Por que as pessoas falam tanto?

Vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva

Uma vez passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, para fazer uma reportagem para ÉPOCA. Havia muitas regras. Uma delas era o silêncio. Por dez dias era proibido falar. Também devíamos evitar olhar para as outras pessoas. O objetivo era silenciar a mente até que não houvesse nenhum ruído também dentro de nós. Foi uma experiência fantástica, que me mudou para sempre. Nunca antes estive tão em mim. E nunca depois voltei a estar.

O silêncio e um progressivo mergulho interno, em vez de me alienar do mundo, me conectaram a ele de um modo até então inédito para mim. Eu sentia cada segundo, por que eles demoravam a passar. Percebia o vento e as nuances das cores do céu e das folhas das árvores em detalhes. Olhava, cheirava, ouvia e tocava o mundo como se tudo fosse novo. Cada centímetro de terra era capaz de me ocupar por minutos. Sem palavras, a realidade me alcançava com mais força. Finalmente eu não apenas compreendia, mas vivia a poesia de Alberto Caeiro: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.

Antes que alguém tenha ideias, experimentei tudo isso sem nenhuma droga. Nenhuma mesmo. Não podíamos tomar álcool, fumar ou ingerir qualquer medicamento, nem mesmo aspirina. Minha droga era a lucidez. Naqueles dez dias, ouvi com mais clareza a mim mesma. E passei a escutar melhor o mundo em que vivia. Senti que finalmente estava no mundo. Eu era.

No décimo dia, voltamos a falar. O retiro acabaria no dia seguinte e precisávamos nos preparar para retornar a uma realidade cotidiana de ruídos e demandas excessivas. Lembro que eu não queria falar. Fiquei assustada quando todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Percebi que a maioria do que se dizia nunca deveria ter sido dito. Sobrava.

Uma parte eram fofocas que haviam sido guardadas por dias. E que poderiam ter ficado impronunciadas para sempre. Percebi, principalmente, que depois de dez dias de silêncio muitas de nós não queriam ouvir. Só falar. Poucas eram aquelas que realmente desejavam escutar a experiência da outra, a voz da outra. A maioria só queria contar da sua. Não tinham sentido falta de outras vozes, apenas do som da sua. Dez dias de silêncio não tinham sido suficientes para acabar com nossa surdez à voz alheia.

A reportagem foi publicada, com o título de “O inimigo sou eu”. Eu segui, guardando em parte o que aprendi lá. E tenho sentido falta daqueles dez dias de silêncio, agora que aumenta em níveis quase insuportáveis a poluição sonora dentro e fora de mim.

Acho que nunca escutamos tão pouco. E talvez por isso nunca fomos tão solitários. Quando faço palestras sobre reportagem, os estudantes de jornalismo costumam perguntar o que devem fazer para se tornarem bons repórteres. Minha resposta é sempre a mesma: escutem. Acredito que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta. Não apenas para ser um bom jornalista, mas para ser uma boa pessoa. Escutar é mais do que ouvir. Como repórter e como gente esforço-me para ser uma boa “escutadeira”.

É a escuta que nos leva ao mundo. E é a escuta que nos leva ao outro. Quando não escutamos, nos tornamos solitários, mesmo que estejamos no meio de uma festa, falando sem parar para um monte de gente. Condenamo-nos não à solidão necessária para elaborar a vida, mas à solidão que massacra, por que não faz conexão com nada. Não escutamos nem somos escutados. Somos planetas fechados em si mesmos. Suspeito que essa é uma época de tantos solitários em grande parte pela dificuldade de escutar.

Basta observar. As pessoas não querem escutar, só querem falar. Depois de muita observação, classifiquei cinco tipos básicos de surdos. Há aqueles que só falam e pronto. Emendam um assunto no outro. Fico prestando atenção para detectar quando respiram e não consigo. Acho que inventaram um jeito de falar sem respirar. E ganhariam mais dinheiro se entrassem em algum concurso de tempo sem oxigênio embaixo d’água. Aí, pelo menos, ficariam quietos.

Existem aqueles que falam e falam e, de repente, percebem que deveriam perguntar alguma coisa a você, por educação. Perguntam. Mas quando você está abrindo a boca para responder, já enveredaram para mais algum aspecto sobre o único tema fascinante que conhecem: eles mesmos.

Há aqueles que fingem ouvir o que você está dizendo. Você consegue responder. Mas, quando coloca o primeiro ponto final, percebe que não escutaram uma palavra. De imediato, eles retomam do ponto em que haviam parado. E não há nenhuma conexão entre o que você acabou de dizer e o que eles começaram a falar.

Existem aqueles que ouvem o que você diz, mas apenas para mostrar em seguida que já haviam pensado nisso ou que sabem mais do que você, o que é só mais um jeito de não escutar.

Há ainda os que só ouvem o que você está dizendo para rapidamente reagir. Enquanto você fala, eles estão vasculhando o cérebro em busca de argumentos para demolir os seus e vencer a discussão. Gostam de ganhar. Para eles, qualquer conversa é um jogo em que devem sempre sair vitoriosos. E o outro, de preferência, massacrado. Só conhecem uma verdade, a sua. E não aprendem nada, por acreditarem que ninguém está à altura de lhes ensinar algo.

É claro que há um mix das várias espécies de surdos. E devem existir outras modalidades que você deve ter detectado, e eu não. O fato é que vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva. E uma boa parte deles se queixa de solidão.

É um mundo de faladores compulsivos o nosso. Compulsivos e auto-referentes. Não conheço estatísticas sobre isso, mas eu chutaria, por baixo, que mais da metade das pessoas só falam sobre si mesmas. Seu mundo torna-se, portanto, muito restrito. E muito chato. Por mais fascinantes que possamos ser, não é o suficiente para preencher o assunto de uma vida inteira.

Num ótimo artigo, intitulado Escutatória, o escritor Rubem Alves diz: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular”.

Quando não escutamos o mundo do outro, não aprendemos nada. Acontece com o chefe que não consegue escutar de verdade o que seu subordinado tem a dizer. A priori ele já sabe – e já sabe mais. Assim como acontece com a mulher que não consegue escutar o companheiro. Ou o amigo que não é capaz de escutar você. E vice-versa.

