De volta à Idade Média

Não concorde com a concordata de Lula e do Papa

A primeira vez que vi um crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal, acima da cabeça do presidente, achei bizarro. Como a corte máxima da Justiça de um país laico pode ostentar o símbolo religioso do catolicismo? Como se sentem os evangélicos, judeus, umbandistas, budistas, espíritas, muçulmanos e também os agnósticos e os ateus ao descobrirem que a corte laica prioriza uma religião? Estado laico pressupõe a separação Estado-Igreja. Ou seja, o Estado respeita todas as religiões, mas esse é um assunto da esfera privada de cada cidadão. As religiões, nenhuma delas, interferem nas questões do Estado, que tem o dever de governar, julgar e legislar no interesse de todos. Tenham a religião que tiverem – ou não tenham nenhuma.

Na Idade Média, os papas tinham poderes tão grandes e muitas vezes maiores que os reis sobre a vida – e a morte. A separação Estado-Igreja deu origem aos estados modernos e ao Ocidente como hoje o conhecemos. Em 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos foi um marco nessa direção, ao determinar as bases para a liberdade religiosa e os direitos civis. Assim como a Revolução Francesa, em 1789, ao tirar o poder das autoridades religiosas. No Brasil, a separação Estado-Igreja e a proteção à liberdade de crença já é um valor desde a Constituição de 1891. Vale a pena lembrar das aulas de História, porque vamos precisar reaprender antigas lições. Há um golpe em curso contra o Estado laico – e contra o cidadão brasileiro. Contra mim e contra você.

Em 13 de novembro de 2008, o presidente Lula e o Papa Bento XVI assinaram o que se chama de “concordata”, um acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro, com o argumento de “regulamentar o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”. Primeira pergunta: por que a Igreja Católica, que chegou ao país junto com Cabral, precisaria regulamentar alguma coisa? E justo hoje, quando as projeções mostram que o Brasil tende a ser um país cada vez menos católico e mais multirreligioso?

Como o Vaticano tem esse ambíguo status jurídico de Estado, embora seja um Estado que só existe para organizar e propagar uma religião, a concordata tem o valor de um tratado internacional, bilateral. Não pode ser rompido por um dos signatários, só por ambos. Em 20 artigos, o texto interfere em questões como o ensino religioso confessional na escola pública, efeitos civis do casamento religioso e o reconhecimento de que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com as instituições católicas.

Sempre me incomodou que a escola pública de um estado laico tenha ensino religioso confessional. Como cidadã, acredito que a escola pública deveria ter mais carga horária, melhores e mais bem pagos professores. Como aluna de escola pública que fui, gostaria de acrescentar ao currículo matérias como filosofia, latim e grego, entre outras. E aumentar a carga horária das demais disciplinas.

O ensino da religião, inserido no contexto social e político, eventualmente pode ser interessante, se for ministrado por um professor com boa formação na área. Mas não encontro nenhum argumento que faça sentido para a presença no currículo do ensino religioso confessional. Esta não deve ser a prerrogativa da escola, mas das denominações religiosas. Se você quer dar ao seu filho uma educação religiosa, que ele a tenha dentro da igreja ou templo. Se você acha que seria bom ter dentro da escola, então o matricule numa escola privada confessional.

A Constituição de 1988, que avançou em tantos temas, contém um artigo que prevê oferta obrigatória de ensino religioso, com matrícula facultativa. Há um movimento em curso na sociedade brasileira para rever esse artigo, que contraria o princípio da laicidade do Estado. Em seu uso mais abusivo, as escolas públicas do Rio de Janeiro, no governo de Rosinha Garotinho, usavam as aulas de religião para ministrar a doutrina do criacionismo – uma visão religiosa sobre a origem da vida que nega a teoria da evolução de Charles Darwin. Ou seja, um desserviço à boa qualidade do ensino, tema tão caro e delicado para qualquer nação que pretenda ter grandeza no seu futuro. E, com o perdão do trocadilho, usada com má fé, já que tenta enfiar goela abaixo dos estudantes uma visão religiosa como se fosse científica.

A concordata assinada por Lula e pelo Papa precisa ser aprovada pelo Congresso brasileiro para vigorar. Tem tramitado por lá sem maiores alardes, o que, em si, já é curioso. Na quarta-feira passada, 12 de agosto, foi aprovada pela Comissão das Relações Exteriores da Câmara. Precisa passar ainda por mais três comissões, mas como corre em regime de urgência, pode ser votada no plenário nos próximos dias.

Aí vem a segunda pergunta: você não consegue lembrar de no mínimo algumas dezenas de projetos que merecem urgência porque lidam com questões vitais para todos os brasileiros? E, em vez disso, se arrastam pelo Congresso há anos? Algum de nós, cidadãos – católicos e não-católicos –, consegue imaginar por que motivo a “Regulamentação do Estatuto Jurídico da Igreja Católica” seria urgente para a nação brasileira? Isso, por si só, bota algumas pulgas atrás não de uma, mas das nossas duas orelhas.

Diante das críticas de que o acordo fere o princípio da laicidade do Estado, a CNBB afirma que tudo o que está lá já é previsto na Constituição. É verdade. E aí somos imediatamente levados à terceira pergunta: se já está na Constituição, por que precisamos de um acordo? E por que o Papa e os bispos estão tão empenhados na sua aprovação? Mais umas três dúzias de pulgas.

Se o acordo for aprovado, como discutir o artigo constitucional sobre o ensino religioso na escola pública? E o que acontece com as escolas públicas que usam o ensino religioso para estudar a história da religião no contexto sócio-político de cada época – e não para ministrar aulas confessionais?

O mais grave, porém, é que o artigo da tal concordata – o nome é horrível, não? – fere a Constituição em pelo menos dois de seus princípios mais caros: 1) ao fazer um acordo com uma denominação e não com todas as outras, está privilegiando uma religião em detrimento de todas as outras, ferindo o artigo constitucional que proíbe o tratamento diferenciado entre cidadãos por razões de ideologia, crença ou culto; 2) ao fazer um acordo com uma determinada denominação, fere o princípio da laicidade do Estado. Estado Laico é aquele que não interfere em questões religiosas e não estabelece relações de dependência ou aliança com crenças religiosas ou seus representantes. Portanto, não faz diferença entre brasileiros por sua escolha religiosa.

Caso o acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro seja aprovado pelo Congresso, terá força de lei e será incorporado à vida nacional. Teremos dito “sim”, por meio de nossos representantes, à ingerência de uma denominação religiosa, a Igreja Católica, no Estado, que tem por dever moral e constitucional zelar por todos os cidadãos, católicos e não-católicos.

É um precedente grave, perigoso e muito retrógrado. Um dos artigos, o que determina que não há vínculo empregatício entre padres e freiras com a Igreja, por exemplo, é tema da Justiça trabalhista. Uma denominação religiosa não pode estar acima da Lei de um país. É o Estado que deve decidir – e não uma das partes interessadas. E ainda não há Jurisprudência unânime sobre esse tema. Outro artigo, o do casamento, abriria espaço para que a Justiça brasileira seja obrigada a aceitar sentenças de anulação matrimonial do Vaticano.

Você acha que, no Brasil do início do terceiro milênio, isso faz algum remoto sentido? Para que fique claro: sou agnóstica, meus pais são católicos praticantes, tenho excelentes amigos católicos, espíritas, budistas, judeus, muçulmanos, umbandistas, do candomblé, do batuque e também ateus. É essa a maravilha do Estado laico: o exercício da tolerância e do respeito à escolha do outro. Respeito profundamente a religião de meus pais e as dos meus amigos – e eles respeitam profundamente a minha escolha de não aderir a nenhuma confissão religiosa. Somos todos cidadãos que respeitamos as escolhas uns dos outros e convivemos em paz.

