Matando por terras

Pouco antes de morrer, o cineasta Adrian Cowell liberou um documentário com cenas brutais da guerra travada na Amazônia brasileira. Filmada nos anos 80, a obra manteve-se inédita no Brasil por mais de duas décadas para proteger as testemunhas de assassinatos. Nesta semana, o filme será exibido pela primeira vez – e poderemos constatar que o passado continua dolorosamente presente

Cena 1 – Os homens andam pela floresta. Eles têm pés de andar, machucados pelas raízes, pelo sol, pela chuva, pelo caminho. E velhas espingardas nas mãos. No rosto, a expressão dos que foram lançados uma curva além. São homens desesperados – e homens desesperados não têm nada a perder. Exceto a vida, mas esta eles vão perder de qualquer jeito. Em busca de terra, já não há para onde ir. Exceto mais e mais para dentro. “A gente vai ficar. Se for, a gente só morre mais depressa”, diz um. Ali, eles já morrem depressa demais. É o corpo de um companheiro que vão buscar. Raimundo Piauí, posseiro como eles, sem-terra em busca de terra, apodrece há sete dias na mata. Assassinado por pistoleiros a mando de fazendeiros na guerra cotidiana travada na Amazônia.

Cena 2 – Ele é só um velho caçador, com uma espingarda de caça quase tão velha quanto ele. Os pistoleiros sabem disso. Mas não importa. Ele está ali, fácil e frágil. E é preciso dar um aviso aos posseiros que lutam pela terra. Os pistoleiros exigem a espingarda. Ele não entrega. Não entrega porque não pode entregar. Sem ela, morrerá de fome no meio da mata. É morrer de um jeito – ou de outro. Ele se vira. Os pistoleiros o abatem pelas costas. Um tiro atinge a sua boca, os dentes se espalham. Ele cai. João Ventinho era o seu nome. Mais um, só mais um ninguém cuja vida jamais será paga na Justiça.

Cena 3 – O homem corre. Os pistoleiros o perseguem atirando. O homem carrega uma criança nas costas. O menino grita primeiro. As últimas palavras do homem são: “Ô malvadeza”. Os dois corpos tombados na terra. O do posseiro Sebastião Pereira, liderança rural. E o de Clésio, de três anos. Um corpo de menino na mesa do necrotério, vítima de uma guerra que o matou antes que pudesse entendê-la. Uma guerra onde as crianças recebem balas de chumbo.

Estas cenas reais fazem parte do documentário Matando por terras (52 minutos), que será exibido pela primeira vez no Brasil nesta quinta-feira (5/7), no CineSesc, em São Paulo. Filmado nos anos 80, ele não pôde ser mostrado aqui por mais de duas décadas para não expor as testemunhas dos crimes – e condená-las também à morte.

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

O filme revela, de forma crua e persistente, como possivelmente nenhum outro documentário sobre o tema, a guerra travada na Amazônia. Uma guerra que, antes como agora, a maioria finge desconhecer. Rodado ao longo da rodovia Belém-Brasília, documenta o conflito entre fazendeiros – temerosos de perder os privilégios garantidos pela ditadura militar – e sem-terra. Mais de 100 pessoas foram mortas na região neste período.

A versão brasileira de Matando por terras foi o último trabalho do cineasta britânico Adrian Cowell. Ele se preparava para viajar ao Brasil para concluí-la quando morreu de ataque cardíaco, em Londres, no último 10 de outubro. Tinha 77 anos – 50 deles filmando a Amazônia. É pelo olhar de Adrian, um homem nascido na China e criado na Inglaterra, que uma parte da memória brasileira foi preservada. Não tivesse ele desembarcado no Brasil em 1957, aos 23 anos, para filmar o Monte Roraima, e uma parte crucial da saga amazônica teria permanecido invisível, sepultada em sangue e silêncio. Este testemunho único será exibido de 5 a 12 de julho, numa mostra em sua homenagem, promovida pelo CineSesc.

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Adrian Cowell produziu o maior registro audiovisual da Amazônia. Todo o seu acervo foi doado à PUC de Goiás e está disponível para ser acessado: quase 900 mil metros de filme, sete toneladas que se transformaram em 30 documentários. Neste percurso, Adrian conviveu com Orlando Villas-Boas antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu. Trabalhou também com Apoena Meireles, outro grande sertanista, assassinado em 2004 durante um assalto em Porto Velho (Rondônia). Em meio século, ele filmou um Chico Mendes ainda desconhecido do próprio Brasil – e o seu trabalho ajudou a projetar o líder seringueiro no mundo.

Adrian filmou tribos isoladas e filmou a destruição. Enquanto ele capturava a vida em um embate de morte, seus personagens tombavam junto com a floresta. Às vezes, antes mesmo do final do filme. Adrian começou a filmar Chico Mendes porque o personagem cuja história planejara contar, Padre Josimo, um religioso negro da Comissão Pastoral da Terra, foi assassinado no Tocantins pouco antes do início das filmagens. E Chico Mendes foi executado ao longo das gravações da série mais famosa de Adrian, A década da destruição, que será exibida na mostra.

O cineasta acreditava que um dia documentaria “A década do meio ambiente”, com o fim da devastação da Amazônia. Morreu com seu sonho – mas sua obra teve uma importância crucial para que a preservação da floresta e dos povos da floresta deixasse de ser uma questão de ecologistas para se tornar um problema do mundo.

Em 1980, Adrian conheceu o cinegrafista brasileiro Vicente Rios e, juntos, filmaram pelos 30 anos seguintes. “Rios e Cowell formaram uma poderosa dupla, como aquelas de pistoleiros do Velho Oeste, retratadas pelos filmes de Sergio Leone”, escreveu o jornalista Felipe Milanez, idealizador e curador da mostra. “Por vezes, andaram literalmente armados de revólver, para o caso de precisarem se defender, como em Serra Pelada, ou então portando uma arma muito mais poderosa: a câmera.”

Quem quiser conhecer as aventuras vividas pela dupla poderá ouvir da boca do próprio Vicente, na abertura da mostra e em algumas sessões apresentadas por ele. Vicente Rios também exibirá um documentário inédito – Visões da Amazônia. A obra apresenta cenas de bastidores das filmagens e coloca Adrian diante das câmeras, fazendo uma reflexão sobre suas memórias e sua paixão pela floresta.

Adrian apaixonou-se tanto pela Amazônia e pelo seu povo que deu ao filho um nome que junta mundos: Xingu Cowell. O menino morreu em um acidente de caiaque, aos 18 anos, no mesmo ano em que Adrian começou a filmar Matando por terras, no sul do Pará. O próprio Adrian participaria da mostra de cinema em homenagem à sua obra, mas tombou no meio do gesto. Até o fim, ele acreditou que a floresta poderia ser salva. E lutou por isso.

Em 6 de junho de 2011, Adrian escreveu para o jornalista Felipe Milanez. O cineasta acabara de saber do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal foi executado a tiros nas proximidades do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Adrian dizia, com o português que aprendeu enquanto se embrenhava na selva, que o filme Matando por terras, ainda inédito, mostraria que os assassinatos registrados por ele, 25 anos atrás, continuavam se repetindo no Brasil de hoje. Foi assim, porque o filme é presente tanto quanto passado, que a versão brasileira foi feita.

Na Amazônia, o século 20 invadiu o século 21, a violência tolerada (e muitas vezes patrocinada) pela ditadura persistiu na democracia. E os mesmos de sempre seguem tombando a tiros. Adrian Cowell poderia ter filmado cada uma das cenas a seguir. Todas elas – e muitas outras – aconteceram há pouco. E continuam se desenrolando neste exato momento.

Cena 1 – Zé Cláudio e Maria, lideranças que vivem da extração de castanha, estão perto do assentamento onde vivem. Zé dirige, Maria se agarra a ele na garupa. Assim que Zé diminui a velocidade da moto para passar sobre a ponte que cobre um igarapé, são atacados pela dupla de pistoleiros. O primeiro tiro de escopeta atravessa a mão direita de Maria e atinge o lado esquerdo do abdômen de Zé. Em seguida, mais tiros de escopeta e de um revólver calibre 38. Um dos assassinos puxa a faca, caminha até Zé Cláudio e corta um pedaço de sua orelha direita. Uma prova do serviço feito para entregar ao mandante. É 24 de maio de 2011. Hoje, é Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, que vive sob ameaça de morte. (Assista aqui ao depoimento de Zé Cláudio.)

Cena 2 – João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, trabalha na sua oficina mecânica, em Itaituba, no oeste do Pará. Um minuto depois está morto, com uma bala na cabeça. É 22 de outubro de 2011. Caçado por pistoleiros, seu amigo Júnior José Guerra começa a fugir. Os dois haviam denunciado a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa de roubo de ipê do interior de áreas de preservação. Toda a madeira passava – e continua passando – por um assentamento do Incra, entre os municípios de Itaituba e Trairão. João e Júnior denunciaram também 15 assassinatos consumados nos últimos dois anos na região por causa da posse da terra e do controle da madeira. Denunciaram às autoridades – e não foram protegidos. (Leia aqui.)

