Cristo Verão 2011

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu primo Gilvan sempre foi considerado uma criança meio avoada, mas sem dar maiores preocupações à família que tinha outros dois rebentos bem mais ativos para cuidar. Foi só neste veraneio que vi minha tia Jurema torcer a boca, sinal pouco alvissareiro. Esta minha tia sempre torce a boca, formando uma espécie de triângulo com o lábio inferior, quando precisa dar uma notícia que está salivando para soltar, mas ao mesmo tempo precisa fingir um certo pesar. “O Gilvan está emaconhado.”

Tentei não ofender a solenidade dela. E com todo o tato garanti que maconha não é uma droga pesada, até mesmo Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, sociólogo e tudo o mais, anda defendendo a liberação. Não adiantou muito. Minha tia Agnes, que jogava buraco com tia Jurema, garantiu que a prima da manicure da dona da quitanda tinha um sobrinho que conhecia um cara que havia entrado no supermercado do jeito que veio ao mundo depois de ter injetado uma maconha braba. De nada adiantou, novamente, eu jurar pela vida do meu pai e da minha mãe e do meu louva-a-deus de estimação que maconha não se injetava. Elas apenas torceram mais a boca. Quando querem que eu escreva uma carta desancando a secretaria de obras por causa dos buracos da praia, eu sou a pessoa certa. Afinal, é para isso que serve jornalista formada. Mas sobre emaconhamento, me consideram destituída de credenciais. Nem sei se tu também não experimentaste o tóxico, me dizem, com suas caras de fuinha. E falam “tócchhco”.

Esqueci o assunto até ser convidada a almoçar na casa da tia Solange. Este é o problema de famílias que veraneiam unidas na mesma praia do litoral gaúcho varrida pelo mar aberto e pelo Nordestão. Um dia você é varrido junto quando chega uma intimação verbal que não aceita negativa para almoçar na casa do Cristo da vez. Sim, porque as praias têm Garota Verão, Miss Atlântico Sul, coisas do gênero. Mas famílias têm Cristo Verão 2011. E, claro, é preciso exibir a faixa em público até para alguém considerada meio da pá virada como eu, que já acumulou troféus em verões de antanho. E o Cristo deste verão é o pobre do meu primo Gilvan, o emaconhadinho.

Fazia tempos que eu não via esse primo, agora que moro para as bandas de sumpaulo, como eles dizem. E não é que Gilvan me surpreende muito positivamente? Deitado na rede, ele exibia um sorriso tímido e lia um exemplar de O Apanhador no Campo de Centeio tão surrado que com certeza não era a primeira vez que ele o usava como escudo contra as hostes familiares. Me comovi quase às lágrimas, eu que fiz meu PhD em defesa contra as artes das trevas familiares naquele mesmíssimo clã.

Me ensaiava para puxar um papo com ele sobre o livro quando tia Solange bateu o sino da macarronada. E se a gente não corresse e a macarronada passasse do ponto, aumentaríamos em anos nossa estadia no purgatório. Sim, porque tia Solange ainda nem se recuperou da abolição do limbo para crianças não batizadas. Papa frouxo, costuma dizer ainda hoje, de Bento XVI.

Portanto, corri. E praticamente aterrissei numa nádega só na cadeira. E lá estou, toda feliz, enrolando o espaguete no garfo, quando ouço o meu nome citado pela gárgula da minha tia. Gilvan, ela diz, sua prima jornalista de sumpaulo está aqui para te falar dos malefícios da maconha. Meu espaguete escorregou para o meu colo e depois para o chão onde eu me enfiei embaixo da mesa para procurá-lo, mas a maldita cadela achou antes de mim. Tentei ainda encontrar o buraco da Alice, mas só achei um pedaço semidecomposto de cenoura e nenhum coelho.

Tia Solange, eu não tenho a menor condição de falar sobre a maconha, emergi. Pelo amor de Deus, não me coloque nesta situação. Too late, o furdunço já estava armado. Eu não acredito que você trouxe a prima aqui para me constranger, gritava Gilvan. Eu juro que vou embora desta casa. Ué, está com vergonha de puxar fumo agora?, provocou o irmão mais velho, uma criatura que eu francamente detestei desde os primeiros passos, sempre catarrento e fazendo maldades com todos os cães sarnentos que mancavam pelas ruas. Ele acha que com um béqui consegue se enturmar com as periguetes da praia, alfinetou a irmã, cuja boca era a única espinha móvel do rosto. Olhei para o meu tio, que enrolava e desenrolava o espaguete no prato como se disso dependesse a solução para a camada de ozônio.