O Estado laico é exatamente isso: ele garante que ninguém será perseguido ou discriminado por sua crença. Muito diferente dos Estados teocráticos que conhecemos, por exemplo. Eu não quero a ingerência da Igreja Católica – e de nenhuma outra crença religiosa – no Estado que me representa. A supremacia de um credo em detrimento do outro é sempre fonte de intolerância e de desrespeito. Contraria todos os nossos mais caros princípios de igualdade de escolhas.

Acho uma boa ideia conhecer a fundo esse acordo para exercer a nossa cidadania, nos posicionarmos como cidadãos de um Estado laico e democrático. Se a concordata for aprovada, vai afetar a nossa vida. E poderá abrir espaço para mais mudanças que não queremos e não precisamos.

A França discute hoje se deve permitir que muçulmanas usem burca nos espaços públicos. Até mesmo os Estados Unidos, de longe o país mais religioso do Ocidente, proibiu um monumento dos Dez Mandamentos em dois tribunais – e manteve em um terceiro, porque estava ao lado de outras obras de arte.

No Brasil, a discussão da legitimidade dos crucifixos em repartições públicas chega com mais de um século de atraso. Na França, eles foram retirados em 1880. Minha sugestão é que, enquanto não há uma decisão sobre os ícones católicos na esfera pública, todas as religiões peçam isonomia, com base no princípio constitucional que não permite que se faça diferença entre os cidadãos por sua crença religiosa.

Enquanto o bom senso não prevalecer, sugiro a instalação da imagem de Xangô ao lado do crucifixo, a representação do Buda, um retrato de Alan Kardec etc. E um espaço em branco para aquelas religiões que não usam imagens e também para nós, agnósticos e ateus. Pelo menos o senso de Justiça, nesse caso específico, prevaleceria no Supremo Tribunal Federal. E a ingerência religiosa no espaço público daquele que se define na Constituição como um Estado laico se tornaria clara.

Temos, porém, um desafio mais urgente. Como cidadãos, precisamos nos posicionar e pressionar os parlamentares que legitimamos com nosso voto a recusar esse acordo tão flagrantemente inconstitucional. Devemos caminhar cada vez mais em direção à tolerância das diferenças – e não para reforçar privilégios de uns em detrimento de outros. Queremos ser mais igualitários – e não elitistas.

Para botar mais algumas pulgas em todos os lugares do seu corpo – especialmente no cérebro –, rememore o que o Papa Pio X (1903-1914) disse sobre o Estado laico, na encíclica Vehementer nos: “tese absolutamente falsa”, “erro perniciosíssimo”, “em alto grau injurioso para com Deus”. Você pode argumentar que a encíclica tem mais de um século. É verdade. Só que nunca foi revista ou revogada. Ou seja, é exatamente o que o Vaticano e o atual Papa Bento XVI, que representam um dos dois lados do acordo, acreditam.

Quem faz o país somos nós – seja pelas nossas boas ou pelas nossas más escolhas. É só assumindo nossa responsabilidade e exercendo a cidadania que nos tornamos capazes de barrar abusos e conquistar um Brasil mais justo. Essa é uma boa hora para lembrar disso.

(Publicado na Revista Época em 17/08/2009)

A invasão dos blábláblás

Uma campanha pela volta do silêncio no cinema

O planeta é dividido entre as pessoas que falam no cinema – e as que não falam. É uma divisão recente. Por décadas, os falantes foram minoria. E uma minoria reprimida. Quando alguém abria a boca na sala escura, recebia logo um shhhhhhhhhhhhh. E voltava ao estado silencioso de onde nunca deveria ter saído. Todo pai ou mãe que honrava seu lugar de educador ensinava a seus filhos que o cinema era um lugar de reverência. Sentados na poltrona, as luzes se apagavam, uma música solene saía das caixas de som, as cortinas se abriam e um novo mundo começava. Sem sair do lugar, vivíamos outras vidas, viajávamos por lugares desconhecidos, chorávamos, ríamos, nos apaixonávamos. Sentados ao lado de desconhecidos, passávamos por todos os estados de alma de uma vida inteira sem trocar uma palavra. Comungávamos em silêncio do mesmo encantamento. Cada experiência era ao mesmo tempo individual e coletiva. E, quando tudo acabava, éramos distantes, mas próximos.

Sigo guardando dentro de mim essa reverência. Assisto aos filmes com o mesmo respeito com que acompanho a apresentação da orquestra no Municipal ou um show na Broadway. Seja um filme japonês ou um blockbuster de Hollywood. Há algo para além do filme, algo que é o cinema. Uma mágica capaz de nos levar à transcendência. Mesmo quando o filme é ruim, não consigo sair na metade. Me soa como desrespeito. Fico. Pelo cinema.

Percebi na sexta-feira que não ia ao cinema havia três meses. Não por falta de tempo, porque trabalhar muito não é uma novidade para mim. Mas porque fui expulsa do cinema. Devagar, aos poucos, mas expulsa. Pertenço, desde sempre, às fileiras dos silenciosos. Anos atrás, nem imaginava que pudesse haver outro comportamento além do silêncio absoluto no cinema. Assim como não imagino alguém cochichando em qualquer lugar onde entramos com o compromisso de escutar.

Não é uma questão de estilo, de gosto. Pertence ao campo do respeito, da ética. Cinema é a experiência da escuta de uma vida outra, que fala à nossa, mas nós não falamos uns com os outros. No cinema, só quem fala são os atores do filme. Nós calamos para que eles possam falar. Nossa vida cala para que outra fale.

Isso era cinema. Agora mudou. É estarrecedor, mas os blablablás venceram. Tomaram conta das salas de cinema. E, sem nenhuma repressão, vão expulsando a todos que entram no cinema para assistir ao filme sem importunar ninguém.

Comecei a escrever essa coluna na sexta-feira e decidi tentar mais uma vez. Vi três filmes entre a sexta e o sábado, em cinemas diferentes. No primeiro, à noite, teve um bate-boca entre um casal e duas adolescentes por causa da conversinha das teen. No segundo, no início da tarde de sábado, um casal de avós com seu neto sentou-se ao meu lado. Achei bonitinho os três, mas temi pelo neto. Nada. O neto comportou-se muito bem, o avô é que manuseava o saco da pipoca como se quisesse torturar o pedaço de papel.

No último, no meio da tarde, aconteceu. Os blábláblás do cinema estão inovando. Estava acomodada, bem feliz, com poltronas vagas entre mim e os próximos cinéfilos, quando entraram duas mulheres pouco antes de iniciar o filme. Não pediram licença, claro. Para que ter boa educação com desconhecidos? Depois de atropelar meus pés, sentaram-se e na mesma hora começaram a conversar. Em inglês. Pronto. Agora os blábláblás são poliglotas. Pensei em berrar um “Shut up!”. Mas optei por um “shhhhhhhhhhhhh” em esperanto.

Confesso, desisti. Cansei de me incomodar. Me parece uma Missão Impossível. Quando os primeiros espécimes de blábláblás surgiram na escalada da involução, eu mudava de lugar. Abandonei os lugares do meio, que até então haviam sido meus preferidos, e passei a ocupar a periferia do cinema, me esgueirando pelos cantos como Nosferatu. Era chato, mas tirando a movimentação inicial, depois que me acomodava longe dos faladores compulsivos, assistia ao filme sossegada. Com o tempo, não adiantava mais trocar de lugar. Para onde você ia, havia um blabláblá. Estavam em toda a parte. E não apenas nos cinemas de rede, mas também nos cinemas mais cabeções da cidade.