Cena 3 – Em 2010, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi espancada e teve sua casa queimada, no município de Lábrea, no Amazonas, depois de denunciar a grilagem e o roubo de madeira em seu assentamento. Em maio de 2011, fugiu enrolada em um lençol do pistoleiro atocaiado perto da sua casa. Só voltaria em outubro, protegida por uma escolta da Força Nacional. Em 30 de março de 2012, sua amiga Dinhana Nink, de 27 anos, foi a sétima pessoa assassinada na região nos últimos cinco anos por denunciar madeireiros e pistoleiros. Ela tinha fugido para Rondônia para escapar da morte, mas a alcançaram. Mataram-na com um tiro no peito diante do mais jovem de seus três filhos, Tiago, de 6 anos. Quando o pai de Dinhana encontrou o corpo, Tiago limpava o sangue do rosto da mãe. No último 19 de maio, a Força Nacional interrompeu a proteção a Nilcilene, e ela teve de deixar sua casa e a colheita para trás para se esconder mais uma vez. É nesse desamparo que se encontra agora. (Leia aqui.)

A guerra na Amazônia continua, como Adrian Cowell apontou pouco antes de morrer. Em Matando por terras, ele registra a campanha presidencial de 1989. Nela estão Lula, Fernando Collor e Ronaldo Caiado. Lula nos históricos comícios bordados de bandeiras vermelhas do PT, ao som do povo cantando “Lula-lá” com esperança e orgulho na voz. Collor fazendo promessas no tom histriônico de “caçador de marajás”, e Caiado incitando os fazendeiros a reagir contra os “invasores”. Em certo momento do filme, ainda aparece Paulo Brossard, então ministro da Justiça, reagindo com veemência às denúncias de assassinatos na Amazônia, feitas pela Anistia Internacional, com uma frase que já era popular naquela época: “É uma fantasia!”.

O Lula de 1989 diz: “A única forma de acabar com a violência é punindo. E fazendo a reforma agrária”. Collor foi eleito e depois deposto por impeachment. Fernando Henrique governaria por dois mandatos. Só então Lula se elegeria por duas vezes e ainda faria a sucessora. Mais de duas décadas depois, a realidade mostra que o mesmo filme poderia ter sido feito hoje – apenas com novos cadáveres.

Antes, os mortos eram chamados de sem-terra ou posseiros. Hoje, a maioria é “assentado”. No papel, conquistou-se assentamentos do Incra, reservas extrativistas, florestas nacionais. Mas as conquistas dos anos de democracia não alcançaram o concreto dos dias: o Estado que está no papel não está na vida. Há vastas porções da Amazônia sob o controle do crime organizado – cada vez mais sofisticado e com braços mais longos. Sem o apoio do Estado, quem denuncia o “malfeito” assina sua sentença de morte. E vive seus últimos dias na insanidade: quem morre hoje estava marcado para morrer, avisou às autoridades que morreria, documentou as ameaças e os pedidos de socorro, às vezes em vídeo – e morreu.

Adrian Cowell emprestou seus olhos e arriscou sua vida por meio século para mostrar o que muitos brasileiros não queriam ver. Conhecer sua obra é um bom começo para mudar esse filme.

(Publicado na Revista Época em 02/07/2012)

 

 

Quem está com Lula e Maluf na foto (além de Haddad)?

O esconde-esconde da imagem: a reação de Luiza Erundina dá razão a Lula ao provar que a representação da realidade é a única realidade que importa

A menina de 7 anos assiste a desenho animado na TV, no quarto dos pais, em sua casa na zona sul de São Paulo. A mãe, tentando aparentar tranquilidade, aparece na porta e diz: “Filha, tem um titio que veio roubar nossas coisas. Mas fica quietinha, que ele não vai fazer nada. Só vai roubar as coisas e depois vai embora”. Pega a menina pela mão e a leva ao corredor. Quando vê o ladrão, um rapaz com uma arma na mão, a menina pergunta:

– Mãe, esse que é o Maluf?

Até o ladrão riu.

* * *

A história é verídica. Aconteceu em 1988, nos primeiros anos da redemocratização do Brasil, uma época ultrapassada em que “malufar” era sinônimo de “roubar”. A menina, uma amiga, é hoje uma mulher e tornou-se jornalista. Ao ver a foto de Lula apertando a mão de Maluf, olhei “pelo retrovisor” e lembrei desse episódio.

Depois do choque inicial diante da foto de Lula com Maluf (e sem perdê-lo jamais), o que começou a me perturbar era que Lula pode ter razão. Não razão em pisotear os princípios e engolir a biografia, óbvio. Mas razão para acreditar que a imagem é a única realidade que importa para alcançar os fins. Que com um minuto e meio a mais de TV é possível fazer o eleitor acreditar que Fernando Haddad é o “novo” – e que o “novo”, ainda que ungido por velhas e viciadas práticas, é o melhor para administrar São Paulo. O que dá razão a Lula é a reação da opinião pública – e principalmente a de Luiza Erundina.

MALUFARAM Lula e Haddad nos jardins da casa de Maluf, em São Paulo. (Foto: Epitácio Pessoa/AE)

MALUFARAM Lula e Haddad nos jardins da casa de Maluf, em São Paulo. (Foto: Epitácio Pessoa/AE)

À primeira vista, a desistência de Luiza Erundina (PSB) de ser a vice de Haddad, supostamente em nome dos princípios, assim como a reação da sociedade e da própria militância petista, apontariam para um erro político estratégico. Em busca de um minuto e meio a mais na TV, Lula teria esquecido do que o levou a aceitar o inaceitável: o poder da imagem. Ou, em busca de ampliar o poder da imagem, Lula esqueceu-se do poder da imagem. Esqueceu-se daquilo que Maluf lembrou e por isso exigiu, em troca do apoio do PP à candidatura de Haddad: “A foto faz parte do pacote”.

A imagem, quando substitui a realidade ou se torna toda a realidade, pode nos cegar. Por isso, quero aqui apenas rememorar o que vemos nesta foto – e o que não vemos. O que vemos é Lula e Maluf – Haddad entre eles, mas sem importar muito (e isso é importante, já que Haddad não importa muito porque é o “novo” sem história).

O que vemos é Lula apertar a mão de quem no passado havia chamado de “o símbolo da pouca-vergonha nacional”. E Maluf apertar a mão de quem no passado havia chamado de “ave de rapina”. O que vemos é Lula, que no passado representou a possibilidade de ética na política, apertar a mão de quem no passado – e também hoje, mas agora embaralhado com muitos outros – representou a corrupção na política. O que vemos é Lula, que até alguns anos atrás encarnava um novo jeito de fazer política, consolidando mais uma aliança com o velho jeito de fazer política.

De fato, porém, o que vemos não é novo. Mas a foto nos faz acreditar que é. Ora, há quanto tempo o que existe de mais retrógrado e fisiológico na política nacional se tornou parte do espectro de alianças do PT, em nome da “governabilidade” ou em nome dos fins? O PP de Maluf esteve no governo Lula e está no governo Dilma – como antes esteve no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Lula apertou a mão de Maluf há muito tempo. Desde o primeiro mandato como presidente, pelo menos.

A foto permitiu que parte da sociedade enxergasse essa aliança. É bom enxergar, antes tarde do que nunca? É, claro que é. Mas também não é. Porque, se acreditarmos que as imagens são toda a realidade, nos tornamos facilmente manipuláveis. Se só conseguimos enxergar o que vira imagem, nos colocamos em um lugar muito frágil. No lugar que explica Lula apertar a mão de Maluf para garantir um minuto e meio a mais de espetáculo, no qual faz o truque de transformar o desconhecido em conhecido, o velho em novo.

Nesta imagem histórica, é quem não estava na foto que nos revela o quanto nos deixamos cegar tanto pelo que vemos – quanto pelo que não vemos. É Luiza Erundina, que agora desponta como aquela que disse: “Não aceito”. Ou como a guardiã dos princípios na política, a mulher que deu uma lição ética a Lula e ao PT, aquela que resistiu ao pragmatismo da “realpolitik”. É provável que Erundina seja uma mulher de princípios, porque parte da sua história pública nos prova isso. Mas não neste episódio.

No momento em que a imagem de Lula apertando a mão de Maluf foi imortalizada com um clique, Luiza Erundina estava lá naquela foto. Não estava, mas estava, porque havia aceitado a aliança com o PP de Maluf. Embora dizendo-se “desconfortável” com a aliança em declarações anteriores à fotografia, ela sabia da aliança e aceitou a possibilidade da aliança no momento em que aceitou ser a vice de Haddad.

Logo, Luiza Erundina não desistiu de ser vice por uma questão de princípios, mas por uma questão de imagem. Ou pelo fato de a foto desmascarar a falta de princípios que ela conhecia e aceitara. Ou ainda, porque a foto tornou mais real a realidade.