Tornamo-nos muito sozinhos no gesto de não escutar. Em Revolutionary Road (Sam Mendes, 2008), traduzido para as telas de cinema do Brasil como “Foi apenas um sonho”, a cena final é a síntese dessa relação simbiótica entre surdez e solidão. Não a surdez causada pela deficiência auditiva, mas essa outra de que falamos, esta que é mais triste por ser escolha. Quem viu, não esqueceu. Quem não viu, pode pegar o dvd em qualquer locadora. Essa cena final vale por alguns milhares de palavras.

Sempre pensei muito sobre por que as pessoas falam tanto – e por que têm tanta dificuldade de escutar. Qual é a ameaça contida no silêncio? O que temem tanto ouvir se calarem a sua voz por um momento? Por que precisamos preencher nosso mundo – inclusive o interior – com tantos ruídos?

Acho que cada um de nós poderia parar alguns minutos e fazer a si mesmo estas perguntas.

Percebo também que há uma pressão para que nos tornemos falantes. Ser falante supostamente seria uma vantagem no mundo, especialmente no mundo do trabalho. Mesmo que você não diga nada de novo, mesmo que você repita o que o chefe disse com outras palavras. Mas falar, qualquer coisa, é marcar presença, é uma tentativa de garantir-se necessário. E ser quieto, calado, é visto como um tipo invisível de deficiência. Como se lhe faltasse algo, palavras. Mas será que as palavras estão ali, nessa falação desenfreada? Ou melhor, será que quem fala está realmente naquele discurso? Tenho dúvidas.

Por qualquer caminho que se possa pensar, me parece que o silêncio soa ameaçador. Em parte, pelo que ele pode dizer sobre nós. Enchemos nossa vida de barulho, da mesma forma que atulhamos nossos dias de tarefas, com medo do vazio. Tarefas em uma agenda cheia constituem outro tipo de ruído. E o vazio também é uma forma de silêncio.

Em rasgos de intolerância, achava que os falantes compulsivos eram apenas muito chatos e muito egocêntricos. Que as pessoas não escutavam – o silêncio e o outro – por prepotência. Mas acredito que é bem mais complicado que isso.

Há dois livros muito interessantes que pensam sobre a escuta. A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault (Martins Fontes), e Como Ouvir (Martins Fontes), um livrinho pequeno e precioso de Plutarco. Eles mostram que escutar é se arriscar ao novo, ao desconhecido. Na audição, mais do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la. Ao ouvir, nos arriscamos a sermos surpreendidos e abalados pelo que ouvimos, muito mais do que por qualquer objeto que possa nos ser apresentado pela visão e pelo tato.

Faz muito sentido. As pessoas não escutam porque escutar é se arriscar. É se abrir para a possibilidade do espanto. Escancarar-se para o mundo do outro – e também para o outro de si mesmo.

Escutar é talvez a capacidade mais fascinante do humano, por que nos dá a possibilidade de conexão. Não há conhecimento nem aprendizado sem escuta real. Fechar-se à escuta é condenar-se à solidão, é bater a porta ao novo, ao inesperado.

Escutar é também um profundo ato de amor. Em todas as suas encarnações. Amor de amigos, de pais e de filhos, de amantes. Nesse mundo em que o sexo está tão banalizado, como me disse um amigo, escutar o homem ou mulher que se ama pode ser um ato muito erótico. Quem sabe a gente não experimenta?

Escutar de verdade implica despir-se de todos os seus preconceitos, de suas verdades de pedra, de suas tantas certezas, para se colocar no lugar do outro. Seja o filho, o pai, o amigo, o amante. E até o chefe ou o subordinado. O que ele realmente está me dizendo?

Observe algumas conversas entre casais, famílias. Cada um está paralisado em suas certezas, convicto de sua visão de mundo. Não entendo por que se espantam que ao final não exista encontro, só mais desencontro. Quem só tem certezas não dialoga. Não precisa. Conversas são para quem duvida de suas certezas, para quem realmente está aberto para ouvir – e não para fingir que ouve. Diálogos honestos têm mais pontos de interrogação que pontos finais. E “não sei” é sempre uma boa resposta.

Escutar de verdade é se entregar. É esvaziar-se para se deixar preencher pelo mundo do outro. E vice-versa. Nesta troca, aprendemos, nos transformamos, exercemos esse ato purificador da reinvenção constante. E, o melhor de tudo, alcançamos o outro. Acredite: não há nada mais extraordinário do que alcançar um outro ser humano. Se conseguirmos essa proeza em uma vida, já terá valido a pena.

Escutar é fazer a intersecção dos mundos. Conectar-se ao mundo do outro com toda a generosidade do mundo que é você. Algo que mesmo deficientes auditivos são capazes de fazer.

(Publicado na Revista Época em 21/09/2009)

Segurem o tempo que eu quero descer!

Nos tornamos deuses escravos: em vez de viver, estamos sendo consumidos

Começou. A qualquer lugar aonde vou, alguém fala que o ano está acabando. Passando rápido demais. Há anos o ano começa a acabar no meio. E todo ano isso se repete. E a cada ano acho que piora. Se levar em conta a percepção geral, a cada ano o ano passa mais rápido e acaba mais cedo. Eu já estava com vontade de gritar diante da próxima pessoa que repetisse esse comentário. Um grito longo, silencioso e interno. Fora de mim, um sorriso educado. E aquele comentário: “Que loucura, né?”. Então, o Reginaldo, taxista amigo, perguntou: “Quando o ano vai parar de passar rápido?”. Ótima pergunta. E não era uma pergunta retórica. O Reginaldo queria saber, mesmo. Eu, que para variar estava sem tempo, fiquei também sem resposta.

Desde então, a pergunta do Reginaldo não me sai da cabeça. Tenho, algumas vezes, a sensação de que estamos todos, cada um a sua maneira, vivendo uma gincana, rigidamente cronometrada. Parece que nunca trabalhamos tanto. E nunca faltou tanto para fazer. Cada vez acordamos mais cedo e dormimos mais tarde. E estamos sempre atrasados e devendo tarefas para todo mundo. Não é maluco precisar de agenda para saber o que fazer? Ou no início da manhã de segunda-feira já estar atrasado para as necessidades do mundo?