A orquídea

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Por acaso eu olho pela janela. Olho para o nada. Na verdade, olho para dentro. Estou distraída no meu dentro. Meu cérebro registra um movimento, mas eu não chego a ver. Só compreendo quando escuto o barulho. Mas nem sei se houve um barulho. Percebo que algo caiu da sacada do prédio diante de mim. Lembro de tirar o vaso da janela dos fundos. Sempre que chove — quase todo dia nesta época em São Paulo — penso que preciso tirar o vaso da beirada de janela antes que caia sobre alguém no térreo com o peso de um elefante. Não é um vaso lá embaixo na calçada. Busco meus óculos. Sou míope, mas como todo mundo não encontro os óculos quando preciso deles. Descubro-o largado no sofá azul. Enxergo. É um corpo. Uma pessoa. Algo no jeito do corpo me leva a intuir que é uma mulher.

Só percebo que desci os oito andares pelas escadas quando já estou lá embaixo. “Ela se atirou”, uma vizinha diz. Morreu? Ela morreu? Eu pergunto e fico repetindo a pergunta estúpida. “Seis andares”, diz o vizinho de chapéu. E agora? Eu pergunto. Estúpida. “Agora o quê?”. O velhinho que toma sol se aproxima. “Quem se mata é porque não tem foco na vida.” Eu me preparo para dizer que tem de ter muita coragem para se suicidar. Mas olho para ele quando estou abrindo a boca e vejo o quanto ele tem medo de morrer agora que a vida é contada em meses. O quanto aquela vida jovem estatelada no chão ofende o seu medo de morrer. E me calo. A vizinha do cachorro com focinho de tomada conta que aconteceu no nosso prédio também, antes de eu vir morar nele. “O rapaz não era muito certo, sabe. Problemático.” Sim, eu quero dizer. Você não é problemática e está salva. Mas apenas aquiesço com a cabeça porque sei que ela está fazendo o melhor possível enquanto finge carregar o cachorro que a carrega.

Espio com medo do sangue. Estremeço. A moça tinha um brinco de pérola na orelha. Em algum momento antes de saltar no vazio ela colocou um brinco de pérola. Em algum momento, como todos nós a cada dia, ela tentou. Me sento no banco do jardim enquanto os bombeiros chegam. Depois a polícia. As dezenas de janelas ao meu redor que meus olhos abarcam me enchem de medo. As vidas todas que não sei. Refaço meus passos naquele dia. Minhas horas povoadas de nada que é tudo ganham outro sentido agora que tenho a consciência de que logo ali uma mulher sentia uma dor maior que a vida. Será que enquanto eu cozinhava o arroz integral ela pensava em se atirar pela janela? Quando eu escrevi na lista do supermercado que era para comprar cebola média e não grande ela espiava para baixo? No momento em que eu discutia com a moça do cartão de crédito que repetia “Lamento, senhora, mas não posso fazer nada” ela já tinha um pé no ar?

Entre mim e ela apenas alguns passos que nunca foram dados. Podemos ter roçado o braço uma na outra quando eu descia para comprar sorvete no japonês da esquina. Talvez fosse dela a bicicleta na sacada. Quem sabe foi ela que gritou bêbada na madrugada do ano-novo. Eu sei que esses passos nunca serão dados. Que entre mim e todos os outros será sempre perto de mais e longe demais.

“Venha, suba com a gente no elevador. Essas coisas acontecem”, chama o vizinho do chapéu. Ela se foi levando com ela todos os cotidianos que também são nossos. E é só um soluço na cidade. Mas eu subo porque preciso continuar subindo para não saltar. A vizinha do cachorro com focinho de tomada e o cachorro com focinho de tomada também sobem. Ela pergunta se eu preciso de algum produto da Natura. Eu não preciso. O vizinho do chapéu pede que eu espie dentro da caixa que ele carrega. Eu espio. É um bolo de cenoura com cobertura de chocolate. “Você quer um pedaço de bolo?” Não, obrigada. O elevador para. É a minha vez de desembarcar. E em vez de saltar eu desembarco.

