domingo pelo Brasil, aconteceu na África do Sul. Mas isso não é exatamente ver. A verdade é que poucas realidades do mundo são tão fáceis de não ver como a das Áfricas todas. Porque a rigor nem mesmo a África existe. Como sabemos, o continente e cada país dele foram uma invenção riscada no papel pelos colonizadores, com as consequências mais devastadoras. Para a maioria de nós, que aqui está, nada mais distante de nós do que os africanos todos. Vez por outra acompanhamos seu sofrimento como se acontecesse com gente de outra espécie. Eles morrem todos os dias de guerra, de fome, de sede, de malária e de Aids. E é como se seu sofrimento fosse um dado da natureza. É banal, é corriqueiro, deixamos de ver, não nos sentimos implicados, “a África é assim”. É mais assim ainda que as favelas que se multiplicam ao nosso redor.

Como podemos?

Racionalmente, eu não aceito isso. Mas a realidade, percebi, é que vivo como se aceitasse. Dias atrás, entrevistei uma moçambicana chamada Lucrécia Paco. É considerada a maior atriz do seu país. Sofreu discriminação numa casa de câmbio do Shopping Paulista, quando trocava seus dólares, em São Paulo. Contei essa história nesse site. A certa altura da entrevista, Lucrécia me disse: “Você sabe, no tempo da guerra civil, a expectativa de vida em Moçambique estava em torno de 45 anos. Agora, com a Aids, baixou”. Eu sabia, mas não sabia. Só enxerguei de verdade quando olhei para a mulher diante de mim. Próxima dos 40 anos, ela beirava a expectativa de vida de seu país. Se eu lá vivesse, já a teria superado. E é um índice a ser comemorado, já que em 2003 a expectativa de vida de um moçambicano ao nascer era de 31 anos, só um pouco maior que alguns dos períodos de maior fome da Europa medieval. Ao me reconhecer nos olhos doídos de Lucrécia, lentamente comecei a abrir as pálpebras dos meus.

Em seguida, li um livro chamado O Tradutor – Memórias de um homem que desafiou a guerra (Rocco, 2008). Daoud Hari, seu autor, é também o tradutor do título do livro. Depois de ter sua aldeia dizimada, em Darfur, no Sudão, em 2003, ele passou a levar jornalistas estrangeiros para dentro das fronteiras perigosas do país, para que pudessem contar o que acontecia no seu mundo. Dois anos mais tarde, em 2005, foi preso e torturado pelo governo do Sudão junto com o motorista do carro e um repórter da National Geographic. Só foram libertados depois de uma intensa campanha internacional, que envolveu celebridades como Bono Vox, o líder do U2.

Meus olhos se escancararam quando li o seguinte trecho do livro. Nele, Daoud conta o relato que ouviu de um pai enlouquecido de dor, num dos campos de refugiados de Darfur. Esse homem não conseguia mais viver, seus dias tornaram-se a repetição dessa cena impossível. Daoud não voltou a encontrá-lo. Quando o procurou mais tarde, nem sua mulher sabia de seu paradeiro. Há dores incompatíveis com a vida. Leia o que ele viveu:

“– Um dos janjaweed (milícia apoiada pelo governo do Sudão) começou a me matar de forma dolorosa. Minha filha não aguentou ver aquilo calada e correu em minha direção, gritando Abba, abba.

Ao repetir essa palavra, que em zaghawa significa ‘papai’, sua voz ficou embargada, o que o obrigou a fazer uma longa pausa.

– O homem que tinha me amarrado à árvore viu minha filha correndo em minha direção. Então baixou o rifle e enfiou-lhe a baioneta, empurrando a arma fundo, varando o ventre da menina. Mesmo assim, ela ainda conseguiu gritar Abba, abba. Ele então levantou a arma, ainda enfiada na barriga da minha filha, o sangue derramando sobre ele. Em seguida, começou a dançar com ela suspensa no ar e gritou para os companheiros: ‘Olhem só como estou bravo’. Os outros responderam em coro: ‘Você bravo, bravo, bravo’, enquanto matavam outras pessoas. Minha filha olhou para mim, demonstrando estar sentindo uma dor imensa, os bracinhos estendidos em minha direção. Ela ainda tentou dizer Abba, mas não conseguiu. Demorou muito para morrer, o sangue tão vivo, de um vermelho intenso, escorrendo sobre aquele… o que ele era? Um homem? A encarnação do mal? Ele estava pintado de vermelho, coberto com o sangue da minha filhinha. O que ele era?”

