O dilema da “batatinha”

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Da plateia, alguém me faz uma pergunta. Não sei se ela ou ele, porque vem num pedaço de papel não assinado. Quer saber como eu lido com as histórias reais que conto, muitas delas brutais, na minha vida pessoal. Explico que ser repórter é se confrontar dia após dia com a impotência. Contar uma história real é algo grande, enorme até, mas, ao mesmo tempo, sempre aquém. E, como sou uma contadora de histórias, exemplifico com o testemunho recente da fome de uma menina e sua família em uma das regiões mais pobres da já bem pobre Bolívia. Aquela fome que não mata, mas tortura, dia após dia. Aquela fome em que sua vítima nunca teve a sensação, tão comum para a maioria de nós, de estar saciada. Aquela fome que não é nem mais uma fome, mas uma vida.

Aquela fome que eu testemunhei era assim: as pessoas só comiam batatas cozidas na água, às vezes sem sal, dia após dia. E havia os dias piores, que eram os dias sem batata.

A história é densa — e não cabe aqui. O fato é que eu contei esta e outras histórias da vida de repórter e depois fui para a sessão de autógrafos dos meus livros. Lá da mesa, reparei naquela mulher pequena, levemente roliça, com uns olhos que tentavam fazer contatos de terceiro grau com os meus. Percebi que ela deixava as outras pessoas passarem na sua frente. E, quando a fila ficou menor, pude ouvi-la:

— Pode passar. Eu preciso falar com a autora em particular.

Gelei. Eu já estava um pano de chão depois de falar durante horas. Mas leitor é leitor. Se ela precisava ter um particular comigo, deveria ser coisa muito séria. Talvez alguma história escabrosa que ela queria me pedir para investigar. Alguma seita nazista nos fundos do Rio Grande ou uma célula da Al-Qaeda em Carazinho. Ou algo mais íntimo, mas não menos apavorante, como o abuso sexual de meninas no colégio de freiras em que dá aulas. Não sei por que, mas tinha certeza de que ela era professora.

Não conseguia mais me concentrar no texto dos autógrafos — justo eu, que faço questão de caprichar. Mas já estava reduzida a algo como “um abraço da….”, porque estava paralisada pelo olhar angustiado da mulher que ia ficando para trás. Olhando mais de perto, eu já sentia que ela esperava que o particular comigo pudesse salvar a vida dela. E talvez a minha. E se eu não pudesse corresponder a tanta expectativa? Uma expectativa tão oceânica não poderia jamais ser satisfeita, eu já me deprimia, impotente como um espermatozóide manco. E o pior: ela não tinha nenhum livro na mão.

Pensei em escalar a parede de compensado e sair correndo pelos fundos, mas leitor é leitor. Eu não poderia decepcioná-la. Passaria o resto da minha vida com aqueles olhos suspirosos me assombrando à noite. E eu já tenho insônia o suficiente. Mas, pior, muito pior, nunca saberia, afinal, do que se tratava aquele particular. Nem vocês.

Então, finalmente, a fila acabou. E lá estava ela me pegando pelo braço e me levando para um canto. Eu cada vez mais tensa já sentia o suor porejando entre as sobrancelhas. E precisava desesperadamente fazer xixi. Cinco horas tomando água e café e nenhum xixizinho. Ninguém pensa nessas coisas, mas não poder fazer xixi em qualquer canto é uma tortura que nós mulheres vivemos no cotidiano. Pensei no deserto do Saara e resisti. Abri então um sorriso pampeano e tasquei:

— Pode perguntar.

E ela, toda segredosa:

— Eu queria saber por que você ficou tão chocada com a batatinha.

Não entendi a princípio. Claro que eu não entendi.

— Que batatinha?

Vasculhei o cérebro em busca de alguma referência. Mas ela era uma mulher objetiva:

— A batatinha que a menina comia todos os dias. Não é da cultura deles comer batatinha? Não entendo por que você ficou tão chocada. Os nordestinos não comem farinha? Pois ela comia batatinha.

Preciso admitir. Não sou nenhuma santa. Me esmero para ser uma pessoa melhor, mas tenho uma coleção de defeitos. Se o céu existe, porém — e tenho escassas esperanças nesse sentido —, eu começava a somar alguns pontos.
Depois de horas de exposição, eu, que sou praticamente um tatu-bola, precisava muito entrar para os meus interiores e ficar enrolada num cantinho. E a bexiga ali, fazendo ola. Mas senti que, para ela, a “batatinha” era mesmo uma questão. E ela queria com sinceridade compreender meu dilema.

