Último amor

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ana Cecília era linda, ele percebeu à primeira vista no primeiro dia de aula. Ana Cecília era linda e não era para ele, ele percebeu à segunda vista no primeiro dia de aula. Como um homem pode ter esta exata noção aos cinco anos de idade? Pedro Luiz tinha. Ana Cecília passaria o ano inteiro, a vida inteira, sem saber que ele, Pedro Luiz, existia. Ela na sua loirice de europeia lá do topo do mapa. Ele em sua morenice de índia com português metidos em suores tropicais — e algum parente do Kadafi pendurado num galho atravessado da árvore genealógica. Apaixonou-se possivelmente porque era impossível. Não há estatísticas confiáveis, mas todo primeiro amor é impossível. Para ser amor e ser primeiro precisa ser impossível. O dele era impossibilíssimo.

Ela dava estrelinhas como uma cheerleader americana no recreio. Ele ficava lá, desenhando dinossauros na areia. Ela desfilava abrigos Adidas e tênis All Star multicoloridos. Ele tinha ganhado um Adidas que fora um sacrifício familiar e envolveu até o cofrinho de porquinho da avó, mas sentira-se tão responsável por aquela Ferrari das roupas esportivas que cresceu antes que se autorizasse a usar. Ela beijava fotos dos Menudos, ele imitava Sidney Magal.

Mas Pedro Luiz amava Ana Cecília a ponto de fantasiar morrer por ela na hipótese de uma hecatombe nuclear. E um dia, ele nunca pôde ou quis esquecer, numa manhã ensolarada da primavera paulistana, Ana Cecília parou diante dele e estendeu a bola para que jogasse Queimada no time dela. Ele olhou para ela e a achou tão linda, mas tão linda, que ficou cego naquele instante. E mudo. Ana Cecília, com o narizinho petulante começando a tremular de irritação, ordenou que ele pegasse a bola. Mas ele só pensava: ela está falando comigo, ela está falando comigo, ela está meeeesmo falando comigo.

Pedro Luiz paralisou. Por amor. Por primeiro amor. E antes que conseguisse falar ou mover as pernas, ouviu Ana Cecília entregar a bola a um rival: “Pega você que este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.

Depois de a vida toda passar pela sua cabeça como num filme ruim, bem ruim, e com a ajuda de um amigo fiel, Pedro Luiz conseguiu fazer suas pernas andarem até um canto do pátio da escola. E lá ficou todo para dentro como um tatu-bola. Pensando que sua vida nem tinha começado e já acabara. Mas, como todos os meninos, Pedro Luiz deu um jeito de seguir espichando e fazendo concurso de arroto e colecionando figurinhas e rolando com a cachorra no quintal. Um dia, quando se deu conta, tinha até um arremedo de bigode.

Esquecer, porém, Pedro Luiz nunca conseguiu. Ana Cecília determinara toda a sua vida amorosa dos cinco anos em diante. E Pedro Luiz continuou sem saber o que fazer a cada vez que se apaixonava. E seguiu sem conseguir se mexer. E se achando feio e desengonçado e moreno demais. E só achando a moça linda, tão linda. E demais.

Então, numa noite na esquina da Ipiranga com a Avenida São João, numa festa no Bar Brahma, Pedro Luiz viu uma mulher de minissaia, coturnos e cabelos curtos e pretos, dançando como se fosse uma autista. E amou. “Chega lá e fala com ela sobre a cena londrina”, intimou um amigo. “Ela com certeza conhece a cena londrina.” Mas Pedro Luiz só sabia ser ele mesmo. E não sabia onde ficava a cena londrina. Mas foi possuído por uma coragem tomada emprestada em quatro doses de uísque e foi dançando no seu estilo de lado, sapateando sem mexer os quadris nem morto, rumo à mulher dos seus sonhos. E quando estava chegando perto, quase lá, se atrapalhou com a beleza dela e virou o copo de uísque arruinando horas de produção da cena londrina. Ficou ali, de cabeça baixa, balbuciando um pedido de desculpas impossível de ouvir. E esperando a frase que todos ouviriam, acima dos decibéis do bate-estaca: “Este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.

Em vez disso a mulher de minissaia e coturnos e cabelos curtos e pretos que na verdade eram pintados sorriu. E Pedro Luiz compreendeu que não entendia nada de primeiro amor, mas entendia de último.