Toda a parafernália eletrônica que supostamente deveria servir para nos libertar só aumentou nossas tarefas. Agora, é encarado como ofensa grave desligar o celular para não ser encontrado ou para almoçar sem ser perturbado. Vejo todo mundo almoçando com seus aparelhos na bandeja, jantando com o iPhone ao lado do prato. Há celulares ao lado das velas em jantares românticos. Tornou-se normal fazer sexo ou mesmo dormir com o celular ligado. Desde quando nos tornamos imprescindíveis para o mundo? Será que somos tão importantes assim que não podemos ficar desconectados? Por que deveríamos ser alcançados o tempo todo? Desde quando o planeta deixa de girar porque alguém não nos achou?

Menos, menos. Muito menos.

O celular toca o tempo todo. Recebemos centenas de e-mails exigindo resposta imediata. De repente, tudo virou urgente. Todos que nos procuram têm demandas. E tudo era para ontem. A tecnologia nos deu um atributo que antes pertencia só aos deuses, a onipresença. Mas nos tornou escravos. Somos deuses escravos.

Temos até uma espécie de onisciência, porque somos superinformados por sites, blogs e agora também pelo twitter. Posso saber, em tempo real, o momento exato em que um avião caiu do outro lado do mundo e o momento exato em que uma celebridade pintou as unhas com esmalte vermelho-paixão. Não é fantástico?

Desconfio que não. É claro que existem coisas realmente interessantes. Mas a maioria, convenhamos. Percebo agora o quanto deve ser chato ser Deus. O twitter nos mostrou isso. Já imaginou? Se a cor do esmalte ou o aviso de que vai tomar banho são as revelações que alguns acham bacana contar, já parou para pensar o que não acham bacana? Já imaginou ser obrigado a assistir a isso?

Não, não. Eu realmente não quero nem preciso saber da maioria das coisas que me informam. Acho que ninguém precisa. Também não quero estar em toda parte. Não me interessa estar no blog, no MSN e no twitter ao mesmo tempo. Mal consigo estar em um lugar de cada vez.

Tampouco quero ser encontrada 24 horas por dia. Gosto de desligar o celular e desaparecer. Não entendo por que tanta gente fica ofendida quando encontra apenas minha voz simpática na caixa-postal. É isso. Continuo gostando de você, mas não estou. Sumi. Volto quando puder.

Adoro receber e-mails. Guardo muitos deles e, alguns, releio várias vezes. Tento resistir à tentação de imprimir, em nome das árvores, mas vez ou outra sofro recaídas. E-mails queridos são como cartas. Alimentam-nos de intangível. Mas, exceto os urgentes, que são poucos, neste momento estou respondendo aos da terceira semana de agosto.

Tenho certeza: ninguém vai entrar em depressão profunda porque não recebeu uma resposta imediata. E não, não estou tuitando, por enquanto. Acho que nunca vou conseguir dizer nada muito importante em 140 caracteres. Sou prolixa, como quem me lê já descobriu. Sou perdulária nas frases. Não consigo economizar palavras. Lamento.

Não sei vocês, mas descobri, depois da pergunta do Reginaldo, que precisava resistir. Costumava salvar algumas horas da semana só para encarar meu vazio, ficar contemplando o nada. Mas, nos últimos tempos, estava cada vez mais difícil. Percebi que estava embarcando na ideia de me tornar deus. Atributos divinos são sempre muito sedutores.

Comecei a ter enxaquecas. E a acordar cada vez mais cedo e já atrasada. A contar com os finais de semana e com as férias para trabalhar. Um dia, percebi que estava indo encontrar amigas queridas como se fosse mais uma tarefa a ser riscada na agenda. No caminho, já pensava nas próximas que ainda me aguardavam. O que estava acontecendo comigo?

Algo estava muito errado. O Reginaldo me acordou. Deveria ter pagado mais por aquela corrida de táxi. Pelo menos no meu caso, o ano só vai parar de passar rápido quando voltar a me apropriar do meu tempo, estabelecer minhas prioridades. E não viver em função da pressa alheia, que agora me alcança pela parafernália eletrônica que preencheu nossa vida e roubou nossas horas. Agora, minha meta mais importante na agenda é fazer essas máquinas fantásticas, brilhantes e barulhentas trabalharem para mim. E não o contrário. No momento, estou querendo inventar a oniausência.

Um parêntese. Sabe outra coisa que começa a me deixar enjoada? As decorações dos shoppings centers. Acabou a do Dia dos Pais, daqui a pouco teremos a do Dia das Crianças e, depois, cada ano mais cedo, a do Natal. Sei que é feio, mas tenho vontade de arrancar aquelas guirlandas e bolas coloridas e dar um chute no boneco do Papai Noel. Quero mandar ele e as renas e os duendes todos de volta para o Pólo Norte.

Desculpa. Reconheço que não é um sentimento elevado. Mas me sinto uma trouxa quando dividem meu ano em datas de consumo e ficam tentando fazer com que eu gaste todo o meu dinheiro me seduzindo com falsos sentimentos. Eu sempre caio, é uma desgraça. Aí o ano nem acabou e eu já estou endividada para o próximo. Atrasada para tudo, adiantada nas contas. O Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa existem, mas não são boas pessoas.

Voltando. Depois da tal pergunta do sábio Reginaldo, percebi que não lembro o que fiz na semana passada. Se me esforçar, recordo. Mas não é automático, preciso pensar. Quando lembro, percebo que fiz coisas bem legais. Como pude, então, esquecer? Como é possível parecer que faz um ano que algo tão importante aconteceu? Seria porque vivi, mas não senti que vivi? Por que o ano passa rápido demais e todas as horas são preenchidas por tarefas? Por que não temos tempo para elaborar o que vivemos?

Algo está errado se acordamos na segunda-feira pela manhã e já estamos atrasados, já estamos devendo, já estamos cansados. Ainda que excitados com o que estamos fazendo, como é o meu caso. Algo está bem errado quando a vida vira uma sucessão de tarefas, mesmo que as tarefas sejam bem interessantes. Algo está errado quando até o lazer se torna uma tarefa. Algo está muito errado quando precisamos marcar na agenda para passear com os filhos ou namorar. Algo está definitivamente errado quando precisamos pensar para lembrar do que vivemos no dia anterior.