O problema, para Luiza Erundina, não era a aliança com Maluf, esta ela podia aceitar. Como não foi um problema para ela aceitar, em 2004, a aliança com Orestes Quércia (PMDB) – que não chegava a ser um Maluf, mas estava longe de ter boa fama. O problema, para Erundina, era exibir a aliança com Maluf em uma foto estampada na capa dos jornais. E passar a correr o risco – altíssimo – de aparecer, também fisicamente, em uma próxima foto. Neste sentido, ainda que apenas por erro de cálculo, Lula foi mais coerente que Erundina. Fez a aliança e permitiu a representação da aliança – pagou o preço cobrado por Maluf, que além de mais um cargo obtido no governo de Dilma para o PP, exigiu também uma imagem.

Antes da foto, mas já com as negociações bem adiantadas, Erundina declarou-se “desconfortável” com a presença quase certa de Maluf na campanha. Apenas “desconfortável”. Ela disse: “Para mim não será confortável estar no mesmo palanque com o Maluf. A campanha não sou eu nem Maluf individualmente. É um processo muito mais amplo e complexo, e isso se dilui, ao meu ver. (Mas) Claro que é desconfortável”. Após a publicação da foto, mas ainda antes de tomar a decisão de desistir da candidatura, ela fez uma declaração especialmente reveladora: “A foto provocou repulsa, uma reação em cadeia. Fui bombardeada nas redes sociais”. Depois de deixar a chapa, porque a imagem não se “diluiu” como o esperado, Erundina afirmou: “Quando a gente faz uma coisa que corresponde ao anseio da sociedade, a gente fica feliz”.

É claro que as pessoas podem mudar de ideia. É também desejável que voltem atrás, ao perceber que fizeram uma escolha errada. É preciso enxergar, porém, que Erundina teve bastante tempo para pensar nos seus princípios antes da foto, mas já com a aliança com Maluf bem delineada no horizonte. Portanto, é legítimo duvidar de que seu recuo seja justificado pelos princípios. Ela assume isso em várias declarações, especialmente nesta, sem parecer enxergar a contradição: “O tempo de TV é importante, mas não a ponto de sacrificar a imagem”.

Foi para não sacrificar sua imagem (e não seus princípios, como a repercussão de sua decisão fez parecer), que ela desistiu de ser vice. Por estar fisicamente ausente da imagem fatídica, Luiza Erundina produziu uma outra imagem simbólica que lhe interessa muito mais. Seria melhor para Erundina, para nós e para a democracia se ela ficasse feliz não por corresponder aos anseios da sociedade, mas por corresponder aos princípios éticos que norteiam a sua vida, mesmo que estes a levassem, eventualmente, a contrariar a opinião pública.

Vale a pena enxergar também que a postura de Luiza Erundina neste episódio mostrou, de novo, que Lula e o PT estão certos ao acreditar que um minuto e meio a mais de exposição planejada, produzida e controlada na TV seja decisivo para a candidatura de Haddad. A decisão de Erundina, tomada só após a foto, prova que, para ela e para muitos, é a imagem que vale, não a realidade. Ou é a imagem que torna real a realidade. Se a aliança estivesse consolidada – mas sem uma imagem para representá-la –, será que Erundina desistiria de ser vice? Ela mesma já respondeu: “Eu até entenderia se fosse um ato firmado dentro de um espaço institucional, entre diretórios, mas não dessa forma personalista”.

Para completar a foto há ainda o PSDB, o oponente sem oposição de fato no que diz respeito à imagem-bomba. A declaração de José Serra ao comentar a aliança entre Lula e Maluf foi a seguinte: “O PSDB tem um tempo suficiente de televisão. Não vale tudo para aumentar isso”. E a de Aécio Neves: “Isso não muda o resultado eleitoral, mas fragiliza o discurso de faxina do governo. No momento em que o governo federal se dispõe a fazer esse tipo de concessão, em troca de apoio político, essa discussão da faxina fica muito frágil.” Aécio ainda disse que a troca de apoio político por espaço na campanha de rádio e TV não deveria virar regra no país.

Seria um discurso alentador, não tivéssemos acompanhado os enormes esforços empreendidos pelo PSDB para conquistar o apoio de Maluf. Seria um discurso estimulante, não fosse uma outra foto mostrar Serra apertando a mão do ex-ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento (PR), afastado por Dilma por suspeita de corrupção. Valdemar Costa Neto, um dos réus no processo do “mensalão”, não está na foto, mas foi um dos arquitetos da aliança do PSDB com o PR na disputa da prefeitura paulistana. Ou seja, Valdemar Costa Neto, outra figura que não fica bem na foto, estava sem estar. De novo, o jogo de esconde-esconde das imagens.

Ao buscar um minuto e meio a mais de imagem, Lula afobou-se e esqueceu-se, por um momento, da natureza perigosa do que foi buscar. Mas deve contar com a possibilidade de a imagem sinistra ser esquecida – ou substituída por outras, produzidas pelos marqueteiros ao longo da campanha. Se é imagem o que vale, e não os princípios, agora há um minuto e meio a mais de TV para reverter o prejuízo e convertê-lo em lucro, ao transformar o espetáculo na única realidade que importa. Afinal, com o próprio Maluf há um precedente do PT em São Paulo: Marta Suplicy foi apoiada por ele no segundo turno da campanha de 2004 à prefeitura paulistana. Na época, Kombis decoradas com imagens de Maluf e Marta circulavam afoitas por São Paulo. Quem lembra? A própria Marta, a julgar por suas manifestações sobre a foto Lula-Maluf, parece ter esquecido.

Seria uma boa notícia se alguém estivesse sofrendo de fato por ter vomitado nos princípios. Mas nenhum dos envolvidos no episódio parece estar preocupado com princípios. Nem Lula e Haddad, que apertaram a mão de Maluf e posaram para a foto. Nem Erundina, que estava na foto sem estar, mas por causa da reação à ela desistiu de compactuar com o que já tinha compactuado. Muito menos José Serra, que adoraria estar no lugar de Lula e de Haddad, mas fingiu reprovar o vale tudo.

E nós? Nós precisamos enxergar além do que nos é dado para ver – e enxergar mesmo quando não há imagem. Ou tudo será permitido desde que ninguém veja, tudo continuará valendo a pena por um minuto e meio a mais de TV. O quanto realmente enxergamos o que estava – e o que não estava – na foto histórica só saberemos mais adiante.

Em 1988, diante da euforia e dos sonhos trazidos pela redemocratização do Brasil, depois de duas décadas de ditadura militar, havia dois cenários possíveis para o futuro. Boa parte de nós só enxergava um, só acreditava em um, só admitia um. Nele, a menina perguntaria ao ver o ladrão roubando a sua casa: “Mãe, esse que é o Maluf?”. E a mãe responderia: “Não, esse ladrão não é o Maluf porque o Maluf está preso”.

Naquele tempo, nenhum de nós – e tenho certeza de que nem mesmo Lula – poderia imaginar que o único diálogo possível no futuro seria este:

– Mãe, esse que é o Maluf?

– Não, o Maluf está ocupado, na casa dele, apertando a mão do Lula.

* * *
Revoltemo-nos. Mas sem esquecer que também estamos naquela foto. Sem eleitores como nós, ela não seria possível.

(Publicado na Revista Época em 25/06/2012)

 

Por que a imagem da vagina provoca horror?

Diante da origem do mundo, ela deu um grito

Muitos anos atrás, não sei precisar quantos, deparei-me com o quadro A origem do mundo (L’Origine du Monde, 1866) e me encantei. Nele, o francês Gustave Courbet pinta uma vagina. Cheguei a ela desavisada e fui tomada por uma sensação profunda de beleza. Forte o suficiente para sonhar, deste então, com a compra de uma reprodução, um plano sempre adiado. Quando passei a trabalhar em casa, há dois anos, desejei ainda mais ter o quadro na parede do meu escritório, onde reúno tudo aquilo que me apaixona em um pequeno universo perfeito e só meu. No último aniversário, em maio, meu marido me deu a reprodução de presente. Só na semana passada, porém, o quadro chegou da vidraçaria onde fez escala para receber moldura. Então, algo inusitado aconteceu.

Ouvi um grito:

– É o fim do mundo!

Eu estava no quarto e saí correndo, alarmada, para ver o que tinha acontecido. Encontrei Emilia, a mulher que limpa nossa casa uma vez por semana, com o rosto tomado por um vermelho sanguíneo, diante de A origem do mundo, que, ainda sem lugar na parede, jazia encostado em um armário.

– É o fim do mundo! – gritava ela, descontrolada. – Nunca pensei ver algo assim na minha vida! Eliane, que coisa horrível!

Meio atordoada, eu repetia: “Não é o fim do mundo, é o começo!”. E depois, sem saber mais o que fazer para acalmá-la, me saí com essa estupidez: “É arte!”. Como se, por ser “arte”, ela tivesse de ter uma reação mais controlada, quando é exatamente o oposto que se espera. Beirando o desespero diante do desespero dela que eu não conseguia aplacar, apelei: “Mas, Emilia, metade da humanidade tem vagina – e a humanidade inteira saiu de uma vagina! Por que você acha feio?”.