Osvaldinho Tripé

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Todos os nomes, personagens, eventos e circunstâncias desta crônica são fictícios. Qualquer semelhança é vil coincidência.

Há poucas coisas que jornalistas reclamam mais do que cobertura de Carnaval. Eu, ao contrário, cobri o carnaval riograndenortino por mais de uma década e até gostava. Talvez porque tenha tido uma estreia um tanto heterodoxa. Graças a um folião que muito, muito mais tarde, se imortalizou como Osvaldinho Tripé.

Havia na capital do Rio Grande do Norte, que aqui nesta crônica não chamaremos de Natal, um baile famoso pela putaria. Chamava-se, singelamente, de Baile do Taiti. Uma espécie de evento pré-carnavalesco. Antes de chegarmos aos acontecimentos propriamente ditos, é preciso compreender o modus operandi da tradicional sociedade riograndenortina. Depois das festas natalinas ou assim que os pimpolhos se livrassem das recuperações escolares, as famílias de classe média rumavam para praias de mar aberto para descansar passeando nos shoppings e supermercados onde com sorte sempre poderia aparecer uma marca nova de sabão em pó.

Os maridos, coitados, permaneciam labutando num calor que por esta época às vezes acontecia de superar os 40 graus. Tratava-se de casamentos bem tradicionais, cada um entenda o termo como quiser, e era com estoicismo que os abnegados senhores resistiam em ficar longe de suas esposas e crianças sempre tão encantadoras. Mal viam a hora de segui-los para se empapuçar de cerveja e jogar as latinhas na areia enquanto falavam que a praia decaíra muito, com hordas de farofeiros desembarcando dos ônibus a cada final de semana. E isso tudo aconteceu muito antes da ascensão da Classe C.

Digo isso para que os leitores possam compreender que ninguém poderia culpar esses pobres viventes de, no deserto escaldante e solitário, se refrescarem um pouco no Baile do Taiti. “Vou ter de ficar na cidade mais um pouco, Mãezinha”, era a frase padrão. “Mais uma ou duas reuniões e eu fecho o negócio. Logo logo estou aí com vocês. Não vejo a hora!” Ou, em versão truculenta: “Porra, criatura, tu não vês que estou trabalhando enquanto tu estás com a bunda de fora aí na praia?” As variações são infinitas. O fato é que na época do Baile do Taiti a população masculina da cidade que não é Natal superava em muito a feminina, pelo menos a feminina composta por esposas com registro em cartório.

Coube a mim a missão de cobrir o evento que abriria de vez, escancararia até, a folia de Momo na capital do Rio Grande do Norte que não é Natal. O editor acreditava que eu possuía nos meus olhos míopes certo viés antropológico. E lá fui eu, bastante empenhada em enxergar a notícia, mas logo deparei com o primeiro de muitos obstáculos. Era difícil enxergar a notícia na escuridão.

O baile se espraiava por grutas e cavernas, tais quais existem no Taiti real, como jurava o organizador do evento, e eu por mais que apertasse os olhos e desembaçasse os óculos só conseguia avistar um movimento frenético. Ao me aproximar, porém, nem sempre conseguia saber onde se encontrava a cabeça do entrevistado, o que me rendeu alguns constrangimentos para sempre lembrados por colegas sem compaixão por pobres focas em ambiente hostil. Esta parte eu considero uma injustiça, porque não era falta de experiência, como me acusaram depois. Como eu poderia saber que uma bunda poderia chegar àquela altura, afinal? E que aquela outra coisa, deus me livre, não era o microfone do colega da Globo? Como prezo pela honestidade, especialmente naquilo que é escrito, preciso admitir que só notei o engano ao não receber resposta alguma depois de repetir por três vezes a pergunta. E eu só tentava saber se estavam se divertindo no baile! Custava?

Em seguida percebi que sendo uma repórter de 22 anos tentando estabelecer contato, o melhor teria sido ir fantasiada de Robocop, apesar da pouca afinidade com o tema central. Em pouco tempo eu já tinha descoberto uma vocação insuspeitada de contorcionista. Mas, repórter intrépida que sempre fui, fiz lá o meu trabalho da melhor forma possível. E o fotógrafo, muito, mas infinitamente mais feliz do que eu, fez o dele.