Não sei se acontece com você, mas tenho sentido falta de viver o que vivi. O que vivo. De sentir o tempo passar. De ter tempo para elaborar o vivido. E também de ter tempo para ficar no vazio, apenas contemplando o silêncio dentro de mim.

Não gosto quando os dias se tornam uma sequência de ruídos, de luzes que piscam em telas variadas, simulando uma falsa urgência, exigindo atenção. Não gosto de me sentir consumida até que o tempo se esgote dentro de mim. Ano após ano que acaba no meio, ano após ano que acaba rápido demais.

Como disse um filósofo, o tempo é uma criança que brinca com ossos. É preciso não esquecer. Um dia tudo vai mesmo acabar, e não queremos perceber nesse último momento que nossa vida foi consumida. Ao final de cada frase desse texto deixo para trás minutos mortos, vida que se foi. Quero, então, ter certeza que não me deixei consumir. Quero ter certeza que vivi cada um dos meus segundos.

Não lembro qual foi o pensador que disse essa frase: “Nem todos os anos que passam se vive: uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los”. Como se conta então os anos que começam a acabar no meio?

Tempo é tudo o que temos. Se não temos tempo, nada temos. Só um ano que acaba no meio e passa rápido demais.

Ao dizer que não temos tempo, o que estamos dizendo é que não temos subjetividade. O que vivemos não foi sentido. Se não é sentido, não é vivido. Se não é vivido, não há sentido.

Quando o tempo vai parar de passar rápido demais? Talvez, Reginaldo, quando pararmos um minuto para termos, de fato, um minuto. Quando nesse minuto nos dermos conta que, ao final dele, estaremos um minuto mais mortos. E, então, nos apropriarmos do nosso tempo para viver segundo um calendário próprio – e não segundo as leis de uma agenda que nos aliena daquilo que sempre foi nosso. Daquilo que é nossa única riqueza ao nascer, quando então começa a contagem regressiva da nossa vida. Essa existência sem nenhuma garantia, que pode ser interrompida a qualquer momento. Por isso viver sentindo que se vive não é algo adiável para amanhã.

Acredito muito na resistência pelos detalhes, começando pelas pequenas coisas. Vou desligar o celular nas refeições, quando chegar em casa, nos fins de semana. Quero reservar um tempo determinado para verificar e-mails, responder conforme minhas possibilidades. Pretendo me tornar mais seletiva na hora de buscar informações na internet. E levantar para conversar com alguém que está perto em vez de mandar um e-mail ou um torpedo. Quero voltar a ter mais tempo para livros, filmes, viagens por estradas reais e pessoas que amo.

Só desejo ser o deus do meu tempo. Às vezes vou passear por blogs, twitters, chats que valem a pena. Mas não moro lá. Quando olhar para mim mesma, espero não ver nada piscando nem buzinando. Não quero mais ser inquilina de outros mundos. Só aspiro agora habitar minha própria vida.

Parei. Meu ano acaba em dezembro e não passa rápido demais.

(Publicado na Revista Época em 14/09/2009)

A grande aventura

Amar é mais arriscado que desbravar a natureza selvagem

Acabo de chegar do cinema. Fui sozinha assistir “Up – Altas aventuras“, a nova animação da Pixar. É aquele filme em que um velhinho sai voando em sua casa suspensa por balões quando vêm buscá-lo para levá-lo para um asilo. Ele voa com toda a sua vida junto. Vai para o futuro, rumo a um sonho do passado. Quer justificar a sua vida – talvez mais que a sua, a da mulher que ama. Conheceram-se quando eram duas crianças que sonhavam viver grandes aventuras, explorar o mundo. Agora viúvo, cheio de dores, apoiado em sua bengala, Carl Fredricksen (esse é o nome dele) voa em busca da terra das cachoeiras gigantes de sua infância, naquela que parece a mais arrojada de todas as expedições de uma vida que vale a pena. Descobre então que não há aventura maior – e mais arriscada – que a vida compartilhada com quem se ama.

Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade, morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.

Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta (não leve seus filhos com menos de 6 anos), nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos, como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.

Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.

É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa de jóias da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente

Quase todo domingo, meus pais nos botavam no fusca verde-milico (depois substituído por uma Brasília verde-limão). Partíamos felizes para um programa que eu adorava. Chamava-se “ver as casas bonitas”. Eu ficava no meio, por ser a caçula, espremida entre meus dois irmãos. Embora atrapalhasse um pouco a vista, eu gostava porque me sentia quentinha. E então percorríamos o mesmo roteiro que já sabíamos de cor. Invariavelmente fazíamos os mesmos comentários. E cada um de nós tinha a “sua” casa, aquela que considerava “a MAIS bonita de todas”.

Em geral, quem tinha “casas bonitas” em Ijuí eram os médicos, os dentistas e os empresários que haviam se dado bem no tal do Milagre Econômico da ditadura militar. Como se pode imaginar, a cidade não era exatamente um pólo de expansão imobiliário. Demorava para aparecer algo novo no nosso roteiro. Quando acontecia, nós acompanhávamos com rigorosa atenção cada passo da construção do que nos parecia uma mansão. Se o arquiteto tivesse nos ouvido, algumas imperfeições teriam sido corrigidas a tempo. Quando finalmente alguma casa era concluída, para mim era uma final de Copa do Mundo com placar de 5X0 contra a Argentina.

Meu pai dava uma paradinha discreta, para não chamar a atenção dos donos. A gente olhava e se assombrava. Junto com isso vinha uma sociologia caseira. Cada casa motivava uma avaliação de como fulano tinha ganhado tanto dinheiro de repente. Ou, ao contrário, algum pequeno drama que havia obrigado sicrano a interromper uma construção que nos prometia grandes momentos.

A vistoria das casas bonitas acontecia no finalzinho da tarde de domingo e acabava junto com a luz do sol. Depois voltávamos para a nossa casa bem menos bonita, mas iluminada por dentro. Não havia nenhuma inveja nesse olhar. A gente só gostava de ver coisas bonitas. E eu de tentar imaginar o que acontecia lá dentro, como viviam as pessoas bonitas das casas bonitas.