O fato é que, para Emilia, era o fim do mundo – e não o começo. Tentei fazer piada, mas percebi que a perturbação não viraria graça. A questão para ela era séria – e ela só não pedia demissão porque trabalha há 12 anos comigo e temos um vínculo forte. Naquele dia, Emilia despediu-se incomodada e passei a temer que talvez ela não suporte olhar para o quadro a cada quinta-feira.

Por que Emilia, uma mulher adulta, que me conta histórias escabrosas da vida real, se horrorizou com a visão de uma vagina? Por que eu me encantei com a visão de uma vagina? Quando vivo uma experiência de transcendência, em geral eu não quero saber sobre a história da pintura que a produziu, porque temo perder aquilo que é só meu, a sensação única, pessoal e íntima que tive com aquela obra. É uma escolha possivelmente besta, mas faz sentido para mim. Por isso, eu quase nada sabia sobre “A origem do mundo”, para além do fato de que eu a adorava. Só no ano passado, ao ler um pequeno livro sobre um dos grandes nomes da história da psicanálise, o francês Jacques Lacan, soube que ele foi o último dono da pintura. Nos anos 90, sua família doou o quadro para o Museu D’Orsay, em Paris, onde está desde então.

Graças ao estranhamento de Emilia, transtornada que foi pela experiência artística quando se preparava para passar o pano no chão, fui levada a um percurso inesperado. Descobri que A origem do mundo causa escândalo desde que foi pintada. E agora quem está horrorizada sou eu, mas pela ausência de horror em mim diante do quadro. Por quê? Por que eu não sinto horror? O que há de errado comigo que não sinto horror?, cheguei a me perguntar. De repente, nossas posições, a minha e a de Emilia diante do quadro, inverteram-se. Eu, que não compreendia o horror dela, passei a suspeitar do meu não horror.

Eis uma breve trajetória da obra. A origem do mundo foi encomendada a Courbet, um pintor do realismo, por um diplomata turco chamado Khalil-Bey. Colecionador de imagens eróticas, ele pediu um nu feminino retratado de forma crua. E Courbet lhe entregou um par de coxas abertas, de onde despontava uma vagina após o ato sexual. A obra teria sido instalada no luxuoso banheiro do milionário, atrás de uma cortina que só se abria para revelar o proibido para uns poucos escolhidos. Khalil-Bey teria perdido a pintura em uma dívida de jogo, momento em que a tela passa a viver uma série de peripécias.

O quadro teve vários donos e, ao que parece, todos o escondiam atrás de uma cortina ou de uma outra pintura. Na II Guerra Mundial, algumas versões afirmam que chegou a ser confiscado pelos nazistas do aristocrata húngaro ao qual pertencia. Em seguida, passou uma temporada nas mãos do Exército Vermelho. Até que, após uma acidentada jornada, em 1954 foi comprado por Lacan e instalado na sua famosa casa de campo.

Até mesmo Lacan, um personagem pródigo em excentricidades e sempre disposto a chocar as suscetibilidades alheias, ocultava o quadro com uma outra pintura, encomendada ao pintor surrealista André Masson com esse objetivo. Como uma porta de correr, esse “véu” retratava uma vagina tão abstrata que só um olhar atento a adivinhava. Apenas visitantes especiais ganhavam o direito de desvelar e acessar a vagina “real”. Segundo Elisabeth Roudinesco, a biógrafa mais notória de Lacan, o psicanalista gostava de surpreender os amigos deslocando o painel. Anunciava então “A origem do mundo”, com a seguinte declaração: “O falo está dentro do quadro”. Boa parte dos intelectuais apresentados à tela ficava, como Emilia, bastante incomodada.

Por quê?

Que há algo perturbador no órgão sexual feminino não há dúvida. Até nomeá-lo é um problema. Vagina, como tenho usado aqui, parece excessivamente médico-científico. É como pegar a língua com luvas cirúrgicas. Boceta ou xoxota ou afins soa vulgar e, conforme o interlocutor, pejorativo. É a língua lambuzada pelo desejo sexual – e, por consequência, também pela repressão. Não há distanciamento, muito menos neutralidade possível nessa nomeação. É uma zona cinzenta, entregue a turbulências, e a palavra torna-se ainda mais insuficiente para nomear o que Courbet chamou de “A origem do mundo”. Para Lacan, “o sexo da mulher é impossível de representar, dizer e nomear” – uma das razões pelas quais teria comprado o quadro.

Em busca de respostas para o horror de Emilia, que, por oposição, revela o meu não horror, naveguei por algumas interpretações do quadro – e da perturbação gerada por ele. Jorge Coli, historiador, crítico de arte e autor de um livro sobre Courbet para a editora francesa Hazon, assim comentou sobre A origem do Mundo, em um artigo publicado em 2007: “Parece-me a radicalização do processo de transformar a mulher em um objeto orgânico, pois ele esconde a cabeça (pensante) e os braços e pernas (elementos da ação). Vemos a ponta do seio e, sobretudo, o sexo”. Coli assinala que uma das questões do século XIX era a ameaça do desejo contida no feminino. Inerte, entregue à contemplação, a mulher não ameaçaria.

Em algumas manifestações escandalizadas, o fato de Courbet ter “reduzido” a mulher a um pedaço da anatomia foi considerado uma afronta. Uma mulher sem cabeça, sem braços, sem história. A pintura chegou a ser definida pelo escritor e fotógrafo francês Maxime Du Camp como um “lixo digno de ilustrar as obras do Marquês de Sade”. Análises mais psicanalíticas explicam o horror de quem olha pela castração. Diante do espectador, entre as coxas abertas da mulher se revelaria a ferida aberta, a falta, a impossibilidade de ser completo. As mulheres se horrorizariam pela constatação da castração, os homens pelo temor a ela. Se alguns olhares produzem pistas, outros reforçam apenas o incômodo que a obra produzia.

O efeito do quadro já foi tentado em fotografias de mulheres, em geral prostitutas, colocadas na mesma posição, mas o resultado revelou-se diverso. Ao transpor para a fotografia, não é mais a imagem de Courbet, mas outra. Até que, em 1989, uma artista francesa, Orlan, fez algo marcante – e com grande potencial para gerar polêmica – a partir da obra original. Ela reproduziu a pintura trocando a vagina por um pênis – ou a boceta por um caralho. E chamou-a de A origem da guerra. Olhar para essa imagem causa um estranhamento, especialmente porque a posição, deitada de costas, é muito mais íntima da mulher do que do homem. O pênis, no caso, se oferece ereto ao olhar, mas a partir de um corpo na horizontal, entregue.

É instigante, desde que a provocação não seja reduzida a um feminismo indigente, banalizado pela crença pueril do “a mulher gera a vida, o homem a morte”. A intenção de Orlan, segundo Roudinesco, era bem mais refinada. Ela “pretendia desmascarar o que a pintura dissimulava, realizando uma fusão da ‘coisa’ irrepresentável com seu fetiche negado”. Reivindicava então a “imprecisão do gênero e da identidade” que marca o nosso tempo, anunciando, por sua vez: “Sou um homem e uma mulher”.

O que se pode afirmar é que Courbet revelou o que está sempre coberto, oculto, escondido. No Carnaval brasileiro, por exemplo, como lembra a psicanalista Maria Cristina Poli em um artigo interessante sobre o feminino, tudo é exposto – e até superexposto – do corpo da mulher, menos a vagina. Mas a força do quadro não está só no “mostrar”. Há algo de incapturável e único na forma como Courbet mostrou o “imostrável”, já que a transposição da imagem para a fotografia não causa o mesmo efeito. E o que é?

Não sei.

A vagina pintada por Courbet é peluda como não vemos mais nos dias de hoje. A depilação quase total do sexo feminino tornou-se um popular produto de exportação do Brasil. Tanto que virou um dos significados da palavra “Brazilian” no renomado Dicionário Oxford: “Estilo de depilação no qual quase todos os pelos pubianos da mulher são retirados, permanecendo apenas uma pequena faixa central”. Pelo visto, a partir dos trópicos supostamente liberados e sexualizados, a vagina depilada virou um clássico contemporâneo.

Este é um ponto interessante. Ao primeiro olhar, a extração dos pelos serviria para revelar mais a vagina, mas me parece que este é mais um daqueles casos, bem pródigos na nossa época, em que se mostra para ocultar – a superexposição que ofusca e cega. A vagina sem pelos é uma vagina flagelada – e arrancar os pelos com cera é mesmo um flagelo. É também uma vagina infantilizada pela força. E é ainda uma vagina esterilizada, já que vale a pena lembrar que no passado recente essa depilação agressiva só acontecia nos hospitais para, supostamente, facilitar o parto. “Se não depilo totalmente, me sinto suja”, disse-me uma amiga. Suja?