Mudei de estratégia. Em vez de chegar cedo, para escollher um bom lugar e ficar alguns minutos só antecipando o prazer que estava por vir, passei a violar meus melhores princípios de pontualidade e a chegar tarde. Quando eu chegava cedo, no último minuto era encurralada por uma gangue de blablablás. E minha sessão estava arruinada. Em vez de assistir ao filme, era obrigada a saber o que eles achavam do filme. Ou do namorado que não apareceu, da pipoca que tinha pouca manteiga, do fulano da firma que disse não sei o que para o chefe. Sempre temas fascinantes para o meu crescimento pessoal.

Comecei a chegar quando os trailers já iam pela metade. Assim, poderia escolher o lugar mais isolado. Aprendi a avaliar um caráter em segundos – e no escuro!!!. Tentava adivinhar quem iria assistir ao filme e quem ficaria falando. Deu certo por uns tempos. Mas logo os blablablás se multiplicaram. Descobri que tinham a mesma capacidade reprodutiva dos roedores. Eles estavam por todos os lados. Falando, falando, falando. Pagavam para falar no escuro. Oquei, poderia ser uma nova modalidade de fetiche: gente que gosta de pagar ingresso para impedir os outros de ver um filme. Não era. Falar no escuro é uma característica dessa nova espécie. Se fosse um fetiche, ainda haveria a esperança de convencê-los a mudar para fetiches mais civilizados. Eu poderia chicoteá-los ou pisar de salto agulha na sua cabeça sem cobrar nada, por exemplo.

Mas não, não seria tão fácil.

Pareço uma pessoa calma. Uma parte de mim não é. Quando me sinto desrespeitada, posso virar um Alien. Sinto mesmo que o meu rosto se deforma, os olhos se esbugalham, um calor toma conta de mim. Sou possuída por um instinto assassino. Quero sangue. Comecei a ter esse tipo de sentimento perturbador. Como sou muito controlada, só eu sabia. O blablablá atrás de mim – ou na frente, ou ao lado – começava a conversar com a colega como se estivesse na manicure. Eu esperava dez minutos regulamentares. Se o bate-papo continuava, tocava o ombro, com toda a delicadeza para não assustar ninguém: “Por favor, seria possível ficar quieta (o)?” Era possível. Eu agradecia, sorridente. Na verdade, era meu maxilar que tinha travado, mas ninguém precisava saber disso.

Por uns tempos bastou mandar um e outro calar a boca com a maior finura. Durou pouco. Para meu desespero, descobri que os blablablás sofrem mutações. São parecidos com o vírus da gripe suína. No período de uma estação, eles tornam-se mais nocivos. Não adiantava mais pedir silêncio. Os blábláblás ignoravam. No início, pensava que formavam um sub-gênero da grande família dos sem-noção. Descobri que não. Como alguns espécimes do Senado, eles têm noção da diferença entre o público e o privado. (Justamente por ter noção é que preferem empregar namorados de netas no público, não no privado.) Apenas não se importam. Os blábláblás sabem que perturbam, mas não estão nem aí. Acham que, sim, pagaram o ingresso, podem falar à vontade. Afinal, só uma trouxa como eu vai ao cinema para assistir ao filme.

A situação se agravou. Os blablablás começaram a querer briga. Eu também queria briga, mas preferia assistir ao filme. Um dia, um amigo pediu silêncio a um homem que sentava atrás de nós, com seu filho de uns 10 anos. Adivinha qual foi o exemplo de educação que o pai deu ao seu pimpolho? “Ficar quieto o cacete!”. Meu amigo invocou. O pai continuou educando a criança: “Vem calar a minha boca, então”. Aconteceu. Os dois saíram do cinema e se encontraram na esquina do shopping. Era uma comédia romântica, virou um filme de terror.

Uma outra vez, fui com minha filha assistir a um filme japonês. Não no Cinemark, mas no Unibanco Arteplex. Cinema de gente chique. Estava lotado. Minha filha ficou sentada ao lado de dois adolescentes que falaram o tempo todo. Ela não pôde ver o filme, foi obrigada a assistir a eles. Maíra é um tantinho mais nervosa do que eu. Ela suportou calada toda a sessão para não atrapalhar aqueles que não tiveram a sua infelicidade. Só eu, que a conheço bem, sei o quanto deve ter custado esse auto-controle.

Quando a sessão acabou, ela fez um discurso sobre respeito ao outro para os dois adolescentes. A mãe deles estava sentada na poltrona da frente e não gostou que alguém estivesse chamando seus filhos de mal-educados. O fato de seus meninos terem conversado o filme inteiro e importunado quem estava ao redor, para essa boa educadora não era um problema. O problema era uma estranha dizer a eles o que ela devia ter dito assim que aprenderam a dizer “mamãe”, o que deve ter sido lá pelos oito anos de idade. A mulher quis briga com a minha filha. Nesse momento, eu, que tentava acalmar a Maíra, senti meu instinto materno sair pela boca. Estava calculando a distância do salto que devia dar para alcançar a jugular da mulher com meus dentes, quando o moço que limpava a sala me puxou pelo braço: “Não vale a pena”.

É claro que não valia. Naquele dia percebi que acabaria matando alguém. Olhando fixo para os blablablás, eu rememorava as mais sangrentas cenas cinematográficas de todos os tempos. Reeditei versões muito mais violentas de O Massacre da Serra Elétrica. Fui Chucky, o brinquedo assassino. Encarnei até A noiva do Chucky. Em mim, habitavamFreddy Krueger e Jason Voorhees – ao mesmo tempo. Meus remakes do Tubarão 1, 2 e 3 iniciavam pela mesma cena: com o tubarão mascando a parte mais musculosa dos espécimes falantes, a língua. Às vezes evocava apenas clássicos. Na minha versão de Os Pássaros, eu mesma bicava o cérebro dos falantes até alcançar o umbigo.

Inventei roteiros criativos, que me fariam ganhar milhões em Hollywood, não fosse o final previsível. Os blablablás sempre morriam lentamente, em sofrimento: empalados, queimados ou estripados. Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Sem olhos, um buraco no lugar da boca. Uma vez estava lendo um livro sobre a África e inclui no enredo um exército das vorazes formigas assassinas. Considero meu melhor trabalho.

O problema é que eu não tinha ido ao cinema para aprimorar meu humor-negro. Eu só queria assistir ao filme. E não podia por causa dos cochichos, das risadas, das luzes dos celulares piscando, às vezes até do som dos celulares e blequibeuris e aifones e não sei mais o que tocando, latindo, buzinando, fazendo ola. Eles estavam roubando o meu cinema com a sua voz.

Quando algumas redes inventaram o lugar marcado, entrei em pânico. Tentei despertar em mim poderes paranormais, na tentativa de adivinhar quais poltronas desenhadas na tela do computador os blábláblás não ocupariam. O sucesso era aleatório. A vida selvagem dos cinemas só piorava.

Ainda tentei uma última tática. Passei a frequentar as sessões matinais. Só assistia a filmes que passavam no cinema antes do meio-dia. Eu havia descoberto que os blablablás não gostam de cinema vazio. Eles querem casa cheia. Incomodar pouca gente não tem graça. Mas, com isso, fui perdendo muitos filmes, que só passavam em salas com sessões a partir do início da tarde, um horário proibitivo para quem gosta de cinema. E, assim, fui me exilando.

Os blablablás venceram. Percebi que o fenômeno era só a parte mais evidente da falta de limites que viceja por todos os espaços públicos. Você está no restaurante e alguém está falando aos berros. Essa pessoa acha que você foi até ali na esperança de encontrá-la e ouvir suas histórias fascinantes. Você está experimentando roupas numa loja e um garotinho muito bem vestido invade o seu provador porque está brincando de esconde-esconde com a irmã. A mãe acha graça, eu devo achar também. Eu rosno como o personagem de Clint Eastwood em Gran Torino, ela acha ruim.