Foi disso que eu lembrei, acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.

Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor do que somos. Elas vêem não apenas aquilo que realmente somos, mas aquilo que podemos ser. Tudo aquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.

O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. A cada ano que passamos juntos, tempos em que a vida nos exigiu muito, cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.

Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?

Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia. Já sabemos disso muito antes da vida adulta, pelo que se tornam as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.

Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribuem para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale a pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.

Dias atrás aterrissou nas minhas mãos um livro da desenhista Carla Caffé, lançado há pouco. Chama-se “Av. Paulista” (CosacNaify). Fui virando as páginas e me encantando de tal maneira que já presenteei pessoas queridas com ele. O que encanta tanto? Carla é uma mulher que senta pelas calçadas da cidade e desenha prédios, praças, túneis, monumentos. Mas o que torna o livro deslumbrante é que Carla desenha a cidade com o olhar de quem ama. A Paulista de Carla é aquela que pode vir a ser. É a Paulista, mas a Paulista depois de se descobrir amada.

Veja o que Carla diz em depoimento no fim do livro. “Gostaria que os meus desenhos transmitissem a mesma generosidade que Saul Steinberg dedicou a Nova York. No cinema de Woody Allen há muito disso. Em Hannah e suas irmãs, duas moças dentro de um carro disputam a atenção de um arquiteto. No caminho, ele vai mostrando os prédios mais bonitos da cidade. É uma maneira de o cineasta educar o olhar das pessoas. Através de seus filmes descobrimos uma cidade fascinante e ainda inexplorada. Passado algum tempo, todos começam a desejar que ela se preserve ou se transforme naquilo. Isso humaniza as pessoas (…) Eu queria fazer uma cidade bonita, um metrô bonito, os prédios bonitos, a rua Augusta bonita. Acho que a gente tem que desenhar mais a nossa cidade. Com amor”.

Descobri recentemente que as casas bonitas de Ijuí não eram tão bonitas assim. Eram até bem sem graça. Mas elas se tornavam bonitas porque meus olhos eram amorosos, meus olhos as viam bonitas. Apertados dentro de um fusca, nós éramos uma família amorosa,olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.

Ao sair do cinema depois de assistir à “Up – Altas Aventuras“, passei no supermercado apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas que ele gosta de comer. Ele passou o final de semana trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da gravação de um programa de TV. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então um torpedo dizendo “te amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.

Quando ele voltou para casa, nosso apartamento saiu voando. E nem tinha balões.

(Publicado na Revista Época em 07/09/2009)

O doping dos pobres

Promover saúde não é sufocar a dor da vida com drogas legais

Parte da minha família tem origem rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão à lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu suportava com brios de filósofo estóico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “fulana sofre dos nervos”.

Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento e recusavam-se a juntar o marido bêbado na bodega do povoado. Rebelavam-se. Por culpa dos nervos.

Eu criava ouvidos de Dumbo – não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã, perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível. Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico não tratasse com alguma beberagem de cor estranha. Minha teoria pessoal é que não existia vírus ou bactéria ou até mesmo nervos capaz de suportar o cheiro daqueles troços. Mas o velho Chico morreu, não sei dizer se antes ou depois dos nervos. E agora tudo é tratado com comprimidos de cores variadas.

Quando comecei minha aventura de repórter, no final dos anos 80, ainda encontrava referência aos nervos por onde andasse, fosse em zonas rurais de norte a sul, fosse na periferia das grandes cidades. Com o tempo, especialmente a partir dos anos 90, as mesmas queixas começavam a ser embaladas em termos médicos. Nos últimos anos, tenho ficado embasbacada ao entrevistar gente analfabeta que fala em depressão como se fosse o nome de alguém da família. A terminologia médica invadiu a linguagem em todas as classes sociais e regiões – e se inscreveu na cultura.

Há algum tempo penso nos muitos significados dessa enorme mudança. Significa que as pessoas estão sendo mais bem tratadas e tendo acesso a medicamentos? Talvez. Mas não me parece que seja isso. Ou pelo menos apenas isso. Estou preocupada com o que tenho testemunhado pelas periferias do Brasil. Antes, quando batia na casa das pessoas mais humildes, os pais de família me apresentavam sua carteira de trabalho. Isso sempre me devastou, porque revelava a violência silenciosa que vitimava os mais pobres. Com o gesto, eles queriam provar que eram trabalhadores, gente de bem – e não vagabundos ou bandidos porque eram pobres. Eu tentava explicar que não era autoridade nem tinha direito algum de ver seus documentos. Mas o homem diante de mim, estendendo a carteira de trabalho, carregava na alma séculos de humilhação. Então, eu examinava e elogiava seu documento.

Hoje, quase não acontece mais. De uns tempos para cá, o que muita gente tem me mostrado são, adivinhem: “seus” medicamentos. Com um sentido diverso. Acreditam que, por ser jornalista, tenho um conhecimento que eles não têm, sou capaz de esclarecer suas dúvidas. Estou lá, sentada no único sofá ou na melhor cadeira da casa, quando acontece. Depois da prosa inicial, que no meu caso leva umas duas horas, já estamos todos bem à vontade. Então o pai ou a mãe ou a avó fazem sinal para a menina mais nova. E lá vem a criança carregando uma lata da cozinha. Deposita entre as minhas mãos, como uma hóstia. Olho e já sei o que vou encontrar: cartelas de comprimidos até a boca.

Querem saber se faz bem mesmo. Se posso explicar como devem tomar. Se acho que o guri que só apronta na escola deveria tomar também. Me arrepio. Examino o conteúdo. Procuro as bulas. Boa parte são antidepressivos e tranquilizantes. Pergunto quem toma e por que toma. O avô porque não dorme, a mãe e a avó porque estão deprimidas, o pai porque é nervoso e o filho porque é “muito agitado”. Com variações, claro. Mas em geral as deprimidas são as mulheres. Lembro que eram elas também as que mais sofriam dos nervos. Não que os homens não sofram, mas sinto que resistem mais antes de assumir publicamente que são “deprimidos”. Em geral eles não dormem ou são “nervosos”. Muitas vezes, os pais bebem álcool, os filhos são usuários de drogas.