Me despeço e percebo que estou feliz com aqueles minutos banais compartilhados naquele retângulo de metal, enquanto viajamos rumo ao nosso destino determinado por um número na porta. Ela também tinha um número na porta. Entro no meu apartamento e corro para o vaso na janela. A orquídea está perto de florescer. A orquídea agora é um quase.

Por que ela saltou? Ela não tomou duas cartelas de comprimidos tarja preta nem deu um tiro na boca nem cortou os pulsos entre paredes que nos mantinham a salvo da dor dela. Não, ela escolheu romper a barreira entre ela e o resto de nós. Ela saltou. Será que saltar foi uma tentativa não de morrer, mas de viver? A dor do mundo de dentro era tão avassaladora que ela saltou para fora. Saltou de dentro de si.

Eu me abraço ao vaso. E fico um tempão assim. Salvei a orquídea.

O mistério do marido

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ainda hoje, quando bebe um dry martini a mais, ela se dá conta que não consegue identificar o momento exato em que o marido começou a ficar estranho. Quando se vive há tanto tempo com outra pessoa, é fácil deixar passar alguns detalhes. Com os anos, até se aprende que o melhor mesmo é deixar passar alguns detalhes. Ele deve estar se estressando no trabalho, ela concluiu ao tentar entrar no banheiro para secar o cabelo e levar a porta na cara. Será que eu não tenho um pingo de privacidade na porra desta casa?, ele reclamou. Grosso, ela respondeu. E pronto.

No outro dia, de novo. Depois de terem discutido por anos porque ela achava um absurdo ele fazer xixi de porta aberta, agora era o marido quem fazia questão de se trancar lá dentro. Com chave, mesmo. Será que está se masturbando a esta hora? Não, ela não era daquelas mulheres que achavam que homem casado não pode bater punheta. Se for isso, beleza, pensava. A sexualidade é um território livre. Desde, claro, que as fantasias com outras mulheres (e homens… melancias, anões besuntados com amendocrem e pastores alemães, de duas e quatro patas) ficassem apenas dentro da cabeça dele. Mas punheta logo de manhã cedo? Estranho…

Ele saía do banheiro com aparência feliz. Às vezes até assobiava Garota de Ipanema. Afinado, ele. Você mudou o corte do cabelo?, ela perguntou. Estou deixando crescer. Acho que com o cabelo mais comprido pareço mais magro. Oquei. Durante todos os anos de casamento ele tinha feito o mesmo corte de cabelo militar, religiosamente uma vez por mês, com o mesmo barbeiro, o Ronivon Barber Shop. E o corte durava o tempo exato de ler, segundo ele, a entrevista completa da Playboy. Hum….

Ela começou a reparar que agora ele sacudia o cabelo e passava os dedos entre as mechas como uma loira. Ele tem outra, disse à melhor amiga, e em seguida caiu no choro. Não, o Rômulo Alberto não faria isso. Todo mundo sabe que ele é louco por você. Por que outro motivo um homem muda o corte de cabelo de uma vida inteira? Ele agora está sempre olhando no espelhinho do carro. Disfarça, para que eu não perceba, mas eu finjo mexer na minha bolsa e bingo, lá está ele arrumando o cabelo. E me evita. Antes acordávamos e dividíamos o banheiro. Tínhamos ótimas conversas enquanto ele fazia a barba e eu secava o cabelo. E às vezes até rolava um strangers in the morning. Ai meu deus, ele não me suporta mais. Sente repugnância por mim.

Decidiu confrontá-lo. Naquela noite, quando ele chegou do trabalho, ela estava pronta para uma DR. Quando a viu, bem posicionada na poltrona, olhos de atirador de elite do FBI, teve vontade de ir comprar cigarros, mas lembrou que não fumava. Não, DR não, por favor! Eu tive um dia de cão castrado.

Rômulo Alberto, nós precisamos conversar. Xiiii, quando ela chamava de Rômulo Alberto em vez de Pituluquinho é porque a coisa tava feia. Deixa só eu largar a mochila e lavar as mãos, suspirou. Desde quando ele lavava as mãos? Ok, mas não demora. E não precisa se trancar no banheiro porque eu não vou tentar entrar.
Pronto. Ele estava sentado diante dela como uma criança de 9 anos. Você tem uma amante. Está doida, mulher? Você acha que eu tenho tempo de ter amante? Eu te amo, você sabe. Ele parecia sinceramente surpreso. Mas, ela tinha certeza, estava mentindo. Não adianta, Rômulo Alberto, uma mulher percebe nos detalhes. Você não me quer mais no banheiro de manhã. E NENHUM HOMEM MUDA O CABELO DE TODA A VIDA SEM QUE SEJA POR UMA AMANTE!!!!