Mal posso esperar para essa geração crescer, filhos desses pais incapazes de botar limites porque também não têm limite algum. Ao ser obrigada a estudar os hábitos dessa nova espécie de vírus cinematográfico, percebi que eles pensam que fazer o que querem é um direito seu. Respeitar o direito do outro é algo para losers. Gente que se dá bem só faz o que quer. Não liga para os outros. É esse o arcabouço ético que transmitem aos seus filhos, formados à sua imagem e semelhança, enquanto devoram um saco gigante de pipoca de boca aberta. Para fazer mais barulho, claro.

Eu não sou da tribo que acredita que até a pipoca deve ser banida do cinema. No meu ponto de vista, a pipoca tem sua hora e seu lugar. Mas como de boca fechada, pegando com a ponta dos dedos para não incomodar ninguém. E não amasso o saquinho no final para, claro, fazer um pouco mais de barulho. Nem tomo o suco ou o refrigerante arranhando o canudo para, claro, fazer ainda mais barulho.

A blablablalogia – ciência que estuda o fenômeno dos blábláblás – aventa a hipótese de que eles são o resultado da cultura dos videocassetes e dos dvds. Acostumaram-se a assistir a filmes em casa, fazendo o que querem e falando alto. Levaram o (mau) comportamento para o cinema. Pode ser. Mas acho que é um pouco mais complexo do que isso. É uma crise de valores, mesmo. De cegueira para a existência do outro, de indiferença para o destino do outro. Quando falam no meu ouvido, batem o pé na minha cadeira ou são malcriados quando eu reclamo, o que estão dizendo é que o outro não importa. Só o eu importa. Não se trata mais do eu e suas circunstâncias, mas do eu e suas vontades. Sempre absolutas.

A trajetória se inverteu. Eu, que adoro o cinema e o ritual do cinema, fui apartada dele. Encurralada até me refugiar em minha própria casa, no meu próprio dvd, que assisto com as cortinas fechadas e no mais absoluto silêncio. Mas não é a mesma coisa. Ao me tirarem o cinema, roubaram muito de mim. Roubaram toda uma possibilidade de encantamento. E de me sentir comungando com gente com quem nunca troquei uma palavra, mas troquei muito, ali, na sala escura, chorando, rindo e sonhando com os olhos imersos na tela.

Não sei se ainda tem jeito. Essa coluna é uma tentativa. Talvez você tenha perdido o cinema como eu, talvez você tenha uma ideia do que fazer. Parece brincadeira, mas é sério. Já pensei em distribuir panfletos na porta dos cinemas, com algum apelo comovente. Pensei em escrever para todos os colunistas do país e fazer uma campanha nacional pela volta do silêncio na sala escura. Cogitei falar com os donos dos cinemas para exigir que os blablablás fossem retirados das salas, se não atendessem à primeira advertência. Como o seriam se estivessem em qualquer outra sala de espetáculos. Estudei a volta dos lanterninhas, mas cheguei a conclusão que esse tipo de gente provavelmente lincharia os pobres homens. “Imagina! Pedir para o meu bebê calar a sua boquinha linda!”.

Não sei. Estou beirando o desespero. Se você tiver uma ideia ou uma história para contar, conte. Quem sabe a gente não consegue fazer algo com isso. Acho que nós, que queremos apenas assistir a um filme sem ouvir conversas paralelas, precisamos nos unir.

Eu não gosto de desistir. O cinema é parte do que sou. Muitos foram os filmes que moldaram meu caráter. Muitas foram as vidas da tela que ajudaram a dar sentido à minha. Devo muito ao cinema para desistir dele. Talvez ainda seja possível lembrar que a experiência do cinema é individual, mas não é do indivíduo. Ser cinema é ser parte. Da mesma mágica, para além de todas as diferenças. Encantado pela vida na tela, com respeito pela vida ao seu lado.

(Publicado na Revista Época em 10/08/2009)

O céu nos espera

O que o universo conta sobre mim e você

Quando eu era criança, queria ser astrônoma. Na verdade, como muitos, eu queria mesmo era ser astronauta, para chegar mais perto das estrelas. Meu irmão mais novo me garantiu que, para ser astronauta, eu precisava ser astrônoma. Então, eu repetia para todo mundo que era essa profissão insondável que queria ter. Depois, esse mesmo irmão, que mais tarde se tornaria um físico brilhante, me explicou que para ser astrônoma eu teria de estudar muita matemática. Ele estava certo, mas foi assim que meu sonho foi se apagando e eu acabei virando jornalista. Nas redações por onde andei, os colegas costumam dizer que estou sempre em outro mundo. Nessa perspectiva cosmológica, pode ter um fundo de verdade.

Nas noites estreladas, e na minha cidade pequena havia muitas delas, minha família e eu sentávamos no retalho de quintal que nos cabia, esparramados em preguiçosas, só para ver as estrelas. Ficávamos horas por lá, abismados com o universo. Nenhum de nós possuía o mínimo conhecimento científico sobre o que se passava acima de nossas cabeças, mas tínhamos algo importante: um sentimento de pertencimento, de conexão. O universo estava em nós, como nós estávamos no universo. Do nosso modo simples, ignorante mesmo, nos víamos refletidos em cada estrela do céu, reconhecíamo-nos no firmamento. O mistério não nos afastava. Pelo contrário.

Em algum ponto da vida adulta perdi minha conexão com as estrelas. Não só desisti do desejo de vê-las de mais perto, como aceitei que elas ficam longe de mais. Pior que isso, percebo agora. Deixei de achar o universo fascinante. Não que não o ache, em tese, mas foi me parecendo tão inescrutável, impossível de alcançar não pela distância em anos-luz de quase tudo que nele habita, mas por curto que são os meus neurônios, que abandonei o sonho de compreendê-lo. Seja com a mente, seja com a intuição da alma de criança que já tive. Começo a ler as reportagens sobre as novas descobertas, os enigmas, a tal da matéria escura, e em algum momento me perco das letras, não consigo entender nem me reconheço. É tão grande, tão incompreensível, e eu sou tão pequena, tão limitada, tão carente de matemática e física.

Primeiro, parei de olhar para as estrelas. (Até porque há quase dez anos vivo numa cidade onde é difícil enxergar uma delas no céu.) Depois, parei de ler sobre as estrelas. Por fim, só raramente lembro que elas existem. Escrevo esse texto e me horrorizo com a descoberta da minha cegueira. Há quanto tempo eu, que sonhava em alcançar as estrelas, não busco uma estrela no céu? Não lembro. E o que meu desligamento do universo diz sobre a minha vida?

Só voltei a pensar nisso nos últimos dias, quando comecei a ler um livro muito especial, chamado Panorama visto do centro do universo – a descoberta de nosso extraordinário lugar no cosmos (Companhia das Letras, 2008). Eu tropecei nesse livro na redação da Época. Alguém resolveu passá-lo adiante e o deixou numa mesa pública, onde colocamos tudo aquilo que não queremos mais e pode servir para outro. Passei, olhei, segui adiante. Voltei. Folheei. Segui adiante. Dei uns três passos. Voltei. Peguei. Comecei a ler. Fiquei encantada.

E voltei a olhar para o céu. Claro, chovia sem parar em São Paulo na semana passada e teria sido mais apropriado ter tropeçado num livro sobre a vida dos anfíbios. Não enxerguei nada, nem mesmo o firmamento em si, mas pelo menos lembrei que há algo maior do que esse mundinho cada vez mais tacanho e encolhido que tenho habitado. Algo muito maior ao qual eu também pertenço. Descobri também que meu pescoço ainda consegue fazer esse movimento de olhar para cima, a memória das noites estreladas da minha infância permaneceu gravada na parte do cérebro que manda no meu pescoço. Ainda tenho salvação, portanto.