Em janeiro de 2000, a atriz Vera Fischer exibiu sua vagina peluda em um ensaio fotográfico da revista Playboy. Causou furor. Falou-se na “Mata Atlântica”, na “Amazônia”, na “selva” onde sempre é perigoso penetrar. Havia algo de poderoso e incontrolável na vagina em estado “natural” de Vera Fischer, e a polêmica se fez. Era uma mulher não domesticada ali. Uma mulher adulta.

Não me parece – e nunca saberemos se tenho razão – que, se Courbet tivesse pintado uma vagina careca, ela teria causado tanto o horror de Emilia quanto o êxtase em mim. A vagina pintada por Courbet é uma vagina que revela. Mas o quê?

Não sei. A maravilha da arte é que ela nos transtorna sem a menor intenção de nos dar respostas – muito menos caminhos a seguir. A arte é sempre labiríntica. Não há sentimentos “certos” ou “errados” diante da expressão artística, há sentimentos apenas. Movimentos. Que nos levam por aí, aqui. É em respeito a essa ideia que decidi não colocar nenhuma imagem do quadro aqui, nem mesmo um link – ou um atalho – para a imagem na internet. A busca da origem do mundo é pessoal e intransferível. Assim como a decisão de buscá-la.

A obra de Courbet sempre foi oculta por uma outra pintura. Ou cortina. Exceto agora, que a exibição no museu deu a ela uma espécie de salvo-conduto, por ser ali “o lugar certo”. De algum modo, até então, a vagina mais famosa da História da Arte fora coberta por um véu – além do véu representado pela própria pintura.

Decidi não cobrir minha reprodução de A origem do mundo com uma burca. Vamos ver o que acontece.

(Publicado na Revista Época em 18/06/2012)

A rainha má e o terror de envelhecer

Neste conto de fadas para mulheres adultas, uma ruga vale uma alma

Branca de Neve e o Caçador (Rupert Sanders, 2012), em cartaz nos cinemas, deveria se chamar “Ravenna, a rainha má”. Interpretada pela maravilhosa Charlize Theron, a mãe-madrasta-bruxa da princesa é o mais interessante do filme, assim como as questões tão atuais que ela nos traz. E a bela Charlize faz uma rainha inesquecível. Para não envelhecer, essa vilã dos contos de fadas ultrapassa todos os limites e quebra todos os interditos. Uma mulher da era a.CP (antes da cirurgia plástica), Ravenna suga a alma, a juventude e a beleza das adolescentes e devora corações puros, que arranca com suas unhas, enquanto chafurda na amargura.

O filme, para quem não sabe e não viu, busca resgatar o conteúdo terrorífico das origens dos contos de fadas. Tudo o que hoje se conhece com esse nome foi um dia histórias para adultos, nas quais canibalismo e incesto eram ingredientes garantidos. Mantidas vivas pela tradição oral dos camponeses medievais, as histórias eram contadas para entreter, mas não só. Os contos nasceram e permaneceram como uma forma de lidar com os riscos da vida real, num tempo em que os lobos uivavam no lado de fora e também no lado de dentro, menos contidos pela cultura do que hoje.

Depois, a partir do final do século 17, com Charles Perrault, culminando no século 19, com os Irmãos Grimm, os contos foram compilados, escritos e depurados como histórias para crianças. Nós, que nascemos no século XX, fomos alimentados por versões muito mais suaves e palatáveis a uma época sensível, em que os pequenos são vistos como o receptáculo tanto da inocência quanto do futuro. E, portanto, precisam ser protegidos dos males do mundo e de seus semelhantes, assim como convencidos de que sua “natureza” é boa e pura. Ainda que conheçamos, por experiência própria, que o pior também nos habita desde muito, muito cedo. E seria melhor para todos – e também para a vida em sociedade – poder olhar para ele de frente.

Branca de Neve registra algumas variações ao longo dos séculos, até chegar ao clássico da Disney, de 1937, que se tornou referência para a maioria de nós. Mas nada tão radical quanto uma versão de sua colega Bela Adormecida, por exemplo, na qual a princesa é abusada pelo príncipe e abandonada grávida. Muito menos como Chapeuzinho Vermelho, que talvez seja o conto que revela com maior clareza a mudança de sensibilidade através dos tempos.

Em uma das versões mais antigas, o lobo oferece à menina a carne da avó fatiada numa bandeja como iguaria e o sangue da avó como vinho. Depois de banquetear-se, Chapeuzinho é convidada a tirar a roupa. A cada peça que a menina arranca em seu strip-tease, o Lobo grita, todo animado: “Atire-a no fogo!”. Em seguida, a Chapeuzinho sem chapéu nem calcinha deita-se nua na cama com o Lobo peludo. E é “devorada”. Nem Lars Von Trier faria melhor. Os camponeses medievais terminavam a história ali. O final feliz veio muito, muito depois.

No caso de Branca de Neve e o Caçador, os realizadores do filme usaram os mais avançados recursos da tecnologia para construir imagens belíssimas na tentativa de recuperar algo da atmosfera sombria. Mas não se arriscaram a chegar sequer perto da violência de sentidos dos tataravôs dos contos modernos, talvez porque o projeto tenha sido pensado como uma franquia. O filme não perdeu, porém, a oportunidade de atualizar as questões que fizeram a história sobreviver por tantos séculos e alimentar o imaginário de tantos filhos de épocas diversas. E essa é a sua força.

Que questões são essas? A relação entre mãe e filha, com a violência simbólica transposta em atos concretos, já que a mãe-madrasta passa toda a história tentando matar a filha-enteada que vai suplantá-la em juventude e beleza. O olhar de desejo do pai-caçador, que a faz descobrir-se mulher na floresta “negra”, para onde foge da mãe. Os vários desafios que enfrenta qualquer menina, seja a Branca de Neve ou uma adolescente de hoje, para se tornar mulher. E que passam, necessariamente, por se diferenciar da mãe. Quem quiser pensar mais sobre isso – e vale muito a pena pensar mais sobre isso – pode procurar o excelente Fadas no divã (Artmed, 2006), dos psicanalistas Diana e Mario Corso – um livro fundamental para todos, um pouco mais para mães e pais.

Em Branca de Neve e o Caçador, os desafios enfrentados pela princesa para virar mulher (e continuar viva) ganham soluções um pouco diferentes das versões anteriores – e bem provocativas. Mas, só dessa vez, vou deixar Branca de Neve do outro lado do espelho e me concentrar no reflexo da rainha má. Charlize Theron é uma mãe-bruxa obcecada pela juventude e pela beleza. Para ela, nenhum ato é horrendo demais se, ao final, ela ganhar uns anos a mais com pele de pêssego. Assinalada por várias vidas de horror – já que a bruxaria e o coração das mais jovens garantiu-lhe uma existência prolongada –, ela não admite ter nenhuma marca do vivido. Toda a violência sofrida e praticada, as mágoas, as decepções e as traições estão dentro dela. Mas no corpo, naquilo que se oferece ao olhar do outro, ela é uma mulher sem marcas.

No filme, a rainha má assim é por ter sofrido no passado o abuso de homens que, nas suas palavras, sugaram tudo dela e, quando ela começou a envelhecer e a perder a beleza, a trocaram por uma mais jovem. Roteiro prosaico de nossos dias, mas tanto na vida real como na ficção soa inconsistente. Uma desculpa meio esfarrapada para justificar tanta destruição – e autodestruição. Nestes momentos, em que evoca a suposta sina das mulheres e a suposta voracidade dos homens, a rainha nos constrange com sua superficialidade de almanaque. Mas não deixa de ser interessante observar que supostamente também seria para o desejo dos homens que as mulheres do nosso tempo se submetem ao inimaginável na tentativa de permanecerem jovens e belas. Será?

Um dos momentos mais interessantes do filme se dá no encontro de Branca de Neve com uma comunidade de mulheres que, para se manterem a salvo da sanha da rainha, fazem marcas no próprio rosto. Até as crianças têm a face assinalada por cicatrizes sem história. Numa concepção de beleza em que as marcas da vida estragam o rosto, essas mulheres só podiam sobreviver se arruinassem a beleza – e, com ela, o interesse da rainha. É, portanto, no olhar da rainha que está o desprezo pelo corpo assinalado pela passagem do tempo – e não (apenas) no olhar dos homens. É só ao incorporar a recusa em envelhecer que a rainha se torna de fato um objeto.

Alguma semelhança com nossa época? Me parece que toda. O terror só é terror se houver estranhamento. Estranha-se aquilo que, no fundo, é familiar. O terror é o conhecido que fingimos desconhecido, é nosso estranho íntimo. Se fosse totalmente estranho, não captaria nossa atenção. É preciso ser um estranho que ecoa no que estranhamos em nós. Ou um estranho que reconhecemos em nós, mesmo sem jamais admitirmos conscientemente. Para isso serviram desde sempre os contos de fadas, ao nos dar a possibilidade de lidar com nossos fantasmas e medos através dos personagens, nossos outros arquetípicos. Nesse sentido, a rainha má é um conto de fadas para mulheres adultas.