Com delicadeza, explico que não sou médica, que precisam procurar o posto de saúde. Respondem que a próxima consulta é só daqui a três meses. Descubro então que trocam de medicamentos. Quando acham que o seu não está resolvendo, tentam o do outro. Consciente da minha ignorância, afirmo apenas o que posso afirmar: não tomem o medicamento que é do outro nem dêem para as crianças. Semanas atrás uma mulher me perguntou se podia dar um tranquilizante para a sua sobrinha, de 9 anos, que estava muito agitada. Eu disse que de jeito nenhum, “é muito forte”. Minutos depois, veio me contar com um sorriso. Tinha encontrado uma solução: “Dei só a metade”.

A medicalização da dor de existir não é nenhuma novidade. Antidepressivos e tranquilizantes estão disseminados em todas as classes sociais. Para boa parte das pessoas tomar uma pílula para conseguir “aguentar a pressão” é tão trivial quanto tomar um cafezinho. Mas penso que, se você é de classe média, tem mais acesso à informação, à terapia, a um tratamento mais competente. Tem mais acesso à escuta da sua dor.

É importante fazer a ressalva. Não sou contra antidepressivos e tranquilizantes. Nem tenho autoridade para ser. Acho que medicamentos têm sua hora e seu lugar. Mas não é preciso ser médico para saber que, em geral, seu uso deve ser temporário, monitorado e acompanhado por outros recursos. Como psicoterapia e análise, em muitos casos. Ou seja, devem ser usados com muita parcimônia, critério e acompanhamento. E não como se fossem pílulas de açúcar, que podem ser tomadas por todos a qualquer sinal de dor psíquica.

O que tenho visto é um doping social. Combate-se a maconha, o crack, até o cigarro, ótimo. Mas e as drogas médicas que estão pelos barracos e pelos palácios? São menos drogas porque dadas por um doutor?

Minha percepção é de quem anda bastante por aí. Por ser repórter, tenho o privilégio de entrar por várias portas, escutar a narrativa de muitas e diferentes vidas. Para escrever este texto conversei com psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que trabalham na rede pública de saúde. Queria ir além do meu testemunho. Seus relatos são mais assustadores que o meu.

“Basta chorar”, afirma uma psiquiatra muito conceituada. “Há poucos psiquiatras na rede pública, em qualquer parte do país. Em geral, as pessoas vão ao médico por algum outro motivo. Então choram. E o médico, seja qual for a sua especialidade, receita um antidepressivo ou um benzodiazepínico (tranquilizantes – ansiolíticos e hipnóticos). Meses depois a pessoa volta. E continua chorando. Aí ganha um mais forte. Ou ganha dois. E ela continua chorando. Mas tudo o que ouve é que é doente e tudo o que lhe dão são remédios. Só que ela continua chorando.”.

“As pessoas são levadas a acreditar que o remédio pode acabar com a sua dor, uma dor que tem causas muito concretas. Não resolve, claro. Um exemplo. Uma mulher tinha dois empregos, um de dia, outro de noite. O que ganhava não dava para pagar as contas. Os ônibus que pegava para chegar até esses empregos eram lotados. Ela vivia num barraco. Aí procurou o posto de saúde e lhe trataram com antidepressivos. Não adiantou. Deram-lhe outro medicamento. Nada. Um dia, sem nenhuma esperança ou recurso, ela tentou suicídio”, conta uma psicóloga. “A questão é que não há promoção de saúde, porque isso implicaria se preocupar com projeto de vida, com perspectiva de vida, com melhoria das condições de vida. O que há é medicalização da vida. Vemos o tempo todo gente que foi viciada em ansiolíticos nos postos de saúde.”.

“A gente vê um monte de gente sofrendo. E sofrendo muito. Mas o atendimento funciona assim: está chorando?, toma um antidepressivo; não dorme?, pega um benzodiazepínico. É uma supermedicalização sem critério. As pessoas estão tomando remédios como se fossem bolinhos”, afirma um psiquiatra. “Vivemos uma época de sedativo social. O médico não tem tempo de escutar, dá um remédio para que parem de chorar ou reclamar, e as pessoas vivem a fantasia de que são atendidas. Não funciona, claro. Elas continuam sofrendo. Então voltam e o procedimento se repete. E assim vai diminuindo a pressão social.”.

Vale a pena parar e refletir. Nossa época está produzindo gerações de anestesiados? A medicalização da dor psíquica é um fenômeno relativamente recente. Pelo menos nesta proporção, com essa enorme variedade de medicamentos disponíveis e muito mais sendo produzido em escala industrial e vendido em licitações para a rede pública em suas variadas instâncias. Cada comprimido de diazepam (benzodiazepínico), por exemplo, custa menos de um centavo para a rede pública. Bem mais barato, digamos, que uma sessão de psicoterapia.

Se pensarmos que a medicação da população com antidepressivos e tranquilizantes se acentuou a partir dos anos 90, que tipo de sociedade teremos daqui, digamos, uma ou duas décadas? O que acontece com as pessoas quando têm a sua dor de existir abafada, mascarada, calada a golpes de pílulas? Não sei. Mas acredito que são perguntas que devemos nos fazer. Nós todos, não apenas os governantes ou os profissionais da saúde. Estamos vivendo uma mudança cultural das mais profundas. E não me parece que estamos suficientemente atentos a suas causas, significados e implicações. Que tipo de mundo e de gente estamos criando quando a resposta para toda dor é uma pílula?

De novo, não sou contra o uso responsável de medicamentos. E me sinto bastante satisfeita por viver numa época em que é possível curar – ou pelo menos controlar – muitas doenças graças ao avanço da ciência. Mas não é disso que se trata. O que tenho testemunhado não é tratamento – mas doping. E do pior tipo, o legalizado, aquele que é travestido como promoção de saúde e promovido pelo Estado, sob a pressão da indústria farmacêutica. E, atenção: cada vez mais cedo. Em todas as classes sociais, as crianças começam a ser medicadas nos primeiros anos de vida, bastando para isso não ter um comportamento na escola considerado “normal”.

Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança, convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como uma afta”. Mas nem sempre – talvez até raramente – seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos tristeza, melancolia, medos, lutos. Tanto pela perda de quem amamos como pela perda de amantes como pelas pequenas perdas de cada dia.

A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música, vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um a sua maneira. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão, tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos fazendo conosco e com o nosso mundo?

Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe, mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você está deprimido porque não tem mais forças para suportar esse cotidiano ou está doente porque não consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem em condições de vida como essas. Sua alternativa não é se entupir de tarja-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma vida melhor, pressionar o poder público, criar uma associação comunitária para exigir seus direitos, construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se tornar possível.

Ser ativo e ser parte é ter saúde. Não há nada mais doentio e aniquilador do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e transformadas, é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas.

Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha quebrada, a vida por um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou a sua vida. Gostaria que alguém fizesse uma pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba, posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não pertence a nada, nem a si mesma.

Penso que o conceito de saúde – e de saúde mental – não existe se não abarcar projeto de vida.

O primeiro texto que escrevi, aos 9 anos, foi inspirado pela abissal melancolia de um domingo de manhã em que eu estava sozinha enquanto todos em casa dormiam. Era escrever ou a melancolia me engolir. Aos 11 anos, eu já tinha um livro de poesias. Todas elas elaboravam momentos diversos da minha dor de existir. Para mim, a escrita foi a maneira que encontrei de elaborar a minha angústia, “os meus nervos”. Acabei fazendo disso um projeto de vida.

Já vivi muitos momentos duros, inúmeros traumas. Posso afirmar, sem exagero, que fui vítima da maioria dos artigos do Código Penal, com exceção de assassinato. Estive algumas vezes à beira do precipício. E por duas vezes na minha vida precisei de medicamentos. Tive a sorte de encontrar profissionais competentes, humanistas, que acreditavam no que faziam, no que eram. O uso de medicamentos foi pontual, parcimonioso, controlado e com tempo para acabar. Sempre acompanhado por sessões de psicanálise. Superei cada um deles não me anestesiando, mas elaborando a dor. E criando furiosamente.

Tudo o que vivi uso para escrever. E tudo o que vivi me ensinou a escutar. Quando entro na casa das pessoas como repórter e elas me mostram seus medicamentos, o que esperam de mim é que as escute. E é o que talvez eu faça de melhor. Fico horas em suas casas, apenas ouvindo. Escutando de verdade. A narrativa da vida é um reconhecimento da vida. A escuta da dor é um reconhecimento da dor. Se alguém que sofre procura um médico e, em vez de escutá-lo, ele o entope de comprimidos, o que aconteceu ali não é promoção de saúde, é promoção de doença. E o médico que se sujeita a isso pode estar tão doente quando aquele que o procura. O sistema de saúde não pode funcionar como um reprodutor de impotências. Uma linha de produção de impotências, que em vez de apertar parafusos, coloca bolinhas na boca. Como sabemos por pesquisas, é significativo o número de médicos que não apenas dopa, mas também se dopa.

Promover saúde é promover vida. E a vida começa pela escuta da vida. É o que faço como contadora de histórias reais. Mas quando as pessoas me mostram uma lata de comprimidos, que todos tomam, da criança mais nova ao avô, não é de mim que elas precisam. Para não me sentir impotente, escrevo este texto. Na esperança de que alguém me escute.

(Publicado na Revista Época em 31/08/2009)

Vida de clichê

Quando nos resignamos a uma existência lugar-comum

Na terça-feira (25), Humberto Werneck lançou seu O Pai dos Burros – dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial, 2009). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele passou quase 40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas de jornais, revistas, livros. Aquelas palavras que, de tanto ouvi-las, são as primeiras a aparecer na nossa cabeça, na ponta dos nossos dedos. É automático. Chegam antes do pensamento. De certo modo, são as palavras que nos libertam para não pensar. Foram ditas muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que “a vida imita a arte” ou que “o futebol é uma caixinha de surpresas”. É um dizer que nada muda, é um imenso nada.

Por que então os clichês são tão populares? Porque são seguros, é o que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de nós, nada sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova ideia é sempre um risco, não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na falta de ousadia, o que nos sobra é medo.

Escrevi uma pequena matéria sobre o dicionário de clichês na edição impressa desta semana. E li todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para conhecer as palavras das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo que não sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar a pensar antes de sair escrevendo – ou falando. Se o jogo de palavras vier muito fácil, é porque já foi dito tantas vezes que abriu um escaninho no nosso cérebro. Basta apertar uma tecla invisível e sai de lá pronto. Não custa nada, nem mesmo um esforço mínimo. “O tempo é o senhor da razão”, “a esperança é a última que morre”, “nunca antes na história deste país”… os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como estratégia de marketing.

Há os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck, e acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões que repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa autodefesa permanente – não apenas diante de outros, mas também no banco dos réus do nosso tribunal pessoal. Ideias que já testamos e sabemos que tipo de reação provocam, um repertório confiável de velhos truques.

Criamos nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na busca de um lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos, infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria se agarra para não mergulhar no desconhecido, também é fácil observar que muitos dos que riem não ousam ir além dos comportamentos clichês em sua própria vida.

Foi seguindo o fio deste raciocício que fui me tornando incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever sem usar fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos novos, ser uma parte diferente de mim em cada texto. Nem sempre consigo. Mas tento me obrigar a tentar. Depois de 21 anos escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim mesma.

Sei disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando um bichinho, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com um pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também uma não-ação. Sei que apenas chegando cada vez mais perto de mim mesma é que posso alcançar a possibilidade de ser outra. E de fazer do velho em mim algo novo.

Numa entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio Pellegrino disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode dizer algo tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral a uma pergunta que não esperava. E com tanta generosidade para aquele que o escuta. Suas palavras não machucam porque não foram pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas acariciam. Foram pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São como uma mão que alcança – e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo em que as pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que esmagam. A mão que alcança exige mais coragem, porque alcançar é sempre um risco – e esmagar tem um final previsível.

O Hélio disse, lá pelas tantas: “Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo – e, como tal, exposto à morte”. Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa dos clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um sentido mais amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu “burrinho”, como ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras possibilidades de nascimentos que perdemos quando repetimos um lugar-comum em vez de uma combinação de palavras que só nós podemos fazer.