O livro foi escrito por um casal de americanos, esboçado enquanto cozinhavam e conversavam noite adentro com amigos cientistas. Joel Primack é astrofísico e Nancy Ellen Abrams uma advogada especializada em políticas científicas. A obra, uma delícia de ler, até mesmo para uma astronauta sem nenhum futuro como eu, parte de uma premissa fascinante. Pela primeira vez temos telescópios poderosos e conhecimento científico para começarmos a saber como é o universo na realidade. Não saber o que o universo não é, como os cientistas do passado, mas ter as primeiras pistas sobre como ele pode ser. Nunca, porém, tivemos tão apartado dele. Essa desconexão faz com que percamos a melhor parte de uma história que está acontecendo hoje, agora: o que o universo fala sobre a nossa vida quando, pela primeira vez, temos instrumentos para entender o que ele nos diz.

“O que emerge (da cosmologia atual) é a primeira representação humana do universo como um todo que até poderia ser verdadeira. Incontáveis mitos da origem do universo existiram, mas este é o primeiro que nenhum contador de histórias inventou – somos todos testemunhas cheias de expectativa” – os autores escrevem. Ou pelo menos deveríamos ser testemunhas cheias de expectativa. Mas os antigos, que tiveram de criar uma mitologia para o cosmos, já que não tinham nenhuma informação científica disponível, eram muito mais conectados do que nós.

O que aconteceu com nossa relação com o universo? Durante séculos, cristãos, judeus e muçulmanos acreditaram que a Terra era o centro do universo e que tudo o mais girava em torno de nosso planeta, em torno de nós. Quando cientistas como Galileu (1564-1642) provaram, há 400 anos, que a verdade era muito diferente da crença, algo foi aos poucos se perdendo para a maioria de nós. Ao descobrir que habitávamos um dos menores planetas que giravam em torno de uma entre bilhões de bilhões de estrelas de uma das bilhões de galáxias, nossa desimportância parece ter nos acabrunhado. Aos poucos, o universo se tornou algo insondável, povoado por corpos igualmente insondáveis, no qual não tínhamos a mínima relevância. Melhor seria ignorar “esse vazio sem fim salpicado de estrelas”.

Como lembram Joel e Nancy, o primeiro cientista a expressar o efeito deste “mal-estar cósmico” causado pela nova ideia de universo pós-Galileu, foi o francês Pascal (1623-62), físico, matemático e monge: “Me sinto engolfado na imensidão infinita de espaços sobre os quais nada sei e que nada sabem de mim. Estou aterrorizado”. Do universo medieval, dizem os autores, compreendido como uma catedral magnífica e com pé-direito alto, Pascal se sentiu jogado num universo científico que era frio, disforme e imenso para além da compreensão. Nele, seres humanos sentiam-se insignificantes. Essa é a impressão do universo que dura até hoje.

Ao nos levar pelas páginas do livro, os autores nos lembram do nosso extraordinário lugar no cosmos. Um extraordinário que nada tem a ver com uma noção medíocre de importância, mas sim com a grandeza de quem compreende que só com muita imaginação é possível alcançar a realidade.

Essa resumida trajetória do sentimento humano diante do universo lembrou minha pequena história pessoal. Eu vivi esse desencanto da minha maneira. Imagino que cada leitor tenha a sua memória dessa relação com o firmamento. Quando eu nada sabia sobre o céu acima da minha cabeça, era capaz de me encantar com seu mistério. O não-saber não me afastava das estrelas, pelo contrário. Me permitia imaginar e criar enredos, já que tudo era possível. Foi minha fase medieval, digamos.

Quando meu irmão me informou que para alcançar as estrelas era preciso não desejo, mas matemática, o universo começou a se afastar de mim. Quanto mais eu crescia e mais informação tinha, em livros, revistas e programas de TV, mais longe ele me parecia. Senti o mesmo terror de Pascal. Mas, ao contrário dele, que era um grande homem, resolvi meu medo da pior forma: passei a olhar cada vez mais em linha reta, perdendo os ângulos mais amplos da existência. Desgarrei-me das estrelas sem entender que, ao fazê-lo, perdia algo de essencial de mim mesma. Não no sentido metafórico, mas literal. Que direito tenho eu agora de reclamar quando olho ao redor de mim e só vejo paredes cinzas?

O que eu perdi? O que nós perdemos? É disso que Joel e Nancy nos falam. “Cosmicamente desabrigada, nossa cultura ao longo dos séculos minimizou a importância de ter um lar cósmico”, dizem eles. “O universo no imaginário popular se tornou pouco mais do que um espaço disforme ou um cenário de fantasia para ficção científica, nenhum dos quais parece ter muita importância no que as pessoas chamam de mundo real. Hoje é normal considerar que gente mais preocupada com a realidade cósmica do que com ganhar dinheiro é sem noção ou irrealista. Esta é possivelmente nossa maior deficiência mental em resolver problemas globais”.

O livro nos mostra que vivemos por séculos num filme preto-e-branco. E agora o grande filme da evolução do universo está entrando em foco. “É como de repente ver em cores, e isso muda não só o que está longe, mas o que está bem aqui. O universo está aqui, e é mais coerente e potencialmente significativo para nossa vida do que se pode imaginar”, afirmam os autores. Joel e Nancy nos levam à compreensão de que não estamos no centro do universo, até porque não existe centro geográfico num universo em expansão, mas somos centrais de várias formas inesperadas. “A história do universo está em cada um de nós. Cada partícula em nosso corpo tem um passado de um multibilhão de anos, cada célula e cada órgão do corpo têm um passado de um multimilhão de anos, e muitas das nossas formas de pensar têm passados com multimilhares de anos. Cada um de nós é um tipo de centro neural onde essas várias histórias cósmicas se cruzam. O tempo é uma chave para apreciar o que somos”.

Adoro a imagem – real – da Terra vista do espaço. Ela não nos mostra países, nações, grupos raciais, étnicos e religiosos. Só porções de terra, oceanos e nuvens. Precisamos sair e nos olhar do outro lado da rua para perceber que pertencemos a um planeta indivisível. Todo o resto, que nos faz guerrear, o que nos separa e também o que nos dá aquele tipo de importância que só existe na comparação à desimportância de um outro, é arbitrário. Inventado. De um certo modo, não é real. Só é real por que tornamos essa arbitrariedade mais real que todas as outras.

Ainda não cheguei ao fim do livro, mas Joel e Nancy prometem mostrar que diferença tudo isso faz para cada um. “Para a vasta maioria das pessoas ocupadas, não há por que aprender um monte de ciência a não ser que você possa fazer algo com esse conhecimento que tenha valor para a sua vida. Queremos mostrar que você pode”. Quero muito saber como “pensar cosmicamente poderia nos ajudar a vivenciar o que significa ser a parte humana do universo”, como entender o universo ajuda a me entender. E, principalmente, uma ideia que me move na vida e no exercício da reportagem, como contadora de histórias reais: o resgate do extraordinário que nos habita.

Por me dedicar às trajetórias não dos planetas, mas de homens e mulheres, compreendi que não existem vidas comuns. Só mesmo nossa cegueira sobre os outros e sobre nós mesmos nos separa do extraordinário do que somos. Desconheço o cosmos, mas conheço (um pouco) o humano. Com a ajuda desse livro e de alguns outros que vieram antes, começo entender onde essas pontas se encontram. Compreendo por que Carl Sagan dizia que somos o universo compreendendo a si mesmo. Como poeira de estrelas – um fato científico, além de uma imagem poética – somos pedaços brilhantes do universo.