E aí é que chegamos ao ponto depois de algumas digressões necessárias. Estampado na capa do jornal, lá estava o sujeito, sem camisa e com um belo colar taitiano no pescoço, com duas taitianas típicas no colo, que brincavam de deixar manchas de batom. O passatempo, garantiu-me o organizador do evento, é muito difundido naquela paradisíaca ilha da Polinésia francesa e brinca-se totalmente sem malícia. A favor do editor, eu posso afirmar em juízo que era uma das poucas fotos publicáveis num jornal de família como era o Meia-Noite.

Ao comprar o periódico na banca do supermercado da pujante praia de Canoa Furada, porém, a esposa do sujeito teve outra interpretação. “Não é o Osvaldo, não, imagina. Este aqui é muito mais gordo”, apressou-se a dizer uma amiga. “É óbvio que não é ele, olha bem para este nariz de batata”. E foram saindo para a esquerda, como o leão da montanha, com pressa de ligar para seus próprios maridos.

A pobre esposa do Osvaldo, sim, porque não havia dúvidas de que dele se tratava, como mãe extremada que era, tratou de comprar o maior número de exemplares possíveis e explicar às crianças que o papai ainda estava na capital riograndenortina porque enfrentava problemas com um sósia que andava se passando por ele e causando constrangimentos. Que mulheres de Atenas, que nada, as da cidade que não era Natal tinham elevado o patamar da categoria.

Osvaldo, obviamente, como todo canalha que se preze, jurou pela própria mãe que não era ele. A certa altura acho mesmo que deve ter acreditado que não era ele. E, depois de passar o verão de castigo no clube da cidade que não era Natal, arrasado por não poder se empapuçar de cerveja na areia nem balançar a pança em partidas de futebol para depois se empapuçar de cerveja de novo, acabou perdoado. Em algum momento, com a ajuda das amigas, que por acaso tinham maridos que também haviam ficado na cidade na boa companhia do Osvaldo e não pretendiam investigar coisa alguma, a esposa acabou acreditando que não era mesmo o “seu” Osvaldo. “Imagina se o Osvaldo botaria gel no cabelo, justo o Osvaldo que é tão certinho!”

Foi assim que minha estreia rigorosamente jornalística no baile do Taiti não acabou com casamento algum nem com máculas – graves – na minha carreira. Muitos anos se passaram, para o meu alívio surgiram coberturas mais instigantes e acabei me tornando uma repórter com boa reputação e tudo o mais. E lá estou eu em mais um plantão carnavalesco – na minha vida foram 11 no total –, quando sou abordada pelo homem esbaforido, suando em cascata com um jornal na mão, parar bem na minha frente.

— Porra! Vocês querem me foder? Querem acabar com o meu casamento? É este o objetivo de vocês? Se for, diga logo porque eu vou começar a arrebentar esse pasquim agora!

E já ia virando uma cadeira no chão, quando eu o agarrei pelo braço e disparei meu olhar mais ameaçador dizendo: “Não me obrigue a chamar a polícia”. Naquela época, trabalhar em jornal era uma diversão. Não havia a segurança de hoje, e o povo ia mesmo até onde os jornalistas estavam. E vice-versa. Não passava dia sem que houvesse uma invasão das ruas, em geral hilária. Toda Páscoa, por exemplo, aparecia por lá o homem do Santo Sudário. E toda Páscoa nós examinávamos a relíquia legítima e dávamos nossos palpites e às vezes até aparecia um especialista. Agora, não. Trabalhar em redação virou um tédio, com a rua barrada na porta.

Mas esta é apenas uma digressão. Mais uma. Acho que estou ficando velha e nostálgica. O fato é que, sozinha ali no meu plantão, eu pedi calma ao homem fora de si. Tenha calma, por favor, que eu nem sei quem é o senhor. Eu sou este infeliz aqui. E atirou o jornal na minha mesa com estardalhaço. Olhei bem a capa. E não é que era ele mesmo?

Lá estava Osvaldo, bem mais jovem que o da minha frente, lambuzando-se no Baile do Taiti. Hum…. eu fiz. É o senhor, então. Olhei a data na foto. Conferia. Dez anos depois, Osvaldo estava de volta à capa do jornal ilustrando uma reportagem que anunciava o Baile do Taiti marcado para aquela noite.

Ofereci uma cadeira ao Osvaldo. Busquei um café. Perguntei se queria com açúcar ou adoçante. Tentei em vão explicar a ele como os arquivos dos jornais funcionavam. Uma vez no arquivo, havia sempre a possibilidade de a foto ser usada novamente, com a data devidamente registrada, como ele poderia conferir ali naquele cantinho, em letras bem miúdas. E a mesma data também poderia ser conferida por sua esposa amantíssima. Como ele seguia furioso, engrossei: “Eu estava lá e sou testemunha de que o senhor fez questão de posar para esta foto. Lembro que pediu para botar as mãos bem aqui, ó!”.