É fácil escandalizar-se com a louca obcecada pela juventude que persegue as mais jovens, prontas a desbancá-la em beleza, como uma serial killer gótica. Mas é menos fácil escandalizar-se com o número cada vez maior de mulheres sem nenhum problema de saúde ou deformação que se submetem a uma cirurgia na tentativa, ao final sempre ilusória, de eliminar as marcas da passagem do tempo.

Para nós tornou-se corriqueiro, mas para alguém de outra cultura ou de outro tempo, soaria como um filme de terror ser apagada por uma anestesia e ser cortada por um bisturi. Sangue, gordura, fluidos. Tira um naco de um lugar para botar em outro, implanta um corpo estranho em formato de bola no peito, estica a pele do rosto com fio de ouro. Arrisca-se a morrer, apenas para submeter-se ao padrão estético do momento ou apagar rugas que voltarão mais cedo do que tarde. Conforme o lugar de onde se olha para essas cenas, hoje banalizadas, é um filme dos mais aterrorizantes.

A diferença, com a rainha má, é que ela deu um jeito de que as outras paguem o preço de sua incapacidade de suportar o envelhecer. Mas só até certo ponto. Porque nem mesmo a sua mágica é suficiente para eliminar as marcas dentro dela, não há feitiço capaz de apagar o vivido. E, povoada por memórias que sangram sem a chance de virar cicatrizes, ela naufraga em desgosto, a tal ponto que se torna difícil compreender por que, afinal, ela quer tanto ser jovem e ser bela, se continua tão desgraçadamente infeliz com sua existência.

Como o belo corpo e o belo rosto da rainha má, parece-me que os corpos e os rostos flagelados de hoje são mais para serem olhados do que tocados. Cortados, manipulados e emendados pelo bisturi do cirurgião, em geral um homem, este corpo não é feito para se fundir com nenhum outro. É mais um objeto que se oferece como imagem, apenas. Porque o toque sempre deixará uma marca. O toque é sempre um risco. E, como para a rainha má, para muitas mulheres é melhor não se arriscar a ser alcançada por um outro que verá além do que é dado para ver, verá também as marcas que não podem ser apagadas. E fará outras marcas, que também não poderão ser eliminadas. Viver, afinal, é ser marcado e marcar.

O corpo e o rosto da rainha má não são para ninguém – nem para si mesma, como ela parece se iludir. O espelho mágico, aquele que olha e olha para além do que está na sua frente, é um dos grandes achados dessa versão. Ao ser invocado, ele desprega-se da parede e materializa-se como uma entidade masculina. Em vez de refletir a imagem externa da rainha, porém, ou lhe mostrar o mundo além do castelo, o espelho dá voz à sua imagem interior, ao avesso da rainha, ao lado de dentro. Vocaliza seus medos mais profundos e, de certo modo, a autoriza a praticar seus crimes, mas é apenas um eco.

É um diálogo consigo mesma – e não com um outro o que acontece nesse momento. A rainha má, desesperada por beleza e juventude, movida por um desejo que ela diz ser do mundo masculino e não dela, não é refletida nem mesmo pelo espelho. E, sem o olhar de um outro que nos reconheça, não há como se saber. É assim que ela se perde, porque não há quem a encontre.

É no medo de se perder no outro que a rainha se perde de fato. E, ao tentar matar Branca de Neve, na cena clássica da maçã envenenada, a mãe-madrasta vai desferindo conselhos à filha-enteada. “Você sempre se perde quando se deixa levar pelo amor”. E então, totalmente perdida, grita como uma louca que não se escuta: “Você tem sorte de morrer antes de envelhecer”.

E fracassa. É claro que fracassa. Nós todos conhecemos o final.

(Publicado na Revista Época em 11/06/2012)

 

A viagem de duas bolivianas com doença de Chagas para salvar suas vidas

Cristina e Maria estão entre os milhares de camponeses da região de Narciso Campero, na Bolívia, que convivem com o “Vinchuca”, o barbeiro transmissor da doença

ELIANE BRUM (TEXTO) E VÂNIA ALVES (FOTOS)
De AIQUILE

NO CORAÇÃO Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

NO CORAÇÃO
Maria Rodríguez Barrios (à dir.) no quintal da casa de Cristina Salazar López. Elas fizeram uma viagem a Cochabamba em busca de um marca-passo (Foto: Vânia Alves)

Capítulo 1
No princípio, era um rufar de asas

A Vinchuca sempre esteve lá. Cada homem ou mulher dos vales e morros da Bolívia perguntou aos que vieram antes e obteve a garantia de que ela sempre esteve lá. Não há notícia de um mundo sem Vinchuca. Desde cedo as crianças aprendem a reconhecer o arranhar de suas asas e patas nas paredes de barro antes de atacar. “Soa como as folhas secas do milho ao vento”, dizem Cristina Salazar López e Maria Rodríguez Barrios. “Escutamos e então sabemos que elas estão lá. No escuro. Sobre nossas cabeças. Esperando para cair sobre nossos corpos.”

Quando ouviram a Vinchuca pela primeira vez, Maria e Cristina souberam, por intuição, que seria o som de sua vida. Na porção rica do mundo, a parte a que elas não pertencem, os vampiros da ficção movimentam milhões de dólares na indústria do entretenimento. Ali, nos vales da Bolívia, é como se os vampiros existissem. E milhões é a ordem de grandeza que mede o número de suas vítimas na América Latina.

São muitos os seus nomes. Barbeiro, chupão, bicho-de-parede, cascudo ou fincão. Vinchuca é seu nome em quéchua, a língua falada desde antes dos incas. Significa “deixar-se cair”. A cada noite centenas desses insetos de seis patas e até 3 centímetros de comprimento se alinham sobre o teto de palha e as paredes de barro das casas dos camponeses.

Quando homens, mulheres e crianças adormecem, despregam-se. Aterrissam sobre eles. Enfiam seu ferrão e sugam até seu corpo inchar. Empanturrados de sangue, defecam. Quando suas vítimas se coçam, em um sono agitado pela dor das picadas, o parasita letal que habita suas fezes invade o corpo. Ou as contamina pela boca e pelos olhos. É o Trypanosoma cruzi, identificado pelo sanitarista brasileiro Carlos Chagas na primeira década do século XX.

De cada 100 infectados, 50 desenvolvem a doença. Nestes, lenta e silenciosamente o protozoário vai levando seu hospedeiro ao fim, ao minar coração, esôfago, intestinos e sistema nervoso central. Mais de 10 milhões de pessoas estão infectadas no mundo. E, a cada ano, surgem 40 mil novos casos e cerca de 14 mil doentes morrem.

Cristina, Maria e milhares de camponeses da região de Narciso Campero, província fincada ao sul do departamento de Cochabamba, na Bolívia, vivem, noite após noite, um filme de terror com bem mais de duas horas de duração.

Capítulo 2
Como Maria e Cristina se uniram pelo coração

Os pés de Maria Rodríguez Barrios hesitavam ao entrar no ônibus para Cochabamba. Um avançava, o outro recuava. Ela era quase empurrada. Vestia sua melhor pollera, a saia rodada das cholas (bolivianas de origem indígena), a tradicional blusa de botões, uma trança negra de cada lado da cabeça e o chapéu-coco. No peito, as folhas de coca para proteção. “Eu não vou”, disse à agente dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que a levou até o ônibus. “Você precisa ir. É sua chance de botar o marca-passo e salvar sua vida. Você não quer ver seus filhos crescer?” Maria queria. Mas o medo a fazia retroceder.

Maria tinha pavor de que seu coração parasse de repente, aos 38 anos. Morte súbita como a de seu pai e de sua mãe e de quase todos que conhecia. Maria tinha mais medo da cidade. E do que os homens e mulheres brancos da cidade poderiam fazer com ela. Não por vê-la, mas por ignorá-la.

Em segredo, Maria armou um plano. Assim que o ônibus partisse, ela pediria ao motorista para descer e voltaria para sua aldeia. Ela morreria, mas não seria humilhada na cidade. Segura de sua escolha, virou a cabeça bonita para espiar a passageira que subia as escadas do ônibus, com sua pollera de veludo e um ar de grande dama.

Os olhos líquidos de Maria encontraram a rocha dos olhos de Cristina Salazar López. Seus ouvidos treinados de camponesa puderam adivinhar que o coração de Cristina, aos 47 anos, era doente como o seu. Cristina ajeitou as dobras da saia ampla no banco ao lado de Maria. E disse, em quéchua: “Você não quer viver? Cuidaremos uma da outra”.

E foi assim que Maria e Cristina iniciaram uma longa travessia para salvar o próprio coração. “Por que você tem tanto medo?”, perguntou Cristina. “Porque os da cidade não nos enxergam. Não tenho para onde ir nem tenho dinheiro. E não entendo o castelhano, e eles não entendem o quéchua. Somos cholas. E eles nos desprezam.”