Como deixar-se apequenar na vida depois disso? Como pedaços brilhantes do universo, seres feito de estrelas, ousam deixar-se mediocrizar a cada dia, perder-se em pequenezas cotidianas? Querendo ou não, nossa matéria é a das grandes aspirações. Não as ditadas pela moda do momento, pela lógica política e econômica de uma ou outra época. Mas algo mais profundo, algo que é nosso e ninguém pode nos tirar. Um sentido do extraordinário que é parte de nós, tanto quanto são as nossas células repletas da memória do big bang.

Acabo de perceber que, de certo modo, ao contar histórias de gente, acabei encontrando meu próprio caminho para as estrelas.

(Publicado na Revista Época em 03/08/2009)

Você gosta do que faz?

Quando o trabalho massacra. E quando liberta

Em 13 de julho, a capa de Época apresentava a seguinte questão: “Dá para ser feliz no trabalho?”. A reportagem, baseada em dois livros sobre o tema, me fez pensar sobre a minha relação com o trabalho. Eu adoro trabalhar. Mas conheço mais gente que detesta do que gente que gosta do que faz. E o curioso é que muitos dos que não gostam falam mais de trabalho do que eu. Não do trabalho em si, mas do ambiente do emprego. Parecem presos às disputas de poder, às fofocas, a quem está sacaneando quem, ao que o fulano disse ou deixou de dizer, aos supostos privilégios de um em detrimento de outro. São alimentados pelas pequenezas do cotidiano que os massacra. E, mesmo que não admitam, também colaboram com sua cota de intrigas. Mesmo que não admitam, há um prazer nessa dinâmica do dia a dia, seja num escritório revestido de mármore, seja num chão de fábrica.

Fiquei pensando por que eu adoro trabalhar. Primeiro, para mim há uma diferença fundamental entre trabalho e emprego. Na minha divisão pessoal, o emprego é o lugar onde eu trabalho. Se meu emprego permite que eu trabalhe, é um bom emprego. Se não permite, é hora de sair em busca de um que me deixe trabalhar. Então, é uma relação de troca, para além do salário. Eu faço da melhor maneira aquilo que sei fazer de melhor, e o emprego me dá as condições e a autonomia para que eu possa fazer o melhor que sei fazer. Se essa relação está equilibrada, todos ganham. E eu posso trabalhar sossegada.

De tempos em tempos, eu faço uma análise dessa relação de equilíbrio. O resultado me mostra se algo precisa mudar. Na minha avaliação, interna e pessoal, entram não só as questões objetivas, mas também as subjetivas. Ou seja: o salário, os equipamentos, as condições, o espaço, o investimento é importante, mas ser tratada com respeito e educação é tão importante quanto. Se um dia eu tivesse um salário milionário, mas meu chefe cometesse o que hoje é chamado no Código Penal de assédio moral, tenho certeza de que não ficaria um minuto a mais.

Deixar-se maltratar arrebenta com a nossa autoestima, nos quebra a espinha. E ninguém trabalha bem de espinha quebrada. Trabalhador aniquilado nos seus desejos só serve a chefe incompetente. E nenhuma empresa, tenha o tamanho que tiver, pode ser bem-sucedida se tolerar gente assim em cargos de chefia. Se não for pelos outros cem motivos, basta um: chefe abusivo mata a iniciativa e a criatividade.

Eu aprendi sobre o valor do trabalho com meu pai, Argemiro. Meu pai foi o penúltimo dos 12 filhos de uma família de agricultores, descendentes de imigrantes italianos. Dos 12, os gêmeos sucumbiram no parto e outras duas, tia Lídia e tia Henriqueta, morreram ainda na infância, por acontecimentos tão absurdos que cada um deles rende uma outra história.

A família vivia no interior do município de Ijuí, no Rio Grande do Sul, num lugarejo chamado Barreiro, que sempre fez por merecer o nome que tem. Meu pai passou a primeira infância pisando a geada do inverno gaúcho com os pés nus, tomando banho de rio mesmo quando a água era quase gelo. Meu avô era fabricante de erva-mate e morreu depois de passar mal no soque, extenuado de tanto trabalhar. Minha avó se foi três anos depois. Aos 15 anos, meu pai e

Seus irmãos mais velhos cumpriram o desejo paterno, o de que o filho mais novo conhecesse as letras. Meu pai pagou os estudos no colégio interno da cidade fazendo limpeza e cuidando dos outros estudantes. Herdeiro de gerações de analfabetos, tornou-se um professor apaixonado e ajudou a fundar uma universidade. Até hoje, perto dos 80 anos, quando ele anda pelas ruas encontra ex-alunos já de cabelos brancos, que o olham com reverência e o chamam de “professor”. Muitas e muitas vezes ao longo da minha vida topei com gente que fazia questão de me dizer: “Seu pai mudou minha vida. Sou o que sou por causa dele”.

Eu, que sou a filha mais nova, e meus dois irmãos, nos criamos num mundo em que o trabalho não era apenas necessário para pagar as contas, adquirir casa própria, carro e bens de consumo. A gente tinha pouco disso tudo e ninguém ligava muito, porque tínhamos o suficiente para os livros e para a comida. Nosso pai nos ensinou com seu exemplo, mais do que com suas palavras, que o trabalho era a expressão de nosso ideal. Era a construção cotidiana de nossa marca singular na História.

Nosso trabalho era para nós. Mas só era para nós se, ao mesmo tempo, não fosse para nós. O trabalho de cada um só se cumpria se pudesse ser para o outro, se transformasse para melhor a comunidade, o mundo em que vivíamos. Não fosse isso, não seria um trabalho, seria um emprego. E, como empregados, não mais como trabalhadores, estaríamos alienados de nós mesmos, esvaziados de sentido e de propósito na vida, apartados de nossa criação no mundo.

Nunca fui filha, portanto, do individualismo, que vê no trabalho apenas uma forma de adquirir bens materiais e dinheiro para exercer seus próprios desejos. Meu desejo só se realiza se puder ser veículo do desejo do outro. Eu não “sou feliz e bem-sucedida” apenas realizando meus desejos. Sou feliz se o outro também puder realizar os seus. Minha vida não é apenas minha, ela está implicada com a do outro. E o outro não é a minha família, meus parentes de sangue, minha raça, meu grupo, os meus. O outro é a humanidade toda, que eu alcanço a partir da diversidade dos que estão mais perto de mim.

Lembro que, quando me tornei uma adolescente tão encantadora quanto insuportável, meu pai me pegou pelos ombros e disse, com aqueles olhos que refletem a alma da gente. “Você sabe quanto custa a um operário para você estudar?”. Eu não sabia, mas fiquei sabendo naquela hora que mesmo os trabalhadores que não conseguiam dar educação para seus filhos pagavam para que eu pudesse estudar. Ou não estudar, como eu fazia naquele momento. Muito diferente daqueles alunos de escola privada que, porque o pai paga a mensalidade, supõem ter o direito de desrespeitar o professor dizendo: “Você não pode fazer nada, porque sou eu que pago seu salário”.

Meu pai nos mostrava que nossa vida se ligava, de várias maneiras, à de todos os outros. Era ele que nos apontava os fios invisíveis que, querendo ou não, nos transformava em coletivo, plural. Num domingo foi me buscar num acampamento nativista, uma espécie de festa que durava vários dias enquanto se desenrolava um festival de música. Eu tinha 15 anos e meu maior projeto era conhecer todas as festas do mundo. (Em minha opinião, um projeto bem saudável naquela fase da vida). No carro me esperava a família toda. Meu pai nos levou a um acampamento um pouco diferente, de agricultores pobres e sem-terra, para que eu conhecesse a multiplicidade da vida e dos desejos humanos. Professor Argemiro era um pai severo, mas acreditava. E sonhava.