Expliquei então que, sim, batata era ótimo, eu mesma adorava. Batata frita, suíça, na manteiga, sauté, com maionese, purê e, principalmente, ensopada. Infelizmente, porém, batata não é o suficiente para manter uma vida sem fome. (E secretamente desejei a ela uma vida de batatas na água e com dias sem batata. E perdi meus pontos para o céu).

— Hum —, ela fez.

E eu já ia pegando a minha bolsinha…

— É que eu não entendo, sabe. Com tanta fome no Brasil, por que se preocupar com a fome da Bolívia? Ou daquele país da África em que as crianças estão morrendo, como é mesmo o nome… Somália!

Escalei o compensado. Decidi entrar no céu na marra. Nem que fosse para fazer xixi.

A prisão da identidade

Prefiro me desinventar do que assinar minhas certezas em três vias

Antes, a pergunta que determinava nosso lugar no mundo era: “De que família você é?” ou “Qual é o seu sobrenome” ou “Você é filho de quem?”. Depois, a pergunta migrou para: “O que você faz?”. Tanto que, junto ao nome, em qualquer matéria jornalística, segue a profissão e, de preferência, a filiação profissional. Não é mais a filiação paterna, mas sim a filiação da instituição ou da empresa que confere legitimidade a um indivíduo e o autoriza a falar e a ser escutado. “O que você faz?” ou “Onde você trabalha?” é também a segunda ou a terceira pergunta que você escuta de quem acabou de conhecer em uma festa ou evento social. Só não é a primeira porque ainda faz parte da boa educação se apresentar pelo nome antes, ou fazer algum comentário sobre a qualidade da comida ou qualquer outra banalidade. A questão que se impõe, antes ou agora, é a mesma: a partir de que lugar você fala. A partir do lugar de onde alguém fala, prestamos atenção ou não naquilo que diz. O lugar de onde falamos é, portanto, o que nos confere identidade. E a identidade é uma exigência do nosso mundo.

Escrevo sobre isso porque tenho tentado escapar da prisão da identidade. Ou da prisão de uma identidade imutável como a impressão digital do meu polegar. E esbarro no funcionamento do mundo. Há um ano e meio vivo sem emprego. Por opção. A pergunta que mais escuto é: “Por que você deixou de ser repórter?”. Respondo que nunca passou pela minha cabeça deixar de ser repórter. Eu apenas deixei de ter emprego, o que é muito diferente. “Então você está frilando?”. Não exatamente. Não foi apenas uma troca de cadastro, de pessoa física para jurídica. Foi uma mudança mais profunda.

Explico que, a partir de uma investigação sobre a morte, compreendi que precisava me reapropriar do meu tempo e, desde então, venho fazendo uma mudança radical no meu jeito de viver. “Mas então você nunca mais vai ter emprego?”. Sei lá. Como saber? Não tenho nenhum interesse em assinar qualquer declaração de intenções em três vias. “Mas você agora trabalha mais do que antes!”, é o comentário seguinte. Sim, mas eu não mudei para trabalhar menos, pelo contrário. Eu adoro trabalhar e não me sinto oprimida pelo trabalho, porque, para mim, trabalhar é criar. Eu mudei para experimentar outras possibilidades de me expressar e de viver, o que para mim é quase a mesma coisa. “Mas você não separa trabalho da vida pessoal?” Não. Trabalho é bem pessoal para mim. “Mas você trabalha mais e ganha menos?”. Sim. “Hum.”

Eu faço várias coisas que quero fazer, tento explicar. “Então você se tornou documentarista?”, é a próxima pergunta, quando descobrem que estou no meu terceiro documentário. Às vezes, mas é mais como uma experiência de contar histórias do que como uma profissão. “Mas por que você decidiu parar de contar histórias reais para escrever ficção?”, é o questionamento mais recente, desde o lançamento do meu primeiro romance. Eu não deixei de contar histórias reais, apenas senti necessidade de escrever ficção. É mais uma voz na tentativa de dar conta do que me escapa (e continuará escapando) – e não minha única voz. “Mas então agora você é ficcionista?”. Sim e não. Sou várias coisas ao mesmo tempo. “Hum.”