Não porque somos melhores que os outros, mas porque a singularidade do nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, “se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”. Ou, na frase genial do menino de 8 anos que li na seção “Quem diria” da Revista da Folha do último domingo (23): “Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no mundo”. Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a singularidade do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la em sua integridade, precisará de muita coragem. Terá de resistir ao conforto de uma vida de lugar-comum.

Clichês são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e morreram pela repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao novo é matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um pouco a cada dia, ao matar nossa expressão no mundo. De homens, nos reduzimos a papagaios. Como naquelas reuniões de empresa em que as pessoas se digladiam numa guerra de jargões coorporativos que nada dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que assim mantêm o emprego, seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem pronunciados em inglês, mais seguras se sentem.

O mundo das frases feitas serve também para isso, para não deixar o novo entrar. Quem não conhece o manual – e é preciso um certo tempo para descobrir que os jargões só são cascas de palavras e não palavras –, é colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém – nem o funcionamento do todo – com as palavras mais subversivas e ameaçadoras para este mundo: as próprias.

Quando nos expressamos por palavras, temos sempre a possibilidade de nascer. E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a possibilidade do novo pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei pensando nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras. A gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta apenas pensar antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É preciso pensar para viver algo nosso – antes de repetir a vida de outros.

Do mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro chavão que nos vem à cabeça, também é mais fácil – e mais aceito – viver segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso que a maioria de nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que aparentemente já deram certo e não incomodam ninguém. O que seria o clichê de uma vida de classe média de um brasileiro de hoje?

Vou arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche. Começar a falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo ballet ou artes marciais ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney com a turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês. Ingressar na universidade. Antes ou depois da faculdade morar um tempo em Londres. Em algum momento tocar saxofone ou algum outro instrumento que lembra bares boêmios, com atmosferanoir, de uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir alguma coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente pode expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim trabalhar, reclamar do trabalho e fazer umas baladas com os colegas de trabalho e os velhos amigos da faculdade. Descobrir que ser adulto é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar apartamento, ter um ou dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de férias bacanas para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais recentemente também da África. Não sei bem como continua.

Não é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito rico, se for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive, não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma pessoa de classe média do início do terceiro milênio. Parece-me, porém, que não pensamos muito antes de vivermos uma vida lugar-comum. Não pensamos nada quando acordamos pela manhã e seguimos até a noite uma rotina instituída por quem? Ah, sim, por nós.

Não pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo diferente. Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a necessária honestidade, a vida está mesmo nas nossas mãos.

Podemos viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de conforto e não ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos tentar viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos transforma desde sempre, como descobriu o menino de 8 anos, em alguém em extinção.

E com isso não falo de uma vida povoada de aventuras grandiosas, falo de pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá da sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem reconhecimento público. A vida que só nós podemos viver, aquela que busca a singularidade do que é nosso, é aquela que pas

É também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao descontrole. De novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector. Ela, ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta, suavemente: “Hélio, é bom viver, não é?”. Ele responde, um vento avançando pelas nossas crenças: “Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos, e se torna cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom – se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido”.

A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. Tem vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos oferece é isso, vida apenas.

Quando eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que me esperava era um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer faculdade etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A falta de sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então que deixaria o colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que não deveria estudar, mas porque eu precisava fazer algo para interromper o fluxo inexorável rumo a uma vida feita de uma sucessão de frases feitas.

Parar tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez assustadora para alguém de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse que iria a Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever – graças a isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na época, ele estudava Física na Unicamp.

Peguei um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha, e desembarquei em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando – e disfarçando bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã caçula em sua rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para Campinas e eu vivi a sua vida por uns dias. Ele morava numa garagem de carro, nos fundos de uma casa. Em vez do carro, tinha ele. O chão era de terra, sua cama, que passou a ser a minha cama, era um colchão em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram guardadas num caixote de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele estudava das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção para as aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais reuniões de política estudantil. A mesma rotina que ele havia iniciado com apenas 15 anos. Naquele tempo, sem saber por onde começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma outra história.

Na primeira madrugada que passei na sua garagem-casa, acordei e o vi ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito pobre e muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta se limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor pela grandeza daquele pouco mais que um menino, solitário diante do parapeito do mundo. Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto fingia dormir, que o Zé estava obcecado em se tornar não apenas o melhor físico que podia ser, mas o melhor homem que podia ser. Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si mesmo.

Voltei para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas atrás, quando escrevi uma coluna sobre nosso afastamento do universo (O céu nos espera), o Zé me mandou um email sobre sua “visão cosmológica”. Escreveu na linguagem informal de um irmão escrevendo um email para a irmã: “Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros (sub-) produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser para nós, é claro). Nossa posição temporal e geográfica no universo é totalmente irrelevante. A contrapartida é que somos capazes de perceber nossa existência (acredito que, em outros níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí, o mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!). Portanto, estamos no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as nossas adaptações evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar um ponto de contato entre essas duas realidades: a externa, de total irrelevância, e a interna, onde somos centrais (tanto que nosso universo desaparece com a nossa morte). Por isso a religião (que resolve esse problema) é – a meu ver – uma evolução natural da nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica (esse é o pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel Dennett, em Breaking the Spell). Somos “believers” (crentes). O que eu acho mais interessante no ponto de vista agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos que somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e, portanto, temos a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que queremos ser (como indivíduo e como espécie). A construção do nosso mundo e para onde vamos é nossa responsabilidade. Acho que não pode haver maior riqueza em uma vida do que essa liberdade”.

Era um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida. Como conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois podemos pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia seguinte. E temos um tapete para pisar. Mas nossa inquietação segue latejando, às vezes doendo muito – e nos carregando para vários lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer pretexto para buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição, um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que possamos nos agarrar para não sermos afogados pelo oceano de comportamentos clichês, para que nossa ânsia de vida nos leve sempre a viver. Com todas as dores, as fomes, as perdas e também os ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de nós quer ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom personagem.

Foi até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck me levou. Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.

(Publicado na Revista Época em 24/08/2009)

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