E me ensinou a acreditar e a sonhar. Os olhos dele sempre estavam – e estão – postos no horizonte. E sempre brilhando. Ele me mostrou que carregamos a largura do mundo dentro de nós. E não podemos esquecer disso. Quando as pequenezas do cotidiano ameaçam me engolir, eu olho para dentro. Não tenho tempo a perder com os ataques traiçoeiros dos pequenos poderes e grandes medos. Eu não pertenço à umbigolândia. Sou habitada, como todos que se sabem parte – não todo – pela vastidão do universo. Tenho em mim “a vertigem horizontal da planície”.

Todos nós já ouvimos um colega justificar sua infelicidade com o chefe que não permite que faça um bom trabalho, com a estrutura que não deixa espaço para ousar, com as sacanagens das quais é uma vítima recorrente. Se tivesse espaço, condições, tempo, ele faria um ótimo trabalho. Como não tem, só pode reclamar e buscar culpados. Se tudo fosse diferente, ele poderia ser diferente, poderia ser um profissional melhor, uma pessoa mais feliz.

Eu desconfio desse discurso. É sempre conveniente quando a responsabilidade é do outro, especialmente se esse outro tem um poder maior que o meu. A impotência esmaga, mas também justifica, nos exime de tomar uma atitude, de arriscar. É paradoxal, mas assim como a impotência arrasa, ela também tem seu lado de conforto. Se eu acredito que nada posso fazer, que sou um eterno injustiçado, então eu não preciso fazer nada nem explicar aos outros – e a mim mesmo – a razão e a tristeza da minha imobilidade.

Por outro lado, se tudo é verdade, se as condições são ruins, o chefe é um déspota e os colegas sabotadores, o que nos obriga a gastar a maior parte da nossa vida no inferno? Ou mesmo se não é totalmente insuportável, mas é o suficiente para nos impedir de criar, de nos expressar, de chegar mais perto de nós mesmos, qual é a razão para insistir? O salário, muitos dirão. Está difícil conseguir emprego, outros lembrarão. É verdade. Mas será que é toda a verdade? Tenho dúvidas.

Tento escapar dessas armadilhas. Assim como evito consumir meu tempo falando mal de um ou de outro. Às vezes, porém, caio nessas arapucas, me debato um pouco. Depois paro, encaro o silêncio, tento ouvir minha voz. Olho para dentro e lembro que sou aquilo que sonho. Minha expressão no mundo é determinada pela minha capacidade de sonhar – e de criar a partir dos meus sonhos. Espano as minhas dores e vou em busca de alguma fresta esquecida nas tantas portas fechadas.

Por isso sou feliz no trabalho. Não trabalho apenas para ter um salário que me permita adquirir bens, nem trabalho para agradar um chefe. Ter um bom salário e um chefe satisfeito é o melhor cenário. E é importante. Mas meu horizonte está além. Não é circunstancial, nem estou a serviço de um projeto corporativo ou do projeto individual de um outro. O que tenho é um projeto de vida que, naquele momento, coincide com o de um superior, de uma empresa. Coincide, mas não está preso a ele. Acredito que todos ganham quando um projeto coletivo é construído não por escravos modernos e corporativos, mas por gente livre.

Nosso olhar sobre o mundo muda o mundo. Mesmo que seja um não-olhar, mesmo que seja uma falta. Se o seu olhar é vazio não é só a sua vida que se torna opaca, mas o que você poderia criar no mundo que se apaga antes de existir. O que somos e o que fazemos não é apenas uma profissão, um emprego, um meio de pagar as contas. É a expressão da singularidade de cada um de nós. É o nosso jeito único, intransferível e irrepetível de estar no mundo. E, com nosso trabalho, mudar o mundo e ser mudado por ele.

Quando você dá sentido ao seu trabalho, você não se deixa alienar. Seu trabalho não se torna algo separado de você, um produto que não é seu. Ao contrário. Ele é você, contém você, tem nele o seu desejo. Como expressão de sua passagem pelo mundo, seu trabalho lembra a cada dia de quem você é e do que realmente importa. Se isso não acontece, talvez seja hora de mudar. Não apenas de emprego, não somente o que está fora de você, mas algo um pouco mais profundo, bem mais fundo, mas que pode condenar ou libertar a sua vida.

(Publicado na Revista Época em 27/07/2009)

Carta de adeus

Minha vida no primeiro ano de sua morte

Querida Ailce,
na semana que passou, acordei pensando em você. E, várias vezes por dia, me pegava com alguma cena sua na cabeça. Voltei à reportagem em que contei os últimos 115 dias de sua vida e percebi que completava um ano de sua morte. Você entrou no hospital para morrer em 15 de julho. Nesse dia, na cama asséptica do apartamento, você me pediu para tirar suas meias dos pés. Você nunca gostou de meias nos pés, sentia-se presa. E você não gostava de nada que lhe prendesse, porque muitas vezes se sentia aprisionada numa vida que não sonhou. Mas nos últimos tempos da doença, você sentia muito frio. Na cama do hospital, tirei suas meias e descobri que você estava morrendo com as unhas dos pés pintadas de cor de rosa. Dei um meio sorriso triste. Era tão você, morrer de unhas feitas. Quantas vezes me alertou que uma mulher só podia sair de casa bem vestida, maquiada, com brincos e de salto alto. Então, com os pequenos pés ao sol, você me olhou e disse: “Acho que a história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim”.

Só naquele instante eu abarquei a grandeza do que você tinha me dado. Você permitiu que eu testemunhasse o fim da sua vida e contasse uma história que jamais leria. Você me deu a história de sua vida – e a de sua morte. Era minha a narrativa de sua existência, a marca escrita de sua passagem no mundo. Ninguém nunca havia confiado tanto em mim. “Eu vou escrever uma história linda sobre você”, eu disse. Foi nossa última conversa. Mais tarde, naquela mesma noite, você ainda acordou e perguntou se eu e o fotógrafo Marcelo Min havíamos comido. De novo, era tão você. Estar morrendo e preocupada se estávamos bem alimentados.

Era você a mulher que alimentava. A merendeira de escola que alimentou por décadas crianças famintas de comida e afeto nas escolas de periferia. O câncer – palavra que você nunca pronunciou – a impedia de comer, envenenava seu sangue. Então, você comia pela minha boca, me engordando com bolos e pães de queijo. E, dia após dia, enquanto lembrava dos cheiros da cozinha de sua mãe, no interior de Minas Gerais, me transmitia receitas, lambuzando-se de recordações. Naquelas conversas telefônicas de cada dia, você na sua casa, eu na revista, comíamos por lembranças. E, pelas suas memórias, minha vida povoou-se de sabores de um fogão de lenha desconhecido.

Na tarde de 18 de julho de 2008, seus olhos erraram pelo quadrilátero do quarto do hospital. Eram dois oceanos agitados de saudade salgada. Então a derradeira tempestade amainou e você fixou sua última cena.

No último sábado, completou-se um ano de sua morte. Eu comi uma feijoada por você. O arroz do restaurante estava como você gostava e, com paciência, me ensinou dezenas de vezes a preparar. A percepção de que a comida nos dá vida e metáforas foi algo que sempre nos uniu. Pela manhã, ao me vestir, eu hesitei diante de um par de tênis, tão mais confortável. Mas quando vi, estava enfiando nos pés um salto alto que você aprovaria. Por que você está tão arrumada?, amigos me perguntaram. Eu respondia com a metade de um sorriso secreto. Essa data era só nossa.