Estes são diálogos frequentes no meu cotidiano. A partir deles – e da necessidade persistente do mundo de me encaixotar em alguma identidade fixa e fácil de compreender – comecei a me indagar sobre isso. Afinal, o que as pessoas perguntam é: “Quem você é?”. E antes era fácil dizer: “Sou jornalista”. Só que isso dizia muito pouco sobre mim, já que ser jornalista é só o começo da resposta sobre quem sou eu. Assim como ser pedreiro, enfermeiro, morador de rua ou CEO é o começo superficial de uma resposta sobre quem é qualquer pessoa. Mas ter uma resposta simples para algo complexo deixava todo mundo satisfeito. Agora, minhas respostas sobre quem sou eu não satisfazem ninguém. Porque o melhor e mais honesto que posso oferecer ao meu interlocutor são mais pontos de interrogação. E, definitivamente, pontos de interrogação não são populares. O mundo exige respostas com pontos finais e, de preferência, exclamações peremptórias.

Ora, quem sou eu? Não sei quem sou eu. E, quando penso que sei, me escapo. Alguém já conseguiu responder a esta pergunta com alguma quantidade razoável de certeza? Ainda assim, por não ter uma resposta fácil para uma pergunta que define as relações do nosso mundo, tornei-me um incômodo. Mas, como a questão é legítima, tenho me aprofundado nela. E, nessa busca para compreender a questão da identidade, deparei-me com uma ótima história de Michel Foucault.

Em uma passagem pelo Brasil, em Belo Horizonte, Foucault foi questionado sobre o seu lugar: “Mas, finalmente, qual é a sua qualificação para falar? Qual é a sua especialidade? Em que lugar o senhor se encontra?”. Foucault ficou chocado com a “petição de identidade”. A exigência, constante em sua trajetória, motivou uma resposta de grande beleza em seu livro Arqueologia do Saber (Forense Universitari):

“Não estou, absolutamente, lá onde você está à minha espreita, mas aqui de onde o observo, sorrindo. Ou o quê? Você imagina que, ao escrever, eu sentiria tanta dificuldade e tanto prazer, você acredita que eu teria me obstinado em tal operação, inconsideradamente, se eu não preparasse – com a mão um tanto febril – o labirinto em que me aventurar, deslocar meu desígnio, abrir-lhe subterrâneos, soterrá-lo bem longe dele mesmo, encontrar-lhe saliências que resumam e deformem seu percurso no qual eu venha a perder-me e, finalmente, aparecer diante de quem nunca mais tivesse de reencontrar? Várias pessoas – e, sem dúvida, eu pessoalmente – escrevem por já não terem rosto. Não me perguntem quem eu sou, nem me digam para permanecer o mesmo: essa é uma moral do estado civil que serve de orientação para elaborar nosso documento de identidade. Que ela nos deixe livres no momento em que se trata de escrever”.

Lindo. Michel de Certeau que, como Foucault, foi alguém que conseguiu escapar dessa identidade de túmulo e, ao mesmo tempo, construir um sólido percurso intelectual, analisa essa questão em um dos textos de um livro muito instigante: História e Psicanálise – entre ciência e ficção (Autêntica). Certeau diz o seguinte sobre o episódio vivido por Foucault em Belo Horizonte:

“Ser catalogado, prisioneiro de um lugar e de uma competência, desfrutando da autoridade que proporciona a agregação dos fiéis a uma disciplina, circunscrito em uma hierarquia dos saberes e das posições, para finalmente usufruir de uma situação estável, era, para Foucault, a própria figura da morte. (…) A identidade imobiliza o gesto de pensar, prestando homenagem a uma ordem. Pensar, pelo contrário, é passar; é questionar essa ordem, surpreender-se pelo fato de sua presença aí, indagar-se sobre o que tornou possível essa situação, procurar – ao percorrer suas paisagens – os vestígios dos movimentos que a formaram, além de descobrir nessas histórias, supostamente jacentes, ‘o modo como e até onde seria possível pensar diferentemente’”.

A resposta de Foucault para a plateia de Belo Horizonte foi: “Quem sou eu? Um leitor”.
Quando me perguntam sobre o lugar de onde eu falo, tenho dito nos últimos tempos: “Quem sou eu? Sou uma escutadeira”. E agora posso até citar Foucault para a resposta ficar mais chique.