Cristina conhecia esse desprezo. E o usara para esculpir seu rosto de bronze com uma dignidade altiva e uns olhos de pedra viva que não recuavam diante de ninguém. “Escuta. Sou chola também. E como chola fui vereadora. E cheguei a ser prefeita da cidade de Aiquile por três meses. E falaram, e conspiraram, e tentaram me derrubar. E toda vez que tinha sessão me escolhiam para ler porque eu não sabia. Então fui para a escola depois de velha para aprender a ler e fui estudar as leis com um advogado para que não me enganassem. E descobri as fraudes deles, e os denunciei. Com as minhas polleras, as minhas tranças e falando apenas quéchua. Esta é a segunda vez que coloco marca-passo. O primeiro coloquei com dinheiro emprestado e ainda estou pagando. Sou pobre e só consigo comprar meus remédios porque as pessoas conhecem meu sofrimento e me dão dinheiro no ônibus.” E começou a chorar, porque receber esmolas a aviltava.

Cristina terminou seu discurso num soluço. Maria perdeu a vontade de fugir. Ela agora queria ficar. Suas mãos buscaram-se no banco encardido do ônibus. Reconheceram-se pela rugosidade dos dedos de quem trabalhava desde menina e tinha na terra entranhada nas unhas uma segunda pele. E, ao silenciar, perceberam que a primeira das cinco horas de viagem havia passado.

Capítulo 3
A gênese da Vinchuca, segundo Maria e Cristina

BARBEIRO Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

BARBEIRO
Na foto acima, uma agente dos Médicos Sem Fronteiras explica a doença de Chagas a moradores da região boliviana de Narciso Campero. Na abaix, o barbeiro – ou “Vinchuca”, seu nome em língua quéchua. Na vida dos camponeses, o inseto é como um vam (Foto: Vânia Alves )

Ao desembarcar em Cochabamba, Maria descobriu que a cidade era como ela tinha imaginado. Entre ruas largas e olhos indiferentes, Cristina não era apenas sua bússola, mas toda a sua geografia. Era sua aldeia e também os morros, as espigas do milho e o rio onde ela se banhava aos domingos. Cristina era o mundo que sabia dela, Maria. E foi assim que à noite elas decidiram dormir na mesma cama para não se perder uma da outra e também de si mesmas, enquanto esperavam a cirurgia que emprestaria um compasso regular a seu coração.

Foi Cristina, sempre ela, quem começou a contar: “Desde que o mundo é mundo a Vinchuca existe. Aprendi a reconhecer o som de suas asas quando se enfileiravam no teto e nas paredes para esperar nosso sono. Um som que podia ser doce, mas que nos apavorava. Nesse tempo não sabíamos que elas nos matavam, mas sofríamos porque chupavam nosso sangue e às vezes nossos rostos e olhos amanheciam inchados. Quando acordávamos com a dor da picada e acendíamos a lamparina, descobríamos que não existiam mais parede nem teto. Havia tantas vinchucas, uma ao lado da outra, que não podíamos mais enxergar o que estava por trás. Então as esmagávamos com nossas mãos e com nossos pés, e as paredes eram pintadas com nosso sangue. Quando as queimávamos, era esse o cheiro. De sangue velho. E pensávamos que não existia em nenhuma parte uma vida sem vinchucas e noites sem que nosso sangue fosse sugado por elas. Então brincávamos de matá-las, sem saber que elas já tinham nos matado”.

Eram mulheres, agora. Mas continuavam assustadas. “Minha mãe nos dizia que uma em cada 100 vinchucas estava envenenada. E por isso as recolhíamos numa panela à noite e as queimávamos em água quente”, disse Maria. “Mas não sabíamos que causava essa doença. Como é mesmo o nome? Acho que Chagas é um nome dado pelos Médicos Sem Fronteiras.”

Cristina estava pregada na infância. “Maria, os dois primeiros que morreram por causa da Vinchuca na minha família foram meus irmãos. Eles nem mesmo chegaram a ficar doentes, ainda eram crianças. Meus irmãos dormiam de boca aberta, e as vinchucas se enfiaram na sua boca até a garganta. Não na mesma noite. Primeiro um, depois o outro. Você sabe como elas são, têm as patas ásperas. Meus irmãos se engasgaram. E morreram com as vinchucas entaladas, sem ar.”

Maria sentiu uma pontada no coração, sem saber se era da doença ou da angústia. Mas ela se envergonhava de pedir para Cristina parar. “Então catamos todas as vinchucas, e abrimos um buraco, e as queimamos, e as enterramos. Meu irmão mais velho disse: ‘Pronto, sepultamos as vinchucas’. Nas primeiras noites havia menos, mas elas foram voltando. Maria, as vinchucas renasceram.” Era uma história de terror, mas Cristina e Maria não sabiam. Para elas, era apenas a vida que conheciam. A vida que as levara até aquela cama na cidade grande.

Capítulo 4
E um dia os homens desembarcaram na vida de Maria Cristina

PRÊMIO Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

PRÊMIO
Para alcançar os doentes, a equipe dos Médicos Sem Fronteiras precisa atravessar o rio que corta uma aldeia boliviana. No livro Dignidade!, nove escritores contam a experiência humanitária – 28 mil profissionais de saúde em 65 países – que recebeu o Nobel da Paz de 1999 (Foto: Vânia Alves)

“Como é seu marido, Maria? É bom ou mau?”, perguntou Cristina, para que a noite virasse logo dia. Não havia vinchucas naquele quarto de cidade. Mas o mal já respirava dentro delas, e era tarde demais para arrancá-lo do corpo. Então era preciso falar. Emendar uma história na outra para ter certeza de que havia uma vida. E, se acontecesse o pior, a existência estava lá, presa na teia das palavras.

“Meu marido é bom, ele não me bate”, respondeu Maria. “E como você o conheceu?”, disse Cristina. “Eu estava pastoreando as ovelhas, e ele surgiu no canto do morro. Ele me ofereceu uns doces, e comemos juntos. Perguntou se eu queria me casar com ele, que não era bonito, era bem feio até. Perguntei a ele: ‘Você vai me tratar bem ou vai me pisar?’. Ele garantiu que nunca bateria em mim. E isso me animou. Então aceitei, e duas semanas depois ele apareceu na minha casa com os pais.”

Cristina queria mais: “E ele te pegou naquela noite mesmo?”. Maria se torceu na cama. Ela tinha vergonha de falar. Mas respondeu, porque Cristina era mais velha e já tinha se alojado na porção sadia de seu coração. “Você sabe, Cristina, que os homens não perdoam, mas ele estava cansado, tinha vindo de longe, e dormiu. Depois, pedi que ele esperasse, e ele esperou. Só nos casamos um ano depois, quando eu já estava grávida da minha filha. E, como a tradição manda, foi ele quem fez o parto.”

Cristina sentou-se na cama: “E como foi?”. Maria queria ficar séria, mas não conseguia. “Você sabe, Cristina, que só é lindo dar à luz porque nos dão caldo de galinha. Por isso as mulheres ficam grávidas a cada ano. Para tomar caldo de galinha pelo menos uma vez.” As duas se abraçaram e riram. E mais riram porque não podiam rir. E por um momento se esqueceram de que eram mães e esposas, e camponesas, e quase mortas.

“E você, Cristina, como se enamorou?”, perguntou Maria, quando o riso estancou e a escuridão trouxe um frio que não vinha de fora. “Eu estava apaixonada por outro. Muito apaixonada. Um curandeiro viu meu futuro nas folhas de coca e disse que eu não me casaria com o homem que amava, mas com um muito mais pobre. E assim foi. Este, que seria meu marido, trabalhava na oficina de costura comigo, mas eu não gostava dele. Um dia cheguei em casa, e ele estava lá com sua mãe. Meus pais disseram que eu tinha dado esperança, que, se não aceitasse, seria considerada uma mulher perdida. Eu aceitei, Maria. Mas chorava. E então meu marido me levou para sua aldeia.”

Maria correu os dedos pela trança negra de Cristina. Tão tímida que nunca soube se Cristina chegou a perceber. “E você o esqueceu?” A voz de Cristina era grave agora. “Eu o enterrei, Maria. Porque minha mãe disse que uma mulher podia ser tocada por um só homem na vida. Eu o enterrei, porque agora eu tinha um marido.”

Maria percebeu que Cristina não queria mais falar, mas o sono escapara por alguma fresta da janela, e a angústia passeava por seu peito com pés de ferro. Insistiu. “E seu marido é bom?” A voz de Cristina se suavizou. “Ele é bom, Maria. E gosta de mim. E, porque ele é bom e se preocupa comigo e não bate em mim, passei a gostar dele. Ele não é bonito nem simpático, mas acabei por lhe querer bem. Dançamos muito na festa de casamento, e foi um dia feliz. Depois, ele me pegou.”

Maria hesitou antes de perguntar. Mas talvez não houvesse outra chance, e ela nunca tinha conhecido uma mulher com tantas respostas. “Pode ser bom, Cristina?” Cristina quase podia colher a urgência na voz de Maria. E por isso afagou sua mão. “Tudo depende do homem, Maria. Se ele te trata bem, se te abraça, se te acaricia, então você pode gostar. Mas, se ele vier bêbado e fizer à força, você não pode gostar. Aí, como as pessoas dizem, você está com seu coração seco.”