Ele parecia agora ter cinco anos. As pernas para dentro. Cabeça baixa. Meu deus, era verdade, ele tinha mesmo uma amante. Vou ficar com o apartamento, ele que vá para um hotel. E hoje mesmo. Vou ficar com o carro também. Ela mesma se surpreendeu. Parte dela chorava sentido, a outra fazia cálculos, a mente límpida como um Ipad de 64 GB.

Ela ouviu um ruído baixinho. Meu deus, ele está chorando. Desculpa, Flortolindinha, eu devia ter te contado. Rômulo Alberto, como você pôde fazer isso comigo? Depois de tudo que vivemos juntos! Você sabe, o apartamento vai ficar comigo! Quem faz a merda é que tem de se foder! Ela então se deu conta. Ele está fodendo com outra. O meu Pituluquinho está fodendo com uma dragonete qualquer. Ou não é uma qualquer? Será que ela consegue dar tchau sem que o braço faça ola? E desandou a soluçar.

Ele tentou abraçá-la. Ela o repeliu com um tapa que alcançou o ombro dele. E se vingou: É bom, mesmo, porque agora eu posso te contar que na noite anterior ao nosso casamento eu dei para o Rodrigão. O Rodrigão era o melhor amigo dele. O quê? Como você fez uma coisa dessas comigo? O Rodrigão é meu amigo desde os tempos da Penha! Ora, eu estava confusa e assustada com a possibilidade de transar só com você pelo resto da minha vida. Mas nem vem. Isso foi antes do casamento. Desde que eu disse sim lá no altar eu nunca, nunquinha, te traí.

Ele atravessou a sala como o Tocha Humana (isso aconteceu antes de O Quarteto Fantástico virar trio). Quando ela o alcançou, ele já estava jogando uma pilha de cuecas na mochila. A gente conversa quando eu conseguir olhar na tua cara. Não inverta as coisas!, ela gritou. Eu quero saber quem é a baranguete com quem você está me traindo!

Ele olhou para ela, antes de fechar a porta do apartamento. Hesitou alguns segundos, limpou a garganta e disse, desafiador. Não tem nenhuma outra mulher. Eu só estou usando pomada modeladora para o cabelo. E tinha vergonha de contar. Você acabaria comentando com as suas amigas e elas comentariam com os maridos e seria como aquela vez em que vocês acabaram com a vida do Sílvio Luís porque ele fazia as unhas do pé no salão. Ou com o Geraldo quando comprou um leque na Liberdade para fazer artes marciais. Por isso eu não te queria no banheiro. Você sabe, eu sempre tive complexo de ter o cabelo muito armado. Então o Ronivon me deu uma pomada modeladora e garantiu que não era coisa de metrossexual. Eu nem sei como passei a vida sofrendo com o complexo do cabelo sem saber que existia algo como a pomada modeladora! E agora eu tenho o cabelo quase igual ao do Richard Gere. Tchau.

Ela tentou segurá-lo. Se humilharia se fosse preciso. Emprestaria sua pomada modeladora importada se a situação piorasse. Por que você não contou de uma vez? Eu juro que não ia rir. Até o Justus usa e nunca foi demitido por isso! Ops, talvez não seja uma boa referência. A Hebe usa! Merda, pensou. Estou me enterrando. Sansãããããããooo!!!!!

Ele se desvencilhou dela com um safanão. Largou a mochila no chão e entrou no apartamento. Ela abriu os braços, pensando que tudo ia ficar bem e ririam muito do mal entendido. Mas ele passou reto. Voltou com um potinho branco. Tinha esquecido a pomada modeladora. Sacudiu o cabelo como uma loira e bateu a porta sem se despedir.