Cenas como essa não são passado, acontecem agora mesmo em Darfur – e em outros pontos da África – sem que tomemos conhecimento delas. Porque acreditamos que “a África é assim mesmo, não tem jeito”.

Como podemos?

Terminei de ler esse livro extraordinário na mesma noite. Extraordinário porque Daoud fala de morte, ele mesmo meio morto por dentro, para reivindicar a vida. É um livro vivo, onde ele acha até espaço para o humor, para reafirmar a importância de sorrir pelo menos uma vez por dia. Esse homem, que viu seu mundo desaparecer em sangue dos seus, nos escreve para reeditar a vida, para nos pedir para olhar, porque a existência dele e de todos lá depende da nossa capacidade de enxergar.

No dia seguinte, Maycon Silva me escreveu. Ele havia lido minha coluna anterior, em que começo a resgatar a história de Manezinho, um homem que morreu atrás da montanha de escombros em que se transformou a favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Inspirado na história desse homem que nossa cegueira tornou invisível na morte como na vida, Maycon juntou forças para escrever sobre algo que ele testemunhou em 2005 e não pôde esquecer. Maycon tem 25 anos, é estagiário de arte da revista Casa e Jardim, da Editora Globo. Migrou do Paraná aos 11 anos para a periferia de São Paulo, estudou com o apoio de ONGs e do ProUni. Tento convencê-lo a virar repórter, porque ele tem um texto contundente e um par de olhos abertos. Mas ele resiste.

Leia o que Maycon testemunhou. Se lá é longe, aqui é perto:

“Era um sábado de manhã, 3 de setembro de 2005. Eu voltava de um projeto social em Diadema. Como todo ‘cachorro-loco’ que se preza, lá estava eu com minha moto pela avenida Ricardo Jafet, cortando todos os carros, querendo chegar mais rápido não sei aonde.

Paro no semáforo vermelho. Aqueles segundos parecem eternos, ansioso espero a luz verde acender, eu e outro motoqueiro avançamos o mais rápido que nossas mãos permitiam acelerar. Sinto um vulto cair entre as duas motos e escuto o estrondo mais forte por mim presenciado, comparado ao barulho forte de bomba, mas não pela audição e sim pela explosão sentida no impacto.

Olho pelo retrovisor. Enrolada por uma manta cor-de-rosa e vestida com macacão branco, lá estava no chão a linda bebezinha, cujo rosto não sai de minha mente, a pele branca como neve. Nunca estive em um campo de guerra, porém penso ser a mesma sensação de ver um companheiro ser atingido por um tiro de fuzil e não ter forças para fazer nada. A criança foi jogada de cima da ponte, o barulho que escutei foi o do seu corpo batendo no asfalto.

Imediatamente volto. Enquanto alguns correm para a rua e param o trânsito para o bebê não ser atropelado, subo pela contramão, na intenção de matar quem havia feito aquilo. Me deparei com uma mulher, aparentando ter uns 28 anos, sentada no chão, com os olhos brilhando cheios de lágrimas. Quando chego perto dela, ela me estende as mãos e pergunta:

– Cadê minha filha?

No mesmo instante começam a chegar pessoas querendo linchar a mulher. Tento conter a ação e pergunto por que ela jogou sua filha. Sua resposta é a seguinte:

– Preferi jogar ela da ponte a vê-la continuar passando fome junto comigo. O pai está preso e eu não tenho condições de sustentar. Deixa eu me jogar também.

Não consegui ter raiva daquela mulher, foi uma mistura de sentimentos. Ela tinha o olhar sofrido, uma vida que qualquer pessoa da classe média não aquentaria. Ao tentar proteger a filha da fome, ela a matou. Como julgar aquela mulher, se dava para sentir seus sentimentos. Um ato e tudo mudou naquele instante.

No dia seguinte comprei todos os jornais, busquei notícias na internet. Nada, nem ao menos uma nota. Pensei em ir à delegacia saber o que aconteceu com a mulher e sua filha, fazer um documentário, escrever um livro. Mas histórias de pessoas comuns, quem quer saber?” .

Foi essa a história que Maycon Silva contou. Descobri ali, no final, que meus olhos andavam menos abertos do que eu acreditava. Não havia nem a desculpa feia da distância. A África é do outro lado do oceano, mas a Ricardo Jafet é logo ali. Para todos nós, há sempre uma Ricardo Jafet logo ali e muitas Áfricas mais perto do que acreditamos, ainda que seja porque os que morrem lá são feitos da mesma matéria frágil e imperfeita que nós.