Na semana passada, participei de um debate na Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo (RS), com Edney Silvestre e Nick Monfort. Terminava minha apresentação dizendo:

“A vida é um traçado irregular de memórias no tempo. Quero que, como inventário do vivido, meu corpo tenha as marcas de todas as histórias que fizeram de mim o que sou. E, se meus netos e bisnetos forem me contar, espero que jamais cheguem a qualquer conclusão fechada sobre a minha identidade. Esta seria a maior prova de que vivi”.

Depois, a certa altura do debate, repeti que minha identidade era fluida. E que hoje estava mais interessada em me desinventar do que em me inventar, em me desidentificar do que em me identificar. À noite, quando me preparava para deixar a universidade, fui cercada por um grupo de garotas: “Obrigada pelo que você disse sobre a identidade”.

Percebi que, no mundo líquido em que a internet nos lançou, há algo sobre a compreensão do que é identidade que começa a mudar. É neste mundo novo que os mais jovens tentam dar passos de astronauta, mas a gravidade da antiga ordem os prende no chão. Ainda que por razões e tempos diferentes, eu e aquelas garotas, assim como muitos outros por aí, nos conectamos nas esquinas voláteis de um mundo que ainda é determinado por padrões de cimento.

Ao pegar o avião que me levaria de volta para São Paulo, olhei para a carteira de identidade descolada, parcialmente apagada e um tanto esfarrapada que apresentei no embarque. E finalmente entendi por que não consigo me convencer a substituí-la por uma nova. Enquanto me permitirem, é com ela que vou embarcar. Porque é nela que me reconheço. Quando me obrigarem a trocá-la, vou obedecer. Mas as autoridades jamais saberão que é em uma identidade que se desprende de si que reside minha verdade.

(Publicado na Revista Época em 29/08/2011)

Todo cuidado é pouco para não virar PopBobo

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Escritor virou um tipo de celebrity. Saiu dos seus abismos e quartinhos insalubres, possivelmente mais míticos do que reais, e subiu aos palcos dos eventos literários. O que pode ser muitíssimo bacana — e muitas vezes é. O problema às vezes é quando descobrimos que parte de nossos ídolos não difere das celebridades que frequentam a Ilha de Caras. E quanto maior e mais badalado o happening da literatura, maior é a fofoca no dia seguinte sobre quem comeu quem, a fulana que estava com uma saia-cinto se esfregando com alguém que não era seu marido ou o cara que todo mundo jurava que era MPC (machopracaralho) e apareceu com um menino que não era seu sobrinho. Questões humanas da mais alta relevância, como se pode ver. Do mesmo modo que logo surgem as musas e os darlings e as frases-para-virar-manchete de um e de outro. Ou quem chorou ou não chorou escondido no quarto e por quê. Enfim, o pirão humano de sempre. Só um ingênuo — coisa que às vezes me sucede de ser — imaginaria que quem escreve sobre o humano não seria demasiado e às vezes decepcionantemente humano.

Na condição de foca deste meio literário, logo me deparei com minha insignificância. Estava eu num evento badaladíssimo tempos atrás, quando fui engolfada por um grupo eclético me pedindo autógrafos e fotos. Me descobriram, pensei, já inflando um peito de chéster, termo cunhado pela minha amiga Bia Lopes. Fiz diante da câmera uns sorrisos que renderiam uns dois clientes para a minha dentista. Caprichei na letra. O “m” do Brum ganhou uma quarta perna que mais parecia a Via Láctea.

Ao final de tudo, eu quase que me achando loucamente, fui abatida dos píncaros da glória por petardos de realidade. Felicíssimos com minha performance, uma “fã” mais afoita me deu um beijo melado e me perguntou, com um sorriso completo de dentes: “Muito obrigada, a foto ficou ótima! Como é o seu nome mesmo?”. Respondi. E na minha resposta o Brum, pobre-coitado, estava manco de uma perna e com problemas de menisco no joelho da outra.