Como desbanquei Winnicott e revolucionei a psicanálise dos bebês

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Não sei se é um fenômeno localizado, mas ao meu redor todas as mulheres estão tentando gerar bebês ou esperando bebês ou parindo bebês ou amamentando bebês. Pensei que era uma reação atávica diante do aquecimento global, mas me disseram que isso acontece em períodos de estabilidade e/ou crescimento econômico. Culpa do Lula, como quase tudo. Aparentemente, nunca antes na história deste país houve tanta mulher barriguda ou querendo embarrigar. Bastiões até então inabaláveis como meu irmão do meio, que chamava bebês de “bípedes desplumados” até ontem, resolveu ter o seu aos 51 anos de idade. O cara costumava falar de nebulosas, de partículas subatômicas, e agora é capaz de descrever em detalhes uma cadeira de amamentação. E descreve, se não for impedido a tempo.

Nesta semana mesmo fui almoçar com duas amigas e, claro, uma está grávida e a outra amamentando. Enquanto segurava um lindo beibi macho no colo para a mãe poder comer seu spaghetti, eu tive de tomar uma garrafa de espumante sozinha porque nenhuma delas pode beber, o que afetou desgraçadamente o meu dia e também o dia seguinte. No meio do almoço outra amiga me ligou para me contar uma notícia urgente. Trocou de emprego?, perguntei, esperançosa. Não! Estou grávida. Claro, claro, meus parabéns. Menos uma para ir ao cinema, ao boteco, à Rua 25 de Março em busca de calor humano. Eu sei, é ridículo, mas estou com ciúmes dos bebês. De todos eles.

Foi com uma destas mães absolutas que comecei a desconfiar que algo não estava bem explicado na relação mamãe-bebê. Ela me ligou fungando: “Meu bebê não me ama”. Claro que ele te ama, eu disse. Na verdade, ele nem sabe que não é você, respondi toda witty. E ela, agora aos soluços. “Ele sabe, sim. Sou eu que não sei.” E a partir daí comecei a observar. E pronto, revolucionei a psicanálise dos bebês.

Você com certeza já ouviu falar da tese totalmente aceita de que o bebê leva um bom tempo para descobrir que a mãe é uma outra pessoa — e não um peito quentinho e cheio de leite que faz parte do seu corpo. Desde o século 20 que se acredita nisso. Mas a verdade é que Donald Winnicott, o psicanalista que melhor desenvolveu esta teoria, falhou miseravelmente. Depois de longa e atenta observação de espécimes humanos prenhes e em fase de lactação, posso afirmar que é exatamente o contrário. Minha amiga tinha toda a razão. É a mãe que não sabe que o bebê não é ela. Não faz parte do seu corpo, não é uma continuidade do seu peito. O bebê sabe perfeitamente.

Para mim, ficou muito claro em apenas umas poucas incursões a campo. Desde que passei a competir com estes seres roliços, banguelas e cheios de dobrinhas, que minha vida se tornou miserável. Eu tento. Você viu o último filme do Clint? “Ai, meu deus, está vazando leite.” Claro, como elas vão se importar com a vida do além se acabaram de dar à luz e estão se achando deus em pessoa?

Eu não desisto. Que horror o que aconteceu no Rio, não entendo como ninguém responde na Justiça por isso. “Fala a verdade, ele não é a cara do Jude Law?” Claro que não, mas eu minto.

Eu sou muito insistente. Estou com uma dor no peito, ou é uma crise de angina ou é angústia por fazer 45 anos em 2011. “Mexeu! Você viu? Bota a mão aqui na minha barriga a-go-ra.”

Eu sou obstinada. Encontrei o Russell Crowe num pagode ontem e fizemos sexo tântrico no mosteiro de São Bento enquanto os monges cantavam Abba. Ele até entendeu o meu inglês. “O pediatra achou melhor eu não dar a chupeta. Não por causa da dentição, mas porque depois é muito difícil tirar.” Qual é a relação, criatura, fora a escatológica? Desisto.

Como tenho muita resiliência, resolvi fazer do limão uma limonada ou algum clichê do gênero. Usei o sofrimento e o abandono a meu favor. E foi assim que desbanquei Winnicott e várias gerações de pensadores do comportamento humano com esta genial descoberta. Fui, inclusive, mais além. Busquei estudos antigos e constatei que algumas mães só se diferenciam dos seus bebês por volta dos 30 anos — deles.