Ao final desses relatos, eu não tinha nenhum vidro com insulfilm para fechar às pressas, com as mãos suando, com medo de deixar a vida do outro entrar e transtornar a minha. Ficar de olhos bem abertos dói, mas sigo acreditando que é a única maneira de viver com verdade. A única que preserva nossa humanidade.

E, agora, como o homem que viu a filha ser varada por uma baioneta, empunhada por alguém que também parecia um homem, que dançava enquanto era banhado pelo sangue da criança, também me faço uma pergunta, de olhos bem abertos:

– Como pude? O que sou eu?

(Publicado na Revista Época em 29/06/2009)

Sarney e Manezinho

Será que alguns são mais comuns do que outros? Não acredite em Lula

“Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum.”

Esta foi a frase mais terrível já dita por Lula desde que ele iniciou uma trajetória pública que deu esperança a milhões de pessoas comuns no Brasil. Para mim, 17 de junho de 2009, a data em que foi pronunciada essa sentença, lá do outro lado do mundo, no Cazaquistão, tornou-se histórica. Nela, o homem comum que chegou ao poder afirma que: 1) há brasileiros, como Sarney, que não são comuns; 2) porque seriam supostamente incomuns mereceriam tratamento diferenciado; 3) ser comum é desimportante.

É com essa frase – mais do que qualquer outra coisa que tenha dito ou feito – que Lula pisoteia sua extraordinária biografia. E, ao fazê-lo, esmaga 190 milhões de brasileiros comuns. Como muitos, eu sempre admirei Lula – antes mais do que até há pouco, é verdade. Na campanha presidencial de 2002, coube a mim fazer as reportagens sobre a vida de Lula e de sua grande família. Tive a alegria de conhecer todos os irmãos de Lula, os meio-irmãos, os primos, os tios, os amigos. Não só os irmãos que mais freqüentam as páginas da imprensa, como Frei Chico e Vavá, mas também outros, como Jaime, que trabalhava como metalúrgico, e Tiana, merendeira de escola. Eles são extraordinariamente comuns, como Lula e como todos nós.

O que Lula deu ao país como capital simbólico ao tornar-se presidente do Brasil era enorme. Vi nas ruas, fazendo reportagem, o aumento da auto-estima de brasileiros que até então acreditavam que ser comum era desimportante, que o poder não era para o homem comum. Gente que descobria, com Lula, que também era habitada pelo extraordinário. Grande, muito grande. E agora Lula diz essa frase. Ela mesma tão comum na boca das elites que precisavam se diferenciar para justificar seus desmandos e seus privilégios desde o Brasil colônia.

Todos esses dias eu esperei que Lula dissesse que errou, que pedisse desculpas públicas, que lembrasse de si mesmo como um homem comum, que merece tratamento de homem comum, como todas as pessoas que o elegeram e como todas as pessoas que não votaram nele, mas cujo país é governado por ele. Não aconteceu. Ao que parece, o pragmatismo do político prevaleceu sobre os ideais do homem comum.

Acho que vamos demorar muito tempo até conseguir alcançar não só o significado, mas as enormes consequências da mais terrível frase já pronunciada por Lula. Tão terrível porque ela destrói um valor simbólico que não pertence ao operário que virou presidente, mas, num momento histórico determinado, foi encarnado por ele. O de que ser comum não é banal, não é trivial, não é óbvio. O de que somos, sim, todos comuns e, ao mesmo tempo, extraordinários.

Comuns e singulares. Alguns mais bonitos, outros mais inteligentes, outros ainda engraçados. Alguns, como eu, não conseguem recortar um pedaço de papel em linha reta e derrubam sorvete na roupa, mas são capazes de escrever uma frase interessante. Há aqueles que tocam música ou pintam lindamente sem nunca ter estudado, os que cozinham com um tempero só deles, os que contam histórias sem saber ler nem escrever. Há de tudo, ainda bem.

Nunca encontrei ninguém que não fosse habitado pelo extraordinário. Mas só a igualdade permite que sejamos singulares cada um a sua maneira, só a igualdade concilia a enorme riqueza de nossos diferentes modos de ser e de estar no mundo. Essa é a diferença que nos aproxima. Não aquela, forjada, que nos afasta. A singularidade que nos permite perceber que, na beleza da nossa humanidade, somos mais iguais do que diferentes. Que a diferença serve para alargar a riqueza da nossa vida comum, em comum.