No lançamento do meu primeiro romance, o confronto com a realidade da fama se repetiu. Eu a avistei de longe. Veio de lado, assuntando com o corpo. De repente, estava junto à mesa de autógrafos, dividindo a pequena área comigo. Me fez perguntas profundas, numa voz rouca de traça de sebo com rinite alérgica: “Sobre o que é o seu romance?”; “Você sofreu ao escrevê-lo?”; “Qual é o seu sentimento neste momento?”.

Percebi que a entrevista seguia um questionário decorado e que ela vasculhava para além de mim, procurando avidamente com o olhar alguma coisa mais instigante entre as prateleiras da livraria. Parecia não ouvir minhas respostas. Mas sempre voltava para uma próxima pergunta na qual colocava um acento mais denso do que uma cumulus nimbus. Então, finalmente, ela sorriu e disse: “Apenas uma última pergunta”.

Me aprumei toda na cadeira.

— O que estão servindo?

Sim, sim, benditos (não) leitores. Sabendo escutá-los a gente aprende mais sobre nosso lugar na humanidade, que de estrela só tem a tal da poeira de que o Carl Sagan falava. E, de volta ao pó, retornamos também aos nossos interiores que seguem sendo o lugar de onde, com sorte, emergem algumas letras de bom tamanho.

Cabeça a prêmio: R$ 80 mil

Defensor da floresta pede ajuda para não morrer

No porto de Altamira, Raimundo Belmiro se prepara para embarcar na voadeira que o levará de volta para casa. Junto com ele viaja o tio, Herculano Porto. Só alcançarão seu destino, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, no Pará, depois de três dias de viagem por rio. Só é possível navegar com a luz do sol. À noite assam no fogo de chão o que pescaram horas antes nas águas, para comer com farinha, amarram a rede numa árvore e dormem para acordar com o barulho impressionante dos macacos. Eles moram numa região da Amazônia entrincheirada entre os rios Xingu e Iriri – e conhecida por um nome mítico: Terra do Meio. Quem olha para Raimundo e Herculano enxerga dois homens pequenos. Raimundo mais falante, Herculano mais sestroso. São dois gigantes. Todos nós, brasileiros, devemos a eles a preservação de um pedaço da floresta. Nesta guerra travada no coração turbulento da selva, os dois quase perderam a vida anos atrás. E hoje, mais uma vez, aos 46 anos, Raimundo Belmiro tem a cabeça a prêmio. O preço: R$ 80 mil.

Primeiro, é preciso compreender que, na Amazônia brasileira, as ameaças precisam ser levadas a sério. Na luta para proteger a floresta há uma trilha de cadáveres de homens e mulheres honestos, em geral anônimos, quase sempre abandonados pelo Estado.

Se no Rio de Janeiro, no Sudeste do país, uma juíza é executada com 21 tiros, dá para imaginar como a violência se desenrola nos confins do Brasil. Somente em maio, como todos sabemos, cinco pessoas foram assassinadas na Amazônia porque lutavam pelo que todos nós deveríamos estar lutando. Mas não estamos. Se existe floresta nativa em pé, tenhamos certeza, é por causa da luta dessa gente que se organiza, que grita e que morre – e que às vezes consegue fazer o Estado cumprir a lei.

Se Raimundo Belmiro for assassinado depois de ter pedido proteção, a responsabilidade será do governo federal – e também será nossa. Desde o início de agosto, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) sabe que Raimundo Belmiro está com a cabeça a prêmio. O ICMBio é o órgão do governo federal responsável por “fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das Unidades de Conservação federais”.

Apesar de ser área de proteção federal, a reserva extrativista tem sido desmatada pelos fundos, a partir de uma localidade chamada Trairão. Ao derrubar a floresta, os bandidos deparam-se com a resistência de Raimundo Belmiro, principal liderança do Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu nome circula entre a pistolagem da região. Como antes aconteceu com Brasília, Dema, Dorothy, Zé e Maria, apenas o nome de alguns tombados nos últimos anos no Pará.

Estas são as palavras que Raimundo me pediu para levar ao Brasil e ao mundo:

– Se as autoridades me entendessem e vissem que eu tenho valor, eu queria uma proteção. Uma coisa séria, porque não tá fácil pra mim. Eles sabem quando eu tô na floresta, sabem quando eu tô em Altamira. Estou desprotegido, só tenho a proteção de Deus. E o pessoal tá invadindo lá dentro do Riozinho, tirando madeira. E essa gente ataca pelas costas. À traição.