Ou mesmo nunca. Sim, seus bochechudos ladrões de amigas fieis, de mulheres independentes e versáteis, eu sofro agora, mas vocês sofrerão depois. E por muito mais tempo. Segundo minhas mais recentes pesquisas, esta geração vai envelhecer tentando convencer suas bem intencionadas e modernas mamães que não, seu corpinho não lhes pertence. E que, sim, com 25 anos já pode pegar o ônibus sozinho. Titia vai estar lá, deitada no seu sofá azul, assistindo ao espetáculo da vida enquanto se afoga feliz numa garrafa de espumante.

Sexo selvagem na biblioteca

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Desde pequena, sexo, livros e comida estiveram intimamente ligados na minha vida. Graças a isso, para mim não há homem feio. O que não suporto é homem que cuida do corpinho, mas esquece que os neurônios também são filhos de deus. O cara pode se assemelhar ao piolho da Tasmânia, mas se disser uma frase inteligente eu fico toda alvoroçada. É claro que se disser algo inteligente querendo parecer inteligente ou se achando o último pinto depois do holocausto nuclear, viro as costas na hora e vou comprar uma fanta-uva.

O fato é que, para mim, não há nada mais afrodisíaco que uma frase inteligente, mais ainda se ela me fizer rir, o cheiro de livro velho e alguma coisa para mastigar. Por isso eu tenho um Ipad, mas sigo frequentando sebos. E sofro de bloqueios para fazer dieta. Resumindo. Minha equação erótica é: homem inteligente + biblioteca + comida = sexo selvagem.

E aí há um ponto intrigante: por que sexo selvagem? Passei anos buscando a fonte desta combinação que chegou a me causar alguns problemas ocasionais com a lei. Horas e horas de divã. Hipnose, florais e, num ato de desespero, cheguei a fazer uma regressão a outras vidas. Apenas para descobrir que a soma das vidas passadas, pelo menos as minhas, resultaram num profundo tédio ao longo das eras. Ainda bem que a gente não lembra, senão ia preferir dormir a nascer.

E então, bingo. Agora pela manhã tive um insight. Do tipo um clarão no cérebro com trilha do Gênesis. Aconteceu quando eu tinha 11 anos. Eu precisava pesquisar algum tema do fascinante currículo da quinta série e peguei uma carona com o meu pai para a biblioteca da faculdade numa noite em que ele daria aula. Era a maior biblioteca que eu já tinha visto e, o melhor, tinha salinhas. Me fechei numa salinha com uma pilha de livros jamais lembrarei sobre o quê. Sou muito sensível a atmosferas. Posso ficar horas parada, aparentemente não fazendo nada, mas na verdade estou vasculhando o ambiente.

A biblioteca ficava praticamente no meio de um bosque. E à noite a vida se impunha. Mariposas cometiam suicídio atirando-se contra a lâmpada fluorescente. Insetos caminhavam sobre a mesa com um número improvável de patas. Pernilongos produziam um remake cinematográfico de A comilança no meu corpo. Então eu vi. O louva-a-deus. Ou melhor, a louva-a-deusa. Acompanhei passo a passo o sexo mais eletrizante de toda a minha vida com medo de respirar e quebrar o encanto.

Anos depois eu participaria de uma caravana para assistir ao Império dos sentidos no cinema da cidade pequena, supervisionada pela irmã casada de uma amiga. Ao perguntar minha opinião no final do filme, minhas colegas ficaram chocadas. Eu apenas esbocei um “puff”. Aos 14 anos, eu já tinha visto coisa muito mais impactante.

E tinha mesmo. Ali, na biblioteca, o louva-a-deus perdeu a cabeça. Literalmente, enquanto gozava (ou pelo menos eu espero que sim). Como diria o biólogo Alessandro Boffa no genial Você é um animal, Viskovitz?, ao terminar, ainda mastigando, a superfêmea resmungou: “Crocante, rico em fibras”. Fiquei extasiada. Até hoje, quando vejo aquelas mulheres alfas desfilando por aí com seus sapatos de matar barata em canto, eu digo: puff. Poderosa mesmo é a louva-a-deusa.

E foi assim que tudo começou para mim. O meu ponto zero. Nos próximos anos, seria a vez de a minha família ficar extasiada com minha paixão pelos estudos, amplamente pavoneada para parentes e amigos reunidos na mesa de refeições. “Esta guria não sai da biblioteca.” E eu só mastigando o franguinho de domingo. Por enquanto.

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