Osvaldo começou a chorar como um bebê na minha frente. E agora ele era um homem quase velho, cabelos ralos e barriga cultivada em muitos verões em Canoa Furada. “Foi uma bobagem! Será que eu vou ter de pagar por uma bobagem de juventude pela minha vida inteira?” Fiquei com pena. Eu sempre fui assim, toda penalizada. Afinal, se a mulher tinha querido acreditar nele e seguir com aquele casamento do jeito que dava, eu não achava justo ele estar lá estampado dez anos depois.

Pedi uma licencinha e desci ao arquivo. Roubei os negativos (eram negativos) e entreguei a ele. Como era bom o mundo quando bastava roubar os negativos para a memória desaparecer! Algumas memórias, pelo menos. Pronto. Agora todas as provas do seu crime estão na sua mão. E não resisti. Agora é só você e a sua consciência. Osvaldo saiu cabisbaixo e eu me senti magnânima. Ele era um bom sujeito, afinal. Ninguém pode ser condenado a vida inteira por uma noite de mau gosto estético. E usar foto de arquivo, nestas circunstâncias, vamos combinar que é meio despropositado.

Me senti assim, superior e quase sem remorsos jornalísticos, até examinar o material trazido pelos fotógrafos no dia seguinte. E, adivinhem, lá estava Osvaldo, com sua barriga, sua careca, suas duas (ou seriam três?) mãos e agora quatro taitianas, o que só comprovava que os anos que não o favoreceram haviam sido generosos com sua conta bancária. “É esta a foto de capa!”, anunciei ao diagramador. “Abra em cinco colunas e avise a circulação para reforçar o repasse de Canoa Furada”.

Osvaldinho Tripé nunca mais deu as caras nem outras partes na redação do Meia-Noite. É tudo ficção, claro. Mas que a realidade é imbatível, ah, isso é.

Anônima fama

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Como eu faço para ser um homem comum? É o que ele se pergunta diante do computador. Ele não dá conta dos emails, não tem nenhuma ideia genial para o twitter, não sabe o que fazer com os amigos do facebook. O celular toca sem parar, os torpedos se sucedem aos minutos. Desconhecidos querem saber o que ele pensa da revolução no mundo árabe ou sobre o antissemitismo de Galliano. Ele não sabe o que pensa. Ele prefere às vezes nem pensar, ele não sabe o que pensa de quase nada. Ele não sabe nem o que pensa da própria vida. Ele não sabe nem se pinta a parede da cozinha de branco ou bege.

Ele não sabe como escapar, o mundo avança sobre ele por frestas virtuais, as pessoas o alcançam quando querem, não há mais portas, ele está acuado. E quando vai dormir o mundo acorda dentro do cérebro dele e ele já não consegue dormir. Porque todas as respostas que não deu e todas as perguntas que sabe que chegarão no dia seguinte falam dentro da sua cabeça. Ele não dorme com esse barulho que acorda também o seu coração que dispara e aí sim que ele não dorme porque pensa que vai enfartar sem ter colocado os emails em dia.

Pelo amor de deus e ele nem acredita em deus que o paraíso não tenha internet nem celular nem câmeras nem nenhum tipo de tecnologia. Que o Clint Eastwood esteja totalmente errado e que ninguém tente lhe contatar no além. Silêncio por favor! Mas não morre. Depois de muitas horas com as unhas cravadas no teto como numa tirinha do Angeli ele dorme e acorda com o computador avisando que o antivírus foi atualizado e ele está seguro.

Todo dia todo dia todo dia o mundo arranca nacos dele com dentes cibernéticos. Ele é só um homem com um passado mais ou menos comum e com um presente mais ou menos comum e com um futuro de incerteza mais ou menos comum. E os analistas todos do mundo e os psicanalistas do mundo e os filósofos do mundo e os nerds do mundo e o dono do bar da esquina comemoram que agora o homem comum pode falar e contar a sua vida e dar o seu depoimento e principalmente a sua opinião porque a internet realizou o lema da revolução francesa. E ele não sabe como contar que suas opiniões são do senso comum ainda que ninguém mais seja comum.