Maria fez um silêncio espichado, antes de voltar a perguntar: “E havia Vinchuca na tua primeira vez, Cristina?”. Dessa vez, Cristina segurou o riso entre os dentes: “Maria, você acha que a Vinchuca respeitaria minhas bodas?”. As duas voltaram a se abraçar, os corpos sacudidos por gargalhadas. “Eu devia ser homem, não mulher”, disse Cristina, de repente. “Há tanta dor em ser mulher. O trabalho da mulher nunca acaba.” Maria concordou. “Se existir uma outra vida, Maria, eu quero voltar homem. Você sabe por quê?” Maria achava que sabia. “Para casar-me contigo!” Não falaram mais naquela noite. E demoraram a dormir.

Capítulo 5
Maria e Cristina descobrem que seu coração é grande, mas não é bom

Naquela noite havia um medo novo. Elas teriam de atravessar a cidade na madrugada para entrar na fila do hospital e fazer os exames. A cidade já era assustadora quando havia sol. Mas ao sol elas eram invisíveis. À noite, temiam que as enxergassem. No campo haviam dito a Maria que as mulheres da cidade iriam atacá-la e arrastá-la para um beco onde os homens a violariam. E foi isso o que ela garantiu a Cristina que aconteceria.
A aflição era ainda mais urgente porque o dinheiro acabara. E agora elas não sabiam como comer até o dia da cirurgia. Deitadas na cama para esperar a hora de enfrentar a cidade, agarraram-se às mãos e às palavras com uma força apressada. Era preciso encontrar uma história, mesmo que fosse triste.

“Maria”, disse Cristina, “aos 16 anos eu senti o veneno da Vinchuca pela primeira vez. Era como se uma faca perfurasse meu coração.” Maria não se moveu. Apenas apertou a mão de Cristina, para que ela soubesse que estava escutando. “Minha mãe me disse que uma pessoa só poderia ter duas pontadas como esta na vida. Na terceira, morria. Fiquei com muito medo de morrer e chorava muito. Mas a terceira pontada veio, e eu não morri. Eu não sabia que era a doença de Chagas, nem minha mãe. Ela dizia que, como a Vinchuca sugava nosso sangue todos os dias de nossa vida, nos tornávamos fracas.”

Maria também se sentia assim, exaurida de tudo. “Cristina”, disse ela. “Como vamos fazer para comer se não temos mais dinheiro?” Cristina não gostava de ser interrompida. “Maria, vai acontecer alguma coisa. Não te preocupa, o dinheiro vai aparecer.” Maria sabia que, se o dinheiro não brotava nos morros, onde a terra era fértil, muito menos no concreto da cidade. Mas calou-se.

“Escuta, Maria. Estou te contando uma história. E agora vou chegar na parte mais triste”, disse Cristina. “Só descobri que ia morrer aos 35 anos, quando já tinha me mudado para Aiquile com meu marido e meus filhos. No hospital me disseram que meu coração tinha se tornado grande demais e me deram um mês de vida. Não contei a ninguém, Maria. Mas comecei a me preparar para a morte. Depois, procurei outro médico. Sabe o que ele fez, Maria?” E Cristina não esperou Maria responder. “Ele me golpeou. Me deu uma bofetada no rosto e depois me deu outra. ‘Você quer morrer porque é frouxa’, ele dizia. Não há um remédio para você, não há nem mesmo uma aspirina para você. É você que precisa reagir.” Maria se ergueu na cama. “O doutor te golpeou?”

Cristina fez um silêncio de lonjuras antes de responder. E Maria pensou que podia fatiar aquele silêncio. “Me golpeou, Maria. E fiquei com muita raiva dele. Ele me batia, e eu chorava. E, depois de saber que era Chagas o mal da Vinchuca, descobri que meus pais morreram de Chagas, que nove dos meus dez irmãos têm Chagas, que meu marido tem Chagas, e minha filha mais velha tem Chagas. E talvez o mais novo também tenha. Mas quero viver, Maria. Para contar essa história.”

Maria temeu a raiva de Cristina. Mas lembrou que ela também tinha raiva. E, se Cristina podia ter raiva, então a ela, Maria, também era permitido. “Faz três anos que comecei a ouvir um zumbido na cabeça, Cristina. Quando desperto, e até agora mesmo, escuto um zumbido. Fui ao curandeiro para que enxergasse a verdade nas folhas de coca. E ele me disse que eu estava com susto de chuva ou de touro. Me deu umas ervas, e melhorou um pouco. Só soube o que tinha meses atrás, quando os Médicos Sem Fronteiras apareceram e fizeram exames em todos nós. Me disseram que eu estava muito doente e precisava colocar um relógio no coração. Fiquei com muita raiva e olhei para todos os lados, com medo que alguém estivesse ouvindo. Você sabe bem como é o costume, Cristina. Se soubessem que eu estava doente, as pessoas se alegrariam. E começariam a falar que eu morreria em breve.”

Maria sentia raiva de quem havia dado a notícia. Cristina tentou interrompê-la, mas ela não deixou. “Espera, Cristina, agora compreendo. Meses atrás eu não compreendia. E não contei a ninguém sobre meu coração. Só ao meu marido, que me aconselhou a esquecer e a seguir a vida como se aquele dia não tivesse existido. Então recebi o aviso de que tinha de ir ao cardiologista em Aiquile. Fui caminhando por quilômetros, mascando a coca com gana. Na cidade, eu tinha medo de perguntar e, quando perguntava, nem sempre me entendiam. Quando finalmente alcancei o médico do coração, ele me disse: ‘Ah, então os come-vinchucas mandaram você para cá?’. É assim que o doutor chama os Médicos Sem Fronteiras, de come-vinchucas.”

Cristina mexeu-se na cama, incomodada. “Não fui eu que chamei assim, Cristina, foi o doutor. E, depois de escutar meu coração, ele disse que o diagnóstico dos come-vinchucas estava certo. Ele disse mais, Cristina: ‘Você vai precisar de um marca-passo, mas vocês, camponeses, não têm dinheiro nem para botar uma roupa boa no corpo, imagina para um marca-passo. Custa US$ 5 mil. Você conhece dólar? Claro que não. Então vai embora, anda, vai atrás dos come-vinchucas para ver se te ajudam’. E eu fui. E por isso estou aqui. E agora entendo que meu pai e também minha mãe morreram de Chagas, e quatro dos meus sete irmãos têm Chagas. Os outros três ficaram com medo de fazer o exame, mas também devem ter o veneno porque não tinham como escapar. Meu marido disse que vai curar o Chagas com álcool. E que, se eu tomasse bastante álcool, também já estaria curada. Mas, você sabe, Cristina? Se eu não morrer nessa cirurgia, digo a você que nunca, mas nunca mesmo, ninguém da aldeia saberá que tenho um relógio dentro do peito. Porque as pessoas dizem que quem tem marca-passo não pode comer, não pode trabalhar, não presta para nada. Nunca vou contar para que não fiquem comentando que minha vida será curta.”

Maria parecia diferente. E Cristina estranhou. Sem saber o que dizer, Cristina perguntou, justo ela, que sempre foi uma mulher de pontos-finais. “Maria, será que já não é hora de andarmos?” E Maria, a mulher das interrogações, respondeu com uma exclamação: “Não! Ainda é cedo!”.

Capítulo 6
Epílogo

Na madrugada em que Maria e Cristina enfrentaram a cidade grande para alcançar o hospital, elas acharam 300 bolivianos no chão. Maria hesitou antes de juntar o dinheiro. Cristina mandou que pegasse e o escondeu no sutiã. Foi assim que se salvaram da fome. E puderam esperar pelo relógio que esticaria o tempo de sua existência.

Maria e Cristina colocaram um marca-passo e estão vivas. Na cirurgia, Cristina surpreendeu os médicos ao cantar com o peito aberto. Ela temia que, se morresse, Maria fugisse. Então cantou. Hoje, de tempos em tempos, Maria vence o medo, caminha durante horas pelos morros e alcança Cristina na pequena cidade de Aiquile. As duas se abraçam e sincronizam seus corações. Ao definir o amor que sentem uma pela outra, Maria e Cristina são uníssonas: “Nesta vida, somos irmãs”.

Se existir uma outra, me convidam para ser madrinha de seu casamento.

(Esta reportagem é a versão editada de uma das histórias do livro Dignidade! – obra comemorativa aos 40 anos de atuação dos Médicos Sem Fronteiras que chega ao Brasil nos próximos dias, pela editora LeYa. Nove escritores de diferentes partes do mundo, entre eles Mario Vargas Llosa, acompanharam o trabalho dos MSF nos lugares mais devastados e invisíveis do planeta e depois contaram sua experiência.)

(Publicado na Revista Época em 09/06/2012)

 

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