Ailce, aconteceu muito nesse ano. Um pouco mais até do que minha sanidade era capaz de suportar. Você sabe, a vida é sempre mais faminta do que supomos. Logo que a conheci, eu descobri que a narrativa da sua história seria a reportagem mais difícil da minha trajetória. Como fazer uma reportagem cujo fim era a sua morte? Só foi possível porque aprendemos a amar uma a outra. Você, a personagem de uma vida. Eu, a narradora de uma morte. Você morreu e eu contei a sua história. Apalpei cada palavra na busca daquelas que dessem a dimensão real de sua passagem pelo mundo. Como contadora de histórias reais, sempre que escrevo meu maior medo é reduzir a vida de alguém. Com você, essa preocupação pesava ainda mais sobre meus ombros doloridos, já que você nunca leria a escritura de sua vida. Eu precisava merecer em cada linha o poder amoroso que você tinha me dado.

Você acreditava em Deus, embora tenha brigado com ele em alguns momentos. Brigava porque acreditava. E porque não entendia como ele fora capaz de deixá-la morrer quando você finalmente planejara viver. Quando você havia jogado o relógio fora e dançava e viajava, os olhos bem abertos para não perder nada, devorando o ar em grandes bocados como se ele fosse acabar de repente. Espero que você esteja no lugar para onde acreditava ir. Eu, que sou bem mais cética, de algum jeito armei dentro de mim a convicção de que você leu meu texto e se reconheceu. Não há como saber se é uma fantasia que precisei criar. Só por essa vez, abracei o mistério sem questionar.

O que eu não adivinhava, Ailce, era que o luto por você seria tão prolongado. Eu sempre soube que não entramos na vida do outro impunemente. Sempre acreditei que uma reportagem só acontece, de verdade, quando transforma a vida do personagem e do narrador. Eu compreendia que ao entrar na sua vida você faria parte da minha para sempre. Ao contar sua história você estaria na minha. Mas eu não adivinhava que doeria tanto – e por tanto tempo.

Depois que você morreu, um caminhão atingiu o carro em que eu viajava, em seguida sofri um assalto com tiros e duas pessoas queridas receberam o diagnóstico de câncer. Em janeiro, perdi alguém que também amava, pela mesma doença. Em seguida, alguém que amo precisou me deixar. Seis meses depois de você morrer, eu não conseguia mais comer nem dormir. Perdi oito quilos. Eu estava encharcada de morte. Do fundo da minha fragilidade exposta, eu buscava sinais de que a vida persistia em algum canto. Mas era afogada pela névoa espessa dos tantos fins e quase-fins.

Em abril, retalhos de sol começaram a aparecer aqui e ali. E eu voltei a dormir uma noite inteira sem remédios. Eu havia entendido a grande lição que sua vida tinha me dado. Tinha compreendido o que sempre soube em teoria. Meses antes de conhecer você eu tive uma profunda experiência de meditação, em outra reportagem. A partir dela, comecei a viver a experiência, ao mesmo tempo brutal e libertadora, de que na vida só há uma certeza: a de que não temos nenhum controle. Mas essa, me parece, é a lição mais difícil de aprender. Pode levar uma existência inteira para entendermos a que talvez seja a maior de todas as verdades humanas. Ou podemos morrer sem alcançar a essência da matéria de que somos feitos.

A morte é essa falta de controle levada à máxima radicalidade. Qualquer pretensão de controle é ilusão. A vida é risco. Não há nenhuma garantia, como você aprendeu de forma tão dura. Apavorada com a doença, o acidente, o assalto, o abandono, a morte de quem amava, me parecia impossível dormir. Se acordada, vigilante, tudo isso acontecia à minha revelia, como eu poderia dormir? Toda vez que saía de casa me sentia na iminência de uma catástrofe.

A partir da sua morte, em seis meses todos os pesadelos de quem vive se materializaram em mim como vida vivida. Tomada de desespero, eu me agarrava a uma das tantas imagens famosas de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Em alguns momentos dessa queda brutal no precipício da verdade, acho que até a coragem me faltou. Mas um dia, depois de tantas ilusões arrancadas de minhas entranhas como pedaços de onde brotava sangue vivo, eu finalmente entendi. A falta de controle sobre o vivido não é uma maldição. Ao contrário, ela nos liberta. Se não ficamos perdendo tempo tentando antecipar e planejar cada passo, podemos nos dedicar apenas a viver. Sem postergar, sem adiar, sem deixar para depois. Se é impossível controlar, para que gastar tempo tentando? O mais sensato é enfiar o pé no mundo, sabendo que vamos nos lambuzar. É a incerteza do que nos espera na próxima esquina o encanto da vida.

Analisei então, Ailce, os grandes e pequenos momentos da minha trajetória e descobri que os melhores capítulos haviam sido os inesperados, não os planejados. A filha que nasceu aos 15 anos, numa gravidez adolescente que tantos viram como tragédia, o professor que me mostrou que ser repórter era a melhor profissão do mundo quando eu já tinha decidido seguir outra profissão, o grande amor que apareceu numa festa que eu pretendia não ir porque estava com sono. Minhas melhores reportagens aconteceram quando tudo parecia dar errado. As histórias mais fascinantes que contei foram aquelas em que ouvi algo totalmente diferente do previsto. Se nos fechamos para o imprevisível, como a vida poderia ser menos do que um tédio? É o que ainda não sabemos, o que está para acontecer, que contém o germe da vida.

Quantas vezes não percebemos, depois de algum tempo, que a suposta catástrofe se revelou o melhor que poderia ter nos acontecido? Como a demissão de um emprego que detestávamos, mas achávamos que era preciso manter porque nos garantia segurança. O casamento que nos aniquilava, mas que pensávamos ter de segurar porque era garantido. A viagem de férias para o mesmo lugar para não nos arriscar nem mesmo à possibilidade de algo novo acontecer. Todas aquelas coisas que soam seguras, mas que matam nosso desejo.

O que aprendi com sua vida e sua morte, Ailce, é que a segurança não é uma bênção, é um perigo. Ter maturidade, tornar-se adulto, não é, como tantos dizem, acatar o manual, seguir o rebanho, fugir do risco. Ao contrário. A sabedoria é abraçar o risco, aceitar a impossibilidade de controlar a vida como possibilidade, compreender que só o inesperado pode nos levar a algum lugar. O planejado é o território do previsível, se já sabemos o que vai acontecer, qual é o sentido? O que ganhamos indo sempre ao mesmo lugar, do mesmo jeito, evitando qualquer surpresa? O melhor do humano é a capacidade de se espantar. É pelo espanto que tudo se inicia.

Na semana que passou, quando um tempo inconsciente assinalou dentro de mim o primeiro ano de sua morte, eu atendi ao chamado de uma reportagem daquelas impossíveis de prever o quanto vai exigir de mim. Bati na porta de uma vida e entrei num mundo que vai me revirar pelo avesso. Desde que vivi com você a sua morte, minha alma em carne viva tocava a dor do outro e recuava. Dava os primeiros passos e voltava para trás. Dentro de mim, as cicatrizes ainda eram frágeis e se abriam ao primeiro toque. No primeiro sinal de sangue, eu corria.

Precisei de muito mais tempo do que imaginava para viver meu luto por você, para aceitar a sua morte e todo o imponderável da minha vida que ela continha. Para entender, de verdade, a frase que você me disse no nosso primeiro encontro: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Algo se libertou nessa semana dentro de mim. Você é parte da minha história, vive dentro de mim como de todas as pessoas que a amaram, nas células de todas as crianças que salvou da desnutrição. Mas agora vou me deixar viver – e deixar você partir. Parto também eu para todas as vidas possíveis que me esperam. De salto alto e batom vermelho, torcendo pelo desconhecido que me aguarda na virada de cada uma das esquinas do mundo.

Obrigada. Adeus.

(Publicado na Revista Época em 20/07/2009)

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