Para para para. Ele não consegue parar. Ele não quer nada disso. Ele só quer ser comum e anônimo e não ter de dar resposta sobre nada para ninguém e não ter de ser engraçado e não ter de ser inteligente e não ter de ser ácido e não ter de ser politicamente incorreto ou correto ou crítico ou progressista. Ele não quer ser seguido no twitter porque nem sabe para onde vai. Ele não quer ter amigos no facebook porque não conhece esses amigos nem conseguiria dar atenção a tanta gente. Ele não quer ter de gravar nem filmar nem fotografar nem denunciar nada. Ele não quer principalmente ter opinião sobre porra nenhuma.

Ele só quer ser o que é, que ele não sabe. E não ter de falar sobre isso.

Mas ele não sabe como parar nem o que fazer se parar. Então ele tuita seu dilema, ganha mais 203 seguidores no twitter e 135 novos amigos no facebook e dá sua opinião engraçadinha sobre Kadafi e brinca com os nomes do Gadafi e segue sua rotina taquicárdica até morrer anônimo e comum e deixar como marca virtualmente nada porque o mundo já tem outros assuntos e outros mortos.

O tempo escorrido

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

A primeira coisa que me chamou a atenção foram as mãos pousadas na mesa do bar. Não sei como não tinha percebido antes. A pele era fina, e a luz da vela as fazia amareladas. As longas unhas vermelhas da manicure não ofuscavam as primeiras manchas da idade. E as veias saltadas de verde. Eu sabia que me pertenciam, eram minhas as mãos daquela velha. Mas era uma informação racional. Naquele instante as estranhei. Não são minhas. Quem roubou as minhas mãos e deixou estas no lugar? Levantei e derrubei a bolsa da cadeira, fazendo um barulho que chamou a atenção dos outros para mim. E as mãos foram comigo, percebi quando as torci pela vergonha de me tornar o centro das atenções.

Deixei-as ali, sobre o colo, embaixo da mesa, onde nem mesmo eu pudesse vê-las. E senti pena das minhas mãos que a vida levou. Um fio vagaroso, mas ininterrupto, escorregou dos meus olhos, e eu me desesperei por causa do rímel que abria na minha face um leito negro de rio.

Então eu o vi. O homem do piano entrava no palco. Eu havia vivido com aquele homem há muito, muito tempo. Quando minhas mãos eram brancas e marcadas apenas pelas minhas sardas. E as unhas roídas. Ele estava lá o homem do piano, com uma barriga nova e a cabeça desescondida pelos cabelos que a vida tinha levado junto com as minhas mãos. Mas as mãos do piano eram as mesmas que no passado percorreram meu corpo com timidez e nenhuma técnica. Os dedos que me amaram agora percorriam o teclado com técnica e métrica. E amor. Não mais meu.

Percebi naquele instante que a velha que eu sou amava o jovem que ele já não é com um amor tão pungente. A vida é assim. Impossível.

Possessão de mim

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Desde que aprendi a escrever, tenho essa certeza. As letras estão nos meus dedos. As palavras moram nas minhas unhas. Não rói as unhas, dizia minha mãe. Depois o meu marido. Ainda diz. Ele não sabe que o que eu roo são palavras. Quando sinto que elas podem me inflamar, eu as rasgo com os dentes. Mato.

E quando sento no computador eu deixo que elas escapem pelas cutículas como vermes. Para escrever preciso antes apodrecer a carne dos dedos. Elas então saem de lá gordas e brancas. Rastejando. Mas nem sempre. Às vezes correm com suas ventosas rolantes.

Tenho medo delas porque mentem que são minhas, mas eu sei que são de alguém que mora dentro de mim. Bem fundo, lá na grande tripa. Eu sou a máscara que mora junto para que ninguém veja como é horrendo o rosto daquele que habita as entranhas de mim. Ou seria eu a habitar a sua face?

Eu mesma nunca vi o rosto dele porque também me escapa. Se perder a mim, sua máscara, retorcida pelo pavor de si, ele não terá como enviar seus exércitos de vermes-palavras para fora. Então brincamos de esconde-esconde. E nunca nos achamos.

E eu sonho. Desde pequena eu sonho. Que um dia vão descobrir e me amputarão as mãos. Então nós dois morreremos de infecção, explodindo de palavras que nos comerão a ambos, nutrindo-se de nós. E não haverá mais realidade porque não mais nos contaremos.

Então, nesta manhã eu fiz. Coloquei minhas duas mãos na guilhotina.

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