O que quero dizer aqui é: não acredite nessa frase de Lula.

Vou fazer a minha parte nesse ato cotidiano de resistência. E contar não a história de Sarney, mas a de Manezinho. Eu o conheci na mesma semana em que Lula pronunciou A frase. Não ele, mas os fragmentos do final de sua história. Fazia uma reportagem sobre a única família que resistiu à destruição da favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Uma única casinha pintada de azul em meio aos escombros que até o final de maio eram habitados por mais de 800 famílias, em meio ao que hoje é uma zona imobiliária em expansão, ao lado do mais novo cartão postal da capital paulista, a ponte estaiada. A matéria foi publicada neste site com o título de Marcão da Pipoca contra a expansão imobiliária.

Manezinho também morava ali. Separado da mulher e da filha, sozinho no seu barraco. Todo dia esse migrante nordestino puxava sua carrocinha, juntando sucata pela cidade. Sobrevivia disso. Seguidamente bebia além da conta, mas sem causar grandes incômodos. Quando a favela foi despejada, depois de uma longa batalha judicial e de um acordo entre a prefeitura e a associação de moradores, Manezinho disse: “Só saio daqui morto”. Era uma frase de efeito. Virou destino.

Num dia de maio, Manezinho estava sentado diante de seu barraco, enquanto as máquinas destruíam a favela. Avistou uma calha de latão. Foi pegá-la para vender ao ferro-velho. Um muro inseguro, como muitas das ruínas ali, desabou sobre ele. Manezinho foi socorrido por Marcão da Pipoca, seu filho e os trabalhadores da empreiteira. Ainda disse: “Eu pedi”. Talvez, confuso, tenha achado que a dor se devia a um castigo por ter pegado a telha. Não sei. Manezinho morreu. Enquanto era enterrado no Cemitério São Luiz, “num caixão bonito pago pela empreiteira”, como diz Marcão da Pipoca, o barraco de Manezinho foi demolido pelos homens e pelas máquinas. Não havia mais nada dele no mundo.

Tudo isso se passou atrás da montanha de terra em que se transformou a favela. Da bela ponte estaiada, nada se vê. A demolição de centenas de casas, rotinas de vida, sonhos de gente, é sempre uma morte simbólica. A de Manezinho foi literal. Mas quase ninguém viu. Menos ainda ligou. Tentei descobrir na internet o que sites ligados ao Jardim Edite diziam sobre Manezinho. Em um dos poucos que faziam referência a sua morte, ele era um bêbado sem nome. Como se o alcoolismo de Manezinho justificasse que um muro desabasse sobre ele, sepultando sua vida. Uma das lideranças comunitárias mais importantes disse que “coisas assim acontecem”. Ninguém quer “criar caso”, à espera do conjunto habitacional que a prefeitura prometeu construir ali para apenas 240 das mais de 800 famílias.

Entre Sarney e Manezinho há muitas diferenças. A mais simbólica delas não é a de que Manezinho era um homem comum e Sarney supostamente não seja. Mas a de que a Manezinho foi oferecido R$ 8 mil pela sua única casa ou R$ 500 de aluguel por dez meses. E a Sarney era dado, irregularmente, R$ 3,8 mil de auxílio-moradia todo mês, mesmo ele tendo casa fixa em Brasília.

Da frase de Lula pode-se inferir que algumas mortes são menos importantes que outras. Algumas mortes são visíveis, outras não. Por quê? Porque algumas vidas supostamente valeriam mais a pena do que outras. Algumas vidas seriam supostamente mais importantes do que outras.

Não acreditemos nisso. Meu ato de resistência é devolver a Manezinho não a sua vida, porque isso é impossível, mas a história de sua vida. Me comprometo aqui a resgatá-la. E contá-la nessa coluna. Se você puder ajudar, se souber algum detalhe, uma informação que seja, sobre Manezinho, me ajude, escreva nesse espaço ou me envie um email.

Toda vida é comum, toda vida é extraordinária. Toda vida vale a pena.

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

O fotógrafo Marcelo Min enviou duas fotos de Manezinho. Agora ele já tem, pelo menos, uma imagem

manezinho2

(Publicado na Revista Época em 22/06/2009)

Página 8 de 11« Primeira...678910...Última »