Raimundo fez esse mesmo pedido de proteção ao escritório do ICMBio de Altamira, no início de agosto. Nesta última sexta-feira, 19, falei com Paulo Carneiro, coordenador-geral de proteção ambiental do ICMBio, em Brasília. Apesar de terem se passado mais de dez dias, Carneiro afirmou que tomara conhecimento da ameaça de morte apenas naquele momento, a partir do meu contato. Também disse que o órgão estava ciente de que existiam focos de desmatamento na reserva extrativista. E assegurou que falaria com Raimundo Belmiro e providenciaria sua proteção a partir desta semana. Caberá a todos nós garantir que essa promessa seja cumprida e que a Amazônia não seja manchada mais uma vez de sangue, em mais uma morte anunciada.

Conheci Raimundo Belmiro, este homem pequeno, de sorriso meio encabulado e coragem amazônica, em 2004. Como 99% dos moradores do Riozinho do Anfrísio, Raimundo Belmiro não existia no Brasil oficial. Não tinha carteira de identidade, nem votava. Descendentes de soldados da borracha, nordestinos pobres levados para o interior da floresta pelo governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial, eles foram abandonados na selva quando a o látex deixou de valer a pena. Raimundo e cerca de duas centenas de pessoas viviam quase sem contato com o restante do Brasil. Viviam do extrativismo, como outros milhares de protetores anônimos da floresta.

Mas, se o Estado os ignorava, grileiros e desmatadores não. Eram estes ribeirinhos que estavam entre eles e os lucros da devastação. Para ameaçá-los, os bandidos desfilavam pelo rio com capangas exibindo suas armas, botavam fogo em castanhais e algumas vezes também em casas da Terra do Meio. Sozinhos, armados apenas com velhas espingardas que só serviam para caçar paca, os moradores resistiam lutando pela floresta e pela vida – duas entidades que, para nossa sorte, nunca puderam separar.

Naquele tempo, Raimundo Belmiro, Herculano Porto e Luiz Augusto Conrado (o Manchinha), as três principais lideranças da região, conviviam com a certeza de poderem ser assassinados no próximo segundo. Contei esta história, junto com o fotógrafo Lilo Clareto, numa reportagem publicada em 4/10/2004, que pode ser lida aqui: O Povo do Meio. Na época, a ex-seringueira Marina Silva era a ministra do Meio Ambiente. Como nenhum outro político neste país, Marina compreende a floresta e os homens e mulheres da floresta. E sabe que lá ameaça de morte vira morte.

Naquele momento, com uma sensibilidade que hoje faz muita falta no governo, Marina Silva disse: “O Estado e a sociedade brasileira têm uma dívida com a população extrativista que presta um serviço lá no coração da Amazônia, protegendo a nossa biodiversidade, cuidando dos rios e das florestas. É uma questão de justiça e de estratégia. Eu vivi o que eles viveram. Quando olhei para eles, vi minha gente. Sabia o que eles estavam passando. Não é coisa de entender racionalmente, mas de entender com o coração”.

Por ordem de Marina, os três foram retirados da selva de helicóptero e levados a Brasília para que contassem da guerra da floresta. Ali, ganharam identidade: a do documento e a da história escutada. Em novembro de 2004, Lula assinou o decreto criando a reserva extrativista Riozinho do Anfrísio. Em dezembro, o governo federal deu a Raimundo Belmiro o prêmio Defensores de Direitos Humanos. Agora, sete anos depois, Raimundo mais uma vez está sendo caçado por pistoleiros.

Peço agora que cada um pare de ler por um instante para tentar imaginar o que significa estar no meio da floresta amazônica, ameaçado de morte.

É assim que Raimundo Belmiro se sentia em 2004. É assim que se sente agora.

Antes de empreender sua longa jornada selva adentro, Raimundo Belmiro me disse:

– Se me matarem, Eliane, matam um homem.

É por ser um homem que Raimundo Belmiro precisa continuar vivo.

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P.S. – Para saber mais sobre Raimundo Belmiro e a Amazônia, você pode ler O Povo do Meio, À Espera do Assassino e Se a Amazônia é nossa, por que não cuidamos dela? Também pode buscar informações nos sites do Instituto Socioambiental e Movimento Xingu Vivo Para Sempre, entre outros.

(Publicado na Revista Época em 22/08